LUA DE CETIM (versão final) ALCIDES NOGUEIRA
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“Experimentava uma sensação de imenso cansaço ao verificar que todo esse tempo tão longo não só fora, sem interrupção, vivido, pensado, segregado por mim, era minha vida, era eu mesmo, como ainda o devia incessantemente manter preso a mim, pois me sustentava, eu me via jungido a seu cimo vertiginoso, não podia locomover sem comigo o deslocar.” Marcel Proust “O Tempo Redescoberto”
Para Julia Pascale, companheira de tantas paixões e tantas batalhas. Para Maria Rita da Silva, minha Bá, que foi meu carinho, meu esteio de vida, minha lição de mundo. Para Umberto Magnani, meu amado Guima, in memoriam.
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personagens ALCEBÍADES ANTONIO GUIMARÃES - GUIMA CANDELÁRIA SOUZA GUIMARÃES - CANDÊ ALCEBÍADES ANTONIO GUIMARÃES JR. - JUNIOR CRIANÇA ALCEBÍADES ANTONIO GUIMARÃES JR. - JUNIOR OU BIRA ADULTO MARISA I ATO - 1961 II ATO - 1971 III ATO - 1981
A AÇÃO PASSA-SE SEMPRE EM UMA PEQUENA CIDADE DO INTERIOR DO ESTADO DE SÃO PAULO, TORRINHA.
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I ATO
Sala-copa de uma casa de família classe-média do interior do estado de São Paulo: Torrinha. A um canto, uma mesa de fórmica com quatro cadeiras, geladeira com pinguim em cima, calendário, muitos vasinhos com flores. Mostra capricho da dona da casa. Há uma porta interna que liga para a cozinha e o resto da casa, apenas sugeridos. Do outro lado do palco, um jogo de palhinha, meio envelhecido, que mostra ter pertencido aos avós dos donos. Um cachepô antigo com alguma folhagem enfeitando. Quadros do Sagrado Coração de Jesus e de Maria. Retrato de casamento dos donos da casa. Um rádio antigo, colocado sobre um bufê. Há uma janela que dá para fora. Uma outra porta, que dá para a rua. A sonoplastia da peça é sempre feita através do rádio. A ação do I ATO acontece em 1961, pouco tempo antes da renúncia de Jânio Quadros.
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CENA 1 LUZ VAI SE ACENDENDO LENTAMENTE POR SOBRE A SALA DE JANTAR. É DIA. DE REPENTE, CANDELÁRIA ATRAVESSA A CENA E VAI ATÉ A JANELA. UM BARULHO VEM DE FORA. CANDÊ -
Junior, já pra dentro! Vem pra dentro, moleque!
TEMPO. ENQUANTO ISSO, CANDELÁRIA ARRUMA ALGUMAS COISAS NA SALA. VOLTA À JANELA. O BARULHO É BEM MAIOR. LATIDOS DE CACHORRO, VOZ DA VIZINHA BERRANDO. GRITARIA DE MOLECADA. CANDÊ -
(À JANELA) Junior, vem pra dentro! Que cê tá fazendo, moleque?
TEMPO. JUNIOR ENTRA CORRENDO NA SALA, CANDELÁRIA AGARRA-O PELA MANGA DA BLUSA. CANDÊ -
ESBAFORIDO.
O que aconteceu?
ANTES QUE JUNIOR POSSA EXPLICAR, VOZ DA VIZINHA LÁ DE FORA. VIZINHA -
(OFF) Seu bandido, seu animal, seu marginal, seu filho de uma boa mãe! Vem cá, moleque safado, que te corto o pescoço! Vem cá, seu marginal, seu bandido!
CANDELÁRIA CHEGA À JANELA, NOVAMENTE. CANDÊ -
O que aconteceu, dona Nicota?
VIZINHA -
(OFF) O Junior andou judiando do Sultão! Enfiou um pedaço de pau no fiofó do cachorro! Seu filho é um marginal, Candê!
CANDÊ -
Marginal, não, dona Nicota! Eu vou bater no menino, mas não precisa chamar o Junior de marginal! Marginal é muito pesado, dona Nicota!
VIZINHA -
(OFF) É marginal mesmo! Quero ver se alguém enfiasse um pedaço de pau no fiofó dele! Quero ver!
CANDELÁRIA VOLTA-SE PARA JUNIOR. CANDÊ -
Você fez isso?
JUNIOR -
Mas... mãe... eu...
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CANDÊ -
(À JANELA) Marginal é seu filho, dona Nicota! O Junior tá aqui dizendo que não fez nada!
JUNIOR -
Mas eu fiz, mãe!
CANDÊ -
Cala a boca, menino. Tô resolvendo a situação.
VIZINHA -
(OFF) Filho da senhora só podia dar nisso mesmo.
CANDÊ -
Ah é, sua sirigaita? Desde quando tem moral pra falar de mim? Vai dar uma olhadinha na Neusa Maria, vai! Não sou eu que fica namorando até depois da meia-noite...
VIZINHA -
(OFF) Cuida do teu filho! Ele vai virar ladrão! Vai virar não! Já é! Ontem ele roubou goiaba e xuxu!
CANDÊ -
Roubou não! Deus pôs as coisas no mundo pra isso mesmo! A senhora não come as goiabas e não deixa ninguém comer!
VIZINHA -
(OFF) As goiabas são minhas!
CANDÊ -
Não são! O pé é seu, mas as goiabas estão do MEU lado!
VIZINHA -
(OFF) Se não tivesse o pé, não tinha goiaba!
CANDÊ -
Ah, vai lamber sabão!
BATE A JANELA. VIZINHA -
(OFF) Biscatona!
CANDÊ ABRE NOVAMENTE A JANELA. CANDÊ -
Biscatona é a tua mãe que deu para cidade inteira. Todo mundo sabe disso. E sabe também que teu marido tem uma mulher na zona. É isso mesmo, sua cornuda!
BATE COM FORÇA A JANELA. ENCARA JUNIOR COM TUDO. CANDÊ -
Seu marginal! Safado, ladrão! Quem mandou fazer isso com o cachorro? Quem mandou roubar goiaba da dona Nicota?
JUNIOR TENTA PROTESTAR MAS CANDELÁRIA VAI DANDO PUXÃO DE ORELHA E CABELO. O MENINO CHORA AQUELE CHORO DE MANHA. CANDÊ -
Vai tomar banho! E volta aqui correndo porque tá na hora da reza. Vai, vai, seu marginal, seu ladrãozinho, eu não criei
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ninguém pra ficar batendo boca com vizinha! Filho meu tem que andar certo! Vai, vai! JUNIOR SAI CORRENDO, AINDA MANHOSO. CANDELÁRIA DESPENCA EM UMA CADEIRA. CANDÊ -
Quando isso vai acabar? Eu queria tanto que esse pestinha crescesse logo... Que arrumasse uma moça direita, casasse, tivesse uma casinha ajeitada e um bom emprego. (SONHANDO) Podia ser no Banco do Brasil! Pagam bem... É seguro... Podia chegar a gerente, como o sêo Passos ... que começou como contínuo e hoje é inspetor .... Mas falta tanto tempo! O diabo só tem onze anos. E quem tem de cuidar dele sou eu, porque o pai não dá bola. Quer dizer, não TEM tempo pra dar bola. Fica lá, na lojinha dele, cheio de planos... Diz que vai ter a maior loja de tecidos da cidade. Do interior. E eu aqui.... Vassourando a casa o dia inteiro.... Vassourando o menino o dia inteiro... (TEMPO) Mas, também, as goiabas da dona Nicota tão dando sopa! E ela? Quem é ela pra chamar meu filho de marginal? O meu Junior é uma peste mas é tão bonitinho, tão inteligente! A dona Sálua disse que ele é um líder! LÍ...DER!!! Isso é o que ele é! Ainda vai liderar muito pela vida afora. E, liderando, vai subir todos os postos do Banco do Brasil e chegar a gerente. E depois a inspetor. E depois... e depois...
JUNIOR ENTRA DE BANHO TOMADO, CABELOS ARRUMADINHOS, CHEIROSO. CANDÊ -
Seu pestinha, lavou o ouvido? Deixa ver! Limpou as unhas? Lavou o pipi? Agora, ajoelha aí, seu marginalzinho, que tá na hora da bênção do padre Donizetti. Liga o rádio, que eu vou buscar o copo d’água!
CANDELÁRIA SAI. JUNIOR LIGA O RÁDIO E SE AJOELHA APOIADO EM UMA CADEIRA. OUVE-SE A AVE-MARIA DE GOUNOD, EM UM DISCO MEIO RACHADO. DEPOIS, A VOZ DO PADRE DONIZETTI. PADRE -
(OFF) Estamos mais uma vez, neste cair de tarde, reunidos na paz de Deus e com a bênção da Virgem Maria, rezando pela união da família brasileira, e pela paz em todos os lares. Nosso Senhor, através de Sua Mãe, mandou um recado pelas crianças de Fátima: rezem todos, para que o mundo seja salvo.
CANDÊ ENTRA NO MEIO DA FALA DO PADRE, COLOCA UM COPO D’ÁGUA SOBRE O RÁDIO E SE AJOELHA, SEM PRESTAR MUITA ATENÇÃO EM JUNIOR. JUNIOR TIRA UMA CAIXA DE FÓSFOROS DO BOLSO E ACENDE UM PALITO. DURANTE A REZA, JUNIOR PÕE FOGO
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NO ASSENTO DA CADEIRA. CANDÊ NÃO PERCEBE DE IMEDIATO, POIS ESTÁ REZANDO CONTRITA. PADRE -
(OFF) Rezemos, pois, e abençoemos essa água que todos colocaram sobre o rádio, e que servirá, depois de benta, para a cura dos males do corpo. A água cura o corpo, e a oração cura a alma. Que Deus vos abençoe em nome do Pai...
CANDÊ PERCEBE O FOGO. CANDÊ -
Peste do inferno!!!! (LEMBRA-SE DO PADRE ENQUANTO PEGA O COPO D’ÁGUA PRA APAGAR O FOGO) Desculpa, padre Donizetti, mas esse moleque vai apanhar!
AGARRA JUNIOR. DÁ-LHE UNS CROQUES, ENQUANTO O PADRE CONTINUA. PADRE -
(OFF) No primeiro mistério glorioso, contemplamos a ascenção de Jesus. Ave-Maria etc...
CANDÊ -
(BATENDO EM JUNIOR, REZANDO E PRAGUEJANDO AO MESMO TEMPO) Ave- Maria, seu desgraçado.... O Senhor é convosco, cê agora vai ver o que é bom pra tosse.... Bendito o fruto....
JUNIOR ESCAPA, GRITANDO, FURIOSO. JUNIOR -
Eu vou fugir de casa! A dona Sálua disse que num líder ninguém bate!
CORTA.
CENA 2 NOITE. A SALA ESTÁ VAZIA, MAS ACESA. A MESA ESTÁ POSTA PARA O JANTAR. O RÁDIO IRRADIA UMA NOVELA. A PORTA QUE DÁ PARA A COZINHA ESTÁ ABERTA. PERCEBE-SE CANDELÁRIA LÁ DENTRO, COZINHANDO. OUVE-SE UM BATER DE PANELAS. PARA QUE ELA OUÇA, O RÁDIO ESTÁ ALTO. LOCUTOR -
(OFF) Já passava das onze e Hedelzuíte achava-se cansada. A recepção ao duque durara muito tempo e ela não via a hora de chegar em casa. Saiu do palácio com seus pais. Seguiram em silêncio, silêncio às vezes entrecortado por algum comentário ferino de dona Dolores. Em chegando ao lar dos Abrantes, Hedelzuíte, após tomar a bênção de seu pai e de sua
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madrasta, correu para o dormitório, não vendo a hora de estar a sós com a lembrança de seu querido Edvárd. NA SONOPLASTIA DA NOVELA, BARULHO DE PEZINHOS SUBINDO ESCADAS. PORTA QUE SE BATE.
HEDEL -
(OFF) Finalmente a sós! Agora posso pensar em você, meu querido Edvárd!
NA SONOPLASTIA DA NOVELA, BATIDAS À JANELA. HEDEL -
(OFF, ASSUSTADA) Batidas na janela? Quem será?
NA SONOPLASTIA DA NOVELA, BARULHO DE CAMA QUE RANGE. LOCUTOR -
(OFF) Hedelzuíte levantou-se da cama, temerosa!
NA SONOPLASTIA DA NOVELA, BARULHO DE PASSOS. LOCUTOR -
(OFF) Atravessou o quarto na ponta dos pés em direção à janela...
NISSO, GUIMARÃES, MARIDO DE CANDELÁRIA, ENTRA NA SALA. DEIXA O CHAPÉU SOBRE A CADEIRA E OLHA EM VOLTA. ESTRANHA O VOLUME DO RÁDIO E TAPA OS OUVIDOS. LOCUTOR -
(OFF) Hedelzuíte chegou-se à janela, abriu-a, olhou para fora e perguntou:
GUIMA DESLIGA O RÁDIO E GRITA. GUIMA -
Ó DE CASA!!!
CANDELÁRIA VEM PARA A SALA, BRAVA. CANDÊ -
Eu NUNCA vou saber quem estava na janela da Hedelzuíte! NUNCA!!!
GUIMA -
Outra vez de papo com a vizinha, Candê?
CANDÊ -
Não, Guima! Era a novela. Você sempre chega na hora errada! O meu único divertimento e você estraga. Não saio de casa, não vou no cinema, não tenho televisão... não faço nada. Só escuto a minha novela e você estraga!
GUIMA -
Não reclama que tem notícia boa!
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CANDÊ -
A última notícia “boa” que tive foi que seu presidente proibiu a briga de galo. Nem mais a minha fezinha eu posso fazer!
GUIMA -
O Jânio está certo. Briga de galo é “irracional”.
CANDÊ -
Mulher de biquini também é “irracional”?
GUIMA -
Deixa pra lá... Quéde o Junior?
CANDÊ -
Tá de castigo!
GUIMA -
Outra vez? O que ele fez agora? Botou fogo na casa?
CANDÊ -
Quase! Torrou o assento de palhinha da cadeira da vó Pureza e enfiou um pedaço de bambu no rabo do cachorro da dona Nicota!
GUIMA -
Ha ha ha.... Devia ter enfiado no rabo dela!
CANDÊ -
Guima, desse jeito você deseduca o menino. É claro que é engraçado, não é você que fica aqui o dia inteiro com ele. Não é você que aguenta falatório de vizinho, reclamação do delegado, bilhetinho da diretora, mãe de moleque batendo na porta...
GUIMA -
Melhor ter um filho assim que um peixe-morto!
CANDÊ -
Quero ver se você aguentava ficar em casa UM DIA INTEIRO com ele!
GUIMA -
Tira o menino do castigo!
CANDÊ -
Não tiro!
GUIMA -
Candelária, quem manda aqui sou eu!
CANDÊ -
Então, vai lá e tira o menino!
GUIMA -
Candelária, não faça escândalo!
CANDÊ -
Faço!
GUIMA -
É que quero dar uma boa notícia pra todo o mundo!
CANDÊ -
A melhor notícia que você podia me dar era a da morte do Jânio!
GUIMA -
Vira essa boca, Candê!
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CANDÊ -
Não gosto daquele caspento!
GUIMA -
Ele não é caspento!
CANDÊ -
Pior ainda. Põe caspa no paletó pra falar que é pobre. Come sanduíche de mortadela pra falar que é igual a gente. Mas fica lá no Palácio, no bem-bom, assistindo fita de bangue-bangue e se encharcando de uísque!
GUIMA -
Para de falar mal dele, senão falo mal do Juscelino!
CANDÊ -
Quem não deve, não teme! O JK é o maior!
GUIMA -
É ??? Se fosse o maior, o povo tinha votado no Lott!
CANDÊ -
O Jânio enganou todo mundo. Com aquela cara de louco e aquela vassoura de bruxa. Devia é sair voando!
GUIMA -
(PERDENDO A PACIÊNCIA) Chama o moleque!
CANDÊ -
(CANTANDO, PROVOCANTE) Cuidado, minha gente, com esse tipo de rapaz....se perde o lotação, nervosinho bate o pé... Vai ver que é....
GUIMA -
Pára de encher, Candelária! Vai buscar o menino!
CANDÊ -
Só se cê me prometer uma coisa. Melhor, duas!
GUIMA -
O que é?
CANDÊ -
A primeira é não desligar mais o rádio quando chega!
GUIMA -
Prometo. E a segunda?
CANDÊ -
Me levar amanhã pra assistir “A Imitação da Vida” com a Lana Turner. Têm duas sessões no Paratodos....
GUIMA -
Bom...
CANDÊ -
Você disse que ia prometer!
GUIMA -
Só se você prometer não falar mais mal do Jânio!
CANDÊ -
Prometo!
GUIMA -
Também prometo! Então, vai buscar o menino!
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CANDELÁRIA SAI BERRANDO. CANDÊ -
GUIMA -
Junior, seu pai chegou pra te dar um couro! Vem cá, moleque! Seu pai vai te malhar, seu marginalzinho! Candelária, você me traiu!
CANDELÁRIA CONTINUA BERRANDO. CANDÊ -
Vem cá, Junior!
JUNIOR SAI CORRENDO PELA PORTA DA FRENTE. OS PAIS ATRÁS DELE. VIZINHA -
(OFF) Ele foi pro lado do córgo!
OS PAIS -
Junior! Junior! Junior!
SOM DAS VOZES SE AFASTANDO. TEMPO. VOLTAM OS TRÊS. CANDÊ, EMBURRADA; GUIMA, BRAVO COM ELA E JUNIOR, FINGIDAMENTE, COM MEDO. GUIMA -
CANDÊ -
JUNIOR -
Não faça mais isso, Candê! Você usou meu nome pra assustar o menino! Não é você o homem da casa? Só eu que tenho de bater no Junior? (FINGINDO) Tô com medo... não fiz nada...
GUIMA -
(PAIZÃO) Não fica com medo não, filho! Ninguém vai bater em você! (PRA CANDÊ) Quem merecia apanhar é outra pessoa!
CANDÊ GUIMA -
Vem, vem! Não quero briga na frente da criança. Me disseram que dá trauma!
CANDÊ -
Que mané trauma? Pai mole, filho torto! A dona Candelária aqui é que tem de educar! Além de cozinhar, de costurar, de encerar e de lavar, tem de educar!
JUNIOR FICA CHORAMINGANDO NUM CANTO. DEPOIS, ENQUANTO OS PAIS BATEM BOCA, TIRA UM SAPO E COLOCA NO CHAPÉU DO PAI. GUIMA -
Não fico mais aqui. Vou jantar na pensão.
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CANDÊ -
Vai, tá rico! Tá podre de rico! A loja de tecidos “A Admirada”, de Alcebíades Antonio Guimarães, é a “maior potência de tecidos da cidade”. Riquíssimo!! A única coisa que vende lá, meu filho, é JK! Por ironia do destino, JK é o único pano decente que cê tem! O resto é chita!
GUIMA -
Chita ou não, é de onde você come!
CANDÊ -
Pois vai embora!
GUIMA PEGA O CHAPÉU PARA SAIR. O SAPO PULA. ELE GRITA DE SUSTO. CANDÊ, DEPOIS DO SUSTO, CAI NA GARGALHADA. CANDÊ -
Muito bem, Junior, mostra quem é o covarde nesta casa. Medo de sapo, Guima???
CANDÊ RI E AGARRA O FILHO. GUIMA FICA SEM JEITO, VAI ATÉ A PORTA, DESISTE, VOLTA E SENTA-SE EMBURRADO. GUIMA -
Então, tira a janta e não tem novidade!
CORTA.
CENA 3 OS TRÊS ESTÃO À MESA DE JANTAR. CANDÊ FAZ OS PRATOS E SERVE. PRIMEIRAMENTE PARA O MARIDO, DEPOIS PARA O FILHO E SOMENTE DEPOIS PARA ELA. GUIMA -
(EMBURRADO) A sopa tá fria!
CANDÊ -
Ah, Guima, não continua com esse mau-humor não! Além do mais, tem baba-de-moça de sobremesa.
GUIMA -
Tá bom! Então, deixa eu contar a novidade pra vocês. Lá pelas três da tarde, eu resolvi tirar uma folguinha e fui até o Café do Ponto.
CANDÊ -
Como sempre...
JUNIOR -
O Senadinho, pai?
GUIMA -
Olha o respeito, menino... Fiquei conhecendo um sujeito de São Paulo. O Moreira. Acabou de chegar aqui em Torrinha. E sabe com que ele mexe?
CANDÊ -
Com tecido!
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GUIMA -
(ATURDIDO) Como você sabe?
JUNIOR -
A madrinha Anunciadina contou.
GUIMA -
Eita, fofoqueira!
CANDÊ -
A comadre não é fofoqueira não!
GUIMA -
Como não é? O sujeito mal chegou de São Paulo, não tinha nem arrumado ainda lugar pra ficar, e a Anunciadina já tava sabendo, e já bateu o recado pras amigas...
CANDÊ -
Você se esquece que o Pedro trabalha na Estação? Pois o tal de Moreira, EX-gerente das Casas Pernambucanas, chegou pra ele, contou que era isso, que era aquilo, e perguntou onde podia encontrar os comerciantes de Torrinha.
GUIMA -
(INCRÉDULO) E o Pedro disse que era no Café do Ponto?
CANDÊ -
Não. Como ele tá brigado com o Souza, disse que era no Bar do Bié. Mas lá no Bar do Bié disseram que era no Café do Ponto. (TEMPINHO) E o que o tal do Moreira disse?
GUIMA -
Disse que tá procurando um sócio aqui em Torrinha!
CANDÊ -
Você... você não....
GUIMA -
Não o quê, Candelária? Eu não prometi nada, mas acho que vou pensar no negócio! Ele diz que tá pra receber um dinheiro lá de São Paulo. Que tem direito à indenização, pois tinha quase quinze anos de casa e foi demitido injustamente. E que, com esse dinheiro, ele quer abrir um negócio de tecido por conta própria. Pensou em abrir sozinho, mas como não conhece ninguém por aqui... precisa de um sócio. Veio falar comigo, pois soube que eu tenho grande tino comercial, que eu conheço muita gente, que sou respeitado...
CANDÊ -
E você caiu como um patinho, não é? Não vê que é golpe, Guima? O tal do sujeito quer mais é ficar rico às suas custas. Você, com tino comercial? Desde quando? A “Admirada” tá que só tem retalho. Vive de liquidação. De inverno, verão, primavera e outono. Se tivesse mais uma estação, tinha mais uma liquidação! Que você conhece muita gente? Conhece mesmo e só vende fiado! Por isso tá na pindura. E o sujeito quer entrar como sócio? Ele quer é passar a perna em você, Guima!
GUIMA -
(HUMILDE) Não fala assim na frente do menino, Candê!
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CANDÊ -
Por quê? Pobreza não é sujeira! Nem defeito! Que tem de mais ser pobre? Depois, ele não entende mesmo!
JUNIOR -
O senhor tá falindo, pai?
GUIMA -
(BRAVO) Não entende, Candê? Não entende? Como não entende? O que você pensa da juventude de hoje? Com esse tal de esputinique, de róque e coca-cola, o que você pensa da juventude? Ele sabe de tudo... de tudo...
CANDÊ -
O Junior não é juventude! É infância!
GUIMA -
Dá na mesma! (PARA O FILHO) Não tô falido não, meu filho. Tô prosperando! Vou aumentar o estoque da “Admirada” e ela vai ser...
JUNIOR -
A maior potência de tecidos da cidade, não é pai?
GUIMA -
É verdade.
JUNIOR -
Lá na escola outro dia me chamaram de “filho da potência”!
CANDÊ -
Junior, respeita teu pai!
JUNIOR -
Eu respeito. Nem briguei não. Disse que era isso mesmo. Meu pai era uma potência. Dono da maior potência de tecidos da cidade.
CANDÊ -
(CARINHOSA) Não liga não, Guima!
GUIMA -
Não... não ligo.... Vai, filho, vai brincar na rua!
JUNIOR -
Ué, já saí do castigo?
GUIMA OLHA PARA CANDELÁRIA. CANDÊ -
Por hoje, já. Mas, se fizer outra, fica dois dias!
JUNIOR -
Eu vou ficar bonzinho.
LEVANTA. PEGA O ESTILINGUE. JUNIOR -
Bença, mãe. Bença, pai.
CANDÊ -
Onde o senhor vai com o estilingue? Não tem passarinho de noite!
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JUNIOR -
Tem uns gatos aí que quero acertar!
CANDÊ -
Juniooooooor!
ANTES QUE ELA POSSA FAZER ALGUMA COISA, JUNIOR SAI CORRENDO. TEMPO. CANDÊ OLHA PARA GUIMA. OS DOIS FRENTE À FRENTE NA MESA. TEMPO. CANDÊ -
Você quer a baba-de-moça?
GUIMA -
(TRISTE) Depois. Tem café?
CANDÊ -
Tem. Vou buscar.
CANDÊ SAI. VOLTA COM UM BULE E DUAS XÍCARAS. SENTA-SE. SERVE CAFÉ PROS DOIS. CANDÊ -
(TENTANDO SE DESCULPAR) Hoje eu tava meio nervosa por causa do menino...
GUIMA -
É... ele não tem jeito....
CANDÊ -
É que cansa, Guima... o dia inteiro...
GUIMA -
Eu sei...
CANDÊ -
E, depois, tem sempre uma vizinha enchendo a gente...
GUIMA -
Imagino...
CANDÊ -
(ABSOLUTAMENTE SINCERA) Desculpa, Guima!
SILÊNCIO. CANDÊ -
GUIMA -
(INSISTINDO) Me desculpa, Guima, eu não devia ter dito aquilo, mas acontece que tenho medo que alguém... Você me acha um bobo, não é? Pensa que eu não sei? Acha que eu não consigo olhar a realidade... que eu só levo a pior... sempre! Só você, Candelária, é quem tem os pés no chão. Só você sabe como fazer as coisas. Eu não passo de um besta. De um coitado que só sabe sonhar. Sonhar com a política, achando que o “homem da vassoura” vai tirar o Brasil do buraco. Sonhar com a loja de tecidos... Sonhar com o futuro da gente... Sonhar em te dar um jogo novo de sofá pra substituir esse monte de cadeira quebrada e furada que a gente ganhou da vó Pureza... Te dar uma televisão... Um
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telefone... Sonhar com uma viagem pra Poços de Caldas... Com o futuro do Junior! Sonhar com o meu filho proprietário da maior potência de tecidos da cidade! Só isso que eu sei... CANDÊ -
(EMOCIONADA) Não é isso, não!.... (TENTANDO MUDAR O ASSUNTO) Olha, Guima, eu vou buscar um licorzinho de mexirica que a Anunciadina mandou...
GUIMA -
Não quero nada daquela jararaca!
CANDÊ -
(SUAVE) Não fala assim... Ela é madrinha do Junior. E gosta muito de você.
GUIMA SE LEVANTA E VAI SE SENTAR NO JOGO DE PALHINHA. LIGA O RÁDIO ENQUANTO CANDÊ VAI BUSCAR O LICOR. CANDÊ VOLTA. SERVE DOIS COPINHOS. SENTA-SE EM FRENTE AO MARIDO. ESTE BEBERICA E FINGE QUE NÃO A VÊ. O RÁDIO TOCA UMA MÚSICA ROMÂNTICA. DEPOIS DE UM TEMPO, ELE COMEÇA A FALAR. GUIMA -
Você se lembra de quando eu te pedi em casamento, Candê?
CANDÊ NÃO RESPONDE. GUIMA -
Seu pai não queria saber de mim. Só deixou porque a gente já namorava escondido HÁ DEZ ANOS!!! Eu falei pra você que não tinha nada pra te oferecer, a não ser a vontade de vencer na vida. Pois eu continuo com ela! Com a mesma vontade. Só que você parece que não acredita mais nisso.
CANDÊ -
Guima, não é assim... é que a situação anda tão difícil!
GUIMA -
Eu enxergo mais longe que todo mundo aqui em Torrinha. Eles querem chita, e eu vendo JK. Eles têm de aprender a comprar JK!
CANDÊ -
Ou você aprender a vender chita, Guima!
GUIMA -
Não é isso não, Candê!... Eu só queria que você acreditasse em mim! Que sou capaz... capaz de transformar “A Admirada” em uma grande loja... Como as Pernambucanas... E depois abrir outra filial.... e mais outra.... e mais outra... até formar uma cadeia! A maior potência... E daí entregar tudo pro Junior! Que vai ter um futuro garantido... E a gente vai poder desfrutar em paz nossa velhice!
CANDÊ -
(COMOVIDA) Eu queria que ele fosse empregado do Banco do Brasil... É mais seguro!
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GUIMA -
CANDÊ -
Empregado? Empregado do governo? Pra quê? Ele pode ser seu proprio patrão! A dona Sálua não disse que ele é um líder? Então, Candê! Ele vai poder aumentar ainda mais a loja. As lojas! E chegar até a exportar! Você, você já imaginou o nosso Junior assim... (CORTANDO) Eu tenho medo, Guima! Quanto mais alto, maior o tombo!
GUIMA -
Que tombo, Candê? O Junior é muito esperto! Ele vai pegar esse patrimônio e duplicar. Triplicar. Ele vai pegar essa base sólida que eu vou deixar e fazer grandes coisas...
CANDÊ -
(VOLTANDO À REALIDADE) Guima, pára de sonhar! Que patrimônio? Que base sólida? Você não tem nada... Tem um monte de promissórias vencendo... dívidas... e ainda fala em cadeia de lojas? Que patrimônio para o Junior? Põe o pé no chão, Guima! E agora vem com essa conversa de sócio!
GUIMA -
Eu vou vencer, Candelária, e vou entregar toda essa riqueza para o Junior. Um dia eu vou dizer: toma, filho, isso é o que teu pai juntou pra você!
CANDÊ -
Esquece, Guima! Ele vai ser empregado do Banco do Brasil!
GUIMA -
Não vai !
CANDÊ -
Sempre teimoso!
GUIMA -
Com muito orgulho!
CANDÊ -
Turrão... (CARINHOSA) Mas mesmo assim eu gosto de você!
GUIMA -
É verdade, Candelária?
CANDÊ -
Não me chama de Candelária, que eu penso que é meu pai... Chama sempre de Candê!
GUIMA -
Me dá um beijo, Candê?
CANDÊ -
(RUBORIZADA) Guima !!!!!
OS DOIS VÃO SE APROXIMANDO E SE BEIJAM DELICADAMENTE. O RÁDIO CONTINUA TOCANDO. JUNIOR ENTRA NESSE MOMENTO. JUNIOR CORTA.
Quer dizer que vou ganhar um irmãozinho?
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CENA 4 MADRUGADA. O NASCER DO SOL INVADE A CASA PELA JANELA. TEMPO. CANDÊ ENTRA PELA PORTA INTERNA, DE PEIGNOIR, AINDA SONOLENTA. ATRAVESSA A SALA E LIGA O RÁDIO, QUE TRANSMITE MÚSICAS SERTANEJAS. CANDÊ VAI ATÉ A COZINHA E VOLTA COM UM BULE DE CAFÉ. LOCUTOR COMEÇA A FALAR: LOCUTOR -
(OFF) Hê hê pessoar bão dos interior. Hoje é dia 15 de agosto de 1961. Bom-dia! E aqui é a Rádio Tupi de São Paulo, transmitindo nos seus mirseiscentos quilohertz, pra todo o interlandi paulista. Vamo pulando da cama que o galo já cantô. E os cafezar num espera. Pílula de vida do dotô Rós é saúde garantida. Vermífugo Parreirinha, aquele que é bão pra solitária! Temo aqui muitas carta de ouvinte pedindo música e poesia. Vamos atendê o primeiro pedido, que é “Tristeza do Jeca”, do imortar Angelino de Oliveira.
ENTRA A MÚSICA. TEMPO. ABAIXA UM POUCO O SOM EM BG. CANDÊ SENTA-SE. OLHA FIXAMENTE PARA UM PONTO, COMO SE TIVESSE UMA VISÃO. CANDÊ -
Ô Guima... Eu não quis magoar você... Eu só tava querendo avisar que as coisas tão difíceis... O seu presidente não tá conseguindo fazer nada. A gente tá ficando sem dinheiro... Ontem eu gastei um dinheirão no mercadinho, não comprei quase nada e a caderneta já tá cheia... Eu tenho confiança em você sim! Não tenho é no Brasil! Tá cheio de gente ruim! Cuidado com o Moreira das Casas Pernambucanas. Cuidado com todos esses Moreiras que aparecem por aí... Guima, desiste de querer uma potência de tecidos... Não vai dar certo, Guima. E a gente tem de pensar no Junior... O Junior... O Junior... Ah, meu menino, eu tenho tanto medo que façam mal a você... Eu até agora não sei como você é. Tem horas que acho que você parece comigo: pé no chão, olhando a vida! Tem hora que você é seu pai escarrado... sonhando o tempo todo, acreditando que os outros acreditam em você. Mas quem tá errado? Eu ou ele, filho?... Eu só queria que você crescesse... crescesse... liderando tudo... liderando a sua própria vida.. Fiquei contente quando me disseram que você era líder... Mas fiquei com medo também. Será que não é melhor ficar quieto num canto, sem querer muita coisa? Só num cantinho no mundo, pra se viver direito? Não sei... não sei... não sei...
SONOLENTAMENTE, CANDÊ FALA MAIS ALGUMAS COISAS, MEIO SEM NEXO. ACABA PEGANDO NOVAMENTE NO SONO, EM PLENA SALA.
LUA DE CETIM....................................................................................................................................20
TEMPO. GALO QUE CANTA. O DIA AMANHECE TOTALMENTE. O LOCUTOR DO RÁDIO ESTÁ CADA VEZ MAIS ANIMADO. LOCUTOR -
(OFF) Acorda, dona Maria, que já é dia! Vamo lá, gentarada do sertão! O sor tá quente, e a Mimosa tá esperando no currár! (MUGIDO DE VACA) As criança tão acordando e o marido qué trabaiá! (BARULHO DE SINO E DESPERTADOR) Acorda, dona Maria!
CANDÊ ACORDA ASSUSTADA. CANDÊ -
SOBRESSALTADA.
OLHA
PARA
OS
LADOS,
Perdi a hora outra vez, Santo Deus!
VAI ABRINDO A JANELA, COLOCANDO CADEIRAS UMAS EM CIMA DAS OUTRAS, INDO E VINDO DA COZINHA. PÁRA NA JANELA.
CANDÊ -
Bom-dia, dona Penha. Seu marido melhorou? Graças a Deus! Acho que não chove mais não! O dia tá bom, não acha?
SAI DA JANELA, VAI EM DIREÇÃO À PORTA INTERNA. CANDÊ -
Guima, acorda... quase sete horas... Junior, tá na hora da escola, menino... Guima, vê se passa na venda e encomenda o lombo da janta... Junior, vai levantando, menino... Já tá atrasado...
VAI ATÉ A COZINHA. VOLTA COM UM PACOTINHO DE LANCHE. PÕE NA LANCHEIRA. COMEÇA A TRAZER O PÃO E O CAFÉ PARA A MESA. O RÁDIO ESTÁ ANIMADO. TOCA ALGUMA COISA COMO “MOENDO O CAFÉ “, TRANSMITE HORÓSCOPO, PREVISÃO DO TEMPO, ETC. GUIMA -
(ENTRANDO SONOLENTO) Que horas são, Candê?
CANDÊ -
Sete!
GUIMA -
Tô morrendo de sono! Dormi como um santo!
CANDÊ -
Também, mamou o litro inteiro do licor da Anunciadina!
GUIMA -
Só espero não pegar fofoca na língua!
CANDÊ -
Não começa, Guima! (BERRANDO) Junior, levanta moleque!
TEMPO. JUNIOR ENTRA, TAMBÉM COM SONO. CANDÊ -
Vai lavar o rosto. Bem lavadinho, vai !
LUA DE CETIM....................................................................................................................................21
JUNIOR SAI. TEMPO. CANDÊ ENCARA GUIMA. CANDÊ -
Guima, cê pensou no que eu disse?
GUIMA -
No quê, mulher?
CANDÊ -
Na história da sociedade.
GUIMA -
Vou pensar depois.
CANDÊ -
Não faz bobagem!
GUIMA -
Não faço.
VOZ DA VIZINHA QUE CORTA A CONVERSA. VIZINHA -
(OFF) Dona Candê, me empresta uma xícara de açúcar que acabou aqui de casa? Depois devolvo.
GUIMA -
Manda devolver cinco quilos, pois com essa xícara ela já completou um pacote!
CANDÊ -
Cala a boca, Guima! (PRA FORA) Empresto sim, dona Nicota!
CANDÊ SAI, VAI BUSCAR A XÍCARA, ENQUANTO GUIMA SENTA PARA O CAFÉ. VIZINHA -
(OFF) O sêo Guima tava alegrinho ontem, não?
CANDÊ -
Que é isso, dona Nicota?
VIZINHA -
(OFF) Eu ouvi ele cantar até meia-noite!
GUIMA -
(BERRANDO) Fiz dueto com teu marido que tava chegando da zona!
CANDÊ -
Cala a boca, Guima!
GUIMA -
Essa sirigaita!
VIZINHA -
(OFF) Brigada, dona Candê. Depois devolvo!
CANDÊ -
Tem de quê!
TEMPO. CANDÊ ENCARA GUIMA. CANDÊ -
Não faz bem beber assim, Guima.
LUA DE CETIM....................................................................................................................................22
GUIMA -
Foi só um traguinho, Candê! Que coisa!
OS DOIS NÃO PERCEBEM QUE JUNIOR ENTROU E FICA OUVINDO A UM CANTO. CANDÊ -
Eu tenho medo do álcool.
GUIMA -
Não tomei porre nenhum.
CANDÊ -
Você gosta de beber!
GUIMA -
Um golinho não faz mal.
CANDÊ -
É assim que começa...
GUIMA -
Eu tava precisando esvaziar a cabeça!
CANDÊ -
Do quê?
GUIMA -
Nada... nada, Candê...
CANDÊ -
Às vezes, você chega cheirando de pinga...
GUIMA -
Um aperitivinho... O pessoal convida... Não fica bem ficar negando... Depois, tenho de fazer freguesia com eles. Conversa vai, conversa vem, acabo vendendo um paninho.
CANDÊ -
Desde quando marmanjo compra tecido?
GUIMA -
Pra dar de presente pra patroa!
CANDÊ -
(PERDENDO A PACIÊNCIA) Pra ela não ficar brava quando ele chega cheirando de pinga, não é? Pra não dizer que ele só gasta dinheiro no boteco, com os amigos, não é?
GUIMA -
Eu não sou bêbado! E chega dessa conversa besta. Você só sabe pensar em feijão com arroz; não consegue ver mais nada no mundo. Ontem, até pensei que você tivesse melhorado um pouco. Mas não!... Você é tapada... como toda lottista!
CANDÊ -
(EXPLODINDO) Tô cheia de limpar vômito no banheiro... de madrugada... pro menino não perceber que tem um pai pinguço!
GUIMA -
Cala a boca!
NISSO, OS DOIS NOTAM JUNIOR, NO CANTO, OLHANDO.
LUA DE CETIM....................................................................................................................................23
CANDÊ -
Filho... vem tomar café!
GUIMA ABAIXA A CABEÇA E CONTINUA TOMANDO O SEU. JUNIOR FICA QUIETO. CANDÊ -
(SEM JEITO) Junior, filho... vem, senta aqui!
JUNIOR IRRITA-SE. JUNIOR -
Não quero! Me dá o lanche que vou pra escola!
JUNIOR PEGA O LANCHE E SAI BATENDO A PORTA. GUIMA NÃO ENCARA CANDÊ. ESTA PEGA A VASSOURA E COMEÇA A VARRER VIOLENTAMENTE A CASA. TEMPO. GUIMA SAI. O RÁDIO CONTINUA ANIMADO. CORTA.
CENA 5 TARDE. JUNIOR ESTÁ À MESA, TENTANDO FAZER A LIÇÃO DE CASA. MAS, NA VERDADE, ESTÁ MAIS PREOCUPADO EM CAÇAR UM MOSQUITO QUE ZANZA À SUA VOLTA. CANDÊ FAZ UM TAPETINHO DE RETALHOS, SENTADA NA SALA. OUVE-SE A FILHA DA VIZINHA CANTAR ALGUM SUCESSO ANTIGO DE ANGELA MARIA . CANDÊ -
(ABSORTA) Não dá pra combinar verde com amarelo! O tapete vai ficar com cara de bandeira brasileira... Só se eu colocar um branco no meio... Daí o Guima vai achar que é homenagem ao Palmeiras... verde e branco... Se eu colocar azul e branco, parece Filha de Maria... Não sei como fazer isso... (AINDA ABSORTA, FALA AUTOMATICAMENTE COM JUNIOR) Tá fazendo a lição, Junior?
JUNIOR -
CANDÊ -
(CAÇANDO O MOSQUITO) Tô, mãe. Tô estudando geografia. Depois vou tomar o ponto.
CONTINUA A MEXER COM OS RETALHOS. ATÉ QUE DÁ UM GRITO. CAND Ê JUNIOR -
Achei! (ASSUSTANDO-SE) Ai, mãe, a senhora me deu um susto. Vou ter trauma!
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CANDÊ -
Vou fazer roxo, amarelo, verde e azul. Pronto. Fica que nem festa de São João. E tem cor pra todo mundo... Depois, como esse é pra quermesse de São Benedito mesmo, estou pouco ligando... Vai aparecer tanta barbaridade! Não sei porque eu disse que ia fazer o tapetinho. Era muito mais fácil mandar um bom prato de torta-de-banana!
JUNIOR -
(OUVINDO SÓ O FIM DA FRASE) Eu não guento mais torta-de-banana. Acho que o único doce que a senhora sabe fazer. A madrinha Anunciadina, pelo menos, faz arroz-doce, sagu, pé-de-moleque, fios de ovos e tudo!
CANDÊ -
Huuuuuuuuummmmmm, se gosta tanto assim de doce, vai morar lá com ela !
JUNIOR -
Eu hein? Cada vez que chego lá, tenho que ficar ajoelhado, rezando o terço junto com a nona Fiica!
CANDÊ -
(RINDO) Ela ainda manda você ler o livro de religião?
JUNIOR -
(EMBURRADO) Manda! Mas agora eu pulo umas páginas!
CANDÊ -
E ela não percebe?
JUNIOR -
Não! Só fica perguntando: “Ele já morreu na Cruz ?” “Ele já morreu na cruz?” Daí eu conto a história assim: Jesus foi fazer um piquenique e acabou o peixe e o pão. Ele pegou um pedaço de pão e disse: comei e bebei que este é o meu corpo! Pegou o peixe e disse: crescei e multiplicai-vos! Daí, o peixe virou um montão de peixe e ele distribuiu tudo pros amigos dele, que eram os apóstolos, e depois Judas falou que não ia trair e traiu, e ele foi passear num jardim, os homens do imperador foram lá, cataram ele, e mataram na cruz. E ele foi pro beleléu.
CANDÊ -
Junior, isso é um sacrilégio!
JUNIOR -
Eu acho é uma história muito mal contada. Se o Jesus era muito mais valente e poderoso, muito mais que o Rói Rógers, por que ele não virou pros amigos dele, disse “camanibói” e deu uma surra nos homens do imperador? Depois, fugia num cavalo, mandava buscar a Virgem Maria e ia morar lá no Egito?
CANDÊ -
Porque ele precisava salvar o mundo e você tem de acreditar nisso, porque isso é um dogma!
LUA DE CETIM....................................................................................................................................25
JUNIOR CANDÊ -
JUNIOR -
Dó o quê? Dogma! É uma coisa que o Papa falou que é e fica sendo e ninguém pode discutir. Quer dizer que se o Papa falar que a Terra é quadrada, ela fica sendo quadrada? Não é verdade! O Papa não pode mandar em ninguém. O Ve... (INTERROMPE ASSUSTADO, COMO SE TIVESSE COMETIDO UM ENGANO).
CANDELÁRIA DEIXA OS RETALHINHOS E VEM PARA PERTO DELE, CURIOSA. CANDÊ -
Que nome o senhor ia dizendo?
JUNIOR -
Nenhum, mãe... eu só tava pensando uma coisa...
CANDÊ -
Que nome o senhor ia dizendo?
JUNIOR -
Nenhum, juro... o velho Pepito não tem nada a ver com isso!
CANDÊ -
Ah, é? Então, o senhor anda conversando com o velho Pepito? Eu sabia! Eu sabia! Dessa cabecinha oca que nem a sua, que só pensa em papagaio, matar passarinho e correr atrás de cachorro pra fazer porcaria, não podia sair um pensamento desses. Isso é coisa daquele velho galego! MAS EU JÁ TINHA PROIBIDO VOCÊ DE IR LÁ! NÃO QUERO CONVERSA COM ELE! ELE É COMUNISTA! CO-MU-NIS-TA !!!
JUNIOR -
É anarquista!
CANDÊ -
E você ainda vem desculpando o galego? Seu sem-vergonha! Você vai pro inferno! Vai direitinho pro inferno, e pra parte mais quente! Onde tem mais diabo! Junto com os judeus... e com os padres casados e os comunistas! Daí, eu quero ver você ficar chorando lá embaixo, enquanto eu e seu pai estivermos no céu, e você pedindo pra subir também! Quero ver!
JUNIOR -
A senhora disse que o pai também ia pro inferno! Ele e a dona Nicota!
CANDÊ -
Juuuuuuuuniorrrr ! Eu nunca disse isso. Nunca! Eu sabia! Bem que o padre Zezinho avisou que... que o comunista tenta jogar os filhos contra os pais. Bem que ele disse que lá na Rússia os próprios filhos entregam os pais pra polícia, e contam que os próprios pais e mães vão à igreja escondido! Agora... o meu filho... o meu Junior... virou um desses??? Renega Deus...Vai matar seu pai e sua mãe... Não posso acreditar... Não posso acreditar...
LUA DE CETIM....................................................................................................................................26
JUNIOR -
Mãe, eu acredito em Deus!
CANDÊ -
Mentira! Você é um comunista! Um comunista que nem o tal do Prestes e os os outros! Que nem o Jango!
JUNIOR -
A senhora VOTOU no Jango!
CANDÊ -
Eu votei no Lott! O Jango se aproveitou da sombra do Marechal ! Mas você... você... eu nunca pensei que o MEU filho fosse virar um ... um... COMUNISTA!
JUNIOR -
Mas mãe, eu não sou!
CANDÊ -
Então, prova!
JUNIOR -
Como?
CANDÊ -
Vem aqui e reza o ato de contrição!
JUNIOR -
Ah... não!
CANDÊ -
Vem, prova que eu quero ver! Reza e mostra que está arrependido!
JUNIOR -
Não vou, pronto!
CANDÊ -
Vem!
JUNIOR -
Não vou!
CANDÊ -
Se não vier, não tem matinê domingo !
JUNIOR -
Não tem importância. Mas se a senhora não deixar eu ir na matinê domingo, não tomo parte na festa do Dia dos Pais amanhã na escola!
CANDÊ -
Juniiiiiiior!!!
JUNIOR -
Não tomo parte!
CANDÊ -
Você não gosta do seu pai.
JUNIOR -
CANDÊ -
Gosto, mas não tomo parte. E olha que eu até ia cantar a música do Chico Alves, “Criança Feliz”. Você vai ver, seu safado!
LUA DE CETIM....................................................................................................................................27
VAI APANHÁ-LO. JUNIOR CORRE E SAI PELA PORTA DA FRENTE. CANDÊ FICA NO BATENTE GRITANDO. CANDÊ -
Seu comunistinha! Seu comunistinha!
A FILHA DA VIZINHA PÁRA O CANTO E BERRA. VIZINHA -
(OFF) Que aconteceu, dona Candelária?
CANDÊ -
Nada, Maria Sapoti! Mete o nariz só onde é chamada!
VIZINHA -
(OFF) Maloqueira!
CANDÊ -
COMUNISTA!!!
CORTA.
CENA 6 HORA DO ALMOÇO. A MESA JÁ TINHA SIDO PREPARADA POR CANDÊ, PARA FESTEJAR O DIA DOS PAIS. ENTRAM OS TRÊS, EM ROUPAS DOMINGUEIRAS. CANDÊ VEM CHORAMINGANDO, GUIMA VEM ATRÁS, FAZENDO FORÇA PRA NÃO RIR E JUNIOR VEM CONTRAFEITO, VESTIDO COM SEU TERNINHO AZUL-MARINHO DE CASEMIRA E GRAVATINHA BORBOLETA BRANCA. CANDÊ -
GUIMA -
Eu sabia... eu sabia que ela ia fazer de propósito... Olha, Guima, eu não quero mais saber do seu filho... A gente cria, a gente educa na fé cristã... e ele faz isso! Na frente de todo mundo. A dona Sálua até tossiu de vergonha. Até ela, que gosta tanto dele. Não foi nada, Candê! Eu tenho certeza de que não foi de propósito! Foi, filho?
JUNIOR NÃO RESPONDE. CANDÊ -
Viu? Viu? Quem cala, consente! Ele fez de propósito! Tudo por causa daquele galego nojento!
GUIMA -
(SEM ENTENDER) Que galego, Candê?
CANDÊ -
(NERVOSA) Nada, Guima, nada... Guima, eu não queria deixar você nervoso... eu... (LEMBRANDO-SE, VIRA PRA JUNIOR) E você, seu malcriado, de castigo vai lá pra casa da Anunciadina, ler o dia inteiro pra nona Fiica!
GUIMA -
Mas, Candê... tudo por causa de uma bobagem?
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CANDÊ -
Bobagem, Guima? Bobagem? Você acha bobagem ele ir lá na frente do palco, olhar pra todo mundo e começar a “Criança Feliz”... e dizer... e dizer... que Jesus LAZARENTO foi criancinha também? Eu tenho vontade de morrer só de lembrar! LAZARENTO???? JESUS LAZARENTO????
JUNIOR NÃO RESPONDE. CANDÊ -
Viu? Viu? Ele não fala porque não tem nada pra dizer. Tudo por causa do galego!
GUIMA -
Mas, caramba, Candê, que história é essa?
CANDÊ -
Quer saber mesmo? O seu filho, o seu querido Alcebíades Antonio Guimarães Junior, depois de ter estado de prosa com o velho Pepito, aquele que todo mundo diz que é louco, mas que é muito sabido, virou COMUNISTA! Sim senhor, comunista! E a prova foi essa: dizer em público que ele renega a fé cristã!!
GUIMA -
(CAINDO NA GARGALHADA) Mas, Candê, você tá biruta? Um menino comunista? Onde já se viu isso?
CANDÊ -
Claro que você não concorda. O SEU presidente condecorou o barbudo cubano, o tal do Xê !!
GUIMA -
Mas, Candê...
CANDÊ -
Tal pai tal filho... Em que antro eu tô??? Em que antro?
GUIMA -
Você tá fazendo tempestade em copo d’água! Quer ver? Foi de propósito, filho?
JUNIOR, QUE ESTAVA SENTADINHO E APRUMADO EM SUA CADEIRA, VIRA-SE PARA OS DOIS, E RESPONDE RESOLUTAMENTE. JUNIOR CANDÊ -
Foi sim! (DIABÓLICA) Eu não disse? Vou já falar com o padre Zezinho!
SAI BATENDO A PORTA. TEMPO. GUIMA PERMANECE ENCARANDO JUNIOR, MEIO BOQUIABERTO. TEMPO. GUIMA -
Vem cá, filho!
JUNIOR SE APROXIMA TEMEROSO, MAS CONFIANTE EM SI.
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GUIMA -
Foi mesmo de propósito, filho?
JUNIOR -
Foi, pai.
GUIMA -
Mas por que cê fez isso?
JUNIOR -
Não sei, pai. Já tinha até passado a raiva da mãe. Ontem ela me encheu o saco, só porque contei umas histórias pra ela. Daí, ela me proibiu de ir na matinê. E eu disse que não ia participar da festa hoje. Ela falou que não gostava do senhor. Então, eu fui porque gosto. Quando começou tudo, eu já tinha até esquecido a briga de ontem. Mas daí, foi subindo uma coisa aqui dentro... Quando vi todo aquele pessoal lá, e a mãe, com a carona assim grandona, rindo... eu achei que ela tava rindo de mim. Olhei bem pra ela e cantei o Jesus LAZARENTO. Eu queria mostrar pra ela que ela não podia mandar assim em mim. O senhor entende?
GUIMA -
(DEPOIS DE UM TEMPO PENSATIVO) Entendo, filho, entendo!
JUNIOR -
Foi só isso, pai . O velho Pepito não tem nada a ver com a história. (TEMPO,COM MEDO) O senhor acha que eu vou pro inferno por causa disso?
GUIMA -
Acho que não, filho! Pede desculpa pra sua mãe, pede!
JUNIOR -
Não!
GUIMA -
Ela vai chorar e ficar brava!
JUNIOR -
Eu também choro e fico bravo quando apanho.
GUIMA -
Então, é melhor você ir lá pra casa da Anunciadina!
JUNIOR -
GUIMA -
Eu vou! Mas não volto mais! Só se ela for lá me buscar. A bênção, pai! Deus te abençoe, filho!
JUNIOR SAI E GUIMA FICA OLHANDO PARA A PORTA, PENSANDO. CORTA.
CENA 7
LUA DE CETIM....................................................................................................................................30
QUASE MEIA-NOITE. CANDÊ E GUIMA ESTÃO SENTADOS NA SALA. O RÁDIO TOCA UMA MÚSICA BAIXINHO E GUIMA MORRE DE SONO. CANDÊ ESTÁ NERVOSA. CANDÊ -
Ele disse que não voltava mesmo?
GUIMA -
Disse, Candê... Só se você for lá buscar... Se não, ele ficava, nem que tivesse que ler todos os livros de religião do mundo pra nona Fiica.
CANDÊ -
Ele não guenta! Ele volta! Tenho certeza de que ele volta!
GUIMA -
Não volta, Candê! Ele é igual a você: teimoso que nem um jumento. Não volta, enquanto você não for lá.
CANDÊ -
Não me ofende... jumenta, eu !!... Mas eu não vou lá buscar!
GUIMA -
Então, vamos dormir, que eu não aguento mais, e amanhã é dia de serviço pesado lá na “Admirada”...
CANDÊ -
Eu não vou dormir... Nem você. Vamos ficar aqui. Esperando o Junior.
GUIMA -
Candê, já é quase meia-noite. O menino não vem mais! Você acha que a Anunciadina vai deixar o Junior sair a esta hora da noite?
CANDÊ -
(TRAINDO-SE) O MEU Junior não tem medo do escuro não!
GUIMA -
Candê, vamos deixar isso pra amanhã!
CANDÊ -
Pai molenga! Por isso que tudo aconteceu. Porque você é molenga. Porque não educa o filho e fica só sonhando... só sonhando...
GUIMA -
Não, senhora! Tudo aconteceu porque a senhora não tem a cabeça no lugar e nem papa na língua. Onde já se viu acusar o menino de comunista? Onde já se viu?
CANDÊ -
Eu fiquei com medo, Guima. Falei isso pro padre Zezinho.
GUIMA -
Candê, eu não te entendo... Você nunca foi beata, nunca foi rabo de saia de padre... Tá certo, vai à missa, comunga na Páscoa, ajuda os pobres, faz torta-de-banana pra quermesse...
CANDÊ -
(CORTANDO) Tapetinho!
LUA DE CETIM....................................................................................................................................31
GUIMA -
... tapetinho pra quermesse, e tudo. Mas nunca foi de ficar correndo atrás de padre pra pedir conselho. Uma vez até disse que padre e urubu davam azar!
CANDÊ -
É que eu ando com medo, Guima! Não sei, o mundo tá virando muito. Sempre vi as coisas assim do jeito que elas são. Pão pão, queijo queijo... Agora, começou a mudar tudo. Tem homem indo pro espaço, tem comunista entrando no governo, tem homem virando mulher, tem música que não entendo... Então, eu não consigo mais saber como é que fico. Apelo pra fé!
GUIMA -
Mas Candê... você não é uma velha coroca que tem que ficar sentada o dia inteiro, só olhando o mundo mudar... Não é assim... Olha, Candê, eu que fico proseando por aí...
CANDÊ -
GUIMA -
Viu? Você mesmo admite que fica proseando por aí, enquanto eu dou duro aqui em casa! O que adianta ser a Rainha do Lar? Só pra levar patada do filho? Ah, Candê... eu desisto... eu vou dar uma cochilada... se o Junior chegar, cê me acorda!
CANDÊ -
Não! Quer dizer... Guima... você não iria... não iria lá na casa da comadre, buscar o menino?
GUIMA -
Acordar a comadre a esta hora?
CANDÊ -
E cê acha que ela tá dormindo? Nunca! Deve estar tão acordada e preocupada como eu! Mãe é mãe, Guima! A gente sofre junto sempre. (TEMPO) Se pelo menos a gente tivesse um telefone!
GUIMA -
Vai começar é?
CANDÊ -
É uma das poucas modernidades que eu gosto. O telefone é útil.
GUIMA -
O telefone, a televisão e o jogo de curvim imitando couro!
CANDÊ -
É pedir muito da vida? Eu só queria isso e que o Junior conseguisse um emprego no Banco do Brasil e que você deixasse de beber!
GUIMA -
Candê!!!
CANDÊ -
Desculpa, Guima, tô nervosa!
GUIMA -
Eu vou deitar!
LUA DE CETIM....................................................................................................................................32
CANDÊ -
Não vai não!
GUIMA -
Vou sim!
CANDÊ -
Por favor...
GUIMA -
Vou sim, Candê! Você precisa aprender que não manda em mim. Nem no Junior!
GUIMA SE LEVANTA E SAI. CANDÊ -
Traidor! Judas! Vocês todos são uns Judas!
GUIMA REAPARECE NA PORTA INTERNA. GUIMA -
Vem dormir, Candê!
CANDÊ -
Não vou! (COM ORGULHO) Eu vou bancar o pai de família e esperar esse maleducadinho, pra lhe dar umas boas palmadas.
GUIMA -
Duvideodó!
GUIMA SAI. CANDÊ FICA SOZINHA. TEMPO. O RÁDIO PÁRA DE TOCAR E O LOCUTOR SE DESPEDE. LOCUTOR -
(OFF) Neste momento, a Rádio Tupi de São Paulo se despede, deixando a todos os seus ouvintes os votos de uma boa-noite. Zero hora na capital paulista.
O RÁDIO SAI DO AR, FICANDO SÓ A ESTÁTICA. CANDÊ VOLTA-SE PARA ELE. CANDÊ -
Até você, seu locutorzinho de araque? Seu Judas! Todo mundo me abandona nesta hora! Todo mundo! Mas eu fico sozinha aqui! ... Só eu, mas fico... (COMEÇA A MEXER NOS RETALHOS QUE AINDA ESTAVAM NA SALA).
LUZ EM RESISTÊNCIA. TEMPO. GUIMA APARECE, SONOLENTO. VEM ATÉ ELA E A TOMA PELO BRAÇO. GUIMA -
Vem, Candê, vamos dormir...
CANDÊ -
(FRÁGIL) Eu tô aqui esperando...
GUIMA -
Você tá chorando, Candê!
CANDÊ -
Imagina, Guima... é só um cisco no olho!
LUA DE CETIM....................................................................................................................................33
OS DOIS SAEM ABRAÇADOS, COM O RUÍDO DE ESTÁTICA TOMANDO CONTA DA CENA. CORTA.
CENA 8 MANHÃZINHA. O RÁDIO COMEÇA A TOCAR AS MÚSICAS SERTANEJAS . UM GALO CANTA. O LOCUTOR ANIMADO ANUNCIA: LOCUTOR -
(OFF) Hê hê pessoár bão dos interior. Aqui está o seu “Despertar do Sertão”, da Rádio Tupi de São Paulo, com o gentir patrocínio das pílulas de vida do dotor Rós e do vermífugo Parrerinha, aquele que é bão pra solitária. Bomdia, dona Maria! Vai levantando que o sór tá quente e o marido precisa trabaiá. E pra começá nossa programação de hoje, Cascatinha e Inhana com essa beleza de música que é o “Meu primeiro amor”.
OUVE-SE A MÚSICA. CANDÊ APARECE, CARA TRESNOITADA. ABRE A JANELA, DIZ BOM-DIA PRA VIZINHA. ESPIA O CÉU, DELIGA O RÁDIO. VIZINHA CANDÊ -
(OFF) O Junior dormiu fora, dona Candelária? Foi passar a noite na casa da comadre. A nona Fiica não tá muito boa.
VIZINHA -
(OFF) Que ela tem?
CANDÊ -
Não sei, dona Nicota. Deve ser inxeridice aguda!
VIZINHA -
(OFF) Apendicite? Isso mata, né?...
CANDÊ SAI DA JANELA E VAI PRA COZINHA. GUIMA ENTRA, SONOLENTO. CANDÊ NEM SE VOLTA PRA ELE. CANDÊ -
Pega o leite pra mim, Guima!
CANDÊ VAI PRO INTERIOR. TEMPO. GUIMA ABRE A PORTA DA FRENTE E SE ESPANTA. GUIMA -
Junior, filho!!! O que cê tá fazendo aí?
JUNIOR ENTRA, AINDA DE TERNINHO, TODO AMARROTADO. JUNIOR -
Dormi aí na varanda.
GUIMA -
Não foi pra casa da Anunciadina?
LUA DE CETIM....................................................................................................................................34
JUNIOR -
Não queria ler os livros de religião pra nona Fiica. Fiquei andando. Fui lá na casa do Robertinho e depois fui pro açougue do velho Pepito...
GUIMA -
Psssiuuuu, não conta pra sua mãe!
JUNIOR -
Ela ainda tá brava?
ANTES QUE GUIMA RESPONDA, CANDÊ REAPARECE, COM O BULE E O PÃO. OLHA ASSOMBRADA PRA JUNIOR. JUNIOR -
A bença, mãe!
CANDÊ -
(SECA) Deus te abençoe!
CANDÊ EXAMINA O FILHO. OS DOIS SE ENCARAM, COMO QUE MEDINDO FORÇAS. CANDÊ -
(SECA) Dormiu bem?
JUNIOR -
Dormi.
CANDÊ -
(SECA) Vem tomar café.
GUIMA OLHA PROS DOIS, SEM ENTENDER. VAI SAINDO. GUIMA -
Preciso fazer a barba.
GUIMA SAI. JUNIOR E CANDÊ SENTAM-SE EM SILÊNCIO. CANDÊ -
E a madrinha?
JUNIOR -
Não sei.
CANDÊ -
Como não sabe?
JUNIOR -
A senhora falou que não devo mentir, não falou? Eu não dormi lá... dormi aqui na varanda!
CANDÊ -
Por que não entrou?
JUNIOR -
Não podia.
CANDÊ -
Por quê?
JUNIOR -
A senhora disse que um homem nunca deve abaixar a cabeça!
CANDÊ -
Você é menino!
LUA DE CETIM....................................................................................................................................35
JUNIOR CANDÊ -
Eu sou um homem! Eu nem fiquei preocupada. Achei que cê tava lindo e loiro lendo os livros de religião pra nona Fiica.
JUNIOR -
A senhora tá com cara de quem não dormiu!
CANDÊ -
Dormi muito bem. Pergunte pro seu pai.
JUNIOR SORRI PRA ELA. CANDÊ PROCURA DESVIAR O OLHAR. JUNIOR -
Eu tive um sonho gozado.
CANDÊ -
Sonho, é?
JUNIOR -
Sonhei que a senhora tinha feito um tapetão colorido e que a gente voava nele que nem o Aladim. Eu, a senhora e o pai montados nele, e a gente tava se mudando prum outro lugar. A senhora tava com uma cara de contente!!!
CANDÊ -
E daí?
JUNIOR -
Daí, o pai falava que a gente ia conhecer a nova loja dele, que era a maior potência de tecidos DO MUNDO!!!
CANDÊ -
Já vi tudo...
JUNIOR -
Quando a gente ia chegando, eu vi uma torre grande, grande, como se fosse a torre da igreja de São Benedito, mas muito mais alta. E o pai falou: é logo ali, depois da torre! Mas nisso o tapete se enroscou na torre... e a gente ficou lá, berrando que nem uns desesperados!
CANDÊ -
E aí?
JUNIOR -
Aí, eu acordei com o rádio da senhora tocando uma música e dizendo que o sol tava quente... Então, eu vim ver... quer dizer, eu vim buscar meus cadernos... porque a dona Sálua...
CANDÊ -
JUNIOR -
(TERNA) Hoje a mãe vai fazer um lanche de mortadela bem gostoso com tubaína. Quer? Quero!
JUNIOR LEVANTA-SE CORRENDO E ABRAÇA A MÃE FORTEMENTE. CANDÊ -
(SEM JEITO) Que é isso, Junior? Que é isso, filho?
JUNIOR -
Nada, mãe, eu tava com saudade!
LUA DE CETIM....................................................................................................................................36
CANDÊ -
Eu também, filho! Morrendo...
BATIDAS À PORTA. GUIMA VEM DE DENTRO, JÁ GRITANDO: GUIMA -
Deixa que é comigo!
JUNIOR E CANDÊ, AINDA ABRAÇADOS, ESPANTADOS. GUIMA RETORNA E DEIXA A PORTA DA FRENTE SEMI-ABERTA. CANDÊ E JUNIOR VÃO ATÉ LÁ. GUIMA -
Dona Candelária, o primeiro dos seus pedidos foi atendido. Acabou de chegar o seu conjunto de curvim imitando couro!
CANDÊ VAI ABRAÇAR GUIMA, QUANDO A VIZINHA BERRA COM TUDO: VIZINHA -
(OFF) Gente... o Jânio RENUNCIOU!!!
ESPANTO DE TODOS. COMOÇÃO ENTRE OS TRÊS. CORTA.
FIM DO I ATO
II ATO
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O cenário é praticamente o mesmo, com algumas modificações. A mesa de fórmica e os apetrechos do canto onde é a copa continuam como no ato anterior. Talvez, alguns detalhes a mais, mostrando que se passaram dez anos. No canto que forma a sala, está agora o conjunto de curvim imitando couro, que substitui o antigo jogo de palhinha. Ele está meio gasto, mas coberto por um plástico transparente. Há uma televisão, posta em destaque, e um telefone. Continuam plantas, vasos, retratos, os quadros dos Sagrados Corações etc... A sonoplastia continua sendo feita pelo rádio e , agora, pela televisão. A ação do II ATO passa-se em setembro de 1971.
CENA 9
MANHÃ. ANTES DO ALMOÇO. CANDELÁRIA ESTÁ SENTADA À MESA DA COPA, ESCOLHENDO FEIJÃO E OLHANDO PARA A TELEVISÃO, QUE TRANSMITE UM PROGRAMA FEMININO. NÃO SE VÊ A APRESENTADORA, OUVE-SE SOMENTE SUA VOZ, BEM ENJOADA. APRESENT. -
(OFF) Como as telespectadoras podem notar, Paris manda que as saias se abaixem novamente. Numa reação à moda londrina de Mary Quant, os costureiros franceses decretaram que, nesta temporada, as mulheres elegantes devem usar suas
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saias pelo tornozelo... Os padrões são variados... Temos desde a camponesa até a ciganinha... até um corte mais clássico, em lã ou tweed...
CANDÊ -
(RESMUNGANDO) Para mim, parece Maria Mijona!
TELEFONE TOCA. CANDÊ VAI ATENDER, SEMPRE DE OLHO NA TELEVISÃO. APRESENT. -
(OFF) Maria Márcia apresenta modelo Clodovil, com saia bege e blusa de seda pura em ton sur ton; os adereços procuram realçar...
CANDÊ -
(FALANDO ALTO) Alô... 294... Espera um pouco, comadre... deixa abaixar a televisão!
ABAIXA O SOM DA TELEVISÃO. VOLTA AO TELEFONE. CANDÊ -
Não... aqui não pega bem o sete! Eu tava vendo um desfile de Maria Mijona!... Quem vai gostar é o Guima. Ele sempre reclamou da mini-saia... Não, não por causa da moral, por causa do pouco pano... Vai...Vai chegar hoje... Pelo menos telefonou dizendo que vinha... Acho que sim, comadre... Ele tem um mês de férias... Por que férias em setembro? ...Sei lá... Faculdade deve ser diferente de colégio... Diz que vai ficar uns dias, e depois vai não sei pra onde... Filho é assim mesmo! Esquece que tem mãe... Mas eu vou dizer isso a ele! Claro, comadre ... Claro que vai passar aí... Ele nunca se esquece da madrinha.... Quando eu escrevi contando da morte da nona Fiica ele respondeu que sentia muito... (FALSA) Eles se davam bem, né?... O Guima vai indo, com a graça de Deus... Tá certo que o dinheiro anda curto, comadre, mas ele tem trabalhado... Não, comadre, isso não é verdade... ele nunca mais bebeu!... Desde que foi praquela clínica Kardec lá em Sorocaba não pôs um gole mais na boca!... Sei que é fofoca da Nicota... Agora, pra contar que a filha dela teve criança depois de DOIS meses de casada e ainda teve peito de dizer que era prematura pra isso ela serve, não é?... Sem dizer que... dizem que o filho é 3 x 8. E vem falar do meu Guima? Bom comadre eu deixei o feijão no fogo... é, preciso ir lá ver.... Fica com Deus... Recomendações ao Pedro... Aparece... Pode deixar.... Eu falo com o Junior... Eu falo... Eu falo... Eu ... Até logo!.... Pode deixar... Pode deixar... Pó... Pode deixar...
COM EVIDENTE SATURAÇÃO, FICA OUVINDO A COMADRE E VENDO A TELEVISÃO, ATÉ DESLIGAR.
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CANDÊ -
Não posso dizer na frente do Guima, mas a Anunciadina é uma matraca!
VOLTA A ESCOLHER O FEIJÃO. CANDÊ -
Quando só tinha o mercadinho pra comprar, o feijão era uma beleza! Agora, com esse tal de Serve-Mais, só tem pedra!
CONTINUA RESMUNGANDO, ATÉ QUE OUVE UMA VOZ DE HOMEM CANTANDO JUNTO À PORTA DA ENTRADA. JUNIOR -
(OFF) Maria Candelária, é alta funcionária etc...
CANDÊ DÁ UM PULO, ABRE A PORTA E GRITA. CANDÊ -
Junior!!!!
JUNIOR ENTRA, DE CABELOS COMPRIDOS, JEANS, TOPA-TUDO, CAMISETA E MOCHILA. JUNIOR -
E aí, dona Candelária?
OS DOIS SE ABRAÇAM AFETUOSAMENTE. JUNIOR -
Pelo jeito, cheguei na hora do rango!
CANDÊ -
Junior, cê não devia ficar tanto tempo longe... Olha essa cara de doente... essa barba mal-feita... essa cara amarela.... esse cabelo... tá com piolho, tenho certeza....
JUNIOR -
(BRICANDO) Vai começar, dona Candê? ... Eu volto no primeiro ônibus!
CANDÊ -
Que saudades!
JUNIOR -
Tá ficando mole, dona Candelária?
CANDÊ -
E você malcriado! Quanto tempo sem aparecer... Passou na loja do seu pai?
JUNIOR -
Passei. O Inácio me disse que ele tinha saído... Deve ter ido pro Café do Ponto... Mas eu não quis ir até lá... Antes quis vim ver a Rainha do Lar !
CANDÊ -
Seu pai... seu pai não deve ter ido pro Café do Ponto não... Deve ter ido falar com algum freguês... Sabe, apesar da loja não estar indo muito bem, têm alguns fregueses que ainda são fiéis e só compram com seu pai e...
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JUNIOR -
Qualé, mãe? O pai tem direito de sair um pouquinho sim... Sabe o que é ficar o dia inteiro atrás de um balcão? E olhe que ele ainda acredita na potência...
CANDÊ -
Só ele!
JUNIOR -
(PERCEBENDO O CLIMA) Mas e aí, dona Candelária, continua vendo televisão o dia inteiro, falando ao telefone com a Anunciadina Alto-Falante, brigando com a Nicota e fazendo tapetinho pra quermesse?
CANDÊ -
Você brinca com sua mãe porque não tá aqui pra ver o trabalhão que eu tenho!
JUNIOR -
Sei disso, dona Candê... Mas deixa entregar o presente que trouxe pra senhora.
CANDÊ JUNIOR -
Um presente? Foi uma amiga minha que escolheu... Um perfume, dona Candelária. Minha amiga disse que é a última moda em São
Paulo. ABRE A MOCHILA E TIRA UM VIDRO DE RASTRO . ENTREGA PRA MÃE. CANDÊ -
(MARAVILHADA) Rastro!!! Que nome esquisito, né? (CHEIRA) Huum, que cheiro de grã-fina! Até parece daquelas domadoras do Lyons! Mas você fica gastando dinheiro com porcaria é? Vive reclamando que não tem!
JUNIOR -
Foi a Marisa que comprou pra eu dar pra senhora.
CANDÊ -
Quem é a Marisa?
JUNIOR -
Minha amiga.
CANDÊ -
Isso tá cheirando nora.
JUNIOR -
Que é isso, dona Candê? Ciúme?
CANDÊ -
Imagina! O que eu mais quero é ver você casado! Mas com moça direita, de preferência professora... e VIRGEM! Entendeu? VIRGEM!!! Faço questão!
JUNIOR -
(NA BOA) Acho que quem deve fazer questão sou eu!
CANDÊ -
Bocudo!
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JUNIOR AGARRA CANDÊ E RODOPIA COM ELA PELA SALA. JUNIOR -
Tava com saudades das nossas brigas, dona Candê... Das suas resmungadas... Das suas queixas... Dos seus pitos...
CANDÊ -
Pois se continuar assim, vai receber muitos. Me deixa, menino...
JUNIOR -
Eu falei tanto da senhora e do pai pra Marisa.
CANDÊ -
Ah é?
JUNIOR -
Ela tá louca pra conhecer a senhora. Chega amanhã!
CANDÊ PÁRA, BOCA ABERTA. CANDÊ -
O quê ? Ela vem pra cá amanhã? Mas Junior...
JUNIOR -
(SÉRIO) Ela precisa dar uma descansada de São Paulo, mãe. E como não tem pra onde ir, convidei pra vir pra cá. Só por uns dias...
CANDÊ -
Mas filho... Eu queria tanto que você ficasse só comigo... pra conversar... Preciso dizer tanta coisa... E agora vou ter de fazer sala? Tem certos assuntos que a gente não pode conversar na frente de estranhos. Roupa suja se lava na intimidade do lar!
JUNIOR -
(TENTANDO BRINCAR) Pelo jeito, a trouxa é bem grande, não?
CANDÊ -
É sim, filho. É bem grande. Mas agora com essa moça... Além disso, posso saber onde ela vai dormir? Aqui só tem dois quartos.
JUNIOR -
No meu quarto.
CANDÊ -
E tem cabimento?
JUNIOR -
Eu durmo aqui na sala, em cima do seu primeiro pedido de Aladim. Aliás, os três foram atendidos, não, dona Candê? O conjunto de sofá, o telefone e a televisão!
CANDÊ -
Faltam dois! Seu emprego no Banco do Brasil e que seu pai...
JUNIOR -
(SÉRIO) Ele continua, mãe?
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CANDÊ -
Eu queria tanto falar disso com você. Mas essa moça...
JUNIOR -
A Marisa não vai atrapalhar. A gente é muito amigo, colega de Faculdade. Ela não faz Ciências Sociais não... Faz Comunicação, mas a gente tá sempre junto. Eu posso pedir pra ela dar um tempo pra gente conversar...
CANDÊ -
O que é dar um tempo?
JUNIOR -
(RINDO) É ficar de fora, mãe, pra gente lavar a roupa junto.
CANDÊ -
É que a situação, filho, não tá boa!
JUNIOR -
Depois a gente conversa... E o rango?
CANDÊ -
(LEMBRANDO) Ai, o feijão vai queimar!
SAI CORRENDO. JUNIOR FICA UM TEMPO OLHANDO A CASA COM CARINHO. LENTAMENTE, INSPECIONANDO TUDO. TEMPO. A PORTA DA FRENTE SE ABRE E SEU PAI ENTRA, LEVEMENTE ALCOOLIZADO. AO ENTRAR, QUASE TROPEÇA. JUNIOR -
Cuidado, sêo Guimarães!
GUIMA OLHA PARA JUNIOR, COM CARA DE QUEM FOI PEGO EM FLAGRANTE. GUIMA -
JUNIOR -
Eles ofereceram uma bebidinha, um aperitivinho, e a gente não tem como recusar... Não tem mesmo, filho... Fica feio... É ... fica feio, pai...
AMBOS SE ABRAÇAM COM MUITO AMOR. CORTA.
CENA 10 NOITE. CANDÊ VÊ TELEVISÃO, ENQUANTO JUNIOR E GUIMA JOGAM TRUCO NA MESA DA COPA. GUIMA -
É zap.
JUNIOR -
E corto!
GUIMA -
(BERRANDO) Reboque de igreja véia, e pelo cavalo que cê comprou eu pago a metade!
JUNIOR -
(BERRANDO) E pago pra vê!
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GUIMA -
Taí, truco!
O JOGO DE TRUCO CONTINUA EM CLIMA EUFÓRICO. CANDÊ, DE VEZ EM QUANDO, OLHA MEIO ABORRECIDA PARA ELES, POR CAUSA DO BARULHO, MAS ENTERNECIDA. TEMPO. OS DOIS CONVERSAM ENQUANTO JOGAM, MAIS CALMAMENTE. JUNIOR -
E aí, pai, como vai a “Admirada”? Continua uma potência?
GUIMA -
Uma potência, filho! Uma potência! Estou pensando em ampliar as instalações, em contratar uns dois vendedores novos para a loja, e um outro pra correr as fazendas. Eu sempre achei que não se pode descuidar do pessoal das fazendas. Sabe como eu comecei com essa história de tecido? Eu já contei isso para você.
JUNIOR -
(COM PACIÊNCIA) Não contou não...
GUIMA -
Então escuta pra ter orgulho do teu pai... O seu avô, meu falecido pai, o Antonio Guimarães, tinha aquela terrinha ali perto das Três Pedras. Pra ir até o lugarejo, a gente levava bem umas três horas a cavalo. E não era sempre que podia. Mas aparecia por lá de vez em quando o sêo Habib, um turco mascate, que ia vender tudo o que você possa imaginar... Mas principalmente pano! E o pessoal da colônia, a mulherada ficava louca! E ele vendia muita chita, muito algodão, muita sarja pra fazer calça pra molecada e pros adultos. Fora os badulaques, as águas de cheiro, as bijuterias e o resto. Eu era menino e ficava olhando a carroça do sêo Habib. Achava que aquilo era meio mágico. E dizia que quando crescesse ia ter uma igual! Depois, seu avô morreu, a gente partilhou as terras, eu vendi minha parte e resolvi montar a “Admirada”. Sua mãe nunca quis que eu fizesse isso. Preferia que continuasse com o sitinho. Mas o nome da loja foi dado em homenagem a ela. A Admirada Dona Candelária Souza Guimarães!
CANDÊ -
Não vem com prosa, Guima!
JUNIOR -
É verdade, mãe?
CANDÊ -
Isso é coisa do seu pai. Toda vez que ele faz coisa errada, vem com essa prosa, que é pra se desculpar. Mas não pega mais não!
JUNIOR -
Quer dizer que dona Candê era de fechar o comércio?
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GUIMA CANDÊ -
No meu caso, foi de abrir o comércio. Que conversa mais boba! Prefiro quando ceis ficam aí gritando feito dois italianos velhos!
GUIMA -
E você, filho, como vão as coisas na capital?
JUNIOR -
Tô lá batalhando pela vida, pai. A escola é uma porcaria. A gente tem problema de verba, de censura, os professores estão com medo, tá todo mundo aterrorizado. O curso de Ciências Sociais foi o mais visado pelo golpe, pois é lá que se discute o projeto dos milicos... Um projeto que/
CANDÊ -
(CORTA) Não quero essa conversa em casa, Junior!
JUNIOR -
Mas a senhora não pode ficar de olho fechado, mãe! As coisas estão pretas!
CANDÊ -
Preta ou não preta, nós não temos nada a ver com isso!
JUNIOR -
Temos sim. Eu tenho. A senhora tem. O pai tem. Todo mundo tem.
GUIMA -
Você fala que nem o padre novo que veio pra cá. O padre Augusto.
JUNIOR -
Eu já conheço.
CANDÊ -
Conhece? De onde? Você nunca gostou de padre...
JUNIOR -
CANDÊ -
O padre Augusto é diferente, mãe. Conheci lá na faculdade, num seminário que o centrinho promoveu. Junior, meu filho, você não tá metido com esses...
GUIMA -
Candê, você não vai começar com a mesma história de dez anos atrás, vai?
JUNIOR -
(BRINCANDO) Eu não virei comunista não, dona Candelária!
CANDÊ -
Nem terrorista? Eu fico apavorada. Cada vez que vou no correio, no banco... vejo aqueles cartazes... Procura-se .... Cheio de retrato de moço que nem você. Lá tá escrito que eles mataram, roubaram, destruíram lares, que querem o fim do sossego do Brasil...
JUNIOR -
Isso é um jogo dos filhos da puta!
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CANDÊ -
Junior, olha o respeito, menino! Palavrão aqui dentro não!
JUNIOR -
Desculpa, mãe, mas é que fico com raiva!
GUIMA -
Mas as coisas estão assim mesmo, Junior?
JUNIOR -
As coisas estão piores do que o senhor imagina. Todo mundo está passando fome. Quantos nordestinos estão sem nada pra comer? Ou os favelados na grande São Paulo, ou no Rio, ou em qualquer outra cidade? E o camponês? E o estudante, que não tem acesso a uma educação mais realista, mais verdadeira? O senhor não tá sentindo a crise na carne? A senhora, mãe, quando vai fazer compra, não sente essa maldita inflação?
GUIMA -
Mas o Brasil vai indo bem, filho. É o despertar do gigante. É o milagre brasileiro! Estamos recuperando agora tudo que perdemos há muito tempo atrás. Estamos saindo do buraco.
JUNIOR -
Isso é um jogo muito sujo. Que começa, quer saber quando? Quando o SEU presidente Jânio renunciou!
CANDÊ -
Isso eu também acho!
GUIMA -
Mas havia as forças ocultas!
CANDÊ -
Que forças ocultas, Guima? Ele não têve coragem!!!
JUNIOR -
Acabaram com o Jango e agora estamos aqui, nessa porcaria. Mas eles que se cuidem, porque a coisa vai mudar!
CANDÊ -
Junior, eu proíbo você de tomar parte em qualquer reunião de subversivo!
JUNIOR -
O que é ser subversivo, dona Candê? É lutar por uma sociedade mais justa, mais decente, mais honesta? É querer ver a fome acabar, e poder ter direito de escolher os meus próprios governantes? Então, eu vou participar de reuniões subversivas sim senhora!
CANDÊ -
Junior, por que você não deixa São Paulo e volta pro interior? Presta o concurso do Banco do Brasil! Você é tão inteligente, filho! Passa. Depois, pede remoção pra cá!
GUIMA -
Ou, então, filho, vem tomar conta da loja que tá crescendo!
CANDÊ -
Guima, não mente pro menino!
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JUNIOR -
Meus planos são outros. Eu preciso ficar lá em São Paulo. Talvez um dia eu vá pra outro lugar, mas por enquanto eu tenho de ficar lá.
CANDÊ -
Eu tenho medo, Junior!
JUNIOR LEVANTA-SE E VAI ATÉ ELA. JUNIOR -
Do quê, dona Candelária? Eu sou forte! E teimoso que nem a senhora! Portanto, não adianta mais discutir isso. Tenho muita coisa pra fazer. Depois vou pensar na vida!
CANDÊ -
Você vai ficar igual ao seu pai. Sonho não enche barriga, não é, Guima?
GUIMA -
Eu não sonho. Vivo com os pés no chão!
JUNIOR E CANDÊ CAEM NA RISADA. CANDÊ -
Ai, meu Deus, onde fui me meter? Esse pai e esse filho... E ainda por cima a tal da moça... Ela vem mesmo?
JUNIOR -
Vem sim, mãe. A senhora vai gostar dela. O pai também. A Marisa é muito amiga do padre Augusto.
CANDÊ -
Já vi tudo!
GUIMA -
Quem sabe ela pode me ajudar a decorar os balcões da loja. Ou então me dizer direitinho o que está se usando em São Paulo...
JUNIOR -
Bem... eu acho meio difícil... mas quem sabe....
CANDÊ -
Ah, já sei! Ela deve ser daquela que só usa camiseta e calça, que nem homem. Daquelas que parecem paraíba. Aposto que usa tênis fedido e não raspa a perna!
JUNIOR -
Ê, dona Candelária, a senhora é fogo!
GUIMA -
CANDÊ -
JUNIOR -
Filho... que tal a gente dar um pulinho lá no Café do Ponto? Pra dar um dedo de prosa com o pessoal? (APAVORADA) Guima... você não vai...
Deixa, mãe... Eu tomo conta dele. Um golinho só e pronto. Vamos lá, pai!
LUA DE CETIM....................................................................................................................................47
OS DOIS SE LEVANTAM E SAEM. CANDÊ FICA OLHANDO A TELEVISÃO FIXAMENTE. OUVE-SE UMA CONVERSA DE NOVELA DA ÉPOCA. CANDÊ FICA TRABALHANDO COM SEUS RETALHOS. TEMPO. BATIDAS À PORTA DA FRENTE. CANDÊ -
Ué, quem será? A Anunciadina não é, porque só sai à noite pra velório...
VAI ATÉ LÁ. ABRE. HÁ UMA MOÇA, DA IDADE DE JUNIOR, VESTIDA MAIS OU MENOS COMO CANDÊ IMAGINARA. MARISA -
Boa-noite. O Bira está?
CANDÊ -
Quem?
MARISA -
Desculpa, o Junior! Esqueci que a senhora trata o Bira por Junior!
CANDÊ -
Pelo jeito, você é a tal!
MARISA -
É... Acho que sou!
CANDÊ -
Entra, faz favor!
MARISA -
Muito obrigada.
CANDÊ -
De nada.
MARISA ENTRA MEIO SEM JEITO. CANDÊ NÃO FAZ NADA PARA DEIXÁLA À VONTADE. SEMPRE MUITO FRIA. CANDÊ -
Quer sentar? Eu tô vendo televisão. Quer ver?
MARISA -
Obrigada.
MARISA SENTA-SE. TEMPO. MUITO TEMPO COM AS DUAS EM ABSOLUTO SILÊNCIO. SÓ O SOM DA NOVELA DA TELEVISÃO. MARISA QUEBRA. MARISA -
E o Bira?... Quer dizer, o Junior?
CANDÊ -
Saiu com o pai. Mas não demora. Quer dizer, espero!!!
MARISA -
Ah!...
FICAM AS DUAS EM SILÊNCIO ABSOLUTO, OLHANDO PARA A TELA DA TELEVISÃO. A LUZ VAI CAINDO EM RESISTÊNCIA. CORTA.
LUA DE CETIM....................................................................................................................................48
CENA 11 MADRUGADA. A SALA ESTÁ VAZIA. JUNIOR ENTRA, SEGURANDO O PAI, QUE ESTÁ MUITO BÊBADO. GUIMA -
Cuidado... se não a dona Candelária bota nós dois pra correr!
JUNIOR -
Vai, pai, com calma!
GUIMA -
Eu não estou bêbado não, ô seu moleque! Tomei só um aperitivinho...
JUNIOR -
O senhor tomou doze caipirinhas... Doze... Uns três pés de cana pelo menos, mais um limoeiro inteiro...
GUIMA -
Psiuuuuuuuu.... não conta pra mãe! ... Ela não gosta!
JUNIOR -
Nem eu gosto... Mas amanhã a gente conversa. Eu vou passar um café forte pro senhor.
GUIMA -
Eu não quero... Não preciso... Tá pensando que tô bêbado?
JUNIOR -
Não tô pensando... Eu tenho certeza. Vai, fica quieto aí na sala, que eu vou fazer o café...
GUIMA -
Se você fica fazendo barulho... a Candê acorda... e é aquele sururu!
JUNIOR -
Então, fica quieto também!
GUIMA -
Eu quero deitar...
JUNIOR -
O senhor vai tomar um café antes!
JUNIOR SAI PARA A COZINHA. GUIMA, SEM RESISTÊNCIA, CAI SENTADO NO SOFÁ. LIGA A TELEVISÃO ALTO, SÓ COM O RUÍDO DA ESTÁTICA. JUNIOR VEM CORRENDO DE DENTRO. JUNIOR -
(DESLIGANDO A TELEVISÃO) Pai, não faz barulho!
GUIMA -
Eu quero ver o noticiário!
JUNIOR -
Não tem noticiário agora! Fica quietinho, vai...
GUIMA -
Então, senta aqui!
JUNIOR -
Deixa eu botar a água pra ferver, que eu sento!
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SAI E VOLTA EM MINUTOS. GUIMA FICA GINGANDO NO SOFÁ. JUNIOR GUIMA -
Pronto. Está melhor? Eu estou ótimo! Eu sempre estou ótimo! Eu estou melhor do que nunca! Mas tô preocupado com sua mãe, filho!
JUNIOR -
(CONDESCENDENTE) Por quê, pai?
GUIMA -
Ela anda falando sozinha!
JUNIOR -
A mãe sempre fez isso. Acho que quando ela nasceu não chorou, resmungou!
GUIMA -
Mas agora ela está falando umas coisas birutas. Acho que ela biruteou de vez!
JUNIOR -
Por quê?
GUIMA -
Ela diz que a vida toda fez um tapete de retalhos, e que o tapete agora está enroscado na torre da igreja de São Benedito... Não está louca?
JUNIOR -
GUIMA -
JUNIOR GUIMA -
JUNIOR -
(RINDO) Não, pai... Eu sei o que é isso! É uma história muito velha... de uns dez anos atrás... Coisa da cabeça da dona Candelária ficar lembrando isso... Se você sabe... então também tá louco! Está todo mundo louco... O único certo aqui sou eu! Eu sabia... eu sabia... Fica quieto, que eu vou passar o café! Filho... se você sair no quintal... ali atrás do tanque tem uma garrafa de caninha... Vamos tomar a saideira? (BRAVO) O senhor vai tomar café!
JUNIOR VAI PARA O INTERIOR. GUIMA RESMUNGA. GUIMA -
Eles estão loucos... eles andam falando coisa que ninguém entende... Preciso tomar cuidado com eles...
RESMUNGA MAIS ALGUMAS COISAS INAUDÍVEIS. TEMPO. JUNIOR VOLTA COM O CAFÉ. JUNIOR -
Pronto, bebe!
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GUIMA -
JUNIOR -
(TENTANDO SE IMPOR) Eu não quero! Sei lá o que você pôs aí dentro! Pára com isso, pai. Bebe logo, antes que a mãe acorde!
GUIMA TOMA O CAFÉ. GUIMA -
JUNIOR GUIMA -
Eu tinha pensado em levar você pra ver o estoque da “Admirada” amanhã, mas acho que mudei de idéia. Por quê? É melhor esperar um pouco. E amanhã eu tenho muita coisa pra fazer.
JUNIOR -
Principalmente curar a ressaca!
GUIMA -
Eu não estou bêbado não! Que mania é essa de dizer que estou bêbado?!!
DE REPENTE, GUIMA SENTE ÂNSIA DE VÔMITO. JUNIOR -
Espera, pai! Eu levo o senhor pro banheiro!
GUIMA -
É só um mal-estar!
GUIMA SAI CAMBALEANDO EM DIREÇÃO AO BANHEIRO, SOZINHO. JUNIOR PENSA EM SEGUI-LO MAS FICA. SENTE-SE CANSADO, COM A MÃO NA CABEÇA. TEMPO. GUIMA VOLTA PÁLIDO. JUNIOR -
Melhorou, pai?
GUIMA -
Eu vou me deitar. É melhor você ir também, pra sua mãe não perceber nada.
JUNIOR -
Eu vou. Mas primeiro preciso quardar essas coisas aqui. Boanoite, pai!
GUIMA -
Deus te abençoe, filho! E veja se melhora dessa sua loucura!
JUNIOR -
(SORRINDO) Tá bom, pai! Tchau!
GUIMA SAI, CAMBALEANTE. JUNIOR ACENDE UM CIGARRO E ABRE A JANELA, FICA OLHANDO PRA FORA. MARISA ENTRA PELA PORTA INTERNA, SEM QUE ELE PERCEBA. CHEGA-SE ATÉ PERTO DELE. JUNIOR SE VOLTA. JUNIOR -
Marisa?
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MARISA -
(BEIJANDO) Oi. Cheguei e você tinha saído com seu pai.
JUNIOR -
Foi um bode homérico. Doze caipirinhas, uma conversa mole e uma bela vomitada.
MARISA -
Eu percebi.
JUNIOR -
Já tá no meu quarto?
MARISA -
Com a proibição expressa de não me encontrar com você de madrugada.
JUNIOR -
Pelo jeito, você já recebeu o Manual de Instruções!
MARISA -
Fui recebida pela Mãe Coragem em pessoa. Dona Candelária é o próprio teatro épico alemão.
JUNIOR -
Mas é boa gente...
MARISA -
Claro! Ficamos as duas durante duas horas olhando para a televisão, sem dizermos nada, até que ela perguntou se eu estava cansada. Disse que tava. Então, ela me preparou um chá de erva-cidreira, umas torradas e me deu seu quarto. Avisou que aqui todo mundo levanta cedo.
JUNIOR -
É regime de quartel!
MARISA -
E você?
JUNIOR -
Tudo bem... Tá mais calma?
MARISA -
Um pouco. Mas com a cabeça embananada. As coisas tão piorando cada vez mais. Acho que a gente vai ter de dar um tempo aqui...
JUNIOR -
MARISA -
Seu amigo tá fazendo uma verdadeira revolução por estas bandas! O padre Augusto é uma força!
JUNIOR TOMA A MÃO DE MARISA E AMBOS FICAM À JANELA. JUNIOR -
Quando olho para a Lua, fico imaginando quando ela começará a ter os mesmos problemas aqui da Terra. Imperialismo, colonialismo, luta de classes, luta pelo poder, fome, miséria. Basta que o homem bote sua pata lá, para que toda a sua paz acabe!
LUA DE CETIM....................................................................................................................................52
MARISA -
Por enquanto melhor pensar no (EMENDANDO) Onde você vai dormir?
JUNIOR -
Aqui na sala. Minha mãe quer que você continue virgem . (RI, SACANA)
MARISA -
aqui
mesmo.
Essa lua de cetim evocou meus demônios... Vem cá, meu menino vadio!
JUNIOR -
Eu já vi esse filme antes. Você brinca comigo...
MARISA -
Tô com vontade...
JUNIOR -
Eu também... Morrendo...
AMBOS VÃO SE APROXIMANDO E SE BEIJANDO. JUNIOR MARISA -
JUNIOR -
Lá fora tem um quartinho de despejo... Por onde a lua fura nosso zinco, salpicando de estrelas nosso chão... Pssiuuuu... não faz barulho.... vem!
SAEM ABRAÇADOS PELA PORTA INTERIOR, ENQUANTO A LUZ CAI EM RESISTÊNCIA. CORTA.
CENA 12 MANHÃ. JÁ É DIA CLARO. JUNIOR DORME NA SALA. CANDÊ ESTÁ NA COZINHA E DE VEZ EM QUANDO VEM ATÉ A SALA. ESPIA OU APANHA ALGUMA COISA. MAS NÃO FAZ MUITO BARULHO. TOMA CERTO CUIDADO COM JUNIOR. NUMA DESSAS VEZES EM QUE ENTRA NA SALA, VAI ATÉ O SOFÁ, OLHA MEIO ENTERNECIDA PARA O FILHO, AJEITA O COBERTOR. NISSO, O TELEFONE TOCA. CANDÊ -
(ATENDENDO, TENTANDO FALAR EM VOZ BAIXA) Alô... 294... Sim, sou eu... Não, comadre, não tô rouca... É que o Junior tá dormindo na sala... Por quê ? Ora, comadre, porque ele quis... Não aconteceu nada não... Não... Eu não briguei com o Guima de novo não... É que estou com hóspede... É ... Uma colega do Junior lá de São Paulo... Moça boa, simpática, fina... e VIRGEM! ... Claro que o Junior cedeu o quarto dele pra ela...
LUA DE CETIM....................................................................................................................................53
JUNIOR ACORDA E FICA OLHANDO A MÃE AO TELEFONE. ESTA NÃO PERCEBE.
CANDÊ -
Ele está muito bem, Anunciadina... Tá progredindo muito lá em São Paulo. Por isso é que não tem vindo muito pra cá... Muito estudo, muito trabalho... Inclusive, a moça conversou comigo e contou que ele é um ótimo aluno... Só tira DEZ e MUITO BEM... Lembra que a dona Sálua já dizia que ele era muito inteligente? Pois é... o menino tá fechando o comércio lá na tal da USP... A moça?... Que é isso, Anunciadina? Claro que não... veja só...
VIZINHA -
(OFF) Dona Candê!!! Dona Candê!!!
CANDÊ -
Bom, eu vou desligar, comadre, que a Nicota tá me chamando. Quero só ver o que aquela sirigaita vai dizer... É claro que ela quer especular... Vai levar dois quentes e um fervendo. Fica com Deus, comadre... Recomendações ao Pedro... Té logo...
CANDÊ DESLIGA O TELEFONE E ABRE LEVEMENTE A JANELA. VIZINHA -
(OFF) É verdade que a noiva do Junior chegou ?
CANDÊ -
É sim, dona Nicota!
VIZINHA -
(OFF) Ele vai casar apressado?
CANDÊ -
A moça não é do time da sua filha, dona Nicota! Passar bem!
JUNIOR CAI NA GARGALHADA. CANDÊ REAGE QUANDO VÊ O FILHO ACORDADO. JUNIOR -
A senhora continua a mesma, dona Candê!
CANDÊ -
Que mulher mais enxerida! Isso é coisa de perguntar? Mas pode se preparar, meu filho... que a vizinhança inteira vai falar... Eu também não sei se concordo com essa moça aqui em casa.
JUNIOR -
É só por uns dias.
CANDÊ -
Pior ainda. Vão dizer que ela é isso e aquilo. Que você.... Bom... (MUDANDO DE TOM) Que horas o senhor chegou ontem?
JUNIOR -
(PULANDO DA CAMA SÓ DE CUECAS) Cedo.
CANDÊ -
Mentira! Eu esperei você e o Guima até a uma.
LUA DE CETIM....................................................................................................................................54
JUNIOR -
A senhora tinha acabado de se deitar.
CANDÊ -
Ele bebeu de novo, não foi?
ANTES QUE JUNIOR RESPONDA, MARISA ENTRA NA SALA. MARISA -
Bom-dia, dona Candê!
CANDÊ -
Bom-dia, moça! (LEMBRA QUE JUNIOR ESTÁ DE CUECAS) Junior, isso é jeito de receber a moça? Se enrola na coberta, menino!
MARISA -
Eu não ligo, dona Candê!
CANDÊ -
Mas EU ligo! Tão pensando que esta casa é bordel? Tão pensando que vou tolerar sem-vergonhice por aqui? Pois este é um lar decente e cristão. Aqui não tem modernidade não, moça.
JUNIOR SE ENROLA NUM LENÇOL E CONTINUA A CONVERSA BEMHUMORADO. JUNIOR -
Esqueci de contar, Marisa, que a Mãe Coragem aqui foi daquelas que fizeram a Marcha com Deus pela Família. Tava lá, na primeira fila, de rosário e tudo.
CANDÊ -
Na primeira não, porque aquelas pó-de-arroz do Lyons não deixaram: a dona Rosita Carvalho, a Inesinha Sampaio, a Izildinha Moreira Passos... Mas tava na segunda. Eu e a Anunciadina. E se tiver outra, vou de novo!
JUNIOR -
E adiantou, dona Candê?
MARISA -
Pára de chatear sua mãe, Bira.
CANDÊ -
Ele não chateia não, moça. Conheço esse estrupício desde que nasceu. Já me fez cada uma, de arrepiar o cabelo, moça!
JUNIOR -
Mãe, o nome dela é Marisa, não é moça!
CANDÊ -
Desculpa, moça, mas acontece que a minha cabeça anda fraca pra guardar nome.
MARISA -
Não tem nada não, dona Candê. A senhora precisa de ajuda?
CANDÊ -
Nunca precisei e não vai ser agora. Você é visita a visita na minha casa tem tratamento de rei. É só não fazer semvergonhice. Vão sentando que eu vou buscar o café.
LUA DE CETIM....................................................................................................................................55
SAI PARA A COZINHA. JUNIOR DÁ UM BEIJO RÁPIDO EM MARISA. LOGO DEPOIS, ENTRA GUIMA.
GUIMA -
MARISA JUNIOR -
GUIMA -
Ai... minha dor de cabeça! Tem uma banda só de trombone tocando dentro dela! Bom dia, sêo Guima! Pai, esta é a Marisa, que eu falei... Lá de São Paulo. Ela vai ficar descansando uns dias aqui em casa... Bom-dia, Marisa. Prazer. Eu hoje não tô muito bom. Sofro de umas dores de cabeça. Deve ser da vista ou dos nervos. Já consultei tudo quanto é médico e ninguém resolve.
CANDÊ VEM ENTRANDO. CANDÊ -
Eu sei o que resolve!
JUNIOR -
Mãe!
CANDÊ -
Vai botar roupa, menino. Não é índio pra andar pelado!
JUNIOR PEGA A MOCHILA, AS ROUPAS ESPALHADAS E SAI PARA O BANHEIRO. GUIMA -
Estou até pensando em ir prum centro. Me disseram que fazem umas operações espirituais que dão muito certo.
CANDÊ -
Seu negócio é falta de vergonha, homem!
GUIMA -
E o seu é língua comprida!
CANDÊ -
Não vamos brigar na frente da visita!
MARISA -
Eu não sou visita não, dona Candê!
CANDÊ -
É sim senhora. Tá pensando o quê? Que já é nora?
GUIMA -
Não liga, que ela é espoleteada.
MARISA -
(RINDO) Não vou roubar seu filho não, dona Candê.
CANDÊ -
Tô rifando ou dando o Junior, se quiser pode levar... E ainda dou o Guima de troco.
LUA DE CETIM....................................................................................................................................56
JUNIOR VOLTA, VESTIDO. JUNIOR -
Olha que a gente foge pra casa da Anunciadina Alto-Falante!
CANDÊ -
Mais respeito com a madrinha. Falando nisso, ela disse pra você passar lá. Não vá fazer um papelão e deixar de pedir a bênção.
TODOS ESTÃO À MESA. MARISA -
A senhora não vai tomar café, dona Candê?
CANDÊ -
Hi, moça, pra mim já é quase hora do almoço. Levanto às cinco. Vou pra feira. Guima, não esquece de pegar a caderneta e trazer as compras da janta.
GUIMA -
Pois não, dona Candelária!
CANDÊ -
(SAINDO) E não esquece de fechar o gás depois, e de dar água pro cachorro, e de jogar milho pras galinhas, e de trancar a porta da rua, e de deixar o dinheiro pro homem do pão e...
GUIMA -
Vai com Deus, Marechal Lott! (PRA MARISA) Então a menina veio conhecer Torrinha? A cidade é pequena mas é boa! Você precisa levar a Marisa pra conhecer a nova sorveteria, Junior. E tem brincadeira dançante no sábado lá no Tênis. Mas é claro que pra juventude de São Paulo tudo isso deve ser meio chato, né?... Se você tiver um pouquinho de tempo, Marisa, gostaria que aparecesse lá na “Admirada” pra ver os tecidos que comprei. Nós estamos aumentando o estoque agora e gostaria de saber sua opinião sobre...
JUNIOR -
(CORTANDO) A Marisa não entende nada disso, pai!
MARISA -
Não seja mal-educado, Bira!
JUNIOR -
E o senhor sabe muito bem que a loja está indo mal.
MARISA -
Bira!
JUNIOR -
Ele precisa ouvir umas coisas, Marisa!
GUIMA -
Não fale assim, meu filho.
LUA DE CETIM....................................................................................................................................57
JUNIOR -
Falo sim, pai! Eu e ela não temos segredos. Ontem o senhor tomou um porre danado e ficou falando horas a respeito dos planos que tem para a sua loja. Mas o senhor tem que entender que sua loja está péssima. É um monte de trapo vagabundo, que ninguém quer comprar. A não ser os pobres coitados dos bóias-frias que chegam aqui aos sábados e compram aquelas chitas, que são as únicas coisas que podem. O senhor ontem virou o palhaço do Café do Ponto. Eles riam do que falava. Dos seus planos... Dos seus maravilhosos planos de aumentar a loja e abrir uma filial... e um mundo de besteira... Pai... o senhor é um cara sensível... inteligente...vivido..... Bota na cabeça que não é essa a realidade. A mãe tá se matando pra vender tapetinho, toalhinha, crochê e o escambau... pra aguentar a despesa da casa!... E o senhor tá bebendo e enchendo sua cara e seu corpo de álcool e de fantasia!
MARISA -
Não seja cruel, Bira!
JUNIOR -
Ele tem de ouvir, Marisa!
GUIMA -
Junior, não é bem assim... Ontem, eu fui ao Banco do Brasil e o sêo Antenor...
JUNIOR -
O sêo Antenor negou o empréstimo. E veio falar com a mãe, porque o senhor queria penhorar esta casa! A única coisa que possuem!
GUIMA -
É mentira! Eu tenho crédito na praça... Os comerciantes de Torrinha sabem que não devo...
JUNIOR -
Pai, pára de sonhar! Pára de mentir pra si mesmo. Eu estou aqui. Vamos conversar direito sobre essas coisas. Vamos resolver essa situação. Eu não posso deixar que você e a mãe se destruam assim...
MARISA -
Não é desse jeito, Bira. Você não tem o direito de mexer com a cabeça do seu pai.
JUNIOR -
Você não sabe de nada!
MARISA -
Não seja grosso! Você não tá conseguindo nem resolver a SUA situação, quanto mais a deles!
JUNIOR -
Quem está embananada é você! E meu pai precisa saber de muitas coisas. Do estado em que está. Do estado em que minha mãe está! Eu não vou poder cuidar deles! Eles têm que se virar! E ele tem que saber como resolver isso!
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GUIMA -
Pode deixar, meu filho, que EU resolvo! Você está me maltratando demais e me magoando muito! Eu tenho força ainda... eu tenho cérebro ainda... Eu vou reerguer tudo, tudo! Mas não quero a sua ajuda! Não quero e dispenso... É muito fácil você viajar de São Paulo pra cá pra dar palpite nas nossas vidas. O duro é ESTAR aqui!
JUNIOR -
Pai, eu não quis...
GUIMA -
Cala a boca, seu molecote! Você não tem topete de levantar a voz para seu pai! Quem canta neste galinheiro ainda sou eu! Mas o dia que você souber da minha morte e se der conta de que herdou um grande império de lojas de tecidos, então vai se arrepender do que falou! Vai se arrepender muito!
GUIMA SE LEVANTA E SE PREPARA PARA SAIR. JUNIOR -
GUIMA -
Pai, eu acredito no senhor, mas acontece que o seu sonho tá maior que a realidade! Você vem me dar lição? Ora, seu fedelho... Mal saiu do cueiro e quer dar lição de vida? Você vai ter que se arrebentar muito ainda, menino, pra aprender as coisas... Passar bem, Marisa!
GUIMA SAI. JUNIOR BATE FURIOSAMENTE NA MESA. DEPOIS ACENDE UM CIGARRO E OLHA PARA MARISA. MARISA -
Você só piorou tudo. Ele achava que você era alguém que poderia entender o sonho dele. E você caiu de paulada e cacetada!
JUNIOR -
Mas ele tá alucinado, Marisa. Precisava ver a situação dele ontem, no Café do Ponto. O ridículo da situação!
MARISA -
Ele tem direito ao sonho. Ele tem direito a qualquer sonho, depois dessa vida de merda que viveu!
JUNIOR -
Não tem não. Ele é um homem que tem plena capacidade de trabalho ainda. Que pode ser útil a si e aos outros. Ele não pode entrar nessa... Eu não admito a decadência! Nenhum homem pode ceder a um impulso de loucura, a querer cair fora tranquilamente, como se não tivesse nada a ver com ninguém, com nada, com seu país, com sua mulher...
MARISA -
Com seu filho? Você tá se tornando ridículo! Ridículo e cruel. É isso que me assusta em pessoas como você, como eu...
JUNIOR -
Não mistura departamentos! Meu pai é uma vítima!
LUA DE CETIM....................................................................................................................................59
MARISA -
Sem dúvida. Mas não seja você seu segundo carrasco!
JUNIOR -
Eu gosto dele.
MARISA -
Então o entenda.
JUNIOR -
Eu não consigo.
MARISA -
Então, não o julgue!
JUNIOR -
(EXPLODINDO) TUDO ISTO É UMA PORRA!!!
CORTA.
CENA 13 TARDEZINHA. CANDELÁRIA OUVE RÁDIO, ENQUANTO PÕE A MESA PARA O JANTAR. JUNIOR FUMA A UM CANTO, LENDO UM JORNAL. CANDÊ -
Seu pai tá atrasado de novo, Junior. Eu acho que ele resolveu passar lá no Café do/
JUNIOR -
(CORTA) Não quero falar disso agora, mãe!
CANDÊ -
Ué, aconteceu alguma coisa?
JUNIOR -
Não!
CANDÊ -
Vocês brigaram?
JUNIOR -
Não!
CANDÊ -
E não conheço o fruto do meu ventre? Brigaram!
JUNIOR -
Brigamos.
CANDÊ -
Você tem de ter paciência, meu filho. Ele tá passando por um mau bocado... as coisas não vão bem!
JUNIOR -
Vocês são gozados! Eu não entendo a cabeça de nenhum dos dois! A senhora me atazanou, dizendo que o pai tinha virado alcoólatra...
CANDÊ -
Junior, eu não disse isso!
JUNIOR -
Disse sim! Disse que ele tava enlouquecendo, que a loja tava indo de mal a pior, contou a história da hipoteca da casa... E
LUA DE CETIM....................................................................................................................................60
me pediu ajuda. Que ajuda eu podia dar? Falar com ele, é claro! Falei, ele ficou uma fera, brigamos. Tá certo, eu posso ter sido até cruel, mas era pro bem dele... E agora a senhora vem dizer pra ter paciência? Vá pros diabos a paciência, e tudo! CANDÊ -
O que disse pra ele?
JUNIOR -
Isso que eu contei pra senhora.
CANDÊ -
Desse jeito?
JUNIOR -
Um pouco mais bravo.
CANDÊ -
Desgraçado!
JUNIOR -
(ESPANTADO) Quem? Eu?
CANDÊ -
É modo de tratar um pai? Pinguço ou não, louco ou não, sonhador ou não, ele é seu pai!
JUNIOR -
Não me venha a senhora com essa moral cristã!
CANDÊ -
Eu não entendo essa sua conversa de faculdade, não. Mas pai é pai!
JUNIOR -
Acima de pai, ele é homem. E homem não pode ficar sendo desrespeitado do jeito que ele tá sendo... e nem se desrespeitando a si mesmo!
CANDÊ -
Olha aqui, Junior! Cê tá vendo esta mão? Mal tratada, cheia de calo, feia, velha... Tá vendo? Pois essa mão sempre foi assim!... Desde que eu era pequenininha, pois puxei muita enxada pra ajudar MEU pai... E, depois, quando me casei, continuei trabalhando na lavoura, ajudando o SEU pai, o meu Guima, antes dele vender o sitinho. Pois foi nessa mão que ele colocou uma aliança. Uma aliança de não mais tirar. A não ser quando Deus vier e me levar embora. E foi essa mão que ajudou você a nascer, e também a dar comida, e a cuidar de você quando foi crescendo. E bateu também, deu couro. Mas também fez carinho e cuidou dos seus machucados quando você caía da goiabeira. Então, menino, eu exijo RESPEITO por ela, e pela mão que tem segurado a minha por aí: a mão do seu pai.
JUNIOR -
Eu não desrespeitei!
LUA DE CETIM....................................................................................................................................61
CANDÊ -
Desrespeitou sim! Seu pai é muito bom. Bom demais. Por isso que não tem lugar pra ele aqui!
JUNIOR -
Isso não justifica. Ele tá sendo explorado. É uma vítima dessa estrutura social.
CANDÊ -
Já disse que não entendo esse palavreado de discurso. Entendo do duro que eu e ele temos dado. Eu reclamo, xingo, brigo, dou coça nele, mas eu o respeito! Apesar de tudo, nós dois temos catado as pedras que a vida joga e temos feito um muro!
JUNIOR -
Isso não é vida! Isso não é justo!
CANDÊ -
Isso não é comigo, nem com ele, nem com você! É com o mundo! Eu quero a sua ajuda sim. Seu pai tá doente. Tá viciado, e eu sei que vício a gente pode curar. Mas ninguém, nem eu, nem você, tem direito de enfiar o dedo nas feridas que ele tem no coração! Quando você fala todas essas coisaradas que leu nos livros, que aprendeu com os professores, eu fico pensando: será que ele não consegue ver que uma pessoa traz dois sacos nas costas - um de sonho e outro de realidade? ... O meu saco de sonho sempre esteve meio vazio, porque o outro era muito pesado. Mas o seu pai sempre emprestou um pouco do sonho dele, e a gente barganhou com a vida! Por isso estamos casados há vinte e três anos! E por isso vamos continuar brigando e dormindo junto, porque as coisas não podem ser diferentes!
MARISA ENTRA, ANTES QUE JUNIOR POSSA RESPONDER. MARISA -
Boa-noite, dona Candê. Oi, Bira!
JUNIOR -
Marisa, desculpa, mas dá um tempo... tô tendo uma conversa aqui com a minha mãe!
MARISA -
Desculpa... eu vou pro quarto!
CANDÊ -
Não, moça, fica! Eu já falei tudo que tinha pra dizer pro meu filho... Quem sabe você, que é colega de faculdade e estuda que nem ele, possa entender melhor o Junior... Eu sou cavalo véio, que só se acostumou a comer um tipo de espiga de milho. Não adianta mesmo!
CANDÊ SAI, DEIXANDO OS DOIS A SÓS. MARISA -
A barra pesou mais ainda?
JUNIOR -
Muito mais. Acabo de receber outra lavada.
LUA DE CETIM....................................................................................................................................62
MARISA -
Então, vai receber três.
JUNIOR -
Pelo amor de Deus, Marisa você também?
MARISA -
Tô indo prum sítio aqui perto. Fui conversar com o padre Augusto e acertei tudo. As coisas estão muito mais organizadas do que eu pensava. O trabalho deles é ótimo, Bira. O padre está junto com os bóias-frias. Trabalho de campo... Vou ficar mesmo por lá, com eles!
JUNIOR -
Você tá fugindo!
MARISA -
Tô pouco me lixando pro que você ou o pessoal de São Paulo esteja pensando. A teoria pra mim chegou até as tampas. Vou fazer a minha parte de uma outra maneira.
JUNIOR -
Não quero conversar mais nada hoje.
MARISA -
Você é quem sabe. A minha opção tá feita. Vou catar as minhas coisas e dizer obrigado pros seus pais.
JUNIOR -
Marisa, desculpa... Estou com a cabeça quente... Acho que precisamos pensar melhor nisso!
MARISA -
Não tem o que pensar, Bira. Nós viemos até aqui juntos e aqui a gente se separa. Nós dois lutamos pela mesma coisa. Mas eu só posso continuar lutando se confio nas minhas ações.
JUNIOR -
O que vai dizer pra minha mãe?
MARISA -
Que vou para uma fazenda. Com o tempo, pretendo retomar o contato, pois gostei deles. Sua mãe é uma leoa, no melhor sentido da palavra... E seu pai é um passarinho, na acepção mais livre do termo.
JUNIOR -
E nesse zoológico eu não caibo, não é?
MARISA -
Trata de se achar. Você volta pra São Paulo?
JUNIOR -
Tô esperando um contato do Japa!
MARISA -
Eu assumo a minha saída, pode deixar!
MARISA SAI PELA PORTA INTERIOR. TEMPO. A PORTA DA RUA SE ABRE E GUIMA ENTRA, COM UM PACOTE DEBAIXO DO BRAÇO.
LUA DE CETIM....................................................................................................................................63
JUNIOR -
Oi, pai.
GUIMA -
Eu lhe trouxe um corte de brim, ótimo pra fazer uma calça!
JUNIOR -
(APROXIMA-SE DE GUIMA E O ABRAÇA) Desculpa por tudo, pai!
GUIMA -
Que é isso, Junior? Homem não chora!
JUNIOR -
Hoje aprendi que chora sim!
JUNIOR CHORA NO OMBRO DE GUIMA. TEMPO. LUZ CAINDO. CORTA.
CENA 14 CANDÊ ESTÁ ENCERANDO A CASA. QUE ESTÁ TODA DE PERNAS PRO AR. A TELEVISÃO NUM VOLUME ALTO, PRA ENCOBRIR O SOM DA ENCERADEIRA. UMA APRESENTADORA TRANSMITE UM PROGRAMA FEMININO. APRESENT. -
(OFF) E o delicioso suflê de queijo deverá ser acompanhado por uma saladinha fresca, quase sem tempero. Com essa receita, completamos a diária revolucionária, que hoje já conta com milhares de adeptos dos Estados Unidos. As telespectadoras interessadas poderão nos escrever, e receberão inteiramente grátis o folheto completo com todas as instruções do “Emagreça contrabalanceando a refeição”.
CANDÊ TINHA PARADO FRENTE À TELEVISÃO, DE ENCERADEIRA DESLIGADA, OLHANDO PARA A APRESENTADORA. QUANDO ESTA TERMINA, CANDÊ TIRA O SOM E COMEÇA A DISCURSAR. CANDÊ -
Sabe, sua pó-de-arroz, quantos nordestinos morrem de fome por dia? Sabe quantos favelados têm em São Paulo e no Rio de Janeiro? Sabe quanto ganha um bóia-fria que trabalha de sol a sol? E ainda fica falando nessa tal de refeição contra sei lá o quê? Em emagrecer quando tem muito brasileiro precisando engordar? Bem que o meu Junior tem razão! A riqueza tem de ser dividida mesmo! É uma falta de vergonha isso que a senhora está dizendo! Vem aqui passar um dia em Torrinha, que eu levo a senhora lá no Tanquinho e no Lavapés, e a beleza aí vai ver o que é regime bom! Todo mundo magrinho, sem precisar de suflê de queijo e nem de saladinha quase sem tempero! Pouca vergonha!
VIZINHA -
(OFF) Fazendo discurso, dona Candê?
LUA DE CETIM....................................................................................................................................64
CANDÊ -
Ô dona Nicota, por que a senhora não experimenta fazer um suflê de alfafa e uma saladinha de capim pro seu marido?
VIZINHA -
(OFF) O sêo Guima gosta muito, né?
CANDÊ -
VIZINHA -
Desaforada! Vê se se enxerga! E a Neusa Maria, já largou o marido pra fugir com aquele guarda? (OFF) Fuxiqueira!
CANDÊ SAI RINDO DA JANELA. ESTÁ CONTENTE. VAI AO TELEFONE E DISCA PARA ANUNCIADINA. CANDÊ -
Tarde, comadre... Tô aqui encerando a casa... É, a Marisa foi pra uma fazenda aqui perto... Disse que gostou muito da gente... Até daria uma boa nora... Mas precisava deixar de usar tênis fedido... Sabe que eu precisei desinfetar o quarto do Junior?... Ele não apareceu? ... Deve estar ajudando o pai na loja... Andam tão amigos... Sabe, comadre, tô telefonando pelo seguinte: recebi mais encomendas daqueles tapetinhos de retalhos.... Pois é, sobra tanto pano na loja do Guima... Mas sabe o que acontece, Anunciadina? ... Eu NÃO consigo mesmo combinar as cores... Então, queria ver se cê não dava uma mãozinha... Faz dez anos que luto com isso e não aprendi... Ou fica Filha de Maria ou vira Time de Futebol... Como eu vi aquela beleza de xale que cê fez com sobra de lã, achei que podia me dar uma ajuda... Por que não faz uma listinha? ... Peraí, deixa eu pegar um papel e lápis...
CANDÊ DEIXA O TELEFONE E APANHA PEPAL E LÁPIS. VOLTA, FELIZ. CANDÊ -
Vai ditando, Anunciadina.... preto e branco... preto e branco? Mas fica que nem dominó, comadre... Amarelo e vermelho?... Mas fica com cara de doce de abóbora mal feito, camadre... Anunciadina, azul com verde? Pelo amor de Deus, Anunciadina... Rosa e roxo? Comadre, isso é saiote de mulher da zona... Anunciadina... Anun.... Ela desligou!!!! Mas que desaforada!!!! (BATE O TELEFONE) Desaforada! E é pra bater o telefone na minha cara? Depois de vinte e cinco anos de amizade? Ela vai ver! Nunca mais, mas nunca mais mesmo, eu telefono pra ela! Morro seca e dura se telefonar pra ela! Desaforada.
O TELEFONE TOCA NOVAMENTE. CANDÊ VAI AGITADA ATENDER. CANDÊ -
Escuta aqui, sua sirigaita, eu combino as cores do jeito que eu quiser... Como?... Não é a Anunciadina?... Desculpa... Desculpa... Não, o Junior, quer dizer o Bira não tá... Quem
LUA DE CETIM....................................................................................................................................65
quer falar com ele?... Japa?... Japa do quê?... Não sei que horas ele volta... De São Paulo?... Pode deixar... Pode deixar que eu digo... Digo, sêo Japa... Telefona na hora da janta?... A que horas? ... A que horas cê janta, moço? Às seis, é claro, que hora ia de ser?... Passar bem! CANDÊ DESLIGA O TELEFONE. FICA PENSATIVA. DEPOIS DÁ DE OMBROS E CONTINUA A ENCERAR. TRABALHA MAIS UM POUCO E PÁRA DE NOVO. VAI AO TELEFONE E HESITA. SENTA. LEVANTA. VAI AO TELEFONE. DISCA. CANDÊ -
Comadre... não... não... não, comadre... Não telefonei pra brigar não!... Mas comadre... não fiz desfaçatez não!... Tá bom... Tá bom... Da próxima vez, escuto... (NERVOSA) FICA QUIETA UM MINUTINHO, ANUNCIADINA!!!... Eu tô nervosa... Recebi um telefonema esquisito de São Paulo... Eu não... O Junior... Um tal de Japa.... queria falar com ele... Por que tô nervosa? Ora, comadre, o que que o meu filho quer falar com um japonês?... Sei lá... Será?... Será, comadre?... Será mesmo, Anunciadina?... Posso ficar sossegada?... Qualquer coisa, eu telefono de novo. Obrigada! (DESLIGA) (PARA SI) Será que o Junior está montando uma quitanda? A comadre está mais biruta que o Junior, acho!
VOLTA A TRABALHAR. TEMPO. JUNIOR ENTRA PELA PORTA DA FRENTE. JUNIOR -
Oi, mãe. Dourando o assoalho?
CANDÊ -
Telefonaram procê.
JUNIOR -
Pra mim?
CANDÊ -
De São Paulo.
JUNIOR -
(NERVOSO) O que disseram?
CANDÊ -
Nada, você não estava.
JUNIOR -
Mas não deixaram recado?
CANDÊ -
Deixaram. O sêo Japa vai telefonar de novo na hora da janta.
JUNIOR-
Só isso?
CANDÊ -
O que mais ele ia dizer? Não me conhece!
JUNIOR -
Tá certo... Liga na hora do jantar?
LUA DE CETIM....................................................................................................................................66
CANDÊ -
Telefona na hora da janta!
JUNIOR VAI ENTRAR PARA O QUARTO CANDÊ PERGUNTA. CANDÊ -
Junior, quanto tá custando um maço de agrião lá em São Paulo?
JUNIOR -
E eu sei? Por que isso agora?
CANDÊ -
Nada...
JUNIOR ENTRA PARA O QUARTO. CANDÊ CORRE PARA O TELEFONE. DISCA. CANDÊ -
(AO TELEFONE, FALANDO BAIXO) Não é quitanda... já vi que não é quitanda, comadre... O quê? Seixo o quê?... Ah, aquele dos livrinhos?... Será?... Mas ele nunca foi religioso... Vou ver... Tô calma...
CANDÊ DESLIGA QUANDO VÊ JUNIOR VOLTANDO. JUNIOR -
A senhora não viu um livro que deixei por aqui?
CANDÊ -
Um tudo cheio de risquinho assim, que nem coisa de japonês?
JUNIOR -
Mãe, a senhora tá muito louca hoje. O que aconteceu?
CANDÊ -
Nada, nada... Cê conhece o Seixo não sei o quê?
JUNIOR -
Seicho no iê? Sei que existe mas não sei o que é. Por quê?
CANDÊ -
Nada... A comadre que queria saber...
JUNIOR -
A senhora viu passarinho verde hoje...
JUNIOR ENTRA DE NOVO. CANDÊ PENSA MAIS UM POUCO. DEPOIS DÁ DE OMBROS. CONTINUA ARRUMANDO A CASA. LIGA O RÁDIO, QUE TOCA UM ROCK . CANDÊ DESLIGA E GRITA. CANDÊ -
Música de capitalista!
JUNIOR ENFIA A CARA, RINDO. JUNIOR -
Dona Candê!!!
CANDÊ -
Eu quis dizer música que toca na capital.
CORTA.
LUA DE CETIM....................................................................................................................................67
CENA 15 HORA DO JANTAR. A MESA POSTA. GUIMA ESTÁ SENTADO OLHANDO A TELEVISÃO, ESPERANDO O NOTICIÁRIO. CANDÊ ENTRA E SAI TRAZENDO AS COISAS DO JANTAR. JUNIOR LÊ UM JORNAL. CANDÊ -
Vem jantar, Junior. A mandioca não ficou boa, tava passada. Mas o que não mata, engorda. Vai assim mesmo!
GUIMA -
Fala baixo, Candê, que vai começar o noticiário.
CANDÊ -
Ainda demora. Essa novela não acaba nunca!
JUNIOR -
Não tem nada de importante no noticiário, pai. A censura corta tudo. Só passa o que é bom pra ditadura!
GUIMA -
Não é assim, filho... Tem esporte, tem horóscopo, entrevista, previsão do tempo...
JUNIOR -
GUIMA -
JUNIOR -
Tudo o que pode ser dito. Os romanos chamavam isso de pão e circo. Ninguém reclamava enquanto houvesse comida e divertimento. Só que aqui nem pão tem. Só o circo. E circo censurado! Vocês precisam ter paciência. As coisas mudam. É só uma questão de tempo. Eu não vou perder a minha geração esperando.
GUIMA -
Veja eu, filho... quanto tempo demorei até ter alguma coisa própria? Quanto tempo de luta, de sacrifício? Pra deixar alguma coisa pra você e pra Candelária...
JUNIOR FICA MEIO CONSTRANGIDO E DESCONVERSA. JUNIOR -
Não vai começar esse noticiário?
GUIMA -
Tem mais um pedaço da novela...
NESSE INSTANTE, ENTRA VOZ OFF DE LOCUTOR. LOCUTOR -
(OFF) O plantão do Jornal Nacional informa: após combate travado com as forças da Segurança Nacional, morreu baleado na Bahia o ex-capitão Carlos Lamarca, principal nome da Vanguarda Popular Revolucionária!
JUNIOR DEIXA CAIR O JORNAL.
LUA DE CETIM....................................................................................................................................68
JUNIOR -
O quê? O quê? O quê?
CANDÊ -
(ENTRANDO) Deu plantão?
GUIMA -
Mataram o tal do Lamarca lá na Bahia.
CANDÊ -
O terrorista?
GUIMA -
É. Parece que têve tiroteio.
JUNIOR -
(ABAIXANDO A CABEÇA) Assassinos, assassinos!
NÃO CONSEGUE FALAR MAIS NADA. OS PAIS SE ENTREOLHAM. GUIMA -
Filho?
O TELEFONE TOCA. GUIMA DESLIGA A TELEVISÃO E ATENDE. GUIMA -
Alô... É... Um momento... (PRA JUNIOR) É pra você, meu filho!
JUNIOR LEVANTA-SE AUTOMATICAMENTE. PEGA O TELEFONE. CANDÊ ATENTA. JUNIOR -
(AO TELEFONE) Eu... Eu fiquei sabendo agora... pela tevê... Tá... Amanhã... Mesma hora mesmo lugar... (DESLIGA PÁLIDO)
CANDÊ -
Quem era? Quem era?
JUNIOR -
Um amigo!
CANDÊ -
O tal do Japa?
JUNIOR -
Não, mãe!
FICA OLHANDO PARA ELA E ABRE A PORTA. CANDÊ -
Junior, não vai sair. Tá na hora da janta!
JUNIOR -
Não tô com fome!
GUIMA -
Mas, filho, o que aconteceu?
JUNIOR -
Nada!
JUNIOR SAI, BATENDO A PORTA. GUIMA E CANDÊ SE ENTREOLHAM, SEM ENTENDER.
LUA DE CETIM....................................................................................................................................69
CANDÊ GUIMA -
Vem jantar, Guima! Tô indo, mas tô preocupado! (SENTANDO) Acho que foi a morte do homem! Mas o que o Junior tem a ver com isso?
CANDÊ -
(SENTANDO) Tomara que nada!
GUIMA -
Ficou muito triste... É que ele nunca gostou de morto!
CANDÊ -
Esse é pior, Guima!
GUIMA -
O que cê quer dizer, Candê?
CANDÊ -
Acho que o nosso filho morreu um pouco hoje!
GUIMA -
Que é isso, Candê?
CANDÊ -
Quer mais feijão, Guima?
GUIMA -
Candê, acho que amanhã vou realizar um grande negócio. Você conhece o Amâncio, aquele das Casas Vermelhas... Pois é... Hoje ele me procurou pra dizer que tá interessado numa sociedade comigo... Tecidos e armarinhos... Ficamos de aparecer amanhã no Café do Ponto, pra resolver essa história. Pode ser que seja bom, pois com tudo o que tô montando, uma seção de armarinhos pode ficar bem... Mas eu gostaria de conversar com o Junior amanhã... Você não tá prestando atenção...
CANDÊ -
(QUE COME EM SILÊNCIO) Tô sim, Guima... Só me distraí um pouco... O que o Amâncio disse?
GUIMA -
Pois é, se eu quiser, se eu topar, a gente pode começar logo. Ele tem capital. Tem inclusive um certo estoque... Candê, o que tá acontecendo?
CANDÊ -
(LEVANTANDO-SE) Nada, tô sem fome. Acho que foi um pedaço de cuscuz que a Nicota mandou que me fez mal!
GUIMA -
Eu digo procê não aceitar nada daquela jararaca!
CANDÊ -
Janta você. Vou terminar um tapetinho.
GUIMA -
CANDÊ -
Você e seus tapetes... Já disse que pode parar de trabalhar. Mas você insiste... É... pra que fazer tapete de retalho, né, Guima? Eu nunca sei combinar as cores mesmo! (TRISTE) Acho que acabei de perder mais um fio da meada!
LUA DE CETIM....................................................................................................................................70
CORTA. CENA 16 CANDÊ OUVE RÁDIO. QUASE NOITE. GUIMA À MESA, ESCREVENDO. GUIMA -
Ué, desistiu da televisão hoje?
CANDÊ -
Deu vontade de escutar rádio. Fazia tempo. Cansei daquela mulherada tudo com cara igual. Falando, falando... E as novelas tão uma xaropada... Não saem da mesma coisa...
GUIMA -
Eu sempre preferi rádio... Mas você quis tanto essa televisão... Por mim, preferia mesmo que tivessem continuado aqueles programas do nosso tempo...
CANDÊ -
O que cê tá fazendo?
GUIMA -
Planos... planos... Se eu continuar do jeito que estou, logo, logo... poderemos ir pra Poços de Caldas... Você sempre quis, não é, Candê?
CANDÊ -
Será que Poços de Caldas ainda existe?
GUIMA -
Que é isso, Candê? Desanimada com a vida?
CANDÊ -
Hoje já faz um mês que o Junior foi embora e nem notícia.
GUIMA -
Deve estar lá paquerando as moças da faculdade.
CANDÊ -
Onde cê aprendeu a falar assim?
GUIMA -
No Café. Quando uma moça passa, a marmanjada diz que só tá na paquera.
CANDÊ -
Que palavreado!
GUIMA -
E o tapete?
CANDÊ -
Tentei usar a listinha que a comadre Anunciadina me deu, mas ficou tudo uma porcaria. Acho que vou morrer sem conseguir combinar direito essas cores!
O RÁDIO COMEÇA A TOCAR “DEZ ANOS”. CANDÊ -
Escuta essa, Guima. É do nosso tempo.
GUIMA -
Eu tô só aqui, na sua paquera!
LUA DE CETIM....................................................................................................................................71
CANDÊ -
Que é isso, Guima?
GUIMA SE LEVANTA. CHEGA ATÉ ELA. GUIMA -
Quer dançar, Candê?
CANDÊ -
Guima, cê ficou louco? A gente tá velho!
GUIMA -
Imagina, Candê, vem... Mas vem logo que daqui a pouco acaba a música porque começa a Hora do Brasil!
ELA PROTESTA, MAS GUIMA CONSEGUE. DANÇAM PELA SALA. GUIMA -
Você continua com aquele cheirinho bom de terra molhada!
CANDÊ -
Guima, pára de indecência! Você sabe muito bem que eu não sou mais capaz de...
GUIMA -
Nem de um namorinho, Candê? Lembra quando a gente dançou pela primeira vez? Foi na casa da Anunciadina!
CANDÊ -
Se me lembro! Eu era uma caipirona! Não sabia nem como mexer os pés!
GUIMA -
Mas depois você se soltou!
CANDÊ -
Também, cê era um pé-de-valsa!
GUIMA -
Eu fiquei sentido seu corpo grudado no meu, e morri de desejo!
CANDÊ -
Que indecência, Guima! Você nunca me disse isso!
GUIMA -
Agora já pode. Já faz vinte e três anos...
CANDÊ -
Vinte e três! Lembra daquela vez que a gente ficou vendo o luar lá na porteira? Eu morri de medo que o pai me pegasse. Se ele visse a gente, era surra de marmelo em mim, e dois tiros de trabuco em você!
GUIMA -
O velho João de Souza não era de brincadeira. Quando fui pedir sua mão, depois dos dez anos de namoro, ele ainda me chamou de “senhor”.
CANDÊ -
E você tremia que nem vara verde!
LUA DE CETIM....................................................................................................................................72
GUIMA -
Era emoção!
CANDÊ -
Mentira!
GUIMA -
Parecia que era a primeira vez que eu via você. E a sua mãe e seus irmãos me olhando, me olhando... Parecia que queriam me comer...
CANDÊ -
Eles nunca acreditaram que a gente se casasse!
GUIMA -
Por quê?
CANDÊ -
Por causa do meu gênio. Diziam que você não aguentava dois dias. Que ia pegar suas trouxas e fugir de casa, com a primeira zinha que aparecesse. E eu tinha medo...
GUIMA -
Tinha mesmo, Candê?
CANDÊ -
Você nunca fez as coisas com outra, né, Guima?
GUIMA -
Depois de casado, não!
CANDÊ -
E antes?
GUIMA -
Eu precisava aliviar, Candê!
CANDÊ -
Safado!
GUIMA -
Me dá um beijo?
CANDÊ -
Guima, que é isso?
OS DOIS PARAM DE DANÇAR. BEIJAM-SE LEVEMENTE. GUIMA -
Vem se sentar aqui, do meu lado, bem como antigamente. Faz de conta que tem um caramanchão de primavera e nós dois estamos de mãos dadas!
OS DOIS SE SENTAM. O RÁDIO TOCA MÚSICA BEM ROMÂNTICA. CANDÊ -
Que é isso? Você nunca namorou debaixo de caramanchão de primavera... Sempre foi atrás do paiol!
GUIMA -
Você sempre estraga tudo, não é, Candê? Eu estava só imaginando. Um caramanchão de primavera, um coqueiro ao lado, um caminhozinho, e lá no fundo uma casa, soltando fumaça, que nem folhinha da tecelagem Santa Marta Fabril.
LUA DE CETIM....................................................................................................................................73
CANDÊ -
(QUASE QUE ENTRANDO NO SONHO) Que bonito!
GUIMA -
E bastante sabiá cantando, enquanto o sol vai caindo e a noite vem chegando cheia de estrela! Cheinha de estrela! Aí, aponto uma pra você...
CANDÊ -
Não faz isso, que dá verruga no dedo!
GUIMA -
Ah, Candê, estragou outra vez!
CANDÊ -
Desculpa, Guima, acho que ainda não aprendi a sonhar direito. É que nem a história dos tapetinhos. Nunca consegui combinar as cores. Acho que só quem sonha consegue.
GUIMA -
CANDÊ GUIMA -
Fecha os olhos e imagina que a gente tá lá em Poços de Caldas. Eu alugo uma charretinha e a gente vai passear! Eu não tenho roupa de grã-fina! Você comprou uma. Um vestido de seda branca, bem fina, com bastante queda. Já é a hora da Ave-Maria...
CANDÊ -
Daqui a pouco vai ser a Hora do Brasil!
GUIMA -
Sonha, Candê, sonha! Nós dois vamos indo e lá no fundo tem uma árvore com um banco. Nós sentamos e ficamos prestando atenção no mundo. As cigarras cantam, os grilos, os passarinhos, tudo canta. Nós dois encostamos a cabeça e ficamos quietinhos.
CANDÊ -
Que bonito, Guima! Nunca tinha ouvido cê falar assim! (SUBITAMENTE) Estou sentido uma dorzinha bem aqui do lado, Guima!
GUIMA -
É emoção, Candê!
CANDÊ -
Uma dorzinha que parece tristeza... Uma coisa triste que vai subindo, Guima... Uma angústia funda, funda, que nem eu sentia quando era menininha e olhava praquele pasto sem fim, bem na hora da noitinha... Que nem agora... Quando a gente não sabe mais quem manda no céu... se o Sol ou se a Lua!... Guima... é um apertão... Cheio... de ... medo.... Tô com medo, Guima... Com medo... com medo...Guima...
CANDÊ FECHA OS OLHOS E MORRE ABRAÇADA A ELE. GUIMA A PRINCÍPIO NÃO PERCEBE. DEPOIS, COMEÇA A SACUDIR CANDÊ.
LUA DE CETIM....................................................................................................................................74
GUIMA -
Candê... Candê... Que é isso, Candê??? Não brinca, mulher! Não faça isso, Candê!!!
TOMA A MÃO DELA E PERCEBE QUE ESTÁ MORTA. COMEÇA A CHORAR BAIXINHO. O RÁDIO INTERROMPE A MÚSICA. LOCUTOR -
(OFF) São dezenove horas em Brasília. Neste momento, forma-se a cadeia nacional para a apresentação da Voz do Brasil.
ENTRA A “GRANDE FANTASIA TRIUNFAL SOBRE O HINO NACIONAL BRASILEIRO”, DE GOTTSCHALK, AINDA MEIO BAIXO. GUIMA -
(DESESPERADO) Por que isso, Candê? Eu dei o que você queria! Tudo o que você queria! O conjunto de curvim, o telefone, a televisão! Que é isso, Candê? Não seja ruim! Você tá indo embora! Você jurou que era amor pra sempre, Candê. A gente tem que ir pra Poços de Caldas, a gente tem que cuidar do Junior, a gente tem que arrumar a “Admirada”... A Admirada Dona Candelária Souza Guimarães! Não faça isso, Candê... Candê...
LEVANTA-SE FURIOSO. A “GRANDE FANTASIA AUMENTANDO DE VOLUME. GUIMA ARRANCA O TELEFONE E COM ELE QUEBRA A TELEVISÃO. TIRA UM CANIVETE DO BOLSO E COMEÇA A RASGAR O SOFÁ DE CURVIM. GUIMA -
(ALUCINADO) Não faça isso, Candê! Não faça isso! Nunca mais dou nada pra você! Nem mesmo o meu coração!!
GUIMA CAI CHORANDO SOBRE CANDÊ MORTA. A “GRANDE FANTASIA TRIUNFAL SOBRE O HINO NACIONAL BRASILEIRO” EXPLODE COM TUDO, TOMANDO DE TODA A CENA. GUIMA CHORA SOBRE O CORPO DE CANDÊ . LUZ VAI CAINDO EM RESISTÊNCIA. CORTA.
FIM DO II ATO
LUA DE CETIM....................................................................................................................................75
III ATO
O cenário é o mesmo do ato anterior. Mas a casa está em profundo decadência. Tudo empoeirado, o sofá de curvim rasgado pela fúria de Guima. Não há mais telefone e a televisão está arrebentada. Velhice. Como se a casa quase não tivesse sido mais aberta. Cheiro de mofo. O rádio, no entanto, está intacto. Alguns retalhos dos tapetes de Candelária, muito desbotados, empoeirados, estão jogados por ali.
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A sonoplastia volta a ser feita pelo rádio. A ação do III ATO se passa no início de 1981.
CENA 17 MANHÃ. A CASA ESTÁ DESERTA. OUVEM-SE BATIDAS À PORTA DA FRENTE. VOZ OFF DE MARISA, GRITANDO: MARISA -
(OFF) Sêo Guima, sêo Guima, sou eu. Preciso entrar e falar com o senhor!
TEMPO. NINGUÉM RESPONDE OU APARECE. MARISA INSISTE. MARISA -
(OFF) Sêo Guima, preciso entrar! Tenho um recado pro senhor!
GUIMA VEM PARA A SALA PELA PORTA INTERIOR. ESTÁ DESFIGURADO PELA BEBIDA E TEM UM CERTO AR DE ALUCINADO. TENTA SE VESTIR COM ALGUM APRUMO. MAS AS ROUPAS SÃO ANTIGAS, SURRADAS E EMPOEIRADAS. GUIMA -
(JUNTO À PORTA, DESCONFIADO) Quem é?
MARISA -
(OFF) Sou eu, a Marisa!
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GUIMA -
A faxineira do padre?
MARISA -
(SE SEGURANDO) É... a faxineira do padre.
GUIMA -
Que você quer?
MARISA -
Entrar, sêo Guima! Por favor, é importante!
GUIMA ABRE A PORTA E MARISA ENTRA, MEIO OFEGANTE. MARISA -
Oi, sêo Guima... Bom-dia...
GUIMA -
O que é? Fala rápido, pois eu tenho de sair. Tenho que ir buscar uma partida de tecido que chegou pela Sorocabana. E ainda tenho que passar pra falar com o Antenor.
MARISA -
O sêo Antenor morreu no ano passado, sêo Guima!
GUIMA -
Que é isso, menina? Onde você tá com a cabeça? O Antenor quer falar comigo hoje, a respeito de um financiamento... Foi pra falar bobagem que você veio aqui?
MARISA -
Não, sêo Guima... é outra coisa...
GUIMA -
Hoje não é sábado. Não é dia de faxina. Eu só pago uma faxina por semana...
MARISA -
Sêo Guima, o padre Augusto recebeu um telefonema hoje... Do Junior... Ele chegou! Tá vindo pra cá... Ele pediu pra avisar o senhor!
GUIMA -
Quem?
MARISA -
O Junior, sêo Guima. Ele chegou... vem vindo pra Torrinha pra ver o senhor!
GUIMA -
Você tá louca, menina... O Junior tá estudando no estrangeiro.
MARISA -
Não tá mais. Ele tá voltando...
GUIMA -
Quem contou?
MARISA -
Já disse que ele telefonou pro padre Augusto.
GUIMA -
Por que não telefonou pra cá? Ele sabe o número!
LUA DE CETIM....................................................................................................................................78
MARISA -
Aqui não tem mais telefone, sêo Guima. O senhor não se lembra?
GUIMA -
Telefonasse pra “Admirada”.
MARISA -
A “Admirada” não existe mais, sêo Guima.
GUIMA -
Você não sabe de nada, moça. Que não existe? Não sabe de nada! Ontem, dois homens das Casas Pernambucanas tentaram arrombar essa porta aí, pra roubar o estoque!
MARISA -
Sêo Guima...
GUIMA -
Forçaram a porta, tentaram usar pé-de-cabra. Mas eu escondi muito bem escondido todo o estoque, e eles não vão conseguir não. Estão pensando o quê? Que eu trabalho pra sustentar vagabundo?
MARISA -
E o Junior, sêo Guima?
GUIMA -
Que Junior? O Junior está na França, estudando. Meu filho está estudando no estrangeiro, pra ficar conhecendo todas as lojas de Paris, e depois assumir a gerência da “Admirada”.... Meu filho é muito inteligente... Ele é um líder, sabia?
MARISA -
Sabia. Mas ele está vindo pra cá. Então, é melhor a gente dar um jeito aqui na casa... tirar o pó... arrumar alguma coisa pra comer... Trocar a roupa da cama, não é, sêo Guima?
GUIMA -
(ABSORTO) Meu filho vai voltar sabendo tudo de tecidos... Os tecidos franceses ainda são os melhores do mundo... Muito melhores que esses nylons e coisa e tal que têm por aí...
MARISA -
O senhor precisa fazer a barba, tomar um banho, trocar de roupa... Acho que não é bom que o Junior veja que o senhor tá meio descuidado...
GUIMA -
Quem tá descuidado? Quem? Você acha que um comerciante digno, que respeita a freguesia, anda sem paletó e gravata? Eu não sou desses modernos não, menina, que ficam em mangas de camisa... Minha loja é de respeito... A Candê não deixa que eu pareça desalinhado... Aliás eu já disse pra Candê que é uma bobagem ela engomar tanto meus colarinhos e meus punhos... Mas ela insiste... Diz que roupa tem que ser sempre limpa e bem cuidada... Ela tá meio cansada... Por isso que mandei que ela fosse pra Poços de Caldas... Ela está lá descansando... Afinal precisa... Ela fez muito tapete na vida!
LUA DE CETIM....................................................................................................................................79
MARISA -
A dona Candelária está morta, sêo Guima! Faz dez anos que ela morreu... foi em 1971.
GUIMA -
(NÃO OUVINDO) Eu já disse que ela não precisa trabalhar tanto.... A loja tá crescendo... Está indo muito bem... Mas ela insiste... Ontem mesmo, nós estávamos conversando ali embaixo daquele caramanchão de primavera e eu toquei nesse assunto com ela... Ficou uma onça! Não quer nem ouvir falar em descansar. Foi uma luta fazer com que aceitasse essa viagem pra Poços.
MARISA -
(CHEGANDO PERTO DELE, SENTE O CHEIRO) O senhor andou bebendo de novo!
GUIMA -
Quem é você pra se meter na minha vida?
MARISA -
O senhor prometeu pro doutor João que não ia mais beber.
GUIMA -
Eu não bebi!
MARISA -
Tô sentindo o cheiro, sêo Guima! Não minta!
GUIMA -
(DESCULPANDO-SE) Foi só um golinho... um aperitivinho... a gente não pode deixar de aceitar, não é?
MARISA -
(DURONA) O senhor não pode beber, sêo Guima! Não pode, senão acaba morrendo!
GUIMA -
(COMO UMA CRIANÇA) Ah, moça, eu não quero morrer... não... Eu preciso trabalhar ainda... pra deixar a Candelária e o Junior bem de vida...
MARISA -
(ENTERNECIDA, PUXANDO GUIMA PELA MÃO ATÉ O SOFÁ) O senhor não morre não, sêo Guima. O doutor João diz que o senhor vai ficar bom. Mas tem de ajudar, não é? Cada vez que o senhor bebe, a saúde piora!
GUIMA -
(ASSUSTADO AINDA) Nem um golinho?
MARISA -
Nem um golinho, sêo Guima! Se não, não adianta! O senhor piora tudo de novo!
GUIMA -
Você não vai contar pra Candelária, não é?
MARISA -
Não, sêo Guima, não vou!
LUA DE CETIM....................................................................................................................................80
GUIMA -
Nem pro Junior?
MARISA -
Nem pro Junior. Quando ele chegar, vai encontrar o pai dele em ótimo estado . Limpinho, arrumadinho, bem alimentado, bem vestidinho... com a casa bem/
GUIMA -
(CORTA COMO QUE RECOBRANDO A LUCIDEZ) Eu não quero ver esse moleque!
MARISA -
Que é isso, sêo Guima? Ele é seu filho, vem vindo pra cuidar do senhor!
GUIMA -
Eu não preciso! Nunca precisei! Ele fugiu! A vida inteira só fugiu... Sempre que precisei dele, não estava... E me arranjei sozinho... Por que ele vem agora? Por que não estava aqui quando...
MARISA -
Quando?
GUIMA HESITA EM RESPONDER, EM ENCARAR A REALIDADE. MARISA -
Quando o quê, sêo Guima?
GUIMA -
Quando a mãe dele morreu! Por quê? Por quê?
MARISA -
O senhor sabe, sêo Guima, que ele precisou fugir do país. Ele escreveu pro senhor.
GUIMA -
Fugiu por quê? Ele fez alguma coisa errada?
MARISA -
Não, sêo Guima. O senhor sabe que não. Foi problema de política. O senhor entendeu tudo, naquela época. Será que tá se esquecendo disso?
GUIMA -
EU NUNCA ME ESQUEÇO DE NADA! ... De nada... Nem do bando de feridas que meu filho fez em meu coração... Ele não confiava em mim.... Falava que eu só sonhava!...Que eu era incapaz de fazer qualquer coisa na vida! .... Mas eu vou mostrar pra ele agora quem é Alcebíades Antonio Guimarães... Vou mostrar quem é o pai dele!... Pena que a Candelária esteja em Poços de Caldas... Outro dia eu li uma frase num caminhão que gostaria muito de dizer agora... Posso?
MARISA -
Que frase, sêo Guima?
LUA DE CETIM....................................................................................................................................81
GUIMA -
(ORGULHOSO) Que Deus dê forças ao meu inimigo, para que ele possa aplaudir em pé a minha vitória!
MARISA -
O Junior não é seu inimigo!
GUIMA -
Já foi. Agora ele vai ter de se render ao meu império.
MARISA -
Tá, então vamos tomar um banho, sêo Guima...
GUIMA -
Escute aqui, moça... Eu pago pra você ser faxineira, que nem na casa do padre. E isso só enquanto a Candelária está viajando. Não me venha com intimidades não...
MARISA -
(RINDO) Pode deixar, sêo Guima... Eu me ponho no meu lugar!
GUIMA -
Acho bom!... A que horas ele chega?
MARISA -
À noitinha!
GUIMA -
É uma pena. Nessa hora eu tenho um encontro com o Antenor!
OS DOIS SAEM PELA PORTA INTERNA. OUVE-SE GUIMA QUE CANTA “DEZ ANOS”. TEMPO. LUZ EM RESISTÊNCIA. CORTA.
CENA 18 NOITINHA. A CASA ESTÁ COM UM ASPECTO UM POUCO MELHOR. ESTÁ DESERTA. JUNIOR ENTRA, ACOMPANHADO POR MARISA. TRAZ UMA PEQUENA MALA.
JUNIOR MARISA -
Que barra! Até que está um pouco melhor hoje! Seu pai têve uma certa preocupação com a sua chegada, Bira!
JUNIOR -
(OLHANDO À VOLTA) Meu Deus, é inacreditável! A última vez que estive aqui... era tudo tão diferente... tão cuidado... tão arrumado...
MARISA -
(FRIA) Eu faço o que posso, Bira!
JUNIOR -
Ô Marisa, me desculpa! (ABRAÇANDO-A) Eu sei que você tem sido a maior força... Mas é um choque... é um choque muito grande encontrar a minha casa desse jeito... Uma casa que sempre foi tão gostosa, tão acolhedora...
LUA DE CETIM....................................................................................................................................82
MARISA -
JUNIOR -
Eu sei, Bira. Mas, pra mim, o choque não é tão grande... Estive o tempo todo aqui. Vi o filme desde o começo. Vou ter que ter uma cabeça de ferro pra aguentar toda a história!
MARISA -
Vou fazer um café bem forte como você gosta!
JUNIOR -
Será que tem pó de café na casa?
MARISA -
Comprei algumas coisas hoje. Espera um pouco.
MARISA SAI PELA PORTA INTERIOR. JUNIOR ANDA PELA CASA, EXAMINANDO TUDO. SENTA-SE NO SOFÁ. ACHA OS PANINHOS DE CANDÊ. LEVA-OS EMOCIONADO AO ROSTO. CHEIRA-OS. TEMPO. MARISA VOLTA. JUNIOR SE DIRIGE A ELA, SEM ENCARÁ-LA. JUNIOR -
Os retalhos da dona Candelária! Ainda estão aqui...
MARISA -
Seu pai nunca deixou jogar fora. Diz que ela vai voltar de Poços de Caldas pra terminar o tapete...
JUNIOR -
Dona Candelária... Lutou a vida toda pra saber como combinar as cores... Os paninhos ainda têm seu cheiro: uma mistura de alho com colônia Rastro!
MARISA JUNIOR -
Você não pode entrar em parafuso! Não vou entrar! Já estou!
MARISA CHEGA-SE A ELE. ACARICIA SEUS CABELOS. JUNIOR -
Ela era muito mais forte que nós dois juntos!
MARISA -
Sua mãe sempre foi uma grande lutadora. Só que nunca entendeu onde estava o inimigo. (EMENDANDO) Deixa eu buscar o café!
MARISA VAI PARA O INTERIOR DA CASA. JUNIOR REFESTELA-SE NO SOFÁ. ACENDE UM CIGARRO. TEMPO. MARISA VOLTA COM AS XÍCARAS. JUNIOR -
Como você está?
MARISA -
A cada dia que passa, fica mais difícil enxergar a gente naquela moldura de dez anos atrás... Aconteceu muita coisa... passou muito tempo...
LUA DE CETIM....................................................................................................................................83
JUNIOR -
Amargura?
MARISA -
Não, acontece que a imagem que você guarda de mim é a de uma estudante de Comunicações que um dia entrou pro Movimento Estudantil, não aguentou a barra da luta armada, veio pro interior e acabou se transformando numa mulher igualzinha a milhares que existem no interior de São Paulo. Deve te chocar!
JUNIOR -
É você quem tá dizendo isso!
MARISA -
E é a verdade! Mas eu não me arrependo de nada... Eu fiquei aqui. De um jeito ou de outro, eu fiquei aqui. E não foi fácil. A barra pesou muito. Não estou te culpando não... Nem me justificando... Foi o que aconteceu!
JUNIOR NÃO RESPONDE. PEGA O ESTILINGUE E ACERTA NA JANELA. JUNIOR -
Meu pai vai demorar?
MARISA -
Não tenho idéia... Nem ele deve ter idéia...
JUNIOR -
(MAL SE SEGURANDO) Do que ele tá vivendo?
MARISA -
Conseguimos uma aposentadoria pelo INPS, por invalidez.
JUNIOR -
Mas eu mandava dinheiro... Dava duro pra isso!
MARISA -
Ele nunca aceitou o seu dinheiro... Dava a sua grana pra outras pessoas... Pros pobres, pros mendigos, pros moleques de rua... Ele sempre se sentiu profundamente magoado com a sua ausência. Diz que quando mais precisou do filho, ele não estava!
JUNIOR -
Você sabe que não é verdade! Marisa, eu nunca teria caído fora, deixado os dois aqui, se as coisas não tivessem se tornado tão terríveis!
MARISA -
Mas, com a anistia, por que você não voltou? Ainda esperou dois anos!
JUNIOR -
Eu me cobrei isso mil vezes, e não conseguia achar a resposta. Até que um dia eu tive a visão clara das coisas: eu era um homem de trinta e um anos, que perdera a própria identidade! Eu era um estrangeiro para mim mesmo! Foi preciso que se passassem dez anos para que, em meio a um inverno parisiense fodido, eu me visse assim, despedaçado,
LUA DE CETIM....................................................................................................................................84
quebrado... arrebentado!... E, depois, visse a única possibilidade de reatar o fio da meada, refazendo toda a minha trajetória!... Até achar novamente o ponto onde aconteceu o estrangulamento! ... Desfazer o nó e tentar... tentar recomeçar... E sabe qual a visão que tive de tudo? MARISA -
Não.
JUNIOR -
A mais prosaica e, ao mesmo tempo, a mais emocionante das minhas lembranças de infância: os tapetinhos de retalho de dona Candelária! Na verdade, eu também estava lutando para aprender a combinar as cores! Só que as minhas cores eram os meus pedaços de vida, que deixara cair por aí afora! Foi quando a capa do medo se desprendeu de mim, e resolvi vir pelo meu caminho de volta... catando os caquinhos!
MARISA -
(PROFUNDAMENTE EMOCIONADA) Bira, você precisa descansar um pouco! Por que não se deita?
JUNIOR -
Descanso aqui mesmo, enquanto espero meu pai!
MARISA -
Você quer que eu fique?
JUNIOR -
Não, Marisa... essa eu preciso enfrentar sozinho! Muito, muito obrigado... por tudo!
MARISA SAI. JUNIOR ACENDE OUTRO CIGARRO. LIGA O RÁDIO. ENTRA “CIRCENSE, DE EGBERTO GISMONTI. JUNIOR OLHA INTENSAMENTE PARA OS RETALHOS DE CANDELÁRIA. CHORA. CORTA.
CENA 19 MADRUGADA. JUNIOR DORMIU NO SOFÁ, EM MEIO AOS RETALHOS. TEMPO. GUIMA CHEGA, BÊBADO. ENTRA E NÃO NOTA O FILHO. HÁ O BARULHO DA ESTÁTICA DO RÁDIO, QUE PONTUA A CENA TODA, COMO UM INCÔMODO. GUIMA -
Quem botou esse degrau aqui? Não tinha essa porcaria de degrau!... Acho que foi a faxineira... Ela sempre mexe nas minhas coisas... é inxerida essa moça... Muito inxerida...
VAI ATÉ A MESA DA COPA. MEXE EM ALGUMAS COISAS. DEPOIS ENTRA NA COZINHA E SAI DE LÁ COM UMA GARRAFA DE CACHAÇA. GUIMA -
Mas nisto ela não mexeu!... Ninguém sabe onde escondo... Eles tão querendo me proibir até de tomar um aperitivinho... Mas a branquinha tá lá... no meu esconderijo... atrás do tanque!
LUA DE CETIM....................................................................................................................................85
SERVE-SE DE UM POUCO DE PINGA. DÁ UM GOLINHO. ARREPIA. GUIMA -
Essa é daquela que matou o guarda! Não, matou o guarda, o pai do guarda, a mãe do guarda, a irmã do guarda... a família inteira do guarda! Mas é das boas! E ainda querem me proibir de tomar! Ainda bem que a Candê tá em Poços e não tá vendo!
VAI DE NOVO PARA O INTERIOR DA CASA E VOLTA TRAZENDO UMA PAPELADA TODA AMARELADA. SENTA-SE À MESA. GUIMA -
(MEXENDO COM OS PAPÉIS) Preciso fazer essas contas... É tanta coisa! O Antenor me disse que só dá o empréstimo se eu fizer o levantamento de todo o estoque... e do ativo e do passivo... e toda a contabilidade do caixa... O estoque... Preciso ver se não roubaram o estoque!
VAI PARA O INTERIOR DA CASA E VOLTA COM DUAS PEÇAS ROTAS DE SARJA E CHITA. PÕE SOBRE O CHÃO. GUIMA -
(SATISFEITO) Tá aqui, sêo Guima.... Vamos medir? Vamos ver se confere?
COMEÇA, COM DIFICULTADE, A DESENROLAR UMA DAS PEÇAS, QUE SOLTA MUITA POEIRA. A PEÇA CAI DE SUA MÃO. JUNIOR ACORDA COM O BARULHO. DESLIGA O RÁDIO. JUNIOR -
Pai?
GUIMA -
Quem tá aí?
JUNIOR -
Sou eu pai, o Junior!
GUIMA -
Não é o ladrão das Pernambucanas?
JUNIOR -
Sou eu, pai!
LEVANTA-SE E VEM NA DIREÇÃO DE GUIMA. GUIMA -
(AUTORITÁRIO) Não atrapalha que tô trabalhando!
JUNIOR -
Pai, eu ...
GUIMA VAI LEVANTAR DE NOVO A PEÇA E DESPENCA COM ELA NO CHÃO. JUNIOR CORRE PARA ELE. ABRAÇA-O. GUIMA -
Quem tá rodando o mundo, filho? Quem?
JUNIOR -
Eu não sei! Não sei, pai... não sei...
LUA DE CETIM....................................................................................................................................86
CORTA.
CENA 20 LUZ VAI SUBINDO EM RESISTÊNCIA. JUNIOR JÁ COLOCOU O PAI SENTADO NO SOFÁ. OLHA COMOVIDO PARA ELE. JUNIOR -
Quer um café, pai?
GUIMA -
Não, eu preciso voltar a trabalhar.
JUNIOR -
Depois, pai. Depois...
GUIMA -
Depois não dá. O ladrão pode voltar de novo e aí a gente fica sem estoque. E eu preciso medir e colocar lá no papel que eu vou entregar pro Antenor. Se não, não sai o empréstimo.
JUNIOR -
Por que o senhor não faz tudo amanhã?
GUIMA -
Amanhã eu quero descansar. Agora que você voltou, eu posso descansar... É só entregar tudo escrito pro Antenor, e passar a loja pra você... Depois eu posso descansar... Eu tenho trabalhado muito... Muito mesmo!
JUNIOR -
Eu sei, pai!
GUIMA -
Não sabe não! Não sabe não! Quer ver?
GUIMA TENTA LEVANTAR E NÃO CONSEGUE. GUIMA -
Vai lá e estende a peça de sarja...
JUNIOR -
Deixa pra amanhã...
GUIMA -
(AUTORITÁRIO) Vai lá, menino...
JUNIOR OBEDECE. PEGA A PEÇA DE SARJA E COMEÇA A DESENROLAR O TECIDO ROTO PELA SALA. GUIMA -
Veja que mundão de pano! É sarja de primeira! Agora, estende essa de chita!
JUNIOR FAZ O MESMO COM A CHITA. GUIMA -
Tá certo que não gosto de trabalhar com chita. Mas vende bem... Vende muito bem... Amanhã, vão entregar umas
LUA DE CETIM....................................................................................................................................87
peças de fazendas mais finas... De voile... De amorela... Meça quanto tem... JUNIOR -
Eu não tenho metro aqui...
GUIMA -
Meça com passadas!
JUNIOR -
Eu não sei, pai... Mas já vi que é bastante... que é bastante pano...
GUIMA -
Você não viu nada!
GUIMA LEVANTA-SE COM DIFICULDADE E VAI ATÉ ONDE ESTÁ O TECIDO ESPARRAMADO. GUIMA -
(ANDANDO SOBRE O PANO, MEDINDO) Tem um mundo de pano aqui... Um, dois, três, dez, vinte, trinta metros... Dá pra fazer calça de sarja pra toda a homarada de Torrinha e vestido pra toda a mulherada... É um bom estoque hein Junior...
JUNIOR -
É sim, pai...
GUIMA -
Levei muito tempo para conseguir. Mas agora ele é só seu. Estou DANDO de papel passado e tudo... Tudo seu! Agora posso ir encontrar a Candê lá em Poços de Caldas... E ficar sossegado por lá... Descansando num caramanchão de primavera! Pegue as notas!
JUNIOR -
Que notas?
GUIMA -
Aquelas que estão na mesa. São notas de tecidos que já comprei nas melhores casas do ramo.
JUNIOR -
(PEGANDO OS PAPÉIS) Aqui só tem promissória, pai.... Promissória vencida e não paga...
GUIMA -
Que é isso, menino? Contrariando seu pai? Você não tá lendo direito! Até parece que não fez faculdade... Até parece que não é líder... É tudo notas de compras... Pagas... E entregues! Quantos metros de voile estão marcados aí?
JUNIOR -
(AMARGURADO) Cinco... seis...
GUIMA -
Que é isso, Junior? Vinte e cinco e vinte e seis... E algodão do bom?
JUNIOR -
Trinta, pai?
LUA DE CETIM....................................................................................................................................88
GUIMA -
Trinta e oito, menino. E de amorela?
JUNIOR -
Cinquenta, pai?
GUIMA -
Cinquenta? Então tô louco! O que eu vou fazer com cinquenta metros da mesma amorela? É muita coisa! Não se pode ter muito pano repetido! Está escrito mesmo cinquenta aí?
JUNIOR -
(MUITO EMOCIONADO) Acho que li errado, pai... Trinta e oito também!
GUIMA -
Ah, bom... Eu seria louco se pedisse mais!... E pode ver que tem seda, e cetim, juta e...
JUNIOR -
(FAZENDO UM ESFORÇO) E JK, pai... tem?
GUIMA -
Que é isso, Junior? Isso já caiu de moda há muito tempo... Tem cabimento? ... JK?... Tem cabimento?... Ô Junior, agora que você vai ser o dono da “Admirada”, não vá me fazer besteira, moleque...
JUNIOR -
Pode deixar, pai.
GUIMA -
Eu não vou poder ficar ajudando você não. Vou ter muita coisa pra fazer lá em Poços de Caldas. Tirar retrato com a Candê naqueles telões, andar de charretinha, tomar sorvete, andar a pé pra fazer exercício... Bem que queria tomar um chopinho, mas o doutor diz que não...
JUNIOR -
Melhor não, pai...
GUIMA -
Me dá essas notas das compras!
JUNIOR PASSA OS PAPÉIS PARA GUIMA. GUIMA -
Cumpri minha missão... Passo toda a “Admirada” pra você!... Tudo, tudo... Todo o estoque... As compras... As filiais... Os empregados... E vou embora daqui!
GUIMA JOGA OS PAPÉIS PARA CIMA. GUIMA -
Agora, a única coisa que quero é que me peça desculpas!
JUNIOR -
Do quê, pai?
GUIMA -
De não ter confiado em mim!
JUNIOR -
Eu confiei, pai!
LUA DE CETIM....................................................................................................................................89
GUIMA -
Confiou coisa nenhuma!
JUNIOR -
Confiei sim!
GUIMA -
Então, prova!
JUNIOR -
Como?
GUIMA -
Se sua mãe estivesse aqui, mandava você rezar o ato de contrição.
JUNIOR -
Eu não sei mais...
GUIMA -
Vou te contar uma coisa. Eu nunca soube. Sempre precisava ler aquele papelzinho que ficava colado na porta do confessionário. Agora não confesso mais... Não gosto dessa padraiada sem batina...
JUNIOR -
É tudo igual, pai!
GUIMA -
Talvez seja. Mas meu negócio não é com eles... quero dizer... não é com padre.... Acho que nem com Deus!
JUNIOR -
Com quem é?
GUIMA -
Comigo mesmo. (EMENDA) Recolhe esse pano aí, menino, se não o ladrão vem e você fica sem nenhum!
JUNIOR PUXA TODO O PANO PARA UM LADO. GUIMA -
E pegue esses papéis também! Esses papéis valem milhões!
JUNIOR APANHA OS PAPÉIS. ENQUANTO ISSO, GUIMA SE DIRIGE PARA A PORTA INTERNA. JUNIOR GUIMA -
Onde o senhor vai? Não é da sua conta! Liga o rádio pra ouvir a cotação do mercado. Vamos, liga!
JUNIOR LIGA O RÁDIO. UMA VOZ ENFADONHA DE UM LOCUTOR TRANSMITINDO CORRIDA DE CAVALO. JUNIOR GUIMA -
O senhor não prefere descansar agora? Eu já comecei a descansar, Alcebíades Antonio Guimarães Junior! O senhor agora é o dono da “Admirada”.
LUA DE CETIM....................................................................................................................................90
GUIMA ENTRA, E JUNIOR CONTINUA A AJEITAR AS COISAS. TEMPO. OUVE-SE UM TIRO DE ESPINGARDA DENTRO DO QUARTO. JUNIOR ENTRA CORRENDO. TEMPO. VOLTA COM AS MÃOS SUJAS DE SANGUE. TEMPO. MUITO TEMPO. AGARRA UMA DAS PEÇAS DE PANO, ENCOSTA SEU ROSTO NELA. NÃO CHORA. FALA FIRME. JUNIOR -
Pronto, sêo Guima! Eu acabo de assumir o seu reinado! O meu manto é uma peça de chita e o meu cetro uma garrafa de caninha! (MUITO EMOCIONADO) Mas eu só precisava da memória pra poder continuar lutando!
O RÁDIO COMEÇA A TOCAR “CARTOMANTE”, COM ELIS REGINA, SUBINDO CADA VEZ MAIS, ENQUANTO A LUZ VAI CAINDO EM RESISTÊNCIA, SEMPRE COM JUNIOR COM A PEÇA DE PANO NAS MÃOS. BLACK-OUT.
FIM São Paulo, maio/agosto de 1981