Cine Teatro Limite

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Cine-­Teatro Limite de Pedro Brício


Cine-­‐Teatro Limite de Pedro Brício Ato 1

Prólogo O cenário da casa está na penumbra, atrás de uma tela. Um foco se acende na frente do palco. Totorito entra, de cartola. Totorito-­‐ Boa noite... bem vindos, à minha estória. Eu sou o protagonista. Acho. A gente sempre acha que é o protagonista da nossa estória. Quando eu era um meninote, eu pensava que enquanto eu dormia, o mundo inteiro ficava parado, me esperando acordar... e assim que o despertador tocava, eu abria os olhos e o mundo voltava a funcionar, como um carrossel enferrujado... o trânsito recomeçava, as pessoas na rua retomavam o seu andar apressado, o vendedor de jornal começava a anunciar as notícias do dia... a “figuração” entrava em cena. Eu tinha certeza que se por acaso um erro do destino me colocasse um bonde a toda velocidade no meu caminho, me matando no meio da rua, o mundo imediatamente desapareceria... (p/si) para onde vão os nossos pensamentos quando a gente morre ?... por quê eu estou falando isso ?... não sei. Ah. Boa noite... bem vindos, à minha estória. Eu sou o protagonista. Eu sou um péssimo narrador. Mas bem-­‐vindos, de qualquer maneira. A nossa estória é uma comédia. Foi o quê o produtor escreveu, embaixo do título, ao ler o roteiro. Por que eu, pessoalmente, nem acho tão engraçada assim. E eu sou um comediante... (contando uma piada) “Vocês sabem o que Getúlio disse para Hitler engasgando com o chimarrão ?”... nem eu. Não, não é assim. Desculpa, é difícil achar o começo... Boa noite. É isso. Vocês acabaram de chegar ao cine-­‐teatro “Limite”. Estamos na rua da vala 34, Lapa, Rio de janeiro, Brasil. O ano é... 1944. Na tela, surge, em letras tortas, o título do filme. Ouvimos os primeiros acordes da música de abertura. E em fusão, a sala de um sobrado antigo...”

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Cena 1 A música de abertura toca. Sábato está escrevendo. Ouvimos a voz da mãe, fora de cena. Mãe-­‐ Mentira !... você quer me matar do coração ?... não é possível !... como acabou a carne moída ?... faz à alho e óleo então... é, de novo... alho e óleo ! (ela entra) Meu Deus, parece que fala uma língua estrangeira... (ela vê Sábato) o quê você está fazendo ? Sábato não responde. Mãe-­‐ Como é que você consegue escrever numa hora dessas ?

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Sábato-­‐ Não sei. Mãe-­‐ O seu pai já está subindo as escadas. Sábato-­‐ Será que ele vai me mandar para o campo de concentração? (Ela olha para ele) Desculpa. Não fala nada, deixa, deixa que eu resolvo... e se a gente inventar que eu tive uma crise de alergia ? Mãe-­‐ Alergia `a que ? Sábato-­‐ À coelho. Eu não posso sentir o cheiro de coelho. (ela olha para ele) É melhor falar a verdade. Mãe-­‐ Por quê você fez isso, Sábato ? Sábato em silêncio. Mãe-­‐ Você comprou um presente, pelo menos ? Sábato-­‐ Não tenho certeza se ele vai considerar um presente. Mãe-­‐ Deixa para contar amanhã, melhor. Sábato-­‐ Sempre melhor. Ela veste um chapeuzinho de aniversário e dá para ele.

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Sábato-­‐ É o mesmo do ano passado ? Mãe-­‐ Nancy, acende a vela !... você acha que eu estou bonita ? Sábato-­‐ Você é bonita, mãe. Mãe-­‐ Abre a porta. Sábato-­‐ A gente não vai esperar o Valentino ? Sábato vai até a porta e apaga a luz. Blecaute. O Pai entra no escuro. Eles começam a cantar. Nancy, a empregada, também de chapéu, vem com a vela do bolo acesa. Sábato, Mãe e Nancy-­‐ “Parabéns pra você, nesta data querida, muitas felicidades...” Ouvimos o som de uma queda. Pai-­‐ Ai ! Mãe-­‐ O quê houve ? Pai-­‐ Acende a luz !... acende essa luz ! Sábato-­‐ Não estou achando o interruptor... Mãe-­‐ Olha a cristaleira !

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Pai-­‐ Porca miséria ! Sábato acha o interruptor. A luz acende. Mãe-­‐ Machucou ? Pai-­‐ Que idéia apagar a luz ! Sábato-­‐ Não era para apagar a luz ? Pai-­‐ (com a mão na cabeça) A minha carteira... Mãe-­‐ Vai buscar gelo, Nancy. Pai-­‐ Eu estou bem ! Sábato -­‐ Desculpa, pai. (Pega a carteira no chão)... que bom que você ainda não usa dentadura... desculpa. Mãe-­‐ (animada) Vamos cantar de novo : Mãe, Sábato e Nancy-­‐ “Parabéns pra você”... Pai-­‐ Basta ! Basta ! Per favore.. eu quero comer o bolo na hora do bolo. O pai se dirige até uma cadeira, se senta. Nancy volta para a cozinha com o bolo. A mãe e Sábato se olham. O pai tira um pente do bolso e começa a pentear o cabelo.

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Pai-­‐ Eu já disse que não faço questão de comemorar, que bobagem... aniversário é que nem Natal, uma invenção do comércio... Sábato se senta. Pai-­‐ Eu briguei com três clientes hoje, três !... pergunta se alguém me deu parabéns ? Não, não existe mais cortesia nesta vida, essa é a verdade... é por isso que o mundo está em guerra, as pessoas só pensam em se explodir... Sábato-­‐ Quer uma aspirina ? Pai-­‐ E sabe quem foi o primeiro cliente ? Enzo Giuseppe, seu amigo. O tratante teve o desplante de me perguntar se eu poderia entregar aquele panfletinho na banca. Eu olhei bem na fuça do vermelho desgraçado... A mãe entra. Mãe-­‐ Feliz aniversário... Ela dá o presente para ele. Ele abre o embrulho, é um rolo de macarrão. Mãe-­‐ A Francesca trouxe da Calabria... Pai-­‐ (eufórico) Dio mio, ma che matarello bravissimo!... se não tivesse coelho hoje, eu faria um spaghetti inesquecível... Mãe-­‐ Mas vai ter spaghetti. A Nancy está preparando um especial.

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Pai-­‐ E o coelho ? (para Sábato) Você se esqueceu de trazer o coelho ? Sábato-­‐ Eu tinha pedido para separar um, mas venderam todos... um americano excêntrico ia dar um banquete na Avenida Atlântica... acho que ele era da embaixada. Pai-­‐ A Aracy não separou para mim ? Sábato-­‐ Separou, mas foi no horário de almoço. Só estava o outro... atendente. Sábato tira um envelope e dá para o pai. Sábato-­‐ Feliz aniversário. Pai-­‐ O quê é ?... um cheque ? Ele abre o envelope, um bilhete de cinema. Sábato-­‐ Eu falei com a bilheteira, você pode ir em qualquer sessão... amanhã estréia o novo filme do Totorito : “Saudades do meu carnaval”. Pai – Ah, “obrigado”...cadê o Valentino ? Nancy entra da cozinha cantando uma música da Marlene Dietrich. Sábato-­‐ Bravo ! Bravo ! Pai-­‐ O quê é isso ?

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Mãe-­‐ Ela agora deu para imitar a Marlene Ditriti. Sábato-­‐ Dietrich. Eu já ouvi você cantando essa música... Mãe-­‐ Já ? Pai-­‐ Ela mal sabe falar português e quer cantar em alemão ? Sábato-­‐ Você sempre cantava essa música, mãe. Mãe-­‐ É ? Nancy-­‐ Feliz aniversário, seu Dante, muitas felicidades, muitos anos de vida. Pai-­‐ Obrigado. Nancy-­‐ Eu ia comprar um presente para o sinhô, mas o salário acabou. Pai-­‐ Se você não quebrar mais nada nesta casa já vai ser um presente. Nancy-­‐ Eu queria ter comprado, eu queria muito mesmo ter comprado, mas eu fui agredida pela problemática da mais-­‐valia : (declama) “O valor de uso da força de trabalho é o trabalho, e uma vez que o trabalhador tenha sido empregado, o capitalista coloca-­‐o para trabalhar. Mas o trabalho é a fonte de valor, e além disso, o trabalhador criará durante um dia de trabalho... Sábato-­‐ (completa) “Mais valor do que o capitalista paga por seus dias de trabalho.”

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Pai-­‐ O quê é isso ? Sábato-­‐ Karl Marx. e Nancy-­‐ A vida na minha cozinha. Pai-­‐ Você anda ensinando comunismo para essa insolente ? Sábato-­‐ Não, ela que tirou “O Capital” da minha estante... Nancy-­‐ É um livro muito interessante, muito interessante. Tem um pouco de gordura, é verdade, mas a mensagem final é do balacobaco. Sábato-­‐ Você já leu tudo ? Nancy-­‐ Estou no último capítulo. Alguma surpresa ? Sábato-­‐ O capitalismo morre no final. Pai-­‐ É por isso que essa casa está sempre uma pocilga ! Vai preparar o almoço ! Tem muita gente precisando de emprego neste pais... vai abrir o vinho ? Nancy entra na cozinha.

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Mãe-­‐ Vou colocar uma música. Pai-­‐ (arrumando os livros) Que bagunça é essa ? Sábato-­‐ (pegando e guardando) Nada. Pai-­‐ Você não está trazendo a papelada do partido comunista para cá, não é ? Mãe-­‐ Ele não é do partido comunista. Sábato-­‐ Isso é um roteiro de cinema. Eu... eu estou escrevendo um filme. Pausa. Mãe-­‐ (tentando parecer animada) Que bom, meu filho... Pai-­‐ Esse spaghetti é al dente ! Al dente ! A mãe coloca passeia pelas estações de rádio, encontra uma música. Ela abre a garrafa de vinho. Foco em Valentino. Valentino-­‐ (como um locutor) O céu está limpo, apenas algumas nuvens esparsas no horizonte. O vento de 40 nós não impede que o monomotor do ás da aviação mergulhe no espaço, dê três piruetas e desenhe com fumaça a notícia do dia : Feliz Aniversário ! Valentino dá um abraço no pai.

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Pai-­‐ Isso são horas de chegar ? Valentino-­‐ Desculpa, pai... eu perdi o horário... amanhã eu te dou o presente... Pai-­‐ Não precisa, guarda o seu dinheiro. Mãe-­‐ O quê aconteceu, meu filho ? Valentino-­‐ Eu fiquei preso lá no quartel... Pai-­‐ O quê foi ? Você brigou de novo ? Valentino-­‐ Não, ainda não... é uma boa notícia, na verdade... acho. Mãe-­‐ O quê foi ? A mãe abaixa o som. Mãe-­‐ Conta logo, Valentino, o quê aconteceu ? Nancy entra na sala. Pequeno silêncio. Valentino olha para a família. Valentino-­‐ Amanhã... eu vou pilotar... pela primeira vez... um avião pr-­‐47 ! Silêncio. O pai soca o sofá.

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Pai-­‐ Figlio mio ! Vai abraçá-­‐lo. A mãe também vai até lá. Mãe-­‐ Mas não é perigoso ? Nancy-­‐ (dando um beijo nele) Meu aviador ! Sábato-­‐ (abraçando-­‐o) Você ficou feliz ?... ficou com medo ? Pai-­‐ E filho de Dante Ferrentini Ruzzante de la Crostina é lá homem de ter medo ? Nancy, o spaghetti ! Vamos abrir a garrafa de vinho !... (para mãe, que segura um copo de vinho) Você já abriu, Dolores ? Eles andam na direção da mesa. Nancy sai. Valentino-­‐ Tudo bem ? Sábato-­‐ Jamais. A música continua baixinho, de fundo. A mãe começa a servir o vinho. Sábato-­‐ (para mãe) Você vai beber ? Valentino-­‐ (para o pai) Você está com um galo na cabeça. Sábato-­‐ A gente foi cantar parabéns, ele caiu...

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Pai-­‐ Me fizeram cair. Sábato-­‐ É a lei da gravidade. Pai-­‐ O quê ? Sábato-­‐ A atração gravitacional da Terra confere peso aos objetos e faz com que caiam ao chão quando são soltos no ar....

O pai olha para ele. Sábato-­‐ Newton ? Torre de Pisa ? Maçã ?...esquece. Mãe-­‐ O almoço vai ficar supimpa. Pai-­‐ Salute. Eles brindam. Valentino-­‐ Um momento. Eu queria fazer um brinde... um brinde à... um brinde à... Nancy entra. Nancy-­‐ Tem visita na porta. Pai-­‐ Manda embora, nós estamos almoçando.

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Nancy-­‐ É Aracy, a acougueira. Sábato-­‐ Deixa que eu falo com ela. Nancy-­‐ Ela disse que quer falar com o sinhô. O pai se levanta. Eles se olham. O pai vai até a porta, saindo de cena. Sábato começa a tossir. Mãe-­‐ E agora ? Sábato-­‐ Não sei. Valentino-­‐ O quê houve ? Você matou o trabalho ? Sábato-­‐ É, é uma imagem poética para o quê aconteceu... Mãe-­‐ Sábato... Pai (de fora)-­‐ Impossível ! Sábato começa tossir, com falta de ar. Valentino-­‐ Você foi demitido de novo ? Sábato-­‐ Pior.

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Mãe-­‐ Como pior ? O quê você não me contou, Sábato ? Sábato-­‐ Eu estou passando mal... Mãe-­‐ O quê ? Sábato-­‐ Eu preciso fazer uma vaporização. Mãe-­‐ Pára de representar ! O pai entra, possuído. Pai-­‐ Cadê o americano excêntrico ? Sábato se levanta. Os dois se encaram. Sábato com asma. Dante-­‐ Eu fiz apenas um pedido de aniversário : eu quero comer coelho à caçadora... era demais para você, não é ? Coelho à caçadora !... Sábato-­‐ (mal conseguindo falar) Eles estavam sofrendo. O pai corre atrás dele, que foge. Mãe-­‐ Calma, Dante ! Pai-­‐ Eu não vou te sustentar pelo resto da vida !

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Sábato-­‐ Eu paguei tudo ! Mãe-­‐ Olha a cristaleira ! Valentino-­‐ Alguém pode explicar / Pai-­‐ O quê está acontecendo é que o mentecapto do seu irmão, se ele for seu irmão por que isso saiu do ventre do demônio !, o seu irmão foi despedido novamente, depois que eu consegui um emprego a muitas custas para ele, porque ninguém quer empregar esse inútil, esse preguiçoso, onde quer ele entre as pessoas ficam com sono, eu vou te matar !... (ele corre atrás de Sábato, que foge) Eu consigo um emprego para esse meliante, e no dia do meu aniversário me aparece a patroa dele dizendo que teve que despedi-­‐lo porque o cretino roubou todos os coelhos do açougue ! Pausa. Mãe-­‐ Sábato ! Pai-­‐ Você vendeu os coelhos ? Sábato-­‐ Não. Pausa. Sábato-­‐ Eu soltei eles. Pequena pausa.

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Sábato-­‐ Eu libertei os coelhos. Pai-­‐ Aonde ? Pequena pausa. Sábato-­‐ No passeio público. O pai corre atrás dele. Sábato ofegante. Pai-­‐ Energúmeno ! Mãe-­‐ Calma, Dante, vai matar o infeliz ! Pai-­‐ Que morra ! Nancy (entrando)-­‐ O queijo parmesão acabou. Sábato-­‐ Calma, pai, você tem razão, mas me escuta, me escuta.... Nancy-­‐ Já é a alho e óleo, sem parmesão... Sábato-­‐ Eu não devia ter soltado os coelhos, foi um ato de loucura, eu sei, mas eu não agüentava mais trabalhar no açougue... Pai-­‐ Você não agüenta trabalhar !

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Sábato-­‐ Eu paguei os coelhos com o meu ordenado... vocês tem razão, eu também não quero isso, eu não quero isso... por favor, senta, pai, senta, mãe, eu tenho uma notícia para... anunciar. A mãe e Valentino já estão sentados. O pai se senta e, em seguida, se levanta. Sábato-­‐ Eu vou embora desta casa. Pausa. Sábato-­‐ Eu vou morar sozinho. Nancy volta para cozinha. Mãe-­‐ Mas aonde, meu filho ? Com que dinheiro ? Sábato-­‐ Eu estou escrevendo um filme... O pai ri. Sábato-­‐ Eu estou escrevendo uma comédia musical para o Totorito... Pai-­‐ Esquece esse Totorito ! Sábato-­‐ Eu já mostrei o roteiro para ele, ele me recebeu, ele quer comprar o roteiro... a partir de hoje eu vou trabalhar como comediógafro... (corrigindo) comediógrafo.

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O pai ri. Sábato-­‐ Eu sou um comediógrafo ! Ele se apóia na cadeira, a cadeira cai no chão, com ele. O pai e Valentino riem. Mãe-­‐ Machucou, meu filho ? Sábato-­‐ Podem rir, podem rir... o filme vai ser inspirado em vocês... a platéia vai se deliciar com a comédia risível da nossa pequena vida.Eles vão se jogar no chão com a nossa existência patética. Vai ser traumático, vai ser doloroso, mas nós vamos ficar ricos.! O telefone toca, Valentino vai atender. Pai-­‐ É verdade. Você fazer vai fazer um filme... você vai ficar rico... você vai ser famoso. Você vai até se casar com a Carmem Miranda... Sábato-­‐ Eu conheço a Carmem Miranda. Nancy-­‐ Jura ? Sábato-­‐ Hum, hum... Nancy-­‐ Ela é careca mesmo ? Valentino fala no telefone.

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Pai-­‐ Você vai é começar a trabalhar. Você vai trabalhar comigo na banca. Amanhã, às cinco da manhã, de pé, banho tomado, cabelo penteado e limpa essa cera comunista do ouvido... spaghetti ! Sábato-­‐ Eu não vou voltar para a banca. Pai-­‐ Ah, vai ! Valentino-­‐ Gente, por favor, silêncio ! (no telefone) desculpa, é a minha família... Pai-­‐ Eu não vou dar mais colher de chá para vagabundo ! Valentino-­‐ (no telefone) Não, não, nem toda família é assim... Nancy-­‐ Patrão, o senhor pode me liberar depois de servir o jantar ? Eu lavo a louça amanhã de manhã. Pai-­‐ Por quê ? Nancy-­‐ Eu tenho ensaio hoje à noite. Pai-­‐ Que ensaio ? Nancy-­‐ Não contei ? Eu passei no teste para cantar em um número no coro do Cassino da Urca. “As Mulatas de Madagascar”. Pai-­‐ Agora todo mundo resolveu ser artista nesta casa !?

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Sábato-­‐ Cassino da Urca, claro, que boa bola... Pai-­‐ Não se manifesta, incompetente ! Mãe-­‐ Calma, Dante. Sábato-­‐ É isso que você quer ? Eu vou embora. Pai-­‐ Você não vai à lugar nenhum, Sábado, você... Valentino-­‐ Tchau, eu vou ao cinema. Pai-­‐ Tchau, meu filho. (para Sábato) Você !... você !... o quê eu estava dizendo mesmo ? Mãe-­‐ (para Valentino) Não se esquece do casaco, meu filho. Olha a friagem. Valentino volta para pegar o casaco. Sábato-­‐ Você estava decretando a minha condenação, mein fuher. O nosso diálogo sincero, profundo e fraternal de sempre. Pai-­‐ Você, Sábato, a partir de agora, você vai aprender a ser homem. Você vai aprender a servir para alguma coisa. Eu não vou te alimentar o resto da minha vida. Você se acha

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bastante especial, não é ? Mas você não é nada, você não é ninguém. Quer ir embora desta casa ? Antes você vai me pagar todo o dinheiro que eu te emprestei nos últimos anos. Família não é banco. O mundo está em guerra. E você vai ter que entrar na guerra. Nem que seja para morrer. Silêncio. Sábato-­‐ (para a mãe) Você não vai falar nada ? Silêncio. Eles se olham. Pai-­‐ Amanhã, às cinco da manhã, de pé. Sábato sai. Reação em silêncio do pai e da mãe. Blecaute na sala. Cena 2 Sábato sai da mesa e vai entrar no quarto. Totorito, sem cartola, abre a porta pra ele. Os dois se olham. Totorito-­‐ O espetáculo acabou ? Sábato, asmático, procura o cigarro. Totorito-­‐ Estava frio aqui dentro. Esse quarto é muito úmido. As paredes estão cheias de infiltração... tem uma teia de aranha dentro do armário, sabia ?

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Sábato procura o cigarro pelo quarto. Pega o maço dentro debaixo do travesseiro. Acende um cigarro, dá um trago. Ele passa o cigarro para Totorito. Na penumbra, os outros personagens vão para os seus respectivos quartos. Totorito-­‐ Foi um fracasso novamente. Eles massacraram você. Sábato-­‐ Hum, hum. Totorito-­‐ Silêncio na sala, cavalheiros enraivecidos, madames impávidas, cadeiras rangendo, tosse incessante e, ao cair do pano, vaias operísticas ? Sábato tosse. Totorito-­‐ “Teatro familiar”. Eu sei como é. O começo da carreira de um comediógafro, de um comediógrafo, é assim mesmo.... uuuu, nostalgia. Velhos tempos. Todavia, é difícil interpretar para a própria família. Sábato-­‐ Eu não estava interpretando. Totorito-­‐ Não ? Pequena pausa. Sábato-­‐ Talvez seja a hora de começar a interpretar. Pausa.

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Totorito-­‐ Talvez seja um problema de papel. Você precisa mudar de papel. Sábato-­‐ Você acha que eles deixam ? Eles “escreveram” esse papel especialmente para mim ! Totorito-­‐ Você aceitou esse personagem ! Sábato-­‐ Eu não sou um personagem ! Pausa. Totorito-­‐ Você já pensou em trocar de papel com seu irmão ? Sábato e Totorito-­‐ Eu devia parar de fumar. Totorito-­‐ Se vc continuar fumando você chega aos cinquenta. Se você continuar morando com seus pais você não chega aos 20. Sábato-­‐ Eu já tenho 25. Totorito-­‐ Você é um sobrevivente de guerra. Sábato-­‐ Eu sou um fracassado. Totorito-­‐ Não diga isso... Sábato-­‐ Eu tenho que encarar a verdade.

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Totorito-­‐ Às vezes é bom. Sábato-­‐ Para quê me iludir ? Eu não posso só ficar culpando os outros pelos meus problemas... Totorito-­‐ Pode sim. Pode sim ! Sábato-­‐ Eu já tenho 28 anos, não tenho profissão, trabalhei em três empregos no último ano, fui despedido de todos, ainda moro com a minha família... eu sou infantil nas minhas emoções, iludido nos meus sonhos... Totorito-­‐ E não vai para a cama com uma rapariga há mais de um ano. Sábato-­‐ Se eu morresse hoje eu não deixaria a menor marca no mundo. Totorito-­‐ É verdade. Pelo menos você tem o nosso filme. Sábato-­‐ Filho ? Totorito-­‐ Filme. Filme ! Vai lavar as orelhas ! Eu vou voltar para dentro do armário ! Totorito entra dentro do armário. Sábato-­‐ Eu posso mudar. Eu tenho que mudar... eu vou expor as feridas do mundo. No início eles podem até achar engraçado, mas depois as lágrimas vão escorrer pelas faces impávidas. Eu vou expor a insanidade da nossa existência, o desejo impossível da felicidade burguesa, a falência do mundo ocidental, (bradando para a porta) a morte de Deus !

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Mãe (de fora)-­‐ Você já tomou o seu leite, meu filho ? Totorito (abrindo a porta do armário) -­‐ Eu quero fazer uma comédia popular, Sábato, ninguém vai querer ver esse filme. Mãe-­‐ (levando um copo de leite para ele) Sábato, o seu leite está esfriando, você não vai tomar ? Sábato-­‐ Vou, mãe. (p-­‐Totorito) Essas idéias são para um segundo filme. Uma tragédia familiar. O nosso é uma comédia. Totorito-­‐ Às vezes eu tenho receio da sua noção de comédia. Mãe-­‐ Depois não se esquece de escovar os dentes. Pai (gritando da cama)-­‐ Avisa a ele que eu não vou pagar mais dentista para ninguém ! Se ele quiser ficar cheio de cárie naquela boca preguiçosa é uma escolha dele ! Sábato-­‐ Eu nunca tive cárie, eu tenho bruxismo ! Mãe-­‐ Os dentes dele são ótimos ! Você já escovou os dentes, meu filho ? Totorito e Sábato-­‐ Jáááá ! Mãe-­‐ O quê você está fazendo com a porta trancada ? Vc está falando sozinho de novo, Sábato ? Sábato-­‐ Eu estou escrevendo !

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Mãe-­‐ Não pode escrever com a porta aberta ? Sábato-­‐ (calmo) Não, mãe. Eu preciso ficar um pouco sozinho. Por favor. Mãe-­‐ Está bem, não se esquece de... de... (se lembrando, p/si) Ah. O quê ? (pequena pausa) Boa noite, meu filho. A mãe coloca o copo de leite do lado de fora da porta. Sai. Pequeno tempo. Totorito abre a porta e pega o leite, animado, toma um gole. Totorito-­‐ Está com nata ! Ele joga o copo na cara de Sábato. Totorito muda o ritmo, animado. Totorito-­‐ Vamos falar de negócios... você conseguiu desenvolver o argumento ? Sábato (limpando o leite)-­‐ Consegui, acho... Totorito-­‐ Ótimo... vai ser um sucesso. É uma comédia, não é ? Sábato-­‐ Claro. Oscarito-­‐ A sua vida é tristíssima – e patética -­‐ mas nós precisamos de uma comédia. Não me venha com os seus melodramas baratos. Sábato-­‐ É uma comédia engraçadíssima.

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Sábato pega um calhamaço de folhas. Totorito-­‐ Adoro comédias engraçadas... o roteiro tem quantas piadas ? Sábato-­‐ Não tenho certeza. Totorito-­‐ 50 ? 100 ? 150 ? Sábato-­‐ Não sei, não contei. Totorito-­‐ O quê é ? (magoado) Você colocou as melhores piadas para a minha dupla cômica, é isso ? Eu faço escada. Eu não tenho número musical. O meu personagem morre no meio da película, é isso ? Sábato-­‐ Eu ainda estou no argumento. Totorito-­‐ Esqueça as piadas. Eu não preciso de frases de efeito, de chavões, a comédia está na situação, está me entendendo ? Escreva uma estória dramática para mim, que eu imediatamente a transformo em comédia... ou então... não sei, eu ando muito ocupado, não sei se é o meu perfil... é melhor chamar o Procópio Ferreira. Sábato-­‐ Posso contar a estória do filme ? Totorito-­‐ Por favor. Sábato-­‐ (épico) “Deu o breque em Berlim !” (Entra música de fundo. Foco vai fechando sobre Sábato) “Deu o breque em Berlim !” é a estória de uma dona de casa casada com o dono de uma fábrica de embutidos, um alemão que veio para o Brasil quando jovem... essa mulher

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era uma promissora vedete do teatro de revista, uma comediante de mão cheia e notável cantora... eu pensei em chamar a Lecy Dondon para esse papel. Totorito-­‐ A comediante mais escrachada do Brasil. Somos muito amigos. Ela vai xingar você. Sábato-­‐ Mas o marido alemão aniquilou o sonho da vedete. Depois da noite de núpcias, aquele noivo romântico se revelou um marido machista, insensível, violento... a ex-­‐vedete passa então os seus dias melancólicos arrumando a casa, cantando sozinha para o silêncio das paredes e enchendo a cara de cachaça... ela virou alcoólatra... Totorito-­‐ Meu Deus, outro melodrama. Sábato-­‐ ... mas ela ainda sonha nostalgicamente com a sua vida perdida, fugindo às tardes para a matinê do cinema Palácio... para assistir na tela o galã do nosso filme : Francisco Alves... (ele se vira para Totorito) eu pensei em chamar o próprio Francisco Alves para fazer o papel do Francisco Alves. Totorito-­‐ É um filme autobiográfico ? Sábato-­‐ Por quê ? Totorito-­‐ Nada, nada... quando é que eu entro ? Sábato-­‐ O grande amigo dela é um carteiro – (faz um sinal para Totorito) um carteiro disléxico que lê, escondido, toda a correspondência que está para entregar.... ele é apaixonado pela ex-­‐vedete. Ah, o outro personagem, a sua dupla cômica, seria interpretado pelo Chocolate. De dia ele trabalha como motorista do salsicheiro alemão, e à noite... à noite (animado) ele se apresenta, secretamente, no Cassino da Urca, imitando a Marlene Dietrich... está muito confuso ? Totorito-­‐ Está. E esse carteiro está assaz pequeno.

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Sábato-­‐ O quê que acontece ? O quê que acontece ?... (se empolgando) uma tarde chuvosa chega uma carta para o marido. Atrás da carta não há remetente, apenas um selo sem identificação, mas iluminando a carta com a sua pequena lanterna você vê palavras alemãs escritas no papel da carta, sinuosas como pequenas cobras, e uma marca vermelha que parece um selo timbrado. Você abre a carta e... é um selo timbrado ! – um selo timbrado da Gestapo – a polícia secreta alemã-­‐ orientando o espião nazista Botho Langer, conhecido no Rio de Janeiro como o respeitado empresário de salsichas Hans Spritzel, a executar atividades clandestinas do partido nazista no Brasil, incluindo a perseguição e o assassinato de comunistas !... E carteiro apaixonado -­‐que vai se apaixonar pela vedete e ajudá-­‐la a se livrar dessa vida -­‐ é do partido comunista. Você é um carteiro comunista !... não é bom !? Totorito-­‐ Totalmente estapafúrdio... totalmente cinematográfico ! E depois ? Sábato-­‐ Não sei.... parei por aqui. Pausa. Totorito-­‐ Eu tenho que ir embora. Amanhã estréia o meu filme ... o quê minha foto está fazendo no chão ? Sábato acende outro cigarro. Totorito vai até o armário e cola a sua foto na porta. Sábato-­‐ Será que... será que você vai gostar da idéia ? Às vezes eu acho que essa não é a estória que eu devia contar... Totorito-­‐ Você precisa terminar... você precisa desenvolver melhor os personagens. Sábato-­‐ E se... Totorito-­‐ Eu já disse que eu vou gostar.

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Sábato-­‐ Como você pode saber... você... Pausa. Totorito-­‐ Você é uma invenção da sua cabeça. Pausa. Variação de luz. Eles ouvem um barulho, de fora do quarto. Totorito pega uma arma dentro do armário. Eles se atracam, brigando. Sábato começa a arrumar o quarto, apressado. Totorito ajuda. Sábato apaga a luz, blecaute. Valentino – O mundo está rodando. Ouvimos um barulho. Quando acende a luz Sábato está na porta, sem a arma e Valentino está sentado na cama. Totorito desapareceu. Valentino-­‐ Acho que eu vou vomitar... Sábato-­‐ Vamos até o banheiro... quer um café ? Valentino-­‐ Eles vão acordar.... você não estava dormindo ? Sábato-­‐ Eu não durmo nunca. Valentino-­‐ Ah, é. Valentino faz cara que vai vomitar.

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Sábato-­‐ A janela !

Valentino vai até a janela. Tenta vomitar. Sábato-­‐ O quê que você bebeu ? Você não sabe beber, eu já te disse isso. Você misturou de novo ? Valentino tosse. Respira. Ele dá um pulo de kung fu. Se vira, aliviado. Valentino-­‐ Pronto. Sábato-­‐ Melhorou ? Valentino-­‐ Hum, hum. Sábato-­‐ Você não vai vomitar. Valentino-­‐ (se sentando na cama) Ts, ts. Sábato-­‐ É perigoso guardar o vômito. Pode sair numa hora inesperada... Valentino ri. Valentino-­‐ Eu estava com saudades de você. Sábato vai até debaixo da cama e pega uma garrafa de vodka. Ele dá um gole.

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. Valentino-­‐ Sabe que eu vi um coelho na rua... Sábato-­‐ Onde ? Valentino-­‐ No passeio público. Ele estava parado do lado de uma árvore, com os olhos fechados... Sábato-­‐ O quê você foi fazer no passeio público ? Valentino-­‐ Por quê você foi soltar os coelhos, Sábato ? Você é maluco... você fez isso para provocar o papai... Pausa. Sábato-­‐ Você vai me contar quem é que você estava bolinando ? Valentino-­‐ Acho que fui arrebatado pela fúria inexorável do amor. Sábato-­‐ Quem é ? Valentino-­‐ Não vou falar. Sábato-­‐ Por quê ? Valentino-­‐ Segredo.

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Valentino pega a garrafa de vodka, sorri e dá mais um gole. Sábato-­‐ Eu vou embora daqui. A minha mala já está pronta. Valentino-­‐ Você precisa se apaixonar. Por uma mulher, por alguma coisa... é isso que você precisa... Sábato-­‐ Eu vou vender o meu filme e vou embora daqui... Valentino não responde, se deita na cama. Totorito aparece lá fora, fumando. Sábato-­‐ Não sei, ás vezes eu... eu tenho essa sentimento de... de estar sempre no lugar errado, no tempo errado... como um descompasso... um samba atravessado. E as coisas não ficam, nada imprime... esse quarto, por exemplo. Eu passo o dia inteiro aqui, mas eu não consigo mais ver como ele é, realmente. A cadeira, a cama, a janela, você... o hábito de ver as coisas demais pode deixar a gente meio cego... eu tenho esse medo. De olhar, olhar e não ver mais nada...de ser para sempre um espectador. Eternamente, um espectador... (ele olha para Valentino, que está se mexendo na cama) o quê você está fazendo ? Valentino-­‐ Me masturbando. Sábato-­‐ Você não estava me ouvindo ? Valentino-­‐ Eu tô com muito tesão, Sarah... Sábato-­‐ O quê ? Valentino-­‐ O nome dela é Sarah.

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Sábato-­‐ Delícia, a pequena ? Valentino-­‐ Shhh, ela está tirando o sutiã.. Sábato-­‐ Quando ela acabar de tirar a calcinha me avisa... Valentino-­‐ Ela está entrando atrás do biombo... Sábato-­‐ Acho que eu estou vendo. Valentino-­‐ Desculpa, nesta fechadura só cabe um olho... Pausa. Sábato-­‐ Vou passar na casa da Carmem Miranda então... Sábato apaga a luz. Blecaute. Sábato faz um som de campainha. Sábato-­‐ Oi, Carmem, mil perdões por tocar a essa hora, minha pequena... também estava morrendo de saudades... (sons de beijos) agora ?... tem certeza ? ..... a sua família pode acordar... aqui na saleta é muita loucura...(sons de beijos, rindo) calma, notável... Valentino-­‐ (baixinho, intenso) Vai, Sarah !... Sábato-­‐ Meu Deus !... sabe o que tem debaixo do turbante da Carmem Miranda ?... vem, Carmem, faz o “chica chica bum ti” !

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Ouvimos o barulho das camas rangendo. Sábato-­‐ Boa noite. Totorito, no fundo do palco, apaga o cigarro no chão. Totorito-­‐ Bons sonhos. Blecaute. Cena 3

Imediatamente ouvimos o som de uma corneta. O pai se levanta e se apronta. Sábato acorda, coloca um chapéu ridículo de vendedor de jornal. Os dois vão até a frente do palco. Sábato está com um exemplar de jornal e o Pai, animado, com uma pilha. Pai-­‐ Você quer falar alguma coisa ?

Sábato balança a cabeça. Pai-­‐ Nós temos as nossas diferenças mas isso não significa que temos que estar sempre em pé de guerra. Uma família tem que se manter sempre unida, você não acha ?

Sábato balança a cabeça, positivamente. Vai pegar os jornais, o pai interrompe-o. Pai-­‐ Um átimo. Não se esqueça que é importantíssimo projetar a voz. Importantíssimo. A banca do Manoel é logo ali, aquele português safado está tentando roubar toda a nossa clientela... muitas vezes as pessoas estão indo para o trabalho, distraídas (ele brada)

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“Trezentos mil russos mortos na batalha de Leningrado !” então elas se dão conta que algo de importante está acontecendo no mundo.Vai. Sábato-­‐ O quê ? Pai-­‐ Anuncia.

Sábato vai anunciar. Pai-­‐ Presta atenção : a maneira como você anuncia a manchete muitas vezes é mais importante do que a própria manchete, percebeu ? Esse é o segredo. Respira fundo, enche o pulmão, levanta o braço, olha dentro dos olhos inseguros dos transeuntes : “Greve dos lixeiros ! A cidade respira lixo !” Vai. Sábato-­‐ (ele observa o pai e diz, tímido) “Greve dos lixeiros. A cidade respira lixo.” Pai-­‐ Piú forte ! Sábado-­‐ (ainda tímido) “Greve dos lixeiros ! A cidade respira lixo !” Pai-­‐ Parla como homem ! Sábato-­‐ E eu estou falando como ? Pai-­‐ Come un castrato ! Se lembra do seu avô, baiiiixo, fooooorte ! Sábato-­‐ O vovô morreu quando eu tinha 3 anos.

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Pai-­‐ Você agora não é artista ? Se inspira... está no nosso sangue ! Sábato-­‐ (mais forte) “Greve dos lixeiros ! A cidade respira lixo !” Pai-­‐ Força ! Sábato-­‐ (descontrolado) “Greve dos lixeiros ! Greve dos lixeiros ! Greve dos lixeiros !!!”

Sábato tosse. O pai bate nas costas dele. Pai-­‐ Não vai desmaiar, Sábato. São 60 jornais. O seu expediente termina quando você vender todos os jornais, ouviu bem, Sábato.... Sábato-­‐ A Aracy mandou algum recado para mim ? Pai-­‐ O quê ? Sábato-­‐ A Aracy, a nossa “açougueira”, mandou algum recado para mim ? Pai-­‐ Não vem de enrolação, Sábato, você só sai daqui quando vender todos esses jornais, ouviu bem, todos !

O Pai sai. Sábato (bradando na direção do pai) A sua carta secreta já está no correio, mein fuher !

Pequena vinheta musical. Sábato arremessa jornais para a coxia. Nancy entra.

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Nancy-­‐ Bom dia, soldado desconhecido. Sábato-­‐ O quê você está fazendo ? Nancy-­‐ Me preparando para o seu filme. Sábato-­‐ Que filme ? Nancy-­‐ Não adianta mentir, eu sei que você está escrevendo um filme, uma comédia musical para o Totorito. Eu adoro o Totorito, ele vai me adorar. Quando começam as filmagens ? Sábato-­‐ Nancy, nós já conversamos sobre isso... se um dia eu conseguir realizar alguma coisa... se um dia eu conseguir fazer um filme, eu não tenho certeza se vou poder te convidar. Nancy-­‐ Por quê ? Sábato-­‐ Nancy, você não é atriz. Nancy-­‐ Como não ? Eu sou bonita, eu sou engraçada, eu sei cantar, dançar, representar, eu entendo do coração dos homens... quem não é atriz aqui ? Eu vou interpretar a Marlene Ditriti no seu filme. Sábato-­‐ Dietrich. Nancy-­‐ Ditrixii. Sábato-­‐ Quem disse que a Marlene Dietrich é um personagem do filme ?

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Nancy-­‐ Não é um filme sobre o nazismo ? A Marlene Ditriti está no seu filme. Você precisa de uma diva.

Sábato a observa. Sábato-­‐ Como é que você vai fazer a Marlene Dietrich, Nancy? Nancy-­‐ Como assim ? Sábato-­‐ Nancy... é um pouco óbvio... você... você não se parece muito com ela... Nancy olha para ele. Sábato-­‐ Você não tem o “phisique” da Dietrich... Nancy olha para ele. Sábato-­‐ Você é preta, Nancy. Preta. Nancy-­‐ E dai ? Sabato-­‐ Você é uma negra brasileira, como é que você vai interpretar uma alemã, branca, loura ? Pausa. Nancy-­‐ Eu vou me fazer fazendo Marlene Dietrich...

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Pequena pausa. Nancy-­‐ Não vai me dizer que você quer chamar uma outra atriz ?... não vai me dizer que você pensou no Chocolate para fazer de novo dupla com o Totorito ? Sábato balança a cabeça.Ele olha para a rua, pensativo. Nancy-­‐ Você já mandou o roteiro para ele ? Sábato-­‐ (olhando fixo para ela) Eu preciso desenvolver melhor os personagens. Nancy-­‐ Não vai desistir de novo, Sábato.

Ela sai, imitando a Marlene Dietrich. Vinheta, Sábato arremessa jornais para a coxia. A mãe entra, ligeiramente bêbada, dissimulando. Sábado-­‐ Mãe !... a senhora está perdida ? Mãe-­‐ O quê ? Não, eu estou indo... a um velório. Sábato-­‐ De novo ? Quem morreu desta vez ? Mãe-­‐ A Isaurinha, filha da Clemência, esposa do Arutin. Eles são donos daquela agência funerária na Rua da Passagem. Sábato ri.

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Mãe-­‐ Que sacrilégio, Sábato. Respeita um pouco a dor dos outros. Sábato-­‐ É verdade.

Ele fica olhando para ela. Sente um cheiro. Sábato-­‐ A senhora bebeu de novo no café da manhã ?

Mãe- Eu parei de beber, Sábato. A mãe vira o rosto. Sábato-­‐ Você vai na estréia do filme do Totorito ? Mãe-­‐ Não dá tempo... Sábato-­‐ Que horas são ? Mãe-­‐ Uma e meia... você também não vai, você tem que trabalhar. Não vai fazer isso com o seu pai. Sábato-­‐ Ele te trata muito mal, mãe, eu não gosto disso. Ele te reprime, ele limita a sua existência. Você não precisa ser uma dona de casa pelo resto da vida. Mãe-­‐ Eu sou uma dona de casa. Eu não vejo nenhum problema nisso.

Sábato olha para ela. Ela olha para o lado. Sábato (murmurando)-­‐ Eu sou uma vedete. Eu não vejo nenhum problema nisso.

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Mãe-­‐ O quê ? Sábato-­‐ Me xinga, mãe. A Mãe olha para ele. Sábato-­‐ Me xinga um pouco, só para experimentar. Mãe-­‐ Você enlouqueceu ? Sábato-­‐ No meu filme tem um personagem que é a senhora... (corrigindo) que é parecido com a senhora... eu pensei em chamar a Lecy Dondon para fazer esse personagem... eu queria ver se o diálogo está funcionando :

Mãe- Eu tenho que ir para o velório. Você não vai ao cinema, Sábato !

Uma vinheta musical se mistura com o som de um filme, antes de começar. Sábato olha o relógio. O pai aparece. Sábato-­‐ Eu preciso ir ao médico. Pai-­‐ Você não vai fugir ! Sábato-­‐ Eu tenho pneumologista. Eu estou com um sopro no pulmão. Pai-­‐ Você não vai ao cinema, Sábato !

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Sábato-­‐ Eu tenho hora marcada. Pai-­‐ Você é um irresponsável ! Você está despedido ! Sábato-­‐ Eu estou morrendo ! Pai-­‐ Eu não vou sustentar você o resto da vida ! Seu sangue-­‐suga ! Todos nós temos responsabilidades ! Você me prometeu ! Você não entra mais naquela casa, seu preguiçoso ! (O pai começa a dublar um discurso Hitler) Nur der Jahreswechsel veranlaßt mich heute, zu Ihnen, meine deutschen zu sprechen !... A música aumenta. Entram duas fileiras de cadeiras, o Cinema. Sábato se senta.

Cena 4

Cinema. Sarah entra, olhando para trás. Procura um lugar, o único vazio é do lado de Sábato. Ela vai até lá. Sarah-­‐ Tem alguém aqui ? Sábato-­‐ (sem olhar direito) Tem. Sarah-­‐ Quem ?

Sábato olha para ela. Sarah-­‐ Eu. Não é ?

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Ela se senta. Sábato-­‐ É... Silencio. Clima. Música de abertura. Sábato olha para Sarah, que olha para frente. O filme começa. Os diálogos do filme são como um murmúrio. Sarah olha a pipoca dele. Ele olha para a pipoca e para ela. Ela desvia o olhar. Eles olham para a tela. Ela olha para a pipoca. Ele volta a olhar para a pipoca e para ela, que novamente desvia o olhar para a tela. Sábato-­‐ Quer uma pipoca ? Sarah balança a cabeça. Sábato se atrapalha com a pipoca. Uma piada no filme, Sábato dá uma risadinha. Sarah séria. Um outra piada, Sábato dá uma risada um pouco menos tímida. Outra piada, ele acha apenas um pouco de graça e ela dá uma grande gargalhada. Sarah-­‐ Quem é ? Sábato-­‐ Oi ? Sarah-­‐ Quem é esse ator ? Sábato-­‐ Você não sabe ?... é Totorito... o cômico número 1 do Brasil. Sarah-­‐ Ah... Sábato-­‐ Você é estrangeira ? Sarah-­‐ Não.

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Sábato-­‐ Aonde você esteve nos últimos anos ? Sarah-­‐ Vivendo... e você ? Sábato – No cinema.

Sarah pega uma pipoca dele. Algumas mudanças dramáticas no filme, em sintonia com o som. O filme acaba. Mudança de luz, a luz da sala se acende. Eles se olham. Sábato vai pegar mais uma pipoca. Sarah-­‐ Desculpa, acho que comi toda a sua pipoca. Sábato-­‐ Tudo bem. Pausa. Sábato-­‐ Você também está desempregada ? Sarah-­‐ Você é da polícia ? Sábado-­‐ Não... é que eu venho a esse cinema há anos e é a primeira vez que eu vejo alguém ficar na sala depois que o filme acaba... em geral sou eu quem fica aqui, sozinho... Sarah-­‐ Sei. Qual o seu nome? Sábado-­‐ Sábato, prazer.

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Sarah-­‐ Prazer... Aurora. Sábato-­‐ Como em Aurora Miranda. Sarah-­‐ É. Como em Aurora Boreal... você faz o quê da vida ? Sábato-­‐ Eu ?.. eu sou comediógrafo, escritor...(explicando) roteirista de cinema. Sarah-­‐ Ah é ? E que filme você já escreveu ? Sábato-­‐ Nenhum. Mas eu tenho vários na minha cabeça. Sarah-­‐ Entendi. Sábato-­‐ E você ? Sarah-­‐ O quê ? Sábato-­‐ Você trabalha com o quê ? Sarah-­‐ Eu acabei de largar o meu emprego.... hoje eu completaria cinco anos de carteira assinada... hoje eu saí para o meu horário de almoço e na volta passei na frente desse cinema... “Tristezas não pagam dívidas”. Resolvi entrar. Achei que era um drama. Eu sou do tipo mais dramático, você já percebeu ?... e assistindo o filme ao seu lado, ouvindo tantas risadas, de coisas que eu não estava achando nem tanta graça assim, eu comecei a pensar : e se eu não voltar ?... e se eu der aquele passo inesperado, virar a esquina, desaparecer, pela primeira vez realmente não olhar para trás ?.. porque até hoje eu não realizei nada de grandioso, eu poderia pensar. E eu sei que existe um destino, magnífico, para cada um de nós... será que é uma escolha individual ? Talvez. Mas para fazer a máquina parar, a máquina infernal, sozinha, é impossível. Essa destruição deve ser coletiva... não é verdade ?

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Sábato olha para ela, fascinado. Sarah-­‐ Mesmo se não for verdade é uma boa estória, não é, comediógrafo ?... (ela olha no relógio) Tchau, Sábato. Sábato-­‐ Tchau, Aurora... eu queria... você... será... Sarah-­‐ Eu não tenho telefone.

Ela sai. Sábato-­‐ Você não quer fazer um filme ?

Passagem de cena. Música. Fusão para :

Cena 5

Sala da casa. Sábato está sentado no canto da mesa com os seus papéis, escrevendo o roteiro. Totorito por ali. Totorito-­‐ Você gostou do meu filme ? Sábato-­‐ Gostei. Já te disse que gostei. Totorito-­‐ E...

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Sábato-­‐ Gostei muito, é... é bem engraçado. Totorito-­‐ Olha aqui, se você pretende ser escritor você vai ter que ampliar um pouco o seu vocabulário juvenil... “bem engraçado”... olha aí, está se achando o próprio Orson Wells... ei, eu existo. O quê você está fazendo ? Sábato-­‐ Escrevendo os diálogos. Totorito-­‐ Que diálogos ? Você acha que eu, a Lecy Dondon e o Chocolate precisamos de “diálogos” ?

A mãe entra. Totorito-­‐ Entra Lecy Dondon. Sábato-­‐ Silêncio. Totorito-­‐ (tendo a idéia) Dolores Lachama ! Sábato-­‐ O quê ? Totorito-­‐ A vedete vai se chamar Dolores Lachama ! Sábato-­‐ O mesmo nome da minha mãe ? Totorito-­‐ O sobrenome é diferente. Vamos assumir as nossas inspirações. Mãe-­‐ O seu pai está chegando, Sábato, você conversou com ele ?

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Sábato-­‐ Conversei, Lachama (se corrigindo) conversei, mãe... e eu vendi quase todos os jornais. Você confirmou que eu tinha pneumologista ? Mãe-­‐ Eu não vou fazer mais isso, vocês tem que se entender.... (saindo e arrumando as coisas na sala) Ai, Meu Deus... Totorito-­‐ Ai, meu “Eu”... Mãe-­‐ Essa casa está uma bagunça.... Totorito-­‐ Esse casamento está um bagulho... Mãe-­‐ Eu arrumo arrumo e está tudo fora de lugar ! Totorito-­‐ Eu não me aprumo não me aprumo e nunca mais vou conseguir “solar”. Sábato-­‐ Calma, mãe. e Totorito-­‐ Calma, madame. Mãe-­‐ Nancy ! (para Sábato) Você vai almoçar ? Tem feijoada hoje. Sábato-­‐ Deixa eu só terminar essa cena.

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Mãe-­‐ Que cena ? Totorito-­‐ Dolores, eu vou lhe ajudar. (para Sábato) Ela poderia convidar o carteiro para o almoço. Sábato-­‐ Batata ! Totorito-­‐ (olhando a bunda da mãe) Que pandeiro, que zabumba, eu vou tocar muito essa cuíca. Sábato-­‐ Respeita minha mãe. Mãe-­‐ Nancy ! Totorito-­‐ (exagerado) Eu já declarei o meu amor ? Eu já disse que morro sem ela ? Dolores Lachama já se apaixonou pelo carteiro garboso ? Sábato-­‐ Não... mas vocês já descobriram que o marido é nazista.

Totorito- Oh, my God. A empregada vai entrando. Totorito-­‐ Entra Chocolate, o motorista travesti. Sábato-­‐ Ele não é travesti. Mãe-­‐ (sem ver Nancy) Nancy !

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Empregada-­‐ (do lado dela, de mau-­‐humor) O quê é ? Totorito-­‐ Que chulé... Sábato-­‐ (escrevendo) Shhhh ! Totorito-­‐ É sério, tem algo fedendo aqui... Mãe-­‐ O almoço já está pronto ? Empregada-­‐ O feijão queimou. Totorito e Sábato-­‐(se olhando) O pneu furou. Empregada-­‐ É impossível lavar a roupa, limpar a cozinha e fazer o almoço ao mesmo tempo. Eu sou só uma. Isso é exploração da mão de obra. Mãe-­‐ Faz um spaghetti então... Sábato-­‐ De novo ? Totorito-­‐ Repetição é cômico. Sábato-­‐ O quê ? Totorito-­‐ Repetição é /

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Empregada-­‐ Depois eu preciso conversar uma coisa com a senhora. Estou precisando de uma carta de alforria. Eu vou ensaiar “As Mulatas de Madagascar” a semana inteira. A empregada sai. Totorito-­‐ E então ? Sábato-­‐ Não sei, bloqueei. Totorito-­‐ Você está pensando de novo naquela pequena ? Sábato-­‐ Carmem ? Totorito-­‐ Não era Aurora? Você acabou de conhecê-­‐la... (indo beijá-­‐lo) não vai me dizer que também acredita em amor à primeira vista ? Sábato-­‐ Eu não acredito no amor. Totorito-­‐ O amor é uma câmara de torturas com um quarto rosa no fundo. Sábato-­‐ A Dolores poderia falar: “Disfarça, meu marido não pode perceber que nós descobrimos a verdade... e se essa carta for um trote ? E se ele não for mais um nazista ?” Totorito-­‐ “Um nazista é sempre um nazista, Dolores. O Panzer tem que pagar pelos seus crimes hediondos.” Sábato-­‐ “E se ele se arrependeu ?.. será que o meu marido não merece perdão ?”

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Totorito-­‐ Assim está parecendo a Dama das Camélias. Você está escrevendo para a Lecy Dondon. Um pouco de picardia, por favor ! Essa mulher tem que se libertar ! Sábato-­‐ (animado) “Deu o Breque em Berlim”. Seqüência 3-­‐ Cena 2.”

Vinheta cômica. Mudança de luz. Os atores agora interpretam os personagens do filme, mas com suas próprias roupas. Pai-­‐ (entrando) Gutten Tag ! Que saudades, da minha mulherzinha. O almoça já estar pronta ? Mãe-­‐ ( à parte, bêbada) Já, velho gagá. (para marido) Hoje eu fiz o prato que você mais gosta. “eisbein com chucrute”. Pai-­‐ Que delicia... eu estar doida para comer uma chucrute. Mãe-­‐ (à parte) Você vai ver onde é que eu vou enfiar esse chucrute. Totorito-­‐ (para Sábato) È um filme familiar. Mãe-­‐ O chucrute está supimpa, neném. Pai-­‐ Obrigado, meu amor... (eles se beijam) o quê é isso ? Você está enchendo a cara de novo na café da manhã ? Mãe-­‐ Eu parei de beber... (melodramática) por quê vocês nunca acreditam em mim ? Pai-­‐ Está um cheira de cachaça...

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Ela aponta sutilmente para o Carteiro. Pai-­‐ Quem é essa ? Mãe-­‐ É Tormelino, o carteiro. (baixinho para marido) Eu o convidei para almoçar aqui hoje. Pai-­‐ Por quê ? (tenso) Chegou alguma carta para mim ? Mãe-­‐ Nós descobrimos que somos primos de segundo grau, acredita ? Ele também é lá do interior de Minas. Totorito-­‐ (desprevenido) Tudo bão ?.. trem doido sô, encontrá uma prima assim de repente... é um prazer enorme conhecer o sinhô, seu... seu... seu... Sábato-­‐ Hans Spizzer. Totorito-­‐ Prazer, seu “Hans Pizza”, eu ouvi fala muito docê... Sábato-­‐ Não é para imitar o Mazzaroppi. Mãe-­‐ (bêbada, para os dois) Vou tomar uma água mineral Caxambu.

Ela sai. Totorito- Por quê ela foi embora ? Sábato- Na vida as entradas e saídas são incontroláveis. Entra a empregada, interpretando Chocolate.

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Empregada-­‐ Posso fechar a garagem, doutor ? Já troquei o pneu. Pai-­‐ E já lavou ? Empregada-­‐ Já, sim senhor. Pai-­‐ E já engraxou ? Empregada-­‐ Já, sim senhor. Pai-­‐ E já... Empregada-­‐ E já sim, senhor. Totorito-­‐ Já está enchendo o Chocolate de piada. Pai-­‐ Não se esqueça que o carro amanhã o carro tem que estar brilhando. Eu e a Dolores vamos ao Cassino da Urca. Empregada-­‐ (nervoso) Cassino da Urca ? Pai-­‐ Me contarrrram no fábrica que tem uma neguinho imitando a Marlene Dietrich. Parece ser muita divertida. Empregada-­‐ (tensa) Sim, senhor, muito divertida...

Totorito balança a cabeça, a empregada sai.

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Sábato-­‐ E agora ? Totorito-­‐ Não sei, você que é o autor. Sábato-­‐ O eisbein poderia estar envenenado, com sonífero. Eles dopam o alemão para poder mexer nos documentos dele, que ficam trancados naquela escrivaninha. A chave está sempre na carteira dele. Totorito-­‐ (para Pai) O cheirin tá uma delícia, seu Pizza... (para Sábato) ... e se o carteiro for até a cozinha se declarar para a Dolores, enquanto o alemão está na sala ? Sábato-­‐ Não sei se é o momento... estava na hora do Francisco Alves aparecer. Pai-­‐ (para Sábato, sem interpretar o nazista) Você vai ficar aí parado, Sábato ? Sábato-­‐ Eu não estou gostando muito do roteiro... está um pouco tolo. Eu não sou assim. Totorito-­‐ Lá vem você com a sua insegurança. Quer destruir tudo de novo ? Sábato-­‐ Esse filme não tem nada a ver comigo. Ele tem que ser sobre a minha vida ! Totorito-­‐ A sua vida daria no máximo uma piada ! E ele é sobre a sua vida ! Pai-­‐ Sábato ! Sábato-­‐ Para quê essa ficção ?

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Totorito-­‐ Quer que eu recarregue o revólver ? Pai-­‐ Sábato, você vai ficar aí parado ? A campainha está tocando ! Sábato-­‐ Ah, pai... desculpa.

Ele caminha até a porta. A luz do “filme” não muda. Ele vai até a porta e abre. Um foco se acende sobre Valentino e Sarah. O irmão canta alguns versos de uma música de Francisco alves. Quando ele termina de cantar a luz da “realidade” volta. Totorito não está mais lá. Valentino-­‐ Cheguei muito atrasado ?

Eles entram. Sábato fica parado na porta. Valentino-­‐ Mãe, coloca mais água no feijão, nós temos visita. Pai-­‐ A feijoada queimou. Valentino-­‐ Ih, e eu te falando que o feijão da Nancy era supimpa... deixa eu te apresentar... esse aqui é o meu irmão... Sábato. Essa aqui é a Sarah. Sábato-­‐ Sarah ? Sarah-­‐ Prazer. Valentino-­‐ Esse é o meu pai, Dante. Mãe-­‐ Meu Deus, Valentino, por quê você não avisou que tinha visita, a casa está uma

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bagunça... Pai-­‐ É a sua namorada ?

Sarah e Valentino sorriem. Pai-­‐ Parabéns, figlio mio !.. (ele dá um abraço no filho e um beijo em Sarah) Finalmente ! Sábato se senta. Valentino-­‐ Pai... Pai-­‐ (charmoso) Desculpa, é verdade, é verdade, você sempre foi um galã... as mocinhas aqui da Lapa sempre tiveram uma queda terrível por esse rapaz... mas uma moça bonita assim eu não vejo aqui há muito tempo... Valentino-­‐ Você vai flertar com a minha pequena ? Pai-­‐... agora só falta você arrumar uma namorada, Sábato, para termos a mesa da família completa.

Nancy entra. Mãe-­‐ Quer beber alguma coisa ? Sarah-­‐ Um copo d’ água...você quer ajuda ? Mãe-­‐ Não, não precisa, a empregada já está cuidando de tudo.

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Nancy-­‐ Boa noite, eu sou Nancy, a empregada. Mãe-­‐ Senta, Mara, por favor...

Sarah- Sarah... Ela se senta. Sábato começa a arrumar os seus papéis. Valentino-­‐ O Sábato é que é o meu irmão escritor, que eu te falei. Pai-­‐É, ele passa o dia inteiro escrevendo... mas agora ele trabalha comigo também. Nós temos uma banca de jornal na Cinelândia. É um negócio de família. O meu avô, que era cantor de ópera, veio da Calábria e abriu essa banca. Não tinha muito emprego para cantor de ópera naquela época. Sarah-­‐ Imagino. Pai-­‐ Sabe que esse foi o nosso melhor dia, Sábato ? Vendemos as notícias como cachaça. Quem sabe você não encontrou a sua vocação ?

Sábato tosse. Pai-­‐ Como é que foi no médico ? Sábato-­‐ Tudo bem. Pai-­‐ O quê que você tem ? Sábato-­‐ Alergia à diálogo cotidiano.

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Valentino-­‐ A Sarah também trabalha com o pai dela. Sarah-­‐ Trabalhava. Pai-­‐ E agora você trabalha com o quê ? Sarah-­‐ Com nada. Eu estou desempregada.

Valentino olha para ela, censurando-a levemente. Nancy coloca as taças de vinho na mesa. Pai-­‐ É. Eu também acho que a mulher não tem obrigação de trabalhar. Sarah-­‐ Concordo. Desde que elas não sejam obrigadas a não trabalhar. Pai-­‐ O quê você quer dizer com isso ? Sarah-­‐ Deve ser uma opção, eu acho. Um desejo. Mãe-­‐ A Sarah tem razão. Eu sempre quis trabalhar antes de ter esses dois... Sábato-­‐ Minha mãe era uma cantora fabulosa. Ela chegou a cantar na Rádio Nacional. Sarah-­‐ É ? Sábato-­‐ Ela ainda vai voltar a ser uma.

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Mãe-­‐ Se você soubesse o trabalho que dá criar dois filhos... Sarah-­‐ Por isso que o homem tem que ajudar. Pai-­‐ Como ? Sarah-­‐ Lavando, passando, trocando fralda, fazendo compras, checando a despensa, separando o feijão, enchendo o filtro de água, molhando as plantas, levando o cachorro para passear, levantando a tampa da privada, prestando atenção no humor dos filhos, e no final do dia, beijando os pés da mulher amada. Sábato-­‐ (para Sarah) Posso anotar essa frase ?

Nancy entra. Pai-­‐ Que pequena você foi arrumar ! Valentino – (sorrindo, meio tenso) A Sarah é uma parada... ela tem “it”. Sarah-­‐ Obrigada. Pequena é um elogio ou uma crítica ? Nancy-­‐ Nessa casa ninguém precisa trabalhar. Aqui tem empregada. Pausa. Mãe-­‐ (vai até o rádio e coloca uma música) Alguém tem ido ao cinema ?

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Pausa. Valentino-­‐ Eu tenho uma notícia para anunciar... hoje teve um treinamento final com os aviões... eles vão confirmar o meu posto como piloto. Oficial. Mãe-­‐ Jura ? Pai-­‐ Parabéns, figlio mio ! Sarah-­‐ Você não me contou.... Valentino-­‐ É... Sarah-­‐ E qual foi a sensação ? Valentino-­‐ É tudo tão rápido... você vê as coisas passando como... como se você fosse um relâmpago. A velocidade do avião é tão violenta que chega uma hora que parece... que parece você vai desaparecer... Sábato-­‐ Na guerra essa sensação deve ser ainda mais terrível. Mãe-­‐ Vamos mudar de assunto. Valentino-­‐ Por quê ? Mãe-­‐ Nós estamos almoçando, eu não quero falar de guerra.

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Sábato-­‐ O mundo está em guerra. Valentino-­‐ Se o Brasil realmente mandar mais tropas para a Europa eu provavelmente vou ser convocado, mãe. Sarah-­‐ E você iria ? Valentino-­‐ Não tenho opção. Sábato-­‐ E o Brasil vai fazer o quê na guerra, “figuração” ? Se você for convocado você vai desertar. Eu escondo você dentro do armário. Pai-­‐ Nem todos podem ser preguiçosos como você, Sábato. Sábato-­‐ Se todos fossem preguiçosos como eu não haveria guerra. Pai-­‐ Claro, todos morreriam de fome. Mãe-­‐ Dante, por favor... Valentino-­‐ Eu não posso desertar. Se eu desertar eu vou para a prisão. Pai-­‐ Se o Valentino for convocado ele vai para a guerra sim, defender o nosso país. Sábato-­‐ Assim falou Getúlio... Mãe-­‐ Ninguém nesta casa vai para a guerra. Vamos mudar de assunto.

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Pai-­‐ Vocês querem o quê ? Que o nazismo domine o mundo ? (para a cozinha) Spaghetti ! Sábato-­‐ Eu não consigo te entender, Getúlio. No início da guerra você flertava com os alemães, agora que a coisa começou a degringolar você vendeu seu passe para os aliados. Non é vero, caríssimo ? Pai-­‐ Getúlio nunca esteve do lado dos alemães ! Sábato-­‐(rindo) Você não lê jornal ? Pai-­‐ Getúlio é um estrategista ! Sábato-­‐ Getúlio é um Hitler de bombacha ! Mãe-­‐ Passa o pãozinho, Sarah, por favor... Nancy (da cozinha)-­‐ Getúlio é o pai dos pobres. Sarah-­‐ Pai dos pobres e mãe dos ricos. Pai-­‐ Não admito que se fale mal do Getúlio nesta casa ! Sarah-­‐ Não ? Mãe-­‐ Política e religião não se discute.

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Sábato-­‐ Se discute sim, se discute sim ! A Gestapo tem um escritório aqui no Brasil. Getúlio é anti-­‐semita. Getúlio entregou dezenas de judeus comunistas de presente para Hitler. Pai-­‐ Pois fez ele muito bem. Sarah-­‐ Eu sou judia.

Pausa. Valentino (para o pai)-­‐ Fala alguma coisa ! Pai-­‐ Desculpa, Sarah, não foi isso que eu quis dizer, eu não tenho nada contra os judeus. Eu não estava falando dos judeus.... é que eu não vou mais admitir mais essa cretinice de comunismo dentro desta casa. Sarah-­‐ Eu também sou comunista. Sábato-­‐ Bravo ! Valentino-­‐ Sarah... (para Pai) ela não é comunista. Sarah-­‐ Eu sou comunista. Valentino-­‐ Você não é comunista. Mãe-­‐ Passa o vinho, Mara... Pai-­‐ Você não vai beber !

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Valentino-­‐ Deixa ela beber ! Sarah-­‐ È melhor eu ir embora. Valentino-­‐ Calma... (nervoso para o pai) está vendo o quê você fez ? Por isso eu não trago ninguém aqui nesta casa ! Sábato-­‐ (épico) “Nós somos o povo mais alegre do mundo !” Nancy (vindo da cozinha)-­‐ Vocês esqueceram de me dar dinheiro para comprar o queijo parmesão. Pai-­‐ A culpa agora é minha ? Foi o Sábato quem começou essa discussão ! Mãe-­‐ Senta, meu filho ! Sábato-­‐ (descontrolado) “Esses são os meus princípios, se você não gostar deles, eu tenho outros!” Valentino-­‐ O quê é isso ? Sábato-­‐ Groucho Marx. Pai-­‐ Cala a boca, comuna !

Mãe- Será que a gente não pode almoçar em paz, como uma família ?!

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Sábato- Que família ? Ninguém fala a verdade nessa casa ! Isso aqui é uma mentira, uma farsa mal ensaiada ! Pai-­‐ Cala a boca, fracassado !

Nancy sai em seguida. Silêncio. Mãe-­‐ (segurando o choro) Obrigado pelo jantar.

A mãe sai para o quarto. Tempo. Pai-­‐ ( para Sábato) Você não vale nada.

Sábato não responde. Pai-­‐ Você não faz o menor esforço para mudar.

Pequena pausa. Sábato-­‐ Eu sei. Pai-­‐ Agora quem quer que você vá embora desta casa sou eu. Até o final desta semana eu quero você longe daqui. Sábato-­‐ Eu vou embora.... amanhã à noite.

O pai começa a sair. Sábato- Eu sei que você está tendo um caso com a Aracy. O Pai se vira. Sábato- Eu sei que você está tendo um caso com a Aracy, a nossa “açougueira”.

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O pai ri e sai. Sábato fica sozinho, pensativo. Tempo. Nancy vem com um pedaço do bolo da primeira cena. Tempo. Sábato-­‐ Eu tenho que colocar os pés no chão... Nancy-­‐ É verdade... (pequena pausa) para quê ? Pausa. Nancy-­‐ E o nosso filme ? Sábato olha para ela. Sábato-­‐ Você está dentro dele agora. Nancy-­‐ Tem certeza ? Pausa. Nancy-­‐ Você vai mandar o roteiro para o Totorito ? Pausa. Nancy-­‐ Você precisa ir embora desta casa, Sábato. Sábato olha para o quarto.

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Sábato-­‐ Você ouviu uma voz ? Nancy olha para o quarto. Nancy-­‐ Acho que não.

A luz cai. Música. Mudança de cena.

Cena 6

Um Camarim de teatro. A luz acende sobre Totorito, o “real”, figurino um pouco diferente das cenas anteriores. Ele limpa a maquiagem do rosto com uma toalha. Sábato entra devagar, com o manuscrito na mão. Totorito-­‐ Eu estou com dor de cabeça.

Pausa. Totorito-­‐ Será que eu poderia ficar um pouco sozinho ? Eu não quero mais discutir com você...

Sábato não consegue falar. Totorito-­‐ Cáspite ! (Totorito joga um copo d’água na cara de Sábato) Oh, desculpa, desculpa, eu pensei que... Totorito se levanta.

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Totorito-­‐ As pessoas, geralmente, batem na porta antes de entrar...

Totorito passa a toalha para Sábato. Totorito-­‐ Mil perdões.

Sábato olha para Totorito. Totorito-­‐ Mil perdões...

Sábato mantém o olhar fixo em Totorito. Sorri. Totorito-­‐ Você é mudo ? Sábato-­‐ Não, eu estou muito emocionado. Totorito-­‐ É, foi um belo espetáculo... a platéia estava um pouco fria nos primeiros quadros, teve um pequeno problema de ritmo no meu número do mágico, mas depois engatou... foi um belíssimo espetáculo. Eu gostei, pelo menos. Você riu bastante ? Sábato-­‐ De quê ? Totorito-­‐ Do espetáculo... Sábato-­‐ Eu não vi o espetáculo. Totorito-­‐ Não ?

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Sábato balança a cabeça positivamente. Eles se olham. Totorito se senta na cadeira, tentando resolver a situação. Totorito-­‐ Você quer um autógrafo. Sábato-­‐ (olhando em volta) Engraçado, aqui também tem teia de aranha... Totorito-­‐ Qual o seu nome ? Sábato-­‐ Sábato. Totorito-­‐ (simpático) Eu fico muito feliz, Sábato, que, mesmo sem ter visto o espetáculo, você tenha vindo me pedir um autógrafo... Sábato-­‐ Eu... Totorito-­‐ (entregando o autógrafo e encaminhando-­‐o) Sem o apoio de vocês nós artistas não somos nada. Vocês são o nosso reflexo, o nosso espelho... Sábato-­‐ Eu queria... Totorito-­‐ (empurrando Sábato até a porta) Um grande abraço. Sábato-­‐ (firme) Eu não quero o seu autógrafo !

Pausa. Totorito-­‐ (falando para fora) Tem alguém da produção no corredor ?

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Sábato-­‐ Desculpa. Eu não sou um fã. Quer dizer, eu sou seu fã, talvez eu seja o seu maior fã, mas eu não estou aqui por isso, eu sou comediógrafo, eu sou roteirista de cinema, eu escrevi um filme para você.

Pequena pausa. Sábato-­‐ Um filme em que você é a grande estrela. Astro.

Pequena pausa. Sábato-­‐ Um filme que vai mudar as nossas vidas.

Pausa. Totorito-­‐ Eu não tenho dinheiro nenhum, Sábato, eu estou quebrado. Sábato-­‐ Eu estava trabalhando em Hollywood, o meu pai era cônsul na América, a Carmem Miranda me conhece.

Totorito olha para ele. Totorito-­‐ Sábato, você não é mais um destes fãs psicopatas que abandonam a própria vida para viver a vida do ídolo, não é ? Sábato-­‐ Sou. Mas o nosso filme é uma obra-­‐prima. Totorito vai até a porta e fecha-­‐a. Volta. Totorito-­‐ Você tem 5 minutos.

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Sábato olha para ele sem saber o quê fazer. Entra música. Mudança de luz. Sábato-­‐ (falando rápido) Comédia musical melodrama suspense romance poesia guerra metafísica ! (épico) “Deu o breque em Berlim!”

Toda a próxima cena é realizada com uma dinâmica acelerada, um número musical-dramático frenético. Os atores que vão entrar agora vestem as roupas dos personagens do filme. Sábato-­‐ “Deu o breque em Berlim” é a estória de uma ex-­‐vedete do Teatro de Revista, que abandonou a carreira seduzida pelo adulcorado sonho do casamento :

Mãe/ Dolores Lachama entra no palco sem direção, bêbada. Sábato-­‐ Dolores Lachama ! No papel : Lecy Dondon Gonçalves ! Ela começa a cantar uma música, o Pai/ Marido alemão entra jogando uma vassoura para ela, que sai de cena varrendo. Sábato-­‐ O marido dela é um empresário alemão...

O marido fala no telefone. Marido-­‐ Ja, ja... eu estar mandando agorra trinta quilos de salsicha branca e cinco de linguiça temperada... Lachama-­‐ (da coxia) Mentira !... Você quer me matar do coração ! Marido-­‐ Dolores, o meu almoça, eu estar atrasado...

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Lachama-­‐ (entrando, bêbada) Hansinho, a feijoada... Marido-­‐ O quê ? Lachama-­‐ Queimou... Marido-­‐ De novo ?

Lachama balança a cabeça. Marido-­‐ O meu feijãozinha queimou ?

Lachama olha para ele. Marido-­‐ Nur der Jahreswechsel veranlaßt mich heute ! Cachaceira ! Totorito-­‐ Mas que depois da noite de núpcias se revelou um marido machista, insensível, violento ! Ele dá um tapa nela. Marido-­‐ Vai cozinhar tudo de novo ! (ele volta a falar no telefone) Lachama sai cambaleante. Lachama-­‐ (falando enrolado, xingando) Alemão fio da pua !... vou tomar uma “Lambari” !

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Marido-­‐ (Desliga o telefone) Nantes, liga a motor ! Nancy/ Chocolate, vestida de motorista, entra em cena, dirigindo um carro imaginário. Sábato-­‐ Nantes é o motorista particular do alemão, mas à noite ele interpreta, secretamente, no Cassino da Urca, a diva Marlene Dietrich ! A sua dupla cômica : no papel : Chocolate !

Nantes-­‐ “Telefunken wolkswagen hemorróidas dóem e as aftas idem!” Nancy/Nantes e o pai saem de cena no carro. Lachama-­‐ Enfia a cara no poste ! Sábato-­‐ Dolores Lachama passa então os seus dias alcoolizada, fugindo à tarde para o cinema Palácio, assistindo todos os filmes do seu grande ídolo -­‐ o galã do nosso filme : Francisco Alves ! No papel : Francisco Alves !

Foco sobre Valentino-Francisco alves, cantando : Mário-­‐ Se você jurar, que me tem amor, eu posso me regenerar... mas se é, para fingir, mulher, a orgia, assim não vou deixar......

e Lecy Dondon-­‐ (escrevendo uma carta) “E se eu der aquele passo inesperado, mudar a minha vida, pela primeira vez realmente não olhar para trás ?..” Sábato-­‐ Francisco alves é noivo de uma fêmea vamp misteriosa charmosa e lasciva : Aurora Moon -­‐ a nossa participação especialíssima nos números musicais : Carmem Miranda ! Entra Sarah de Carmem Miranda, sombria, cantando “Coração”, o resto do elenco de Bando

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da Lua. Carmem-­‐ “Coração, governador da embarcação do amor... coração, meu companheiro na alegria e na dor... minha esperança é sempre a última que morre” Sábato-­‐ Está muito confuso ? Totorito-­‐ O meu personagem... Sábato-­‐ O seu personagem...(ele começa a interpretar o carteiro, os outros fazem vizinhos) Valentino/Francisco alves-­‐ A corrrrrrrrespondência chegou ! Nancy-­‐ Bom dia, Tormelino... Valentino-­‐ Já prendi o cachorro, Tormelino ! Mãe-­‐ (bêbada) Eu queria uma carta de amor ! Sábato-­‐ Tormelino é o carteiro da rua, terrivelmente apaixonado por Dolores...(ele vai para um canto e começa a ler as cartas) Ele é um carteiro disléxico, que lê, escondido, toda a correspondência que está para entregar... uma tarde chuvosa você abre uma carta destinada ao marido alemão, e é uma carta da SS-­‐ a polícia secreta de Hitler, revelando que Hans Spizzer é na verdade um agente secreto nazista, designado a perseguir e assassinar membros do partido comunista no Brasil ! Clímax musical. Música de suspense, volta sambinha. Coro-­‐ “E Tormelino é do partido comunista... e Tormelino é do partido comunista...”.

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Sábato-­‐ (enquanto eles falam os atores interpretam a estória) A trama do filme são as suas peripécias para desmascarar o marido e salvar Dolores das garras dele, trazendo-­‐a de volta ao brilho dos palcos... Pantomima. Mudança de tom na música. Sábato-­‐ Mas o alemão começa a desconfiar de Tormelino, impedindo a sua entrada na casa. Tormelino passa então a escrever cartas para Dolores Lachama, assinando como um primo de Minas... são cartas de amor e do plano de libertação. Pantomima. Sábato-­‐ Dolores acaba se apaixonando pelo carteiro, e com a ajuda do Chocolate, Francisco Alves e Carmem Miranda vocês orquestram o plano de fuga ! Pantomima. Sábato-­‐ O filme termina em um show antológico no Cassino da Urca, o alemão tenta matar Dolores: Mãe-­‐ Atira ! Atira no meu pulmão inflado de música ! Sábato-­‐ Mas você já havia trocado as balas do revólver por papel de carta. O tiro sai pelo culatra, a violência vira poesia. Mãe-­‐ O meu coração está embriagado de vida ! Sábato-­‐ O alemão é levado pela polícia federal enquanto vocês todos cantam o número final

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do filme :

Eles fazem o número. Totorito olha. Eles terminam dizendo : Todos-­‐ “Deu o breque em Berlim !”

Pausa. Os personagens saem. Sábato olha para Totorito, que olha para o roteiro. Sábato-­‐ Em linhas gerais é isso. Pausa. Sábato-­‐ Eu ainda posso mexer um pouco... você gostou ? Eles se olham. Totorito-­‐ É totalmente absurdo... Sábato-­‐ E totalmente cinematográfico... Totorito-­‐ Para uma comédia musical brasileira. Pausa. Totorito-­‐ É, não deixa de ser engraçado, mas... não sei, eu estava com vontade de fazer outra coisa... meu sonho era fazer Hamlet, mas o... enfim, já fez. Você mostrou para outro ator ?

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Sábato-­‐ Eu escrevi para você. Pequena pausa. Voz (off) Totorito ! Totorito-­‐ Já vou !... eu... eu poderia pensar em fazer. Quer dizer, a princípio pode ser interessante. Vamos ver... um produtor que eu conheço estava precisando de uma estória... acho que ele vai gostar... Sábato começa a tossir. Voz-­‐ Totorito, vão apagar a luz ! Totorito-­‐ Estão me esperando lá embaixo. Coloca o seu telefone no roteiro... eu preciso ir. Ainda tenho que viajar esta noite. Sábato olha para ele. Sábato-­‐ Eu também...

Voz- Antônio ! Totorito- Eu vou descendo... (Sábato tem uma crise de tosse) meu Deus... (Totorito procura um lenço, não acha, entrega novamente a toalha) quando você sair, por favor, apaga a luz... você não vai morrer agora, não é ? Sábato faz um sinal para ele ficar tranqüilo. Eles apertam a mão e Totorito sai. Sábato fica sozinho no camarim. Se olha no espelho. Vai até o interruptor e apaga a luz. Blecaute.

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Cena 7

Sábato chega em casa, manuscrito na mão. Tarde da noite. As luzes da sala estão apagadas. Ele atravessa a sala, pensativo. Entra no quarto. Encontra com Valentino, vestindo um a roupa de aviador, segurando uma mala. Ouvimos um som de avião para decolando. Valentino coloca a mala no chão. O som do avião aumenta. Sábato e Valentino se olham. O som do avião vai ficando ensurdecedor. Sábato e Valentino se aproximam e se abraçam. Som do avião no máximo. Blecaute. FIM DO PRIMEIRO ATO

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Ato 2-­‐ Prólogo O Totorito real entra, com o manuscrito na mão, e fala no microfone do início do Ato 1. Totorito-­‐ Boa noite, bem vindos ao segundo ato... da nossa estória. Que bom que vocês voltaram... (ele olha para a platéia, se dá conta que tem que falar) Quando eu penso sobre o quê aconteceu, é difícil precisar quando a estória realmente mudou. Porque ela mudou, como uma tempestade inesperada... eu passei horas, dias, tentando descobrir o momento exato no fio do tempo, se houve uma cena, um fato, uma fala -­‐ na vida ou no roteiro -­‐ onde poderíamos dizer : “ah, aqui começou o drama. Fim da comédia.” Talvez tenha sido sempre assim. Talvez o drama e a comédia estivessem sempre juntos, desde o início... (p/si) o quê faz um narrador quando não sabe... não faz nada. (entra o início da música de abertura do segundo ato) Boa noite. Bem vindos à nossa estória. Nós estamos na rua da Vala 67. O mês é janeiro de 1945. Plano geral do Cinema Palácio, o letreiro iluminado de “Tristezas não pagam dívidas”, estrelando “Totorito”. Um bonde passa, apitando. A câmera faz uma panorâmica e sobe até a janela do nosso sobrado antigo : Música orquestral-­‐ a mesma do primeiro ato. Mudança de luz.

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Cena 1 Sábato e a mãe estão sentados na mesa, em silêncio. O lugar de Valentino está vazio. O pai entra em cena da rua, checando as cartas do correio. A mãe olha para ele. Ele coloca as cartas sobre um móvel e vai se sentar. Nancy vem com uma travessa de spaghetti fumegante. Ela serve os pratos e sai. Silêncio. Sábato-­‐ Você vendeu bastante jornal hoje ? O pai balança a cabeça. Sábato-­‐ A... amanhã eu já posso voltar a trabalhar. O médico falou que amanhã eu já posso voltar a trabalhar... Ele se serve de queijo parmesão. Passa para a mãe. Sábato-­‐ Foi só uma... mudança no tempo. A mãe se atrapalha e deixa cair queijo na mesa. Sábato ajuda a mãe a limpar. Ela bebe um copo de vinho. O pai tira a garrafa de perto dela e serve. Sábato-­‐ Talvez seja essa chuva. Quando chove demais as pessoas não gostam de andar na rua... O telefone toca. Eles olham para o telefone. A mãe vai até lá, atende o telefone. Mãe-­‐ Alô ?

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Ela ouve e desliga. Mãe-­‐ Desligaram. Ela volta para a mesa. Procura a garrafa de vinho. Pai-­‐ Acabou. Pausa. Sábato-­‐ Eu li no jornal hoje que a correspondência dos pracinhas não está chegando direito, vocês leram ? A organização do correio lá na Itália é terrível. Toda a região da Toscana está praticamente incomunicável. Alguns aviões do correio foram até derrubados/ Mãe-­‐ Se ele morrer... eu quero morrer junto. Ela se levanta e sai. Pai-­‐ Vai chorar de novo... O pai olha para ele. Pai-­‐ Será que você não consegue ficar calado ?! O Pai se levanta e vai atrás da mãe. Sábato fica sozinho. Se levanta e vai para o quarto.

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Cena 2 Sábato entra no quarto. A porta do armário está aberta. Ele se senta. A sua mala está lá. Ele olha para o armário. Espera. Pega um cigarro na cama e acende. Nancy, com uma peruca loura, entra no quarto. Sábato leva um susto. Nancy-­‐ Ninguém comeu o spaghetti. Isso é um desrespeito com o trabalho dos outros... Sábato-­‐ (levando um susto) Que susto, pensei que... Nancy-­‐ O quê ? Nancy vai até o espelho. Sábato-­‐ Onde você vai com essa peruca ? Nancy-­‐ Me promoveram das “Mulatas de Madagascar”. O Carlos Machado amou a minha Marlene Dietrich, vou ter um número só para mim... vai se chamar “Marlene em Madureira”, ou “Dietrich em Del Castilho”... minha estréia é na sexta-­‐feira, quinto número depois do intervalo. Você vai poder ir ? Sábato-­‐ Acho que sim. Nancy-­‐ Como acha que sim ? O que você vai ficar fazendo ? Sábato-­‐ Me deprimindo.

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Ela pega o cigarro dele. Sábato-­‐ O Totorito também está nesse espetáculo ? Nancy-­‐ Não, não, não, você não ouviu falar ? Ele fundou a própria Cia, com a esposa. Eles estão ensaiando um espetáculo novo no Teatro Carlos Gomes : “Queria gravar o teu nome” , “Queria bordar o teu nome” “... ele já deu alguma resposta sobre o nosso roteiro ? Sábato-­‐ Não. Nancy-­‐ Por que você não procura ele de novo? Pausa. Nancy-­‐ (no espelho) Você não acha essa peruca loura demais ? Sábato-­‐ O Valentino pode estar morto na Europa, Nancy.... para quê insistir em fazer esse filme ? A minha mãe está pensando em se matar, o meu pai insiste em ser um nazista doméstico, eu continuo preso nesta casa... eu passei um ano da minha vida escrevendo essa comédia ingênua, só para divertir as pessoas... se alguém fosse se divertir com essa estória... Pausa. Nancy-­‐ Você acha que o Valentino pode ter morrido ? Sábato-­‐ Não sei... é possível. Nancy-­‐ E se ele tiver morrido ?

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Foco sobre a mãe, que, escondida, bebe uma garrafa de conhaque na sala. Ela faz um barulho. Sábato-­‐ Ela está bebendo de novo... Nancy abre a porta e olha. Fecha a porta. Nancy-­‐ É a terceira garrafa esta semana... Sábato-­‐ Toda vez que eu volto para casa eu tenho medo que você me diga que ela se matou. Outro dia eu sonhei que / Mãe-­‐ Já tomou o seu leite, meu filho ? Sábato-­‐ Já mãe. e Nancy-­‐ Já, madame. Pai-­‐ (off) Viene al letto, Dolores ! O foco sobre a mãe se apaga. Nancy-­‐ (tirando a peruca) Eu não preciso de peruca loura...

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Sábato-­‐ Posso te contar uma coisa, Nancy ? Mas você.... você tem que prometer que vai levar a sério.... quer dizer, pode rir também, se você quiser. Provavelmente vai dar vontade de rir. Mas é sério. Muito sério. Nancy olha para ele séria, recoloca a peruca. Sábato-­‐ É uma coisa muito pessoal, meio patética, mas muito real para mim... eu sei que é loucura, mas... esquece. Nancy olha para ele. Sábato-­‐ Eu... eu conversava... eu tinha dentro da minha cabeça, eu imaginava... e conseguia ouvir... agora ele não aparece mais, há um bom tempo ele não aparece mais. Era eu, mas era um outro também, ele passava o dia inteiro dentro da minha cabeça, deste quarto, ele morava dentro deste armário.... Nancy olha para ele. Sábato-­‐ Eu tinha um amigo imaginário. Pausa. Nancy-­‐ O quê ? Sábato-­‐ Um amigo imaginário. Nancy-­‐ (olha para os lados) Ele está aqui agora ? Sábato-­‐ Não, ele sumiu. Viajou.

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Nancy-­‐ O seu irmão viajou. Sábato-­‐ Ele não aparece mais, nem quando eu penso nele. Nancy-­‐ Como é que ele era ? Pausa. Sábato-­‐ Era o Totorito. O Totorito morava, aqui, comigo, dentro deste armário. Nancy se senta na cama. Começa a rir. Sábato se senta ao lado dela. Ela dá um tapa na cara dele. Nancy-­‐ Amanhã você vai no Teatro Carlos Gomes. Ela sai. Sábato se senta na cama, pensativo. Mudança de luz. Um foco sobre o “quarto” de Nancy. Ela canta baixinho uma música da Dietrich. Uma pedra voa pela janela e cai perto da cama. Sábato olha para a janela. Voa outra pedra. Sábato vai até a janela, olha. Sábato-­‐ (fala para baixo, surpreso) Sobe... não, eles estão dormindo... eu abro a porta para você... Ele apaga a luz do quarto. O foco fica em Nancy. Ela tira a peruca e pára de cantar. O foco se acende novamente no quarto e Sarah está sentada na cama. Sábato de pé ao lado da porta. O foco de Nancy se apaga. Sarah está com o rosto e algumas partes do corpo machucadas. Sábato-­‐ O quê aconteceu ?...

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Sarah-­‐ Você está bonito, Sábato... Sábato-­‐ Foi a polícia que fez isso ? Sarah-­‐ Descobriram a sede clandestina do Partido. Confiscaram tudo. Todos os papéis, os relatórios... alguém sabe o endereço daqui ? Sábato-­‐ Eu nunca fui do Partido. Sarah-­‐ É, eu sei.. Sarah olha para as camas. Sábato-­‐ Eu fiquei preocupado com você. Você sumiu. Ela olha para ele. Sábato-­‐ É horrível quando as pessoas desaparecem assim... sem avisar. Sarah-­‐ Eu estava viajando. Tempo. Sarah-­‐ E o Valentino ?

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Sábato-­‐ Você não tem recebido as cartas dele ? Sarah-­‐ Não, a última tem três meses... Ele vai até a janela. Sarah-­‐ Melhor eu ir embora. Sábato-­‐ Para onde ?... não, fica. Fica. Você não pode sair assim... Sarah-­‐ Eu não quero te envolver nesta estória. Sábato-­‐ Eu já estou dentro dela, Sarah. Sarah-­‐ Pode ser perigoso. Pausa. Sarah encosta a cabeça no travesseiro. Sábato-­‐ Você não quer uma roupa emprestada para dormir ? Um pijama ?... sua roupa está cheia de sangue. Sarah-­‐ Você vai me emprestar um pijama ? Sábato-­‐ Você não dorme de pijama ?...ah é, você é menina (se corrigindo) você é mulher, você dorme de camisola. Eu não uso camisola. (ficando nervoso) A minha mãe tem uma camisola (se corrigindo) não que eu queira que você vista uma camisola agora... (Ele faz um sinal para ela esquecer e vai até o armário) ah, tem um short e uma camisa do Botafogo, de quando eu tinha quinze anos, acho que vai caber certinho em você...

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Sarah-­‐ Prefiro o pijama, Sábato. Ele pega o pijama, entrega a ela. Sarah-­‐ E o seu filme ? Sábato-­‐ Você não quer dormir, descansar um pouco ? Ela balança a cabeça. Sarah-­‐ Me conta do seu filme. Sábato-­‐ Você realmente quer conversar sobre isso ? Sarah-­‐ Você tem um outro assunto ? Pausa. Sábato-­‐ Você gosta da Carmem Miranda ? Sarah-­‐ Não, por quê ? Sábato-­‐ Eu acho você parecida com ela. Sarah-­‐ Eu não tenho nada a ver com a Carmem Miranda.

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Sábato pensa. Sábato-­‐ Eu estou quase desistindo do filme... amanhã eu vou procurar o Totorito no Teatro Carlos Gomes.... você acha que ainda vale a pena insistir nessa estória ? Sarah-­‐ (se encostando na cama, sonolenta) Não sei, você é quem tem que decidir... Sábato-­‐ O quê está acontecendo com as nossas vidas é tão mais urgente... eu não posso mais ficar brincando de... e no final das contas, é só um filme... Sarah-­‐ É verdade... é só um filme... Pausa. Sábato-­‐ Engraçado... o cinema sempre marcou a minha vida muito mais do que a própria vida. Sarah se encosta na cama. Sábato-­‐ Eu amei milhares de mulheres no cinema, me separei, lutei em guerras, abri o mar vermelho, entrei no olho da lua... e sempre que um filme me tomava completamente e eu não conseguia parar de falar sobre ele, alguma pessoa acabava dizendo : “para que toda essa folia, é só um filme”... e eu pensava, não é só um filme, se está dentro de mim desta forma não é só um filme... e agora eu tenho certeza, era tudo só a droga de um filme... é só um filme. Ele se vira para Sarah e percebe que ela está dormindo. Pequeno tempo. Vai até ela e a cobre com o lençol. Vai até o interruptor e apaga a luz.

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Cena 3-­‐ Camarim do Teatro Carlos Gomes. Uma pessoa está sentada de costas, tirando a maquiagem do rosto, de frente para o espelho. Sobre a bancada vemos a cartola do Totorito. Sábato entra, segurando um manuscrito. Sábato-­‐ Com licença... oi, sou eu, Sábato. Pode continuar se maquiando. Desculpa te incomodar novamente, mas eu queria conversar sobre o nosso filme. Eu sei que você vai estrear um espetáculo amanhã... A pessoa vira o rosto, ainda com maquiagem. É Francisco alves, interpretado pelo mesmo ator que faz Valentino. Francisco alves-­‐ Perdão... Sábato olha para ele, atônito. Francisco alves continua tirando a maquiagem com algodão. Francisco alves-­‐ Este demaquilante nacional é uma porcaria... Ele acaba de tirar a maquiagem do rosto, Sábato olhando para ele. Francisco alves-­‐ Pois não ? Sábato olha para ele.

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Francisco alves-­‐ (se levantando) Você é da administração ? Esse camarim está cheio de teia de aranha... Pausa. Sábato-­‐ Desculpa... Pausa. Sábato-­‐ Não acredito que encontrei você aqui... Francisco Alves-­‐ Prazer, Francisco Alves... Pausa. Sábato-­‐ (se recompondo) Prazer, Sábato... eu... eu adoro o seu trabalho... Pausa. Sábato-­‐ Esse é o camarim do Totorito ? Francisco alves-­‐ Não. Sábato-­‐ Essa não é a cartola dele ?

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Francisco alves-­‐ É dele então ?... bom, acho que ele esqueceu...”Queria bordar o seu nome” foi cancelado, meu caro. Eu vou fazer um show aqui hoje à noite. Sábato se senta na cadeira, decepcionado. Francisco alves-­‐ Você queria um autógrafo ? Sábato-­‐ Não, eu sou comediógrafo. Escritor. Roteirista de cinema.... foi cancelado por quê ? Francisco alves-­‐ Não sei, problemas financeiros, acho... parece que também havia uma querela com a censura... Sábato abaixa a cabeça. Francisco alves olha para ele. Francisco alves-­‐ Você se importaria de me deixar sozinho ? Eu preciso aquecer a voz.... Sábato-­‐ (com o rosto abaixado) É que... eu escrevi um filme para ele... é muita coincidência... e você... você é um dos personagens do meu filme... Francisco alves-­‐ Ah, que colosso, eu adoro cinema... e eu faria papel de quê ? Sábato-­‐ De Francisco Alves. Você faria você o papel de você mesmo... Sábato soluça. Vemos que ele está chorando. Francisco alves se aproxima, devagar. Sábato-­‐ Desculpa, eu sou muito ridículo....

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Francisco alves tira um lenço do bolso e passa para ele. Sábato-­‐ É que... o meu irmão está lutando na guerra e você me lembra muito ele... muito... desculpa. Sábato enxuga o rosto. Francisco Alves-­‐ Calma, rapaz... Sábato-­‐ Desculpa... Francisco alves-­‐ ... muitos soldados voltam vivos da guerra. Sábato-­‐ Ele não manda notícias há três meses.... (pausa, eles se olham) a minha família está devastada, virou um deserto.... eu não consigo fazer nada... eu acho que estou apaixonado pela namorada do meu irmão... você já passou por isso ? Francisco Alves-­‐ (pequena pausa) Não. Sábato-­‐ Essa vida não faz o menor sentido... Sábato se levanta, nervoso, e começa a andar pelo camarim. Sábato-­‐ Obrigado pela sua ajuda, Francisco... e desculpa, desculpa te atrapalhar. Você tem a voz mais bonita do país. Sábato começa a sair.

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Francisco Alves-­‐ Você não quer ficar para assistir o show ? Sábato se vira. Eles se olham. Francisco-­‐ Depois do espetáculo vai ter um jantar na Confeitaria Colombo, em minha homenagem... um empresário argentino milionário. (com sotaque argentino) Bebida e comida à vontade. Eu te apresento algumas vedetes do Carlos Macedo...provavelmente você vai se sentir bem melhor... se divertindo um pouco. Sábato olha para ele, sorri. Sábato-­‐ Eu estava com saudades de você. Sábato começa a sair. Francisco Alves-­‐ Onde você vai ? Sábato-­‐ Para o meu quarto. Esse filme chegou ao fim. Sábato sai. Música. Cena 4-­‐ Sala do sobrado. Sábato chega com uma carta na mão, nervoso.

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Sábato-­‐ Mãe, mãe ! Chegou uma carta ! Uma carta do Valentino ! Mãe entra. Mãe-­‐ Minha nossa senhora ! Dante ! Dante ! Vem aqui ! Sábato começa a ler a carta. Nancy entra, com a peruca loura. Nancy-­‐ A carta chegou ? Eu sabia ! Oxalá, oxalá, meu Ogum ! O pai entra de cueca samba canção e camiseta. Pai-­‐ Carta, que carta, chegou uma carta ? Nancy-­‐ (abraçando-­‐o) Eu não disse que ele estava vivo, seu Dante ! (ela se ajoelha e começa a rezar) Pai-­‐ Santa Madonna della Calábria ! Per la santa ressurressione de tutti i santi ! Mãe-­‐ O quê que ele diz ? Está tudo bem ? Pai-­‐ Onde é que ele está ? Mãe-­‐ É da Itália ? Ele está voltando ? Sábato-­‐ (nervoso) Calma ! Deixa eu ler, silêncio !...

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Eles olham para Sábato, ansiosos. Dante nota que Nancy está de peruca. Pai-­‐ Tira essa peruca ! Pausa. Sábato (começa a ler a carta, nervoso)-­‐ “Itália, 11 de dezembro de 1944... queridos Pai, Mãe, Nancy e Sábato... me desculpem a demora para vos escrever, mas a guerra traz revezes inesperados, que muitas vezes se transformam em boa fortuna. Eu estou bem. Eu estou vivo. Imagino que vocês devem ter ficados agoniados com o meu silêncio, mas não havia como escrever. (um foco vai fechando em Sábato) Eu pensei em vocês o tempo todo, a presença de cada um de vocês na minha memória, aqui, ao meu lado, foi uma dos motivos que me fizeram sobreviver... o meu avião foi abatido há três meses, numa operação de reconhecimento perto de Pisa... . .um avião alemão atingiu a asa do meu pr-­‐47, que começou a pegar fogo e perder altitude. Um pouco antes dele explodir, eu consegui pular de pára quedas, e pousei em um campo de trigo na margem do bosque de Bazzi. Mas como soprava um vento muito forte, ao pousar com o meu pára-­‐quedas no solo eu quebrei a perna direita. Toda aquela área é patrulhada pelo exército alemão, e eu sabia que só teria aquela noite para encontrar algum lugar para me esconder... (ele respira) Eu entrei bosque adentro e caminhei a madrugada inteira, ouvindo ao longe as vozes de uma patrulha. Quando o dia estava nascendo, eu avistei um casebre, bati na porta. Um italiano de nome Orlando abriu a porta, um camponês, com o rosto duro, olhos profundos. Ele também estava nervoso, não entendia de onde eu era, não queria me deixar entrar. Mas quando eu disse que era do Rio de Janeiro – Brasil, ele começou a falar, emocionado : “Si, si, Rio de Janeiro-­‐ -­‐ Brasil -­‐ Copacabana ! Copacabana !”. (Sábato ri, emocionado) Ele tinha um cartão postal da praia de Copacabana colado na parede, de uma noiva de juventude que emigrou para o Brasil.... não é engraçado ?... eu passei os últimos três meses escondido neste casebre. No momento, não há como sair daqui, porque toda a região está ocupada pelo exército alemão. Só na última semana Orlando conseguiu ir à Pisa para enviar esta carta, porque é sempre um missão arriscada... eu espero que vocês estejam bem.... sinto saudades de todos e da feijoada da Nancy. (Sábato respira, emocionado) Mãe... não se deixe abater, e... não deixe de cantar... nunca... você sabe porquê. Pai, não fique tão nervoso com as coisas, e nem seja tão duro, há muito mais em você que você poderia nos dar... quando eu voltar para casa acho que devemos conversar muito e, pela primeira vez, falarmos o que sentimos uns pelos outros... Sábato, não desista do seu filme... por favor liguem para Sarah, dizendo que eu a amo, depois eu escrevo uma carta só para ela. Muitos beijos e saudades eternas... Valentino.”

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Música. Sábato sai do foco. Na penumbra, o pai e a mãe dançam, juntinhos. Sábato entra no quarto, absorto. Senta na cama. Na outra cama, ao lado dele, está sentado o Totorito imaginário, com a arma na mão. Eles se olham. Fim da música. Totorito-­‐ Você não tem vergonha ? Sábato-­‐ Eu não consegui pensar em mais nada. Totorito-­‐ Eu esperava mais de você, meninote.... Sábato-­‐ Você sumiu... Ele pega a carta da mão de Sábato, lê. Totorito-­‐ A carta está até bem escrita, mas aquele episódio do camponês de Neandertal... “Si, si, Copacabana, Copacabana!”, como é que eles acreditaram ?... “não deixe de cantar... nunca... você sabe porquê”... “há muito mais em você que você poderia nos dar”...as soluções são sempre de rádio-­‐novela... Sábato sorri. Totorito-­‐ A sua letra está igual a do seu irmão, você é um escriba notável, é verdade, mas o discurso é nitidamente seu... você vai manter essa mentira por quanto tempo ? Sábato-­‐ Eles precisavam acreditar em alguma coisa. Totorito-­‐ Você abandonou o nosso filme....

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Sábato-­‐ Eu sei... eu sinto que o Valentino está vivo. Totorito-­‐ O Valentino morreu, Sábato. Pausa. Totorito-­‐ Eu era o carteiro desta estória. Sábato-­‐ A gente precisa ter sempre esperança em alguma coisa. Totorito-­‐ Mesmo que seja numa outra mentira... Totorito entrega a arma para ele. Totorito-­‐ Atira. Atira no meu coração. Sábato olha para ele, sem entender. Totorito-­‐ Não é assim que termina o seu filme ?... atira... eu já posso sentir os créditos subindo na tela enquanto o meu sangue em preto e branco escorre pelo chão... Sábato aponta a arma para ele. Pequeno tempo. Eles se olham. Totorito-­‐ Você não vai me matar ? Sábato aponta a arma para ele e abaixa. Totorito sorri. Pega o roteiro e leva para o armário.

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Sábato-­‐ Aonde você vai ? Totorito-­‐ Eu sou um carteiro. O Correio não fecha nunca. Sábato se senta na cama. Tempo. Pequena mudança de luz. Voa uma pedra. Ele abre a porta e olha para fora. Vai até a janela. Sábato-­‐ Espera dez minutos, que os meus pais ainda estão na sala. Quando a luz do meu quarto apagar, você sobe. Sábato recoloca a arma dentro do armário. A luz se apaga. Quando acende, Sarah está sentada na cama, com uma pequena mala, e ele na porta. Sarah-­‐ Eu trouxe uma mala, com algumas das minhas coisas... acho que eles descobriram o endereço da pensão. Sábato-­‐ Você pode ficar aqui até quando quiser, Sarah. Sábato sorri para ela. Sarah-­‐ O quê é ? Sábato-­‐ Nada. Sarah-­‐ Eu nunca te vi tão feliz. Sábato-­‐ É que... o Valentino mandou uma carta. Ele está vivo.

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O pai entra segurando um copo de leite. Olha os dois. Olha a mala de Sarah. Silêncio. Pai-­‐ Che cazzo é questo ? Silêncio. Sábato-­‐ Oi, pai. A... a Sarah veio fazer uma visita. Sarah-­‐ Boa noite, seu Dante. O pai olha para os dois. Pai-­‐ Que mala é essa ? Sábato-­‐ Mala, que mala ?... ah, essa mala. Sábato-­‐ Essa mala é minha. e Sarah-­‐ Essa mala é minha. Pequena pausa. Pai-­‐ Você está namorando a namorada do seu irmão, Sábato ?

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Sarah-­‐ Seu Dante... Pai-­‐ Eu não estou falando com você. Sarah-­‐ Ele não deixa nenhuma mulher falar, é inacreditável. Pai-­‐ Que sem vergonhisse é essa, Sábato ? Sábato-­‐ Calma, pai. Pai-­‐ Ateísmo tem limite. Sarah-­‐ Eu vou embora. Sábato-­‐ Não, ninguém vai embora. Se eu não fui embora até agora, ninguém vai embora ! Mãe-­‐ (de fora) Dante ? Sábato-­‐ Pai, a Sarah... ela está sendo procurada pela Polícia. Fecharam a sede clandestina do partido comunista... Pai-­‐ O quê ? Sábato-­‐ Ela levou uma surra. A polícia clandestina... Sarah-­‐ Sábato...

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Sábato-­‐ Eu resolvi abrigar ela aqui. Pai-­‐ Repete. Sábato-­‐ Ela não pode ficar na rua.... Pai-­‐ Eu não vou esconder nenhuma criminosa nesta casa ! Sábato-­‐ Pelo amor de Deus, você não é um personagem! Você não é nazista ! Pai-­‐ (para Sarah) Pode arrumar a sua mala e partir. Sarah vai pegar a mala. Sábato-­‐ Ela não vai embora, Hans !(corrigindo) Pai ! (num rompante) Se você mandar ela embora eu conto para a mamãe que você tem uma amante. O Pai ri. Sábato-­‐ Eu conto, eu conto do seu romance com a “açougueira” -­‐ entre o chã, o patinho e o lagarto ! Pai-­‐ O quê ? Sábato-­‐ Eu revelo a sua receita de “spaghetti à putanesca” ! A mãe entra no quarto.

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Mãe-­‐ O quê está acontecendo ? Eles se olham. Pai-­‐ Fala. Fala para ela, Sábato ! Sarah-­‐ Boa noite, Dona Dolores. Mãe-­‐ O quê você está fazendo aqui, Sarah ? Sarah-­‐ Não sei. Pai-­‐ Fala, Sábato ! Fala da açougueira ! Mãe-­‐ O quê tem a Aracy ? Sábato-­‐ (olha para o pai, olha para a mãe) Ela não pagou o meu fundo de garantia, e eu trabalhei dois meses no açougue, você acha que isso é legal ? Mãe-­‐ Eu estava preocupada com você, Sarah, você nunca mais apareceu. Sarah-­‐ Eu pensei em você. Pai-­‐ E você esperava o quê de uma comunista ! Ela estava por aí, comendo criancinhas !

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Sábato-­‐ Vamos mudar esse filme ! Vamos transformar esses personagens ! Nós fazemos esta cena há trinta anos ! Nancy (entrando, vestida como Marlene Dietrich)-­‐ Tchau, gente, estou indo para o meu ensaio. (para Sábato) O Carlos... Sábato-­‐ Mãe, a Sarah está sendo procurada. Ela não tem para onde ir, ela foi espancada pela polícia. Se ela for presa ela pode até ser assassinada pelo Governo. Mãe-­‐ Mas é claro que você pode ficar hospedada aqui. Pai-­‐ Ela não vai ficar nesta casa ! Mãe-­‐ Não grita comigo. Sarah-­‐ Boa, companheira. Sábato-­‐ Isso, Dolores, reage ! Reage ! Mãe-­‐ Dante, ela é namorada do nosso filho... Dante-­‐ (irônico) Qual deles ? Sarah-­‐ Não projete a sua má consciência nos outros. Pai-­‐ O quê ?

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Nancy-­‐ “Marlene em Madureira” vai estrear no Sábado. É melhor reservar os convites, vai sair gente pelo ladrão. Quem vai querer ir ? Sábato-­‐ Eu vou. (para Sarah) Vamos ? Sarah-­‐ Não sei se é bom eu ficar saindo na rua assim, a polícia pode me reconhecer. Sábato-­‐ Não tem problema, a gente se disfarça. Pai-­‐ Bravo ! Que idéia genial !... e se a polícia bater aqui na porta de casa, todos nós nos disfarçarmos também. De “Clóvis”, de “bate-­‐bola” ! Sábato-­‐ Meu Deus, você também tem humor... Nancy-­‐ O seu Dante é a maior comédia. Sábato-­‐ (para Sarah, se divertindo) Eu posso me disfarçar de Karl Marx e você de Groucho Marx... não é o “Márximo” ? Mãe-­‐ Nós temos a obrigação de acolher essa moça, Dante. Sábato-­‐ Bravo, Dolores, bravo ! O Pai olha para eles. Pai-­‐ Muito bem. Você pode ficar então, Sarah. Até sexta. Em seguida você segue o seu caminho. Sozinha. Você não quer que os outros se responsabilizem pelos seus atos, não é ?

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Sábato-­‐ Até sexta ?! Como ela vai conseguir um lugar para / Sarah-­‐ Eu vou embora antes de sexta. O Pai olha para ela e sai. A mãe olha para eles. Sábato sorri para ela. Sábato-­‐ Obrigado, Dolores. (para Sarah) A gente dá um jeito. A mãe sai. Sábato, Sarah e Nancy ficam em cena. Nancy-­‐ São dois convites para a estréia então -­‐ Karl Marx e Groucho Marx. Cena 5 Sábato em um foco lendo uma carta. Em outros focos, separados, a mãe, o pai e Nancy, lendo a carta. “Itália, 12 de dezembro de 1944. Queridos Pai, Mãe, Sábato e Nancy: espero que vocês tenham recebido a minha carta de ontem. Deve ser engraçado receber cartas tão próximas, após três meses de silêncio, mas o Orlando vai voltar à Pisa hoje, e eu tinha esquecido de falar uma coisa muito importante. Essa semana eu sonhei muito com a Sarah. Vocês sabem

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que eu nunca fui supersticioso, mas eu estou com o pressentimento que ela está correndo algum tipo de perigo. Ela deu notícias ? Vocês sabem aonde ela está ?... se vocês puderem fazer qualquer coisa para ajudá-­‐la, por favor, não deixem de fazê-­‐lo... dentro desta carta eu estou mandando uma outra carta para ela... conviver com a tristeza tem sido uma realidade nos últimos meses, mas a verdade é que eu sei que vou voltar para casa e revê-­‐los... minha perna está melhorando aos poucos e esta guerra vai acabar. Ela tem que acabar. O Orlando está saindo para o correio agora... beijo todos vocês, muitas saudades, baccioni, Valentino. Cena 6 Quarto de Sábato. Sarah está sentada na cama, pensativa, ouvindo “Someone to watch over me”, de George Gershwin, que toca na vitrola. Sábato entra, eles se olham. Sábato-­‐ O meu pai mudou de idéia. Você pode ficar aqui até quando precisar... Sábato sorri. Sarah se encosta na cama. Sábato senta na outra cama e olha para ela. Eles ouvem a música. Tempo. Tempo. Sábato-­‐ Não sabia que uma comunista podia gostar de George Gershwin... Ela sorri. Sarah-­‐ Você não sabe de muita coisa, Sábato...

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Sábato-­‐ É verdade. (Pausa) Você também... Eles ouvem a música. Ele oferece a mão para ela. Eles dançam juntos. Clima. O disco começa a pular. Sábato vai até a vitrola e passa para a outra música. Sarah volta a se sentar na cama. Sábato senta novamente na outra cama. Sábato-­‐ Eu tenho uma surpresa para você. Sarah-­‐ O quê é ? Sábato tira um papel de carta do bolso. Sábato-­‐ Nesta última carta que o Valentino mandou... tinha uma carta só para você... Sarah olha para ele. Estende a mão. Sábato-­‐ Posso ler ? Sarah-­‐ Por quê ? Sábato-­‐ Eu adoraria. Sarah olha para ele. Sábato começa a ler a carta. Sábato-­‐ “Sarah, minha amada : acho que essas palavras nunca vão conseguir expressar o que eu sinto. Infelizmente, eu sou soldado, não poeta.... nós nos conhecemos há tão pouco tempo, e não há explicação para esse amor. A verdade é que é agora eu só vejo as coisas

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com você, eu olho para a janela e vejo a janela-­‐Sarah, a floresta-­‐Sarah, a lua-­‐Sarah, o pára-­‐ quedas-­‐Sarah... porque você é o meu pára-­‐quedas. Não me esqueça, porque eu nunca vou te esquecer. Eu fiz um mapa com as pintas do seu corpo. Debaixo do feno, o cheiro não era de terra, era... Ele pára a carta no meio e olha para ela. Leva a carta até Sarah, que lê o resto da carta. Sarah fica emocionada. Sábato vai até a cama e se senta do lado dela. Sábato-­‐ Você gostou ? Sarah-­‐ Muito. Sábato passa a mão no rosto dela. Ela segura a mão dele. Tempo. Sábato-­‐ Eu estou apaixonado por você. Pausa. Sarah-­‐ Eu sei. Tempo. Sábato-­‐ Vamos dançar um pouquinho ? Ele pega ela pela mão e os dois dançam uma música do disco do Gershwin, lentamente. Um foco acende suavemente sobre Valentino, vestido de soldado, no canto do palco.

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Valentino-­‐ ... e eu também nunca mais eu vou ter que te escrever cartas de tão longe, minha pequena. Minhas mãos, meus dedos, meu peito, minhas pernas, minha boca, meu corpo, minha pequena vida amada. Depois que tudo isso acabar eu vou ficar sozinho com você, o resto do ano. A vida inteira, só para nós dois... Dançando, Sábato e Sarah se beijam. Valentino-­‐ A guerra está acabando. O pior agora já passou. Estou indo para Florença amanhã. Peça para minha mãe rezar só mais um terço. Só mais um terço... eu estou quase chegando... beijo muito você... e a sua alma, Valentino. A luz sobre o casal se beijando se apaga. A música continua. O foco sobre Valentino se apaga. Blecaute. Fim do Segundo Ato

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Ato III Música. Totorito coloca uma cadeira no canto do palco e lê o manuscrito. Enquanto isso, a família está sentada na mesa, Sarah no lugar de Valentino. A mãe está mais arrumada, talvez maquiada. Nancy vem com uma travessa de massa. A luz de Totorito se apaga. Mãe-­‐ (para Sábato) É spaghetti... eu mesma que fiz... Dolores serve o macarrão. Pai-­‐ Bom apetite... Eles vão começar a comer, a campainha toca. Pai-­‐ Dio mio, ma che inferno... Nancy-­‐ Vocês querem que eu atenda ? Quase nunca é boa notícia... Mãe-­‐ Vira essa boca para lá, Nancy. (Nancy olha para ela) Abre a porta... Nancy parada.

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Sábato-­‐ Atende, Nancy, pode ser o carteiro. Nancy-­‐ Não sei, tô com um pressentimento ruim... Nancy sai. Eles voltam a comer. Nancy volta. Nancy-­‐ Não falei, é um homem da polícia. Ele quer falar com o senhor. Pai-­‐ Comigo ? O quê que ele quer ? Nancy-­‐ Ele disse que quer conversar com o sinhô, coisa rápida. Mas eu acho que é mentira. Sarah (se levantando)-­‐ Eles estão atrás de mim. Pai-­‐ Eles quem ? Sarah-­‐ A polícia. Sábato-­‐ Mas como é que eles saberiam o endereço daqui ? Sarah-­‐ Não sei... alguém pode ter me entregado. Sábato-­‐ Você contou para alguém que estava escondida aqui ? Sarah olha para ele.

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Pai-­‐ Eu falei que a gente não devia ter hospedado essa trambiqueira ! Mãe-­‐ Calma, Dante, fala baixo... Nancy-­‐ Tem uma carro da polícia estacionado, com dois homens dentro. Sábato-­‐ (olhando para a porta) Ele vai começar a desconfiar... Sarah-­‐ Deixa que eu resolvo. Sábato-­‐ Não ! Mãe-­‐ Vai para o quarto, Sarah, se esconde.... Nancy, senta no lugar da Sarah... eu... eu vou até lá. Pai-­‐ Ma lui vuole parlare com me ! Sábato (para Sarah)-­‐ Se esconde dentro do armário ! Pai-­‐ Cazzo del padre mio... O pai se levanta, nervoso. Mãe-­‐ Senta, Dante ! A mãe vai na direção da porta. O Pai e Nancy se sentam. Eles começam a comer, disfarçando.

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A mãe entra com o policial. É um ator que ainda não apareceu na peça, deve ser uma figura estranha, como se fosse o personagem de um outro espetáculo, um intruso naquela situação. Mãe-­‐ Pode entrar, seu policial... Policial-­‐ Obrigado. Ele entra. Silêncio. Nancy-­‐ Está servido ? Policial-­‐ Não, obrigado. Mãe-­‐ Quer um copo d’água ? Policial faz um sinal recusando. Mãe-­‐ Uma taça de vinho ? Policial-­‐ Não bebo em serviço. Pequena pausa. Pai-­‐ O vinho acabou.

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Pausa. Pai-­‐ (nervoso, se levantando) Piaccere, io sono... (corrigindo) prazer, eu sou o Dante Ruzzante Ferrentini della Crostina... o senhor quer falar comigo ? Policial-­‐ Me desculpem profanar a hora sagrada do almoço, mas é um assunto importante. Eu gostaria de fazer algumas perguntas.... (ele olha a casa)se vocês não se importarem em respondê-­‐las, é claro... Pequena pausa. Pai-­‐ O senhor quer se sentar ? Não há nenhuma cadeira para ele sentar, fora as da mesa. Nancy se levanta, ele faz um sinal para ela sentar. Policial-­‐ O seu filho Valentino Ruzzante morava nesta casa, não é verdade ? Mãe-­‐ Ele ainda mora.... ele está na Itália, lutando na Guerra. Policial-­‐ Ele ainda não voltou ? Pai-­‐ Não. Policial-­‐ Mas ele está vivo. Dante-­‐ Si.

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Policial-­‐ Ele está vivo. Mãe-­‐ Está... por quê ? Pai-­‐ Ele sempre nos manda cartas... do... teatro de operações. Pequena pausa. Pai-­‐ O Valentino está arriscando a vida por esse país. O Policial olha para eles. Policial-­‐ Vocês naturalmente conhecem a namorada dele. Pai-­‐ Si, sí. Policial-­‐ Sarah, não é ? Mãe-­‐ Você tem notícias dela ? Ela desapareceu desde que o Valentino foi para a guerra. Policial-­‐ Ela não desapareceu. Mãe-­‐ Não ? Sábato-­‐ Passa o queijo, Nancy, por favor.

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Mãe-­‐ Onde é que ela está ? Policial-­‐ (acendendo o cigarro) Vocês se importam ?... semana passada a polícia federal estourou um escritório clandestino de uma facção do partido comunista. Uma célula de encontro de jovens burgueses desocupados, estrangeiros trotskistas, e alguns trabalhadores desavisados, é verdade... havia todo o tipo de material subversivo no local.. Mapas de quartéis, manifestos, dinheiro falsificado, bonecas russas... (ele sorri) Quando a polícia chegou havia três membros do partido no aparelho, entre eles a “companheira Aurora”, alcunha de Sarah Kaplinski. Houve uma intensa troca de tiros. Nós prendemos o companheiro “Neto”, mas os outros dois meliantes conseguiram fugir... essa seria mais uma estória rotineira se não fosse o fato de que um policial foi morto na operação. Enquanto fingia se entregar, a “pequena Sarah” disparou duas vezes contra o peito do nosso companheiro... um acertou no coração... Pausa. Policial-­‐ Além de criminosa política, a namorada do vosso filho é uma assassina... esse spaghetti é ao sugo ? Dante pega um cinzeiro para o policial. Sábato-­‐ Como é que você sabe que foi ela quem atirou ? Policial-­‐ Porque eu estava lá. Eu vi a cena. Vocês se importam de eu dar uma olhada na casa ? Mãe-­‐ (se descontrolando) Sim ! Policial-­‐ Por quê ?

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Mãe-­‐ Porque a minha mãe está dormindo no quarto e ela... ela é doente dos nervos. Nós só conseguimos colocá-­‐la para dormir agora. Ela é muito nervosa. Por favor... Policial-­‐ Eu não vou fazer barulho. Mãe-­‐ Os seus sapatos já estão fazendo barulho e sujando o meu tapete .... e o senhor não pode invadir a minha casa sem uma ordem, uma procuração / Sábato-­‐ Um mandato de busca. Mãe-­‐ Um mandato de busca. É ilegal. O Policial sorri. Policial-­‐ A senhora a assiste a muitos filmes americano, não é ? Mãe-­‐ Assisto, por quê ? Policial-­‐ Nós estamos na Lapa, minha senhora. Mãe-­‐ Nós estamos na minha casa. (pequena pausa) Prazer, Rita Hayworth, (aponta para o Marido) Clark Gable, (aponta Nancy) Marlene Dietrich e (aponta para Sábato) Groucho Marx. Pode ir embora, nós queremos almoçar em paz... Sábato-­‐ Mãe... Mãe-­‐ (descontrolada) Cala a boca, guri ! Mas que encheção, caçamba ! Todo mundo acha que pode fazer o que quiser nesta casa ! É só entrar, tomar do meu café, tomar leite de magnésia, cantar uma música-­‐ isso aqui não é a casa da Mãe Joana !... com todo respeito

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pelo seu patrão Getúlio Vargas, mas ele já me convidou para tomar um chimarrão no palácio do Cacete ?... eu já tomei chá das cinco com a dona Darcy ?... quando teve aquela festa para o Orson Wells no Copacabana Palace eu fui convidada ? Não, e eu adoro o Orson Wells ! E sabe por quê eu não fui convidada ? Porque eu não sou nada, eu sou uma anônima, uma figurante, eu sou uma dona de casa ! Eu apenas sou mais uma mãe desesperada que manda o filho morrer na guerra. Mas se eu sou uma “dona de casa”-­‐ abre bem a escuta, seu policial -­‐ “DONA-­‐ de casa”, “DONA-­‐de-­‐casa” – então eu sou a Dona desta espelunca, e ninguém entra aqui sem ser convidado, principalmente sem uma ordem, (tentando achar a palavra) uma procuração / Sábato-­‐ Um mandado... Mãe-­‐ (descontrolada) Um mandado de bunda ! E no quarto da minha mãe ninguém entra, seja você, o Franklin Rossev, o Winston Churchi ou Adolfo Hitler ! A mãe respira. Todos olham para ela, impressionados. O policial vai na direção da porta da rua, se vira. Policial-­‐ Eu volto com o mandato de busca... dona.... Rita Hayworth.. Ele começa a sair, Dante o acompanha. Nancy-­‐ Moço ! (o policial se vira) Hoje à noite eu vou estrear um número no Cassino da Urca. O senhor não gostaria de ir ? Policial-­‐ (olha para ela) A que horas é ? Nancy-­‐ Começa às nove. O meu número é o quinto depois do intervalo. Policial-­‐ Eu vou estar de plantão. Obrigado.

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Ele sai. Sábato-­‐ Como é que você conseguiu fazer aquilo ? Dante volta. Dante-­‐ Ela vai embora daqui agora. Sábato-­‐ Pai... Dante-­‐ Agora. Cena 2-­‐ Sábato entra no quarto. Sarah está sentada na cama. No seu foco, Totorito vira a página do roteiro. Sarah-­‐ Eu não matei ninguém. Sábato-­‐ Eu não me importo se você matou ou não... Sarah-­‐ Pois deveria se importar. Onde você está com a cabeça, Sábato ? Pausa.

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Sábato-­‐ (excitado) Vamos embora daqui. Vamos fugir juntos !... a gente pode ir para São Paulo, eu tenho família lá... ou para Nova York ! A gente pega um navio cargueiro, eu trabalho no navio, lá em Nova York é fácil de conseguir emprego, a gente abandona essa vida medíocre / Sarah-­‐ Cala a boca. Ela mostra um papel de carta para ele. Sarah-­‐ Eu encontrei isso dentro do armário... um rascunho.... da carta que o Valentino me mandou. Pausa. Sarah-­‐ É você quem está escrevendo estas cartas, não é ? Pausa. Sarah-­‐ Não acredito... Sábato-­‐ Eu... Sarah-­‐ Como é que você teve a coragem... Sábato-­‐ Eu queria ganhar tempo... Sarah-­‐ O Valentino pode estar morto, Sábato.

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Sábato-­‐ Ele não morreu. Pausa. Sarah-­‐ A vida não é esse filme ridículo que você está escrevendo. Sábato-­‐ Não existe mais filme nenhum, Sarah. Pausa. Sarah-­‐ Eu vou embora. (ela se levanta, pega a mala e vai até a porta) e você vai contar a verdade para os seus pais. Sábato-­‐ Eu não posso fazer isso... Sarah-­‐ Mas você vai. Se você não contar a verdade para eles até hoje à noite, eu venho aqui amanhã de manhã e conto tudo. Não é mais possível viver nesta mentira. Sábato-­‐ Quase tudo que eu escrevi era verdade... de alguma forma. Sarah entrega um papel para ele. Sarah-­‐ Eu estou indo para essa pensão. É seguro lá, por enquanto.... se a polícia aparecer aqui de novo, me liga. Não vai esquecer. Sábato-­‐ Você não vai sumir de novo...

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Ela começa a sair. Sábato-­‐ Sarah... Ela se vira. Sábato-­‐ Você matou aquele policial, não matou ? Ela sai. Sábato fica sentado na cama, nervoso, pensando. Um foco de luz fecha nele, o resto do palco no escuro. Música dramática. Foco em Totorito, lendo o texto. Uma outra luz abre no pai, na rua, com uma pilha de jornal na mão. A música aumenta. Sábato sai do quarto e se encontra com o pai. Cena 3 Rua. Sábato e Dante em silêncio, sem se olhar. O foco de luz em Totorito, no canto do palco, continua. Silêncio. Sábato olha para frente, o pai para os lados, vendo se alguém quer comprar jornal. Respira. Pai-­‐ Você quer falar alguma coisa ? Pausa.

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Sábato-­‐ E você, quer falar alguma coisa ? O pai balança a cabeça. Sábato olha para a frente. Pausa. Sábato-­‐ Como é que essa cidade pode ser tão linda e tão decadente ao mesmo tempo ? Pausa. Pai-­‐ (anunciando) “Alemanha sofre mais derrotas no norte da França”, “Alemanha sofre mais derrotas no norte da França”... Pausa. Sábato vai falar, desiste. Pequena pausa. Sábato-­‐ Me desculpa, pai... Dante olha para ele. Sábato-­‐ Por não ser o filho que você gostaria que eu fosse. Pequena pausa. Pai-­‐ Eu também nunca fui o pai que você gostaria que eu fosse... não é vero ? Sábato-­‐ Não sei. Talvez. Tempo. Som de avião, os dois olham o avião passar.

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Sábato-­‐ A gente nunca vai mudar... você não imagina essa cena ? Foco suave sobre a mãe, comendo pipoca. Sábato-­‐ Eu e você, daqui a vinte anos, você e a minha mãe velhinhos, comendo spaghetti no domingo, e o Valentino... o Valentino com os filhos dele, e eu e você iguais ?... tendo essa mesma relação ? Porque eu acho que é isso que vai acontecer... Pai-­‐ Sabe que desde que você nasceu, desde que você era um bebê, piccolino, no berço, você já era esse Sábato que você é ? Você sempre foi esse Sábato. Sábato-­‐ É... Sábato olha para frente. O pai olha para ele. Sábato-­‐... nós somos os personagens que nunca mudam, pai. Pequena pausa. Pai-­‐ “Alemanha sofre mais derrotas no norte da França”, “Alemanha sofre mais derrotas no norte da França”... Sábato pensa, se dá conta que não consegue falar Sábato-­‐ Cadê a minha mãe ? Pai-­‐ Foi ao cinema.

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Sábato-­‐ Ela foi ao cinema ? A mãe sai do foco. Pai-­‐ Foi ver o filme do Totorito. Sábato começa a sair. Pai-­‐ Você vai de novo ao cinema ? Sábato-­‐ Eu preciso dizer para a Dolores que o Hans Spizzer não é nazista. O tiro vai matar a pessoa errada. Essa estória é sobre cartas falsificadas ! O farsante do filme é o carteiro ! Quem vai fugir é o carteiro ! Sábato vai saindo, um foco em canhão acompanha ele. Música. Pai-­‐ Você já viu esse filme, Sábato ! Você já viu esse filme ! A música sobe, junto com o som do telefone. O pai continua gritando. Mudança de cena. Cena 4 A mãe está sentada, assistindo ao filme, comendo uma pipoca. Sábato se senta ao lado dela. Há também ainda um foco sobre o pai, muito suave. Totorito sai do seu foco, que fica vazio. Uma piada no filme, a mãe ri. Sábato-­‐ Essa parte é muito engraçada. Agora /

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Mãe-­‐ Não. Não me conta o que vai acontecer... Pausa. Eles assistem ao filme. Sábato-­‐ Mãe... eu preciso te falar uma coisa... Mãe-­‐ Eu quero ver o filme, Sábato. Ela assiste ao filme. Mãe-­‐ É sobre o seu pai... Sábato olha para ela. Mãe-­‐ Eu já sei do caso dele com a açougueira.... há muito tempo. Totorito volta para o foco, com um copo d’ água. Mãe-­‐ Você ainda é muito ingênuo, meu filho. As coisas na vida não são tão simples. Ele tem esses casos e acaba sempre voltando para casa... Sábato-­‐ Você não precisa viver isso, mãe. Você pode ter a sua vida. Mãe-­‐ Você tem que esquecer esse sonho tolo que eu poderia voltar a cantar. Eu nunca fui talentosa, Sábato. Eu parei de cantar porque não conseguia acertar uma música...

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Sábato olha para ela. Foco em Nancy, se vestindo de Marlene Dietrich. Mãe-­‐ Sabe por quê eu entendo o seu pai ?... sabe por quê eu consigo perdoá-­‐lo ? Pai-­‐(olhando para a rua) “Alemanha sofre mais derrotas no norte da França”... Mãe-­‐ Nos primeiros anos do nosso casamento eu era apaixonada por um outro homem.... se lembra do doutor Alberto, que visitava a nossa casa, quando vocês eram pequenos ? Sábato-­‐ Um que agora mora em Juiz de Fora ? Mãe-­‐ Nós tivemos um romance até o segundo ano do meu casamento com o seu pai. Sábato -­‐ Me passa uma pipoca, pelo amor de Deus. Mãe-­‐ Foi por causa do nosso romance que ele se casou. Foi por isso que ele foi morar em Juiz de Fora. Eu nunca esqueci o Alberto. Eu penso nele até hoje, um pouquinho, todos os dias... e, por mais incrível que isso possa parecer, eu também amo o seu pai. Mas o Dante nunca foi o grande amor da minha vida. Sábato olha para ela e ri. Ela ri também Mãe-­‐ Você acha isso engraçado ? Sábato-­‐ Não sei... é tão real, tão triste e tão bonito que... Pausa. Sábato pensa em falar.

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No foco do Totorito, ele começa a discar um telefone. Sábato olha para ela, olha para a tela. Os dois assistem ao filme. Sábato-­‐ (nervoso) Eu vou embora. O telefone começa a tocar. Mãe-­‐ Você não quer ficar até o final ? Sábato-­‐ Eu já sei como esse filme acaba... (ele dá um beijo nela) Dolores. Eles se olham. Sábato sai, nervoso. Mãe-­‐ Aonde você vai ? Sábato-­‐ Eu vou sentir saudades de você. Música. Cena 5 Som de telefone tocando. O foco em Nancy e Totorito aumentam em intensidade. Nancy-­‐ Dio mio, ma che inferno... pronto ! Totorito-­‐ Boa tarde, poderia falar com o Sábato, fazendo o favor ?

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Nancy-­‐ Não está. Quer deixar algum recado rápido ? Eu estou com pressa. Totorito-­‐ É a Nancy, secretária dele ? Nancy-­‐ Bom, se você quiser chamar assim.... Totorito-­‐ Quem está falando é o Totorito... Nancy-­‐ Totorito ?... Totorito Totorito ?! Totorito-­‐ Você poderia anotar um recado ?.. é que o produtor de cinema leu o roteiro de “Deu o Breque em Berlim” e se encantou pela película. Nós vamos produzir o filme. Nancy-­‐ Não acredito !... e eu sou a Marlene Ditriti do filme, seu Totorito. Eu vou interpretar a Marlene Dietrich ! Eu já estou vestida de Marlene Dietriti ! Totorito-­‐ É ?... que boa bola... você poderia pedir para ele me ligar, por obséquio ? Nancy-­‐ Claro, claro... pode deixar, o nosso escritório tem o seu telefone... Totorito-­‐ Obrigado pela atenção. Totorito desliga. Nancy-­‐ Olha só, seu Totorito, eu sei que está um pouco em cima da hora, mas eu vou estrear um espetáculo daqui a pouco no Cassino da Urca, o senhor não gostaria de ir ?... alô ?... alô ?

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Ela se dá conta que desligaram e começa a sair. O telefone toca novamente. Foco sobre Sarah, fumando, em um outro canto do palco. Nancy-­‐ (épica) Será que eu posso viver a minha vida pelo menos por uma noite ?! Ela olha para o telefone que insiste em tocar. Nancy-­‐ Não tem ninguém em casa. É a vizinha. Um foco sobre Sábato, no telefone. Sábato-­‐ Nancy, sou eu. Nancy-­‐ Sábato, você não sabe o quê aconteceu ! O Totorito ligou dizendo que o produtor quer investir no nosso filme ! Sábato-­‐ “Deu o breque em Berlim” ? Nancy-­‐ Claro, qual outro ? Sábato-­‐ Uau... que surpresa... é... que pena... eu não quero mais fazer mais filme nenhum. Foco em Valentino, segurando uma mala. Nancy-­‐ O quê ?!

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Sábato-­‐ Eu não posso te explicar agora, Nancy... o meu pai está aí ? Nancy-­‐ Não, ele me falou que ia direto da banca para o meu espetáculo... você vai me assistir, não é ?... como assim você não quer fazer mais o filme ? Onde é que você está ? Sábato-­‐ Na bilheteria do cinema... Nancy, presta atenção... eu vou embora. Para São Paulo. Foco sobre Sarah se apaga. Sábato-­‐ Eu preciso fazer isso. E eu preciso que você não fale nada para os meus pais. Eles vão saber no momento certo. Nancy-­‐ Não mata o meu coração ! Nós vamos mudar as nossas vidas ! Sábato desliga. Som de avião passando. No foco de Valentino, ele olha o avião passar. Sábato pega um papel, e começa a ligar para um outro número. Nancy-­‐ Sábato !... alô ?... alô ?... desgraçado !... infeliz desgraçado !...(ela olha um relógio na parede) Oito e meia, o show vai começar ! Entrada da música. Nancy vai para o fundo do palco, junto com os outros personagens, menos Sábato.Na contra-­‐luz, em silhueta, eles começam a vestir a roupa do número musical – uma capa e um chapéu-­‐ sobre as suas roupas. Sábato-­‐ (falando sobre o início da música) Alô ? Poderia falar com a Sarah, por favor ?... Sarah Kaplinski... não, não sei... como não ?... e Aurora ? Ela pode ter assinado como Aurora.... ela se hospedou aí depois do almoço... (nervoso) como ninguém se hospedou, ela foi para aí agora à tarde, ela me deu o telefone daí !... ... (se recompõe) desculpa, se ela aparecer, por favor, você poderia... nada... nada... esquece. Esquece !

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Música. Cena 6-­‐ Número musical. canta uma música da Marlene Dietrich que se transforma em Samba. Pode ser um pout-­‐pourri de sambas da época. Os outros personagens cantam e dançam juntos. Estão em coro, mas a personalidade dos seus personagens moldam o jeito que eles cantam e a coreografia. Num determinado momento quem canta é a mãe, de Lecy Dondon Gonçalves. O final é apoteótico, carnavalesco, confetes caem do alto. Eles saem, o palco fica vazio, somente com Sábato. Silêncio. Sábato anda pelo palco, lentamente, segurando uma mala. Ele pára num ponto no canto do palco. A luz muda. Cena 7-­‐ Som de estação de trem. Sábato espera, pensativo. Ele segura uma mala. Um anúncio em off : “Trem para São Paulo partindo na plataforma 5 em três minutos...” Voz (off)-­‐ Sábato ! Sábato olha para os lados. Voz (off)-­‐ Sábato ! Totorito entra, apressado, com pouco fôlego. Totorito-­‐ Ufff, que inferno, todo mundo deveria andar de tanga nesta cidade.

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Sábato olha para ele, atônito. Totorito-­‐ Você não vai mais para São Paulo, meu caro. Pausa. Totorito-­‐ Nós vamos fazer “Deu o Breque em Berlim”. Pequena pausa. Sábato vai falar. Totorito-­‐ A “Marlene Dietrich” me ligou. Sábato coloca a mão no rosto emocionado. Totorito-­‐ Você está chorando ? Sábato-­‐ (segurando a emoção) Não... ela também te contou você era meu amigo imaginário ? Totorito-­‐ (ele ri) Vocês comediógrafos tem mesmo uma cabeça doentia... mas talvez o carteiro pudesse realmente se esconder dentro do armário, em algum momento do filme... Pausa. Sábato-­‐ Ela te contou que meu irmão está na guerra ? Totorito-­‐ O seu irmão está na guerra ?

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Silêncio. Sábato-­‐ Engraçado... eu nunca consegui fazer nada da minha vida, e agora que eu tenho essa possibilidade eu não quero mais... Totorito olha para ele. Sábato-­‐ Eu estava escrevendo cartas para os meus pai como se eu fosse meu irmão, Totorito... Pausa. Sábato-­‐ Eu não consigo admitir que ele morreu, porque não se pode admitir uma coisa dessas, você me entende... e agora eu não consigo contar a verdade para os meus pais... só por carta... só por carta... eu sou um... eu sou o carteiro do filme, Totorito. Totorito acende um cigarro. Sábato-­‐ Como é que nós poderíamos fazer agora “Deu o breque em Berlim” ? Pausa. Sábato-­‐ A Nancy te contou alguma coisa sobre a Sarah ? Ela ligou ? Totorito-­‐ Quem é Sarah ? Pausa. Totorito estende a mão, pedindo um gole de coca. Ele dá um gole.

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Totorito-­‐ Talvez você pudesse escrever um novo filme... um filme sobre isso... sobre você tentando escrever “Deu o breque em Berlim”, com todo esse drama acontecendo na sua vida... e interferindo na estória.... (se animando) eu, por exemplo, poderia me interpretar, e interpretar também esse Totorito...esse Totorito imaginário... o filme poderia começar comigo, num cine-­‐teatro, narrando a estória para os espectadores... Sábado-­‐ É... pode ser. (pequena pausa) Mas como escrever uma estória que ainda não acabou ?... como escrever uma estória que está acontecendo aqui, agora, enquanto eu olho para você ? Eles se olham. Sábato-­‐ A vida nem sempre tem um final feliz. Totorito-­‐ A vida não tem um final, Sábato.... a vida é uma sessão infinita de cinema, milhares de filmes acontecendo ao mesmo tempo, guerra, comédia, drama, documentário, musical... e o problema é que você nunca sabe que filme você está assistindo, qual o seu personagem naquela estória, muitas vezes você é o personagem no filme errado... e o pior, não existe roteirista, e o diretor, o diretor / Anúncio em off : “Trem partindo para São Paulo. Última chamada.” Totorito-­‐ Vamos tomar uma cervejinha. Sábato-­‐ Eu preciso ir... de verdade. Totorito-­‐ Boa viagem... Sábato-­‐ Eu vou sentir saudades de você...

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Totorito-­‐ Eu também. Eles se abraçam. Sábato começa a sair. Sábato-­‐ Eu te escrevo uma carta... Totorito sorri. Totorito-­‐ Melhor você me telefonar... Sábato sorri e sai. Pausa. Totorito-­‐ É... se fosse um filme... essa estória terminaria aqui. Pausa. Ele olha para os lados. Coloca a cartola e sai de cena. O palco fica vazio. Cena 8-­‐ Mudança de luz. Sala do sobrado. Valentino entra pela porta de casa,com a roupa de aviador, cansado, com um mala. Ele anda pela sala. Valentino-­‐ Tem alguém em casa ?

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Ele olha para os lados. Vê uma carta encima da mesa, com um revólver sobre ela. Um foco sobre a carta e a arma. Valentino vai até lá. Tira a arma de cima da carta, olha o envelope, abre-­‐o, tira uma carta de dentro e começa a ler. Música. A luz vai caindo. Blecaute.

FIM

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