Carlo Bertolazzi

Page 1

Carlo Bertolazzi (1870-1916) Este autor de teatro dialetal é Milanês. O teatro dialetal existe desde as comédias girovagas dos mimos do tardo império romano. Artesanato milenar, responsável pela grande tradição interpretativa italiana, muito cultuado na Itália, foi – e é - ideologicamente desprezado pelo mundo burguês através da fetichizaçao da “arte” empregatícia do “profissionalismo” da dicção de língua escrita. Este trecho de “EL Nost Milan” (“Nossa Milão”- - foi feita uma antológica montagem por Giorgio Strehler no Piccolo Teatro, em 1956) é um exemplo de teatro realista, da mesma matriz do cinema neo-realista italiano, quase todo ele dialetal também, com a diferença de a palavra no teatro corresponder à importância da imagem no cinema. Portanto, a presente tradução não pretende e nem deve ter o mesmo retorno de um filme neorealista; mas fica como exemplo da estria dos autores peninsulares de um teatro popular, refinado, técnico. Além de ser precioso para a compreensão de como nasce um roteiro neo-realista, até no cinema. Aqui, o momento em que, Nina, a filha do mal vivente Peppon, decide de ir atrás dos “sciuri” (senhores, ou seja, bacanas). Qualquer semelhança com o Brasil... Enfim, podemos aprender muito de tais autores (de Eduardo até Pirandello). Com certeza Gianfrancesco Guarnieri, ele mesmo nascido em Milão, sabia desse tipo de dramaturgia.

El Nost Milan (1893) Peppon [Pedrão] (Tomado pela emoção, chega perto da filha. No começo, gagueja, não acha as palavras, depois fala com um choro na voz típico de quem esta ofendido no que tem de mais precioso, no orgulho de homem popular no fundo honesto) – Nina! Ouça-me bem, olha, estas são as ultima palavras do teu pobre papai. Que agora vai pras mãos da justiça, acredita, por favor, me dá razão (forte) Continua esfarrapada, passa fome, mas não vai com eles, não vai com os bacanas, pelo amor de Deus! Está vendo, só de pensar nisso acho que eu vou ficar louco! Não vai com os bacanas! Nina (Devagar, quase separando as silabas) - Não, já decidi, papai, já decidi mesmo! (Enquanto ela fala, o pai a observa, antes com surpresa e depois, assustado; ao final, vencido, consente, com sinal de cabeça, subjugado pelas razoes da filha. Nina encontra uma entonação estranha. Em sua voz revela-se toda uma resignação desesperada). É inútil ter ilusão. Olha, agora vou te falar como nunca te falei! (aparentemente calma.) De um tempo pra cá, me sinto de vez que virei outra menina, muito diferente! Não sei não, parece que eu


tenho um pedaço de pedra no lugar do coração! Vou te dizer tudo antes que a gente se separe pra sempre. (Com tristeza crescente) Ta’ vendo o que virei, tudo d’ uma vez? Já não tenho medo de mais nada, digo coisas que nem eu sei; passei muito desgosto. (Comove-se sem perceber) Se eu era boazinha, papai, era boazinha faz tempo! (pausa). Começou você a errar, por ter me criado sem dizer o que ‘cê era; (Vendo que o pai procura de opor. Deixa, deixa que eu tiro da cabeça isso d’ uma vez, vou desafogar, depois você se defende!| ‘Cê Lembra? Eu ficava sempre em casa, numa vizinha, ‘cê chegava tarde e me trazia sempre alguma coisa gostosa... Aí eu ficava bem! Era tratada como uma bacana! (Docemente) Mas eu sabia que ‘cê não trabalhava na praça, que você tirava a comida da tua boca pra deixar pra mim! E que quando te levaram pro hospital, um belo dia a vizinha me põe pra fora da porta, ‘cê lembra? Fui te visitar. (Pausa) Perto da tua cama ‘tava um velho, você me deu um beijo e me disse “vai com ele!”, Ele era o pai do Rico! (pausa) Fiquei lá um mês, nos ferros, na rua, assim, ajudando os outros, porque eu não era boa de dança; enquanto isso você ficou bom e saiu dali. Eu depois de um mês não era mais eu: o Rico tinha me enfeitiçado! (Com paixão e transporte) Ah, meus Deus! Como eu gostava daquele homem! A única pessoa que eu amei nesse mundo, a única! (Áspera) Porque a gente não pode ficar junto? Porque foi eu não pude me casar como todo mundo? (com dor) Porque eu era filha de ninguém, sem grana, sem nada, uma miserável! (Pausa, abaixa a cabeça cheia de lagrimas. Fala soluçando.) O Rico morreu tísico, no seu barraco, enquanto eu chamava ele pra fora, para a gente se divertir um pouco! Foi o que foi... (Fala, rouca, aos poucos) Conheci o Carlão (Com ódio), esse bandido nojento! Que não deixa eu nem respirar! ‘Cê odeia ele, n’ é, pai, ‘cê odeia ele, mas precisa que eu fico com ele, que eu gosto dele! Quando ele me olha na cara, eu tremo toda pra ele não me levantar a mao! Mas eu me cansei, não agüento mais: passo fome direto! (Com amargura crescente). Direto! Sempre! (Esforça-se para sorrir; pausa) Anteontem vi o Moreno numa carroça! Ia pro centro! Subi na carroça, não agüentei mais, e fui dormir na Marina! (Pausa, com um sopro de voz). Amanha ela vai me apresentar pr’um senhor, pr’um engenheiro, daqueles de cartola; que vai me vestir como uma senhora! Quero virar uma bacana, comer do bem-bom, beber vinho e dormir embaixo duma coberta! (Quase resignada) é inútil, você também sabe, você pode ver e tocar isso de verdade: (Com tristeza imensa) Gente pobre como a gente não pode escolher nada nesse mundo; se a gente pensar bem, precisa ou passar fome ou matar, aí ir pra cadeia ou... fazer como eu! O que falta mais pode fazer? O que? Diz você, se você é bonzinho. Você e seu colegas gritam contra os bacanas mas continuam a mastigando amargo. Se muito, tem um pouco pra ti, mas devia ter pensado na tua menina e ter feito uma vida menos ruim. O que foi? Vou me arranjar como posso! (Animando-se) Eu também tenho direito de gozar um pouco desse mundo, sou igual às outras, tal e qual! (Chega ao choro) E quando vem a tristeza, quando eu também sinto alguma coisa aqui dentro, que parece que quer pular pra fora, então, jogo fora tudo quanto é mau pensamento, e volto a ser malvada,


(Chora) sem coração e sem sentimento. Não olho mais nada, ‘tou cansada de sofrer, ‘tou cansada de ficar nessa vida!


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.