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Luis Arrieta

Poeta do Movimento

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Luis Arrieta

Poeta do Movimento

Roberto Pereira

S達o Paulo, 2010

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GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Governador

Alberto Goldman

Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Diretor-presidente

Hubert Alquéres

Coleção Aplauso Coordenador Geral

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Rubens Ewald Filho

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No Passado Está a História do Futuro

A Imprensa Oficial muito tem contribuído com a sociedade no papel que lhe cabe: a democratização de conhecimento por meio da leitura. A Coleção Aplauso, lançada em 2004, é um exemplo bem-sucedido desse intento. Os temas nela abordados, como biografias de atores, diretores e dramaturgos, são garantia de que um fragmento da memória cultural do país será preservado. Por meio de conversas informais com jornalistas, a história dos artistas é transcrita em primeira pessoa, o que confere grande fluidez ao texto, conquistando mais e mais leitores. Assim, muitas dessas figuras que tiveram importância fundamental para as artes cênicas brasileiras têm sido resgatadas do esquecimento. Mesmo o nome daqueles que já partiram são frequentemente evocados pela voz de seus companheiros de palco ou de seus biógrafos. Ou seja, nessas histórias que se cruzam, verdadeiros mitos são redescobertos e imortalizados. E não só o público tem reconhecido a importância e a qualidade da Aplauso. Em 2008, a Coleção foi laureada com o mais importante prêmio da área editorial do Brasil: o Jabuti. Concedido pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), a edição especial sobre Raul Cortez ganhou na categoria biografia.

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Mas o que começou modestamente tomou vulto e novos temas passaram a integrar a Coleção ao longo desses anos. Hoje, a Aplauso inclui inúmeros outros temas correlatos como a história das pioneiras TVs brasileiras, companhias de dança, roteiros de filmes, peças de teatro e uma parte dedicada à música, com biografias de compositores, cantores, maestros, etc. Para o final deste ano de 2010, está previsto o lançamento de 80 títulos, que se juntarão aos 220 já lançados até aqui. Destes, a maioria foi disponibilizada em acervo digital que pode ser acessado pela internet gratuitamente. Sem dúvida, essa ação constitui grande passo para difusão da nossa cultura entre estudantes, pesquisadores e leitores simplesmente interessados nas histórias. Com tudo isso, a Coleção Aplauso passa a fazer parte ela própria de uma história na qual personagens ficcionais se misturam à daqueles que os criaram, e que por sua vez compõe algumas páginas de outra muito maior: a história do Brasil. Boa leitura. Alberto Goldman Governador do Estado de São Paulo

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Coleção Aplauso O que lembro, tenho. Guimarães Rosa

A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Ofi cial, visa resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas de cinema, teatro e televisão. Foram selecionados escritores com largo currículo em jornalismo cultural para esse trabalho em que a história cênica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída de maneira singular. Em entrevistas e encontros sucessivos estreita-se o contato entre biógrafos e biografados. Arquivos de documentos e imagens são pesquisados, e o universo que se reconstitui a partir do cotidiano e do fazer dessas personalidades permite reconstruir sua trajetória. A decisão sobre o depoimento de cada um na primeira pessoa mantém o aspecto de tradição oral dos relatos, tornando o texto coloquial, como se o biografado falasse diretamente ao leitor. Um aspecto importante da Coleção é que os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que também caracterizam o artista e seu ofício. Biógrafo e biografado se colocaram em reflexões que se estenderam sobre a formação intelectual e ideológica do artista, contextualizada na história brasileira.

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São inúmeros os artistas a apontar o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida, deixando transparecer a firmeza do pensamento crítico ou denunciando preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando nosso país. Muitos mostraram a importância para a sua formação terem atuado tanto no teatro quanto no cinema e na televisão, adquirindo, linguagens diferenciadas – analisando-as com suas particularidades. Muitos títulos exploram o universo íntimo e psicológico do artista, revelando as circunstâncias que o conduziram à arte, como se abrigasse em si mesmo desde sempre, a complexidade dos personagens. São livros que, além de atrair o grande público, interessarão igualmente aos estudiosos das artes cênicas, pois na Coleção Aplauso foi discutido o processo de criação que concerne ao teatro, ao cinema e à televisão. Foram abordadas a construção dos personagens, a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns deles. Também foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferença entre esses veículos e a expressão de suas linguagens. Se algum fator específico conduziu ao sucesso da Coleção Aplauso – e merece ser destacado –,

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é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. À Imprensa Oficial e sua equipe coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica e contar com a disposição e o empenho dos artistas, diretores, dramaturgos e roteiristas. Com a Coleção em curso, configurada e com identidade consolidada, constatamos que os sortilégios que envolvem palco, cenas, coxias, sets de filmagem, textos, imagens e palavras conjugados, e todos esses seres especiais – que neste universo transitam, transmutam e vivem – também nos tomaram e sensibilizaram. É esse material cultural e de reflexão que pode ser agora compartilhado com os leitores de todo o Brasil. Hubert Alquéres Diretor-presidente Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

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A Imprensa Oficial homenageia, in memoriam, Roberto Pereira, o autor deste livro.

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Apresentação A certeza intuitiva não pode ser alcançada por análise intelectual

Albert Einstein O ano de 2008 me trouxe, muito curiosamente, três pedidos que, se bem ligados ao meu trabalho, não me tinham sido nunca solicitados antes. Um por parte de Willhelm Araújo, bailarino do Balé da Cidade de São Paulo, que também desenvolve criações em vídeo/ imagens, querendo fazer registros espontâneos durante ensaios e montagens, e entrevistas organizadas com depoimentos sobre meu pensamento em dança. Outro, pela Inês Bogéa, diretora-artística-adjunta da São Paulo Companhia de Dança, para a série documental de biografias Figuras da Dança, transmitida pela TV Cultura, com registro cronológico do meu trabalho e depoimentos e comentários de personalidades do teatro em geral. E este, pelo Roberto Pereira, para a coleção Aplauso, uma entrevista/ conversa/charla gravada em vários longos encontros, que Roberto deveria redigir posteriormente em primeira pessoa.

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Como é de meu costume, imediatamente aceitei. Depois, pensando mais friamente, considerei que além de não ter nenhuma importância o que eu poderia contar, não saberia realmente recordar tantos fatos e situações de minha vida. Também não queria continuar invadindo as atenções dos que com paciência me escutavam. Eu já fazia isso coreografando.

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Quis, então, recusar. Mas também pensei que não tinha direito a isso, já que essas pessoas tinham feito esses convites com tanto interesse e consideração. Sem esquecer também que às vezes a timidez e a modéstia são formas da soberba. Ao igual que nas montagens, me lançava ao imenso vazio e negro do desconhecido. A única coisa que eu reconhecia em tudo isto era o mesmo medo de sempre.

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Sim, posso assegurar que as entrevistas, as leituras e as correções têm provocado em mim uma revisão de tempo, espaço e atos comparáveis a uma terapia. Mas rever, corrigir, tudo isso era igual aos ensaios. Procurando o gesto que mais me expressa e o que mais me dribla. Aliás, a releitura desses textos me fez entender por que sempre Ismael Guiser recusava-se a deixar alguma coisa escrita sobre sua vida, seus pensamentos e seus métodos. A vida, como a dança, é movimento, mudança. A cada instante estamos num lugar diferente.Portanto, temos um ponto de vista diferente a cada instante. Vemos a vida de maneira diferente a cada instante, porque a evolução nos coloca num lugar diferente. Nos modifica o olhar. Os fatos são os mesmos. Somos nós que os percebemos de ângulos diferentes. Nas palavras de Borges, independentemente de como os fatos “realmente” foram, o importante é como nós os enxergamos e os lembramos. E existe um realmente imutável?

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As ideias que variam são verdadeiras. Um furacão não persiste uma manhã toda. Um aguaceiro não persiste um dia todo. Quem os criou? – A Natureza. A Natureza mesma não é invariável: Menos, portanto, o Homem.

Lao Tsé - Tao Te Ching – XXIII Esse exercício de revisitação levou-me não só até os primórdios de minha vida, senão muito além disso. Levou-me até tempos e lugares e dimensões que este organizado Luis de hoje insiste em não lembrar. Artista, xamã, arte, iluminação. Feliz ou ingrata a este meu limitado entender, sei que foi, é e será a experiência certa e justa e necessária. Rito de passagem.

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Sabia no meu primeiro contato com a dança que noções de espaço/tempo iriam se modificar. Não imaginava tanto e como. Definir a ordem de como tudo vai ser contado é só uma escolha circunstancial. Jamais poderia afirmar qual a cronologia certa. E também não importa. Por outro lado, conto fatos que sei que de forma alguma podem me representar. Eles são as imagens projetadas no lado brilhante do espelho. Eu gostaria de falar-lhes das impressões deixadas no seu lado opaco. Mais eu não sei falar essa língua. La noche me sirve para encontrar todo lo que extravié por culpa de la luz (Nemer Ibn El Barud). Ademais, fui criado numa sociedade moral e religiosa que é a grande defesa contra a experiência de Deus (C.G. Jung).

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Terminada a leitura do texto que Roberto escrevera com tanto carinho, atenção e paciência, viajei para Buenos Aires para passar alguns poucos dias com minha mãe. Sentia-me com as lembranças em carne viva, estimuladas ainda mais pelos cenários da minha cidade. Logo que cheguei, num cartaz em frente à esteira das bagagens, sorria-me Nacha Guevara num anúncio do seu musical Eva. A partir daí, todos os passos na cidade portenha despertaram vozes esquecidas. Em casa, após o almoço, mamãe lendo meu silêncio, como de costume, rasgando alguns poucos acordes no violão, cantou-me uma canção popular que ela gosta especialmente, repetindo emocionada o refrão com sua voz fininha e gasta: Resistirei! Resistirei! Resistirei! Já de volta, ao encaminhar-me no aeroporto de São Paulo para as filas do setor de documentação fiquei confuso: Estrangeiros, Mercosul, Brasileiros? Dois agradecimentos e duas desculpas. Tenho que agradecer a estas três pessoas que, querendo ou não, me “obrigaram” a fazer este Caminho de Santiago (del Estero?) para atrás (ou para dentro, o que é o mesmo) e me permitiram tomar contato com tanto saber adormecido. Permitiram-me entender as palavras de Goethe: Todas as coisas são metáforas. Tenho que me desculpar por todos aqueles que tendo sido tão importantes na minha vida e não os mencionei. Por pouco espaço nestas páginas. Por esquecimento mesmo. Ou porque sempre temos a certeza de sermos perdoados por aqueles que mais nos amam.

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Tenho, por último, que agradecer à terra do Brasil (minha segunda casa e virginiana como eu), que fezse solo fértil, ágora propícia e egrégora condutora para esta minha passagem. Finalmente, quase envergonhado, cito as palavras de São Tomás de Aquino: Tudo que escrevi é palha.

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A Luis Pablo Arrieta, pai do Luis, artista do confeito. A Tina Pereira, minha irmã, artista da música. In memoriam Agradeço ao Luis, por desejar comigo esse livro; a Ana Teixeira, Antonio Carlos Cardoso, Arnaldo Alvarenga, Dalal Achcar, Edy Wilson, Helena Katz e Marika Gidali, pela pronta disposição em ajudar; a Silvia e Edna Soter, pelos dias de paraíso em Mambucaba; a Rubian Gois, pela assistência fundamental na pesquisa; ao Alexandre e às minhas pretas Nara e Fanny, por estarem sempre ao meu lado.

Roberto Pereira

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Introdução No começo do mês de janeiro desse ano de 2009, Luis me telefonou, no auge de sua crise existencial, deflagrada por seu computador. Quando digitava a palavra coreografia, ou coreografar, tudo aparentava estar correto. Mas era só ele se atrever a conjugar o verbo, que a versão de seu Word não reconhecia o que havia sido digitado. E indicava o erro, sublinhando a palavra com aquela linhazinha vermelha. Como o verbo coreografar não poderia ser conjugado por Luis Arrieta? Qual palavra indicaria mais ação, ou melhor, qual palavra poderia ser mais verbo que coreografar, sobretudo nas mãos dele? Luis estava inconsolável.

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Foi este Luis que conheci. E com quem tive o prazer de conviver os poucos dias que ficamos juntos, dedicados ao projeto desse livro. Na verdade, foram quatro encontros, nos meses de outubro e novembro de 2008. Três em sua casa e um na minha. Todos longos, demorados, regados a café, quando estávamos começando as entrevistas, e a vinho, quando já estávamos jogando conversa fora. Em ambos os casos, eu adquiria material fértil para meu texto. E não esqueço dos bolos, da pizza, biscoitos, pudim, que nos acompanhavam. Tudo para que ficássemos ainda mais felizes com aqueles momentos.

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Quando cheguei pela primeira vez em seu apartamento, em São Paulo, fiquei absolutamente certo de que só mesmo naquele edifício poderia morar alguém como Luis. Não era qualquer edifício. Mas um autêntico exemplar kitsch assinado pelo arquiteto João Artacho Jurado, de 1959. Estávamos em plena Avenida Higienópolis, no famoso edifício Bretagne. Fomos, então, fazer um tour pelo condomínio. A mistura evidente de estilos dava chances para que Luis e eu nos divertíssemos com tudo aquilo. Moderno, nouveau, déco e clássico. Tinha para todos os gostos. Passamos pela sala de piano, pelo salão de festas, piscina e terminamos lá em cima, na cobertura, avistando uma São Paulo imperiosa, contundente. 20

A sala de seu amplo apartamento não foi nosso destino final. Como sempre acontece nesses encontros em que se conta um pouco da vida, ficamos o tempo todo na cozinha. Esse sim era o ambiente propício para desfiar lembranças. E delas, sorrir, rir, chorar. Fizemos tudo isso juntos. Nesse livro, portanto, fui uma espécie de intruso em tudo aquilo. Única maneira de eu poder dar forma ao texto que começa nas páginas seguintes. Meu gravador era uma arma apontada para o Luis, sem dó. Precisava arrancar dele tudo que fosse preciso e precioso, além de tudo o que já é precioso em sua criação em dança. Não sei se consegui plenamente. Jamais saberei. Mas saboreei cada minuto daqueles encontros.

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Afinal, estava na frente de Luis Arrieta, coreógrafo – ícone de uma época da história da dança de São Paulo, época justamente em que eu chegava, vindo de uma cidade do interior, entusiasmado com os estudos. Isso era 1986. Assistia a tudo do Balé da Cidade de São Paulo, companhia que ele dirigia. E foi sobre um de seus balés que me atrevi a escrever a primeira crítica de minha vida, que nunca foi publicada, mas que me indicaria o ofício que eu seguiria anos mais tarde. Mostrei o texto a Helena Katz, e ela o presenteou. Era seu aniversário. Fiquei todo cheio. Esse foi uma espécie de primeiro contato. Vinte anos depois, nosso contato se deu de outra forma. Mas sempre permeado pela dança. Estávamos ali, frente a frente, reunindo emoções que se misturavam com dados precisos, datas, nomes, lugares. Tentamos ser minimamente cronológicos para nos assegurar de que nada nos escaparia, algo absolutamente insano e falível. Sabíamos disso. Não somos bobos nem nada. Mas, mesmo assim, fomos percorrendo ano a ano as investidas coreográficas desse argentino mais brasileiro que conheci. Nem o sotaque de um portunhol preciso e exuberante arranha essa imagem.

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Esse livro é, então, assim. Seguiu as lembranças do Luis como ele achava que deveria ir, tateando-as. Fiz apenas traduzir isso na linguagem que conheço e que modestamente balbucio quando tento narrar uma vida tão rica quanto a dele.

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Tomara que o leitor capte esse meu desejo. Esse nosso desejo. Já que nós dois soubemos estar comprometidos até o último fio de cabelo nesse projeto. Em dança, não há como ser diferente disso. Antes de acabar essa introdução, um recadinho: Luis, você precisa atualizar seu computador. No meu, já é possível conjugar o verbo coreografar. Mas, nem por isso, sinto que sei usá-lo tão bem quanto você! Nem num texto nem na dança. Quem sabe um dia você não me ensina?

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Luis Arrieta em S達o Paulo, 2001

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Aos 4 anos, 1955

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Capítulo I Em Buenos Aires Nasci no subúrbio de Buenos Aires, no dia 3 de setembro de 1951. Signo de virgem com ascendência em touro. Filho de Olga Figueroa e Luis Pablo Arrieta. Meu nome: Roberto Luis Arrieta. Arrieta significa “feito de pedra”, em basco. E Luis, luz. Numa tradução livre: luz feita de pedra. Luz materializada. Meu pai, falecido em 1994, filho mais novo de quatro irmãos, foi o único nascido na Argentina, pois toda sua família era da Espanha, de origem basca. Não cheguei a conhecer meus avós paternos, Eleuteria e Marcelo porque, quando nasci, já estavam mortos. Do lado de mamãe, temos origem bem argentina, bem índia. Assim, represento exatamente o que por lá se acostumou chamar de criollo, ou seja, a mistura de espanhol com índio.

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A família de minha mãe era de Santiago del Estero, uma província ao noroeste do país, bem pobre, onde impera o calor e o clima seco. A ascendência é dos índios Diaguitas, os Calchaquíes, que imagino devam ter algo a ver com o que foi se ramificando dos incas. Isso porque minha avó Camila falava algumas palavras da língua quíchua, uma língua incaica que ela misturava em seu espanhol de propósito. Mas detestava traduzir. Era uma espécie de segredo dela. Minha avó, com quem convivi muito, não morava conosco, mas ficava com frequência em nossa casa.

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D. Olga, sua m達e

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D. Luis Pablo, seu pai

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Apesar das mães dizerem que amam igualmente seus filhos, minha mãe era, sem dúvida, sua filha predileta. Ao mesmo tempo em que era fascinada por ela. E meu avô, que não era oficialmente seu marido por não ter se casado com ela, se chamava Pablo Enriquez.

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Já aqui no Brasil, conheci um site argentino de literatura, que homenageava meu avô materno Pablo. Através dele, fiquei sabendo, de forma mais detalhada, vários fatos que já havia ouvido muitas vezes contar à minha família materna. Um deles, é que meu avô, desde criança, sempre teve uma vida bastante dramática, quase teatral. Lá em Santiago del Estero, existe um rio, o rio Dulce, que, como em toda região árida, portanto pobre e seca, permanece seco quase o ano inteiro, levando toda uma população a morrer de fome. E, cada vez que vem a chuva, esse rio transborda e estraga o pouco que as pessoas têm... trata-se, portanto, de um velho panorama já bem conhecido. Contam que quando Pablo tinha 9 anos de idade, sua mãe, ou seja, minha bisavó, e todos os seus filhos, tentaram atravessar esse rio e morreram afogados. Apenas ele sobreviveu. Órfão, foi levado para vários lugares para ser criado, acabando inclusive num convento, de onde fugiu. Logo se tornaria uma criança muito revoltada e desde muito cedo sempre muito indignada com o que percebia sobre as diferenças sociais que o circundavam e sobre o excesso de poder de algumas pessoas daquela região. Evidentemente, com a chegada das primeiras notícias do socialismo, em 1900, meu avô passou a ser comu-

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D. Camila, a av贸 materna

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Com a m達e e as irm達s em Mar Del Plata

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nista e muito atuante nessa corrente esquerdista que se formava na Argentina. Tanto assim, que seus filhos levaram nomes emblemáticos dessa luta: minha mãe se chama Olga, meu tio, Vladimir, minha tia, Libertad. Meu avô tinha várias mulheres, embora fosse casado oficialmente apenas com Maria. Cada uma morava numa casa diferente e eram cientes da existência das outras. Mas, segundo dizem os textos desse mesmo site, minha avó Camila seria sua preferida. Imagino que sim, porque ela era belíssima. Apenas não era a primeira e nem a oficial, mas certamente a mais especial. E isso para ele era encantador. Ele era um índio. Camila vinha de uma família de quatro irmãos, dois homens e duas mulheres. Seus três irmãos, apesar de toda aquela pobreza, conseguiram estudar, tanto que minha tia-avó Achila chegou a ser diretora de uma escola e secretária de cultura de Santiago del Estero. A única que ficou sem estudo foi Camila, que se tornou mãe ainda muito jovem, tendo seu primeiro filho com Pablo aos 15 anos.

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Meus tios, os irmãos de minha mãe, sobretudo as mulheres, sempre demonstraram um certo ressentimento quando falavam de meu avô, pois sempre reclamavam que ele teria se dedicado demais à política, à militância e ao socialismo, e reservado pouco tempo para cuidar deles. Exatamente por isso, ele foi muitas vezes preso. Numa dessas vezes, levaram-no para Ushuaia, no território nacional de Tierra del Fuego, sul da Argentina, a mais de 3 mil km de Buenos Aires, onde estavam as prisões políticas de segurança

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máxima e onde ele apanhou muito. Segundo meus tios, ele teria morrido em consequência dessas surras, desses espancamentos, de tortura. Quando criança, eu ouvia contarem que ele não teria fígado de tanto que apanhou. Certa vez, perguntei à minha avó Camila sobre meu avô Pablo, querendo perceber um pouco qual era a sua impressão sobre ele, até para ver se eu teria alguma outra imagem diferente daquela que tinha a partir de meus tios. A única coisa que me disse, num suspiro, foi: Ah, ele era tão lindo...

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Curiosamente, mesmo sendo católica, rezando diariamente às seis horas da tarde, indo à missa todos os domingos, Camila levava essa vida de segunda (ou terceira) mulher com muito orgulho. Segundo minha mãe, ele teve muitos filhos. Só com Camila teve nove. Com outra teve mais seis, e mais outros tantos. Com todos os seus filhos, ele costumava organizar nas praças da cidade peças de teatro. Nelas, figuravam a personagem do patrão, que era dono de uma fazenda, e seus trabalhadores. Ele fazia o patrão e seus filhos, os trabalhadores. E tudo girava em torno do fato de que o patrão se alimentava, enquanto seus empregados morriam de fome. Terminada a cena, ele vinha logo em seguida com um discurso repleto de questionamentos: Por que eles podem tanto e nós, trabalhadores, campesinos, não podemos nada? Todo esse mundo de minha família sempre esteve envolto em um clima mágico, misterioso, que iria

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reaparecer em vários momentos de minha vida e de várias formas. Minha avó Camila, por exemplo, era extremamente sensitiva, coisa normal se levada em conta sua ascendência indígena. Para ela, era muito comum perceber, quase ver, quase ouvir, coisas que estão fora do alcance da maioria das pessoas. Certamente ela ficaria horrorizada se isso fosse apontado como algo que tivesse a ver com bruxaria ou com espiritismo, já que era tão católica. Mas esse seu dom sempre chegou de alguma forma até mim, de formas muito curiosas. Há muitos anos, montei um trabalho a partir da consagrada obra de um compositor argentino, Ariel Ramirez, a Missa Crioula, que a compôs no intuito de preservar os ritmos musicais da cultura Guarani, um dos formadores da identidade cultural argentina. Essa coreografia ganhou o título de Terceira Oração ou Oração de las madres de la Plaza de Mayo e foi feita para um grupo formado quase só por mulheres e por apenas um rapaz. Havia um momento em que as mulheres apareciam vestidas de macacão vermelho, como operárias. À medida que, por causa dos tiros, elas iam caindo mortas, uma por cima da outra, ao se amparar mutuamente, elas arrancavam esse macacão e por baixo aparecia uma mãe reclamando a presença de seu filho. Em um determinado momento o único elemento masculino que eu tinha dançava com este macacão, que se ampliava quase como um poncho, um manto vermelho, que aparecia como um símbolo.

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Depois de muitos anos, fiquei sabendo que meu avô teve uma experiência muito parecida com essa na

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Terra do Fogo: um companheiro seu contou que ele, sendo torturado e após apanhar muito, ficou quase inconsciente. Parece que nesse estado de inconsciência a mãe dele teria aparecido e pedido a ele que nunca desistisse de sua luta: Atari huauque!, ou seja, “levanta, irmão!” em língua quíchua. E o envolveu em um poncho vermelho. De alguma forma, tudo isso chegou até mim, mesmo eu tendo nascido em Buenos Aires, em um apartamento, num ambiente urbano e numa época tão distante da do meu avô.

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Por outro lado, mesmo sendo tão especial, tão sensitiva, Camila mantinha a casa, assim como todas as outras mulheres de meu avô. Trabalhava na terra, plantando abóbora e tudo o que se podia tirar daquela região tão árida. Ela também era costureira e costumava fazer casas de botões dos coletes de seda de smokings que eram vendidos numa loja no centro da cidade. Além disso, bordava também monogramas com as iniciais de quem comprava esses smokings, todos homens muito ricos da região. Tratava-se evidentemente de um contraste enorme: num lugar extremamente pobre, minha avó ganhava a vida bordando smokings. Quando ficava em casa, conosco, na hora de dormir, sentada à beira da cama, ela soltava o coque e penteava os cabelos, coisa bem típica das senhoras daquela época. Fazia isso no escuro, porque dormia no quarto comigo e com minhas irmãs. Mesmo naquela escuridão, eu percebia como ela ficava sentada, escovando os longos cabelos. Lembro que ficava fascinado pela cor prata de seus cabelos. Um branco prata.

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Certa vez, perguntei por que ela tinha os cabelos daquela cor, que eu achava tão linda, e ela me disse: “Não sei, acho que é por causa da lua cheia...” e me contou que como sua família era muito pobre e em casa não tinha luz elétrica, ela aproveitava as noites de lua para costurar. Depois de pôr as crianças para dormir, colocava a mesa para fora da casa, no chão de terra, cobria-a com um pano branco, lavava-se toda para não sujar o tecido e ali ficava quase a noite toda costurando. Essas são as imagens que tenho de minha família, e que são extremamente teatrais, poéticas. Essa é minha ascendência. Camila foi a única avó que conheci. E sempre me lembro como ela era, a um só tempo, de uma extrema doçura, misturada com uma força interior inacreditável. Um acontecimento na vida dela muito curioso ilustra bem essa força: certa vez, uma de minhas tias, que morava em um apartamento em Buenos Aires, tinha um cão pastor-alemão, mas foi impedida de continuar com ele por causa de uma regra adotada em seu condomínio. Assim, levaram o cão para casa de minha avó, que já estava numa idade bem avançada, porque lá tinha um terreiro grande onde ele poderia ficar. Um dia, ela foi alimentá-lo e ele não deve tê-la reconhecido e destroçou sua mão. Camila foi levada ao médico que, após dar alguns pontos no corte profundo que sofrera, afirmou que, por causa da idade, sua mão iria, infelizmente, ficar bastante desfigurada e que dificilmente recuperaria os movimentos.

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Então, Camila pediu para uma nora que a ensinasse a fazer crochê. Lembro-me que, pouco tempo depois, todos nós ganhamos um cobertor tecido por ela. E ainda como alguns de seus filhos tocavam violão enquanto cantavam músicas folclóricas argentinas, ela decidiu reaprender a tocar também. Não era algo absolutamente novo para ela, que já havia tocado em sua adolescência, parando apenas porque teve seu primeiro filho. Depois de um certo tempo, fazendo crochê e tocando violão, recuperou totalmente os movimentos da mão, que acabou ficando apenas com uma marca mínima, quase imperceptível. E ela ainda fez questão de retornar ao consultório daquele mesmo médico e dizer a ele: Nunca diga para uma pessoa o que ela pode e não pode fazer! 36

Entretanto, ela fazia tudo isso sempre de uma forma quase angelical. Ou seja: era um touro por dentro e de uma suavidade incrível por fora. Essas duas forças chamaram-me a atenção em sua personalidade. Tanto que as poucas vezes que a vi chorar foram as que mais mexeram comigo. Isso, porque, quando chorava. era algo extremante comovedor e quase inconcebível, porque o gesto do choro acontecia em um silêncio absoluto. E ela ficava luminosa. Outro momento relacionado à minha avó que me marcou muito está ligado, de certa forma, à minha profissão: foi quando a vi dançar nas festas de nossa família, que reunia seus filhos e outros tantos parentes, que a chamavam, sem distinção, de “mama”! Essa dança era sempre uma dança típica, folclórica, da Argentina. Enquanto ela preparava a

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comida, geralmente um churrasco com empanadas, meus tios tocavam violão e cantavam. A certa altura, quando o clima já era de festa, sempre pediam: Mãe, vamos dançar! Lembro-me, então, que ela amarrava o avental de lado na cintura e dançava com um guardanapo na mão como se fosse um lenço. Era la zamba, uma dança argentina, bem sincopada, mas, ao mesmo tempo, lenta, charmosa e elegante. Para mim, todo comportamento físico dela era muito enigmático, porque, ao mesmo tempo que vinha de uma origem extremamente humilde, tinha um modo de se mover muito requintado, que nunca consegui entender direito. *** Um pouco antes de eu nascer, por causa das dificuldades de sobrevivência naquela região, muitos de minha família resolveram se mudar para Buenos Aires, onde havia a possibilidade de se conseguir um trabalho e com isso condições melhores para criar os filhos. Ao chegar à grande cidade, Camila, que tinha ido junto, foi trabalhar como doméstica e alguns de seus filhos foram colocados ainda pequenos em casas de família para trabalhar, porque era a única maneira possível de se ter algum sustento, algo comum para quem pretendia tentar a vida numa cidade como aquela. Desse modo, todos os meus tios não tiveram oportunidade de estudar, tendo apenas começado o primário, como foi o caso de minha mãe.

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Papai, que tinha escola primária completa, logo começou a trabalhar. Embora adorasse futebol e

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tivesse até chegado a jogar em um clube de segunda divisão, logo teve que abandonar sua paixão para se dedicar a algo mais seguro. Aprendeu, então, a profissão de confeiteiro. Quando nasci, papai já era mestre-pasteleiro, pois pastel na Argentina tem a ver com confeitaria. Seu novo ofício não deixava de ser curioso: um homem grande e forte, com mãos grandes e fortes, que tinha extrema docilidade para enfeitar doces e confeitos. Um verdadeiro contraste. Logo ele passou a dominar essa arte e seus doces enfeitados se tornaram perfeitos. E conhecidos em Buenos Aires.

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Assim, meus pais reuniam duas características muito fortes e que me foram passadas em minha educação: por um lado, minha mãe, com toda a ascendência socialista herdada de meu avô Pablo, que por mais que não tivesse sido ensinada em casa, ela a levava no sangue e, de alguma forma, a gente captava isso; por outro, papai com uma ideia muito clara do que era moral, do que era correto, ao mesmo tempo em que afinava seu gosto e suas habilidades manuais para os confeitos que preparava. Para exemplificar bem isso, lembro que minha mãe me contou que, um dia, os patrões do meu pai começaram a substituir a manteiga usada nos doces e croissants feitos por ele por margarina, produto mais barato que começava a aparecer no mercado. Um dia, ao sair da confeitaria, ele avistou na porta um cartaz anunciando: Croissant de manteiga. Meu pai deu meia-volta e comentou com seu patrão: Temos que trocar aquele cartaz, porque utilizamos margarina

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agora, ao que o dono da confeitaria deu de ombros e recomendou que ele não se preocupasse com aquele “detalhe”. E meu pai retrucou, incisivo: Ou você troca já aquele cartaz, ou não volto mais aqui. Sou eu que faço os croissants! O que estava por trás disso eram conceitos praticamente inacreditáveis nos dias de hoje. Mas na época dele era assim. E, afinal de contas, aquele era o seu trabalho, do qual ele se orgulhava muito. Meu balé Do homem ao poeta foi dedicado a ele. Era um trabalho a partir da obra Carmina Burana, do compositor alemão Carl Orff, que montei para a Cisne Negro Cia. de Dança, de São Paulo, em 1983. Nele, tentei traçar um paralelo entre os textos profanos e as Odes Elementares de Pablo Neruda. Numa das partes, que se chama A ode ao pão, todos os bailarinos vêm caminhando do fundo do palco e o único movimento que fazem é abrir as mãos, mostrando-as espalmadas ao público. Isso me remetia ao símbolo da mão de meu pai fazendo pão, aquela mão branca de espanhol. Aquela mão branca suja de farinha. Aquela mão sábia, mágica.

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Eu costumava ir muitas vezes no local onde ele trabalhava e ficava admirando a velocidade com que preparava os doces ao mesmo tempo em que conversava com a gente. Nunca o vi pesar nada. Ele ia conversando e pegando os ingredientes com a mão e misturando. Mesmo acostumado a grandes quantidades, fazia questão de ser econômico. Como essa era sua profissão e como tinha pleno domínio dela, era um virtuose nos detalhes: as sobras, que

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normalmente se joga fora, eram recuperadas e transformadas em novos produtos, num processo quase sem-fim. E isso era reconhecido, claro, pelo dono do estabelecimento. E por essa razão meu pai era tão solicitado, já que se tratava de um empregado ideal. E isso se estendia em casa também: lembro-me que se minha mãe havia cozinhado beterraba, ele fazia um pudim vermelho com aquela água que sobrava, e que nós achávamos lindo! Era criatividade sobre criatividade. Qualquer coisa que sobrava, ele ia logo aproveitando.

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Havia dois livros muito velhos de receita que ele usava. Não sei se estão perdidos ou se ainda existem. Lembro que meu pai sempre gostava de relê-los, quando ficava com dúvida sobre alguma coisa. E outra atividade que meu pai adorava era ler o dicionário. Fazia isso todos os dias após voltar do trabalho. Lia página por página. Palavra por palavra. Meu Deus, que maneira de adquirir cultura! Naquela minha época, os dicionários tinham informações sobre muitas coisas, eram quase uma enciclopédia. E essa era a maneira que meu pai encontrou para se instruir, mesmo cansado depois de um dia inteiro de trabalho, que o fazia sair às 5 horas da manhã de casa e retornar lá pelas 5 da tarde. Jornal, ele quase não lia. Uma ou outra notícia sobre política já era o suficiente. Para ele, político, padre e militar eram tudo a mesma merda. Ah, ele lia sobre esporte, sobretudo futebol, sua grande paixão. Nas poucas horas que podia ficar conosco, em casa, ele sempre me ajudava a resolver problemas da escola, sobretudo os de matemática. Mas, na verdade,

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ao fazer isso, ele estava me ensinando muito mais. Diante de um problema, nunca me dava a solução, mas caminhava comigo na busca de seu entendimento. Assim, me mandava ler e reler o mesmo texto até que aquilo fizesse algum sentido para mim. Isso foi fantástico porque era uma maneira de desenvolver um processo de investigação interno, que, claro, eu usaria mais tarde na composição coreográfica. Esse caminho não era, evidentemente, o mais fácil. Às vezes eu até chorava, querendo logo a resposta. Mas ele era implacável. Isso foi muito importante porque hoje estou usando o que desenvolvi desde aqueles tempos. Tudo que faço hoje na dança e na minha vida reflete o que aprendi com meus pais. Uma herança. Porque nasci dessa mistura: uma mamãe morena e um papai branco. E todos os valores embutidos aí, nessa combinação tão rica.

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Pensando agora nessa herança, numa livre associação, lembro da primeira vez que me lancei a querer dançar como um índio. Foi uma das primeiras vezes que me senti extremamente livre, mesmo estando na frente de um monte de bailarinos. Comecei a me mexer como índio e percebi que não tinha vergonha de fazer aquilo. Claro que eu poderia me sentir um tanto ridículo executando aqueles passinhos, mas, pelo contrário, tive uma imensa identificação com aquilo. Uma identificação imediata. Inexplicável. Como eu, garoto criado dentro de um apartamento em Buenos Aires, poderia carregar de alguma forma aquelas informações?

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Com a m達e e as irm達s

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Com o pai e a irmã Pochi em Olavarría

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Reconheço agora que existe algo que se transmite muito além da carne, e é dessa maneira que eu pude entender um pouco a dança. Uma dança que passa por todos os músculos, pelo sangue, pelos sentidos. E nessa minha dança existe alguma coisa, por trás, pela frente, um lugar que eu não sei por onde, mas que a faz acontecer. Um modo de possuí-la e de utilizá-la, parafraseando livremente Lao Tse, no texto XI de seu livro Tao Te Ching:

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Trinta raios cercam o eixo O uso do carro está no seu vazio O jarro é feito de barro moldado O uso do jarro está no seu vazio. Fazem-se portas e janelas para a casa O uso da casa está no seu vazio. Portanto, O ser serve para ser possuído E o não-ser para ser utilizado *** Estamos em plena década de 1950, em Buenos Aires. Tenho duas irmãs. A mais velha, Dora Susana, que chamamos de Pochi, três anos mais velha que eu, mora há muitos anos em Melbourne, Austrália. Casou-se com um italiano que vivia na Argentina desde criança, Giacinto Salvatore Racchi, infelizmente já falecido. Eles tiveram dois filhos gêmeos: Verônica, que mora em Sidney, e David, que reside em Múrcia, perto de Alicante, entre Granada e Valência. Ele é designer gráfico, e inclusive já concebeu graficamente alguns programas de dança. E minha irmã mais nova,

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Olga Beatriz, que chamamos de Betty. Ela se casou com Horacio Ferro, jovem do nosso bairro, com quem teve seu primeiro filho, Lisandro. Em seguida, viajou também para Melbourne, indo ao encontro de Pochi. Lá nasceu seu filho mais novo, Santiago. Ficou pouco longe de seu país. Voltou e hoje vive em Buenos Aires com seus dois filhos, bem pertinho de nossa mãe. Aliás, elas moram no mesmo bairro onde passei toda minha infância e juventude: Lanús. Um típico bairro de classe média, que fica a uns 30 minutos do centro da cidade de ônibus. Para o apartamento em que minha mãe vive até hoje, fui com apenas um ano e meio de idade. Um apartamento antigo e cheio de histórias da nossa família, impregnadas em suas paredes. Desde o início, minha mãe trabalhou como doméstica, assim como sua mãe Camila. Cuidava das casas e das crianças das famílias. Com sorte, sempre pôde contar com trabalho em ótimas famílias, muitas delas tradicionais de Buenos Aires e com quem mantemos relações até hoje. Não à toa, meus padrinhos de batizado são pessoas dessas famílias para quem minha mãe trabalhou. Logo que se casou com meu pai, entretanto, passou a se dedicar ao lar e apenas esporadicamente fazia algumas coisas em casa para ajudar mensalmente, como lavar e passar roupas. Gostava, sobretudo, de passar uniformes para médicos, que naquela época usavam roupas e aventais engomados. Achava bonito o resultado do seu trabalho, todo branco.

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Lembro-me de ter sido calado desde criança, algo bastante comum em toda minha família, que era bastante silenciosa. Hoje em dia, eu até grito, solto alguns palavrões, mas fui educado para falar em um tom de voz suficiente para se ouvir, um dom que fui perdendo aos poucos. Toda a casa se mantinha sempre muito silenciosa. Papai deitava cedo porque acordava cedo. Mas nós, eu, minha mãe e minhas irmãs, ao contrário, fomos acostumados a dormir tarde, o que é um costume de Buenos Aires, onde meia-noite ainda se via criança acordada pelas casas. Mas, como meu pai já estava dormindo, nos acostumamos a andar pela casa primando pelo silêncio absoluto para não acordá-lo. Assim, tudo era extremamente silencioso. 46

Mesmo de dia, e confesso que nem sei bem por que, tudo era também silencioso. Falava-se pouco. E justamente por isso aprendi a ler aquela casa através dos movimentos, através dos gestos. Tenho ainda a nítida sensação de quando criança observar todos estes movimentos de uma perspectiva de uma criança, que vê as coisas de baixo. E ler todas essas informações contidas nos movimentos de cada um dos integrantes de minha família. Na hora de jantar, por exemplo, a televisão era desligada, mesmo ainda sendo uma grande novidade naquela época. E esse hábito de se falar muito pouco aguçava os sentidos para a percepção dos pequenos gestos de cada um à mesa. E aquilo se tornava para mim quase que uma compilação de estudos do movimento. Possivelmente tratava-se ali do meu primeiro curso de composição. Sem que eu me desse conta disso, naturalmente.

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Logo essa minha atenção passou a se espalhar por todos os momentos e todos os cômodos da casa. Meus pais, por exemplo: eles tinham uma relação aparentemente pouquíssimo afetuosa. Raras vezes vi gestos que sinalizassem algum afeto entre eles. Ao contrário, tudo soava em um tom extremo de muito respeito, o que, ao mesmo tempo, não significava menos amor, tanto que ficaram juntos durante todo o tempo, até a morte de meu pai. E eu aprendi a ler aquela economia do gesto, da intenção. Uma economia que transparecia sua verdade. Mas absolutamente contida. Exata. Mesmo acostumado com o silêncio, eu adorava tudo o que era de alguma forma teatral. Quando estávamos de férias, no verão, podíamos ficar na rua até tarde e eu gostava muito de contar histórias terríveis aos meus amigos, todos da minha idade. Na verdade, o que eu gostava mesmo era sentir como o modo com que eu contava minhas histórias os atingia, o que eu fazia com requintes de detalhes e suspenses. E ficava bem feliz quando constatava que meus objetivos haviam sido atingidos. Mais feliz ainda quando ficava sabendo mais tarde que os pais dessas crianças pediam para minha mãe que me proibisse de contar aquelas histórias, que muitas vezes não as deixavam dormir à noite. De alguma forma, desde cedo, eu já estava lidando com essa habilidade de atingir o outro, tão fundamental no ofício de coreografar, uma característica de quem está num palco.

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Esse gosto por contar histórias, na verdade, teve sua origem na escola. Sempre estudei em escola pública, porque na época eram as melhores. Ir para uma escola

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Olga Figueiroa e Luis Pablo Arrieta, seus pais, em Bariloche

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particular significava ter problemas de disciplina ou de assimilação. E, em minhas escolas, tive a sorte de ter podido contar com excelentes professores. Assim, eu simplesmente adorava ouvir como eles contavam a matéria. Sim, porque para mim eles não apenas ensinavam, mas contavam. Como se conta histórias. Acho que a primeira lição que aprendi de meus mestres foi justamente esse gosto em contar histórias. Eu reparava no modo como eles falavam, no tom de voz, na postura, no olhar. E registrava tudo na cabeça, para mais tarde usar com meus amigos da vizinhança. Dessa habilidade em contar histórias, logo se desenvolveu a vontade de montar pequenas peças teatrais em casa, quando eu tinha mais ou menos 10 anos de idade. Nosso apartamento tinha dois dormitórios, um dos meus pais e outro que eu dividia com minhas irmãs. Nele, havia uma espécie de cama suspensa que servia para quando minha avó vinha dormir conosco. Era só abaixá-la e pronto. Porém, na maioria das vezes, ela ficava suspensa e fechada com uma cortina. Claro que, para minha imaginação, e, sobretudo, levando em conta nosso tamanho de criança, aquela cama havia se tornado ideal para um pequeno palco, contando inclusive com uma boca de cena razoável. E era ali onde eu fazia minhas primeiras peças teatrais: vestia minhas irmãs com figurinos confeccionados por mim com jornais velhos, colocava flores na cabeça, determinava todas as falas, quando elas deveriam aparecer, quando avançavam, quando recuavam... Até os agradecimentos eram devidamente ensaiados por mim. Uma de minhas irmãs lembra até hoje que eu, como diretor, decidia tudo. E que a elas restava apenas me

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obedecer. As duas eram praticamente minhas escravas, mas nem se davam conta disso, tamanha era a minha capacidade de persuasão. E eu também entrava em cena, fazendo todos os papéis que sobravam. Como público, convidava as crianças do bairro. Bem, convidar não era exatamente o termo. Na verdade, eu cobrava ingresso que podia ser um brinquedo quebrado ou algo assim. E novamente os pais deles se queixavam aos meus, dizendo que os brinquedos de seus filhos simplesmente desapareciam de um dia para o outro.

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Nosso apartamento tinha também um pequeno pátio. Nos dias de sol, minha mãe estendia os tapetes que ficavam do lado de nossa cama e aquilo rapidamente se transformava em cenário para mim. Adorava brincar com eles. E minha mãe não se importava com isso. Construía cidades, cenários mirabolantes, imaginava o movimento de todos os personagens, enfim, já estava lidando com as questões da cena o tempo inteiro em minha infância. Se até então eu nunca havia imaginado que poderia ligar-me à dança e ela ainda não tinha aparecido em minha vida de forma efetiva, em contrapartida, tive sempre muita afinidade com tudo que era teatral. E isso se intensificava ainda mais, graças a um privilégio que tínhamos naquela época, que era a possibilidade real de uma família de operários poder se dar ao luxo de ir pelo menos uma vez por semana ao cinema, e às vezes também ao teatro. Algo inimaginável hoje para uma família de operários argentina. ***

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Luis pequeno, na charrete, em Santiago del Estero

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Numa época, meu pai criava pombos no terraço, chegando inclusive a ganhar medalhas em competições de pombos-correio. Minha irmã ainda guarda uma pulseira com todas elas. Mas como meu pai era muito prático também, certo dia chegou à conclusão que dava muito trabalho criar esses pombos, que logo se transformaram no jantar da família. Na verdade, quem chegou a saboreá-los fomos eu, meu pai e minha mãe. Minhas irmãs, chatas para comer, se recusaram terminantemente.

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Depois disso, o interesse de meu pai mudou de pombos para canários. Comprou uma gaiola enorme que tinha quatro pés imensos e lá dentro ficavam 30 canários que cantavam o tempo todo. O espaço embaixo dessa gaiola, como num passe de mágica, logo se transformou para mim em uma carruagem e ali eu brincava com minhas irmãs. Como éramos um tanto miudinhos, magrinhos, cabíamos perfeitamente naquele espaço. E, logicamente, era eu quem decidia como era a carruagem, o que se fazia lá, qual era o percurso da viagem, quem eram os personagens... Elas só tinham que entrar ali embaixo e ficar quietas. Ah, e me obedecer. Às vezes, eu fazia como se estivesse filmando tudo aquilo e me jogava no chão e fingia seguir com minha câmera imaginária a carruagem que passava. De alguma forma, sempre via as coisas de baixo para cima e imaginava como elas se mexiam. Gostava de ver a perspectiva das formas, de imaginar novos ângulos. Penso que é o que faço até hoje. E faço hoje do mesmo jeito, só que isso agora se tornou minha profissão. Em alguns ensaios, entrefecho os olhos

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para desfocar as imagens, criando traços e manchas. Ou caminho pela sala para ver de outro ponto de vista, para surpreender-me com as outras leituras contidas naquilo que estou fazendo, revelando tantos outros Luises que não imagino. Por outro lado, em todo meu período de infância, não tive a sensação de ter sido criança. Aliás, não me lembro de ter tido essa sensação até hoje. Das duas uma: ou ainda sou uma criança, ainda olho as coisas com o olhar que via antes. Ou não cresci, ou já nasci velho. Não me lembro de ser ligado a nada e nem a outras pessoas. Acho que nem muito à família também. Nessa época em que estudava, a prefeitura de Buenos Aires oferecia acampamento fora da cidade, nas férias de verão, para as crianças que estudavam em escolas públicas. Minha irmã mais velha foi a primeira de nós a ir num acampamento só de meninas, que distava duas horas da cidade. Foi uma experiência desastrosa: no terceiro dia tiveram que buscá-la de volta, porque chorava muito. Já eu, menor que ela, fui a outro acampamento bem mais distante, a 800 km de Buenos Aires, perto de Bahía Blanca, onde nasceu o coreógrafo e meu futuro amigo Oscar Araiz. Lá tem uma praia belíssima, com muito vento. Um clima quase desértico, com dunas e tudo. Passei 15 dias ou mais por lá, sem o menor problema, adorando descobrir novas paisagens. E quando acabou, logo queria voltar de novo. Não tinha aquele apego à família como minha irmã.

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Nessas colônias de férias, aproveitava para exibir meus dotes artísticos que afloravam dia a dia. No final da

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tarde, nos reuníamos em torno de uma fogueira com todos os professores. Esses encontros tinham o nome de peña, e eram uma espécie de círculo social recreativo, momento de confraternização entre todos. Logo enxerguei ali uma oportunidade de me apresentar: cantava e dançava sem o menor pudor. Não me lembro bem o que seria essa dança. Acho que eram músicas e danças folclóricas argentinas e espanholas, porque na Argentina temos muita ligação com a nossa cultura popular e da Espanha. Até hoje vejo meus sobrinhos e seus amigos se reunirem para cantar músicas folclóricas, mesmo que misturadas com rock ou outros ritmos mais atuais. Desde cedo, na escola ainda, conhecíamos muitas danças – zamba, chacarera, gato, malambo, cueca, e deve ter sido esse o meu primeiro repertório nos acampamentos que frequentava. Na verdade, nunca aprendi corretamente ou academicamente essas danças ou coreografias folclóricas, o mesmo com as típicas, ou seja, o tango. Mais tarde, as coreografei porque as via de criança nas reuniões familiares, no jeito diário do meu povo e, principalmente, porque era assim mesmo que eu as queria. Pensando bem, coisas muito curiosas vinham daí: se, por um lado, eu era muito tímido e calado, quando tinha que fazer algo assim, me apresentar cantando e dançando, fazia sem titubear. E melhor: se me mandavam organizar essas apresentações com meus colegas, o prazer era ainda maior. Na escola, por exemplo, gostava de me apresentar nos espetáculos de fim de ano. Lembro-me que, no último ano da escola primária, eu deveria ter uns 12 anos, minha professora estava grávida. Diante de sua impossibilidade de organizar

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a festa de encerramento do ano e do nosso curso, me ofereci para fazê-lo. Ainda hoje me impressiona o meu atrevimento quando o assunto era apresentação de música e dança. Quando o assunto era arte. Sempre fui atrevido. Apenas perguntei a ela: Quer que eu faça? Quer que eu organize tudo? Acho que não dei muita chance para ela me negar esse pedido quase que impositivo. E logo tratei de chamar os alunos de todas as turmas. Organizei tudo e fiz um belo espetáculo de fim de ano, com textos, poemas, músicas e danças. Lembro que, mesmo contra a minha vontade, fui obrigado a cortar algumas partes já que aquele “espetáculo” se alongava muito. Desde cedo já não conseguia fazer coisas curtas. Nessa mesma época, quando tinha uns 9 anos, minha mãe me perguntou se eu não gostaria de aprender a tocar acordeom. Como eu tinha muito tempo livre, poderia aprender alguma coisa. Bem em frente à minha casa, morava um professor que ensinava acordeom e bandoneon. Seu nome era Benito Suarez. Eu, assim como toda criança daquela época, achava bandoneon um tanto cafona, porque era coisa de tango e tango era coisa de gente idosa. Optei, então, pelo acordeom. Logo me deram um instrumento de presente para que pudesse estudar em casa. E tentavam me incentivar, afirmando que eu era talentoso.

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Comecei os estudos musicais entusiasmado. Mas a prática diária, uma condição nesse caso, me parecia tediosa e aquilo tudo ganhou ares de obrigação, já que eu tinha que me obrigar a estudar as lições, como solfejo e exercícios técnicos. Eu preferia ficar

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improvisando e brincando com os sons, criando efeitos sonoros, ou seja, lidando com o aspecto criativo da coisa. E meu professor de imediato reconheceu meu talento, e passou a adotar uma postura de me explicar tudo como se eu fosse um adulto. Tenho certeza que ele não via uma criança em mim. Hoje reconheço que aqueles primeiros conhecimentos em música me ajudaram na minha futura carreira.

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Quando comecei com a escola secundária, uma espécie de ginásio, parei um pouco com as aulas de acordeom. Dos cinco anos do secundário, os primeiros quatro no Colégio Almirante Guillermo Brown, e o último na Escuela de Comercio Abraham Lincoln. Nesse nível de estudo, era possível escolher três linhas: bacharelado, comercial (para ser perito mercantil) e industrial. Essas três linhas orientavam, então, a escolha dos cursos superiores mais tarde, em três grandes áreas: uma mais administrativa, outra mais humanística e outra mais ligada à engenharia. Escolhi, meio sem saber direito por que, me formar como perito mercantil. Acho que sempre fazia essas coisas sem saber muito a razão. Meio intuitivamente. Durante todo meu período de escola, tanto primária quanto secundária, sempre fui bom aluno, com boas notas. Mas, na verdade, não me lembro nunca de ter estudado efetivamente. Minha vontade sempre foi a de entender imediatamente o que vinha dos meus professores. Naquela época, por exemplo, estava-se iniciando a adoção do ensino da matemática moderna nas escolas. Nossos professores tinham que ensinar ao mesmo tempo em que aprendiam aquela novi-

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dade e faziam isso absolutamente apaixonados pela nova descoberta que estavam fazendo e de algum modo seduziam os alunos com essa paixão. E estou falando de matemática! E, embora eu nunca tenha me dedicado como deveria aos números, sempre tive as maiores notas. Acho que devo creditar um pouco desse meu empenho ao fato de ser um autêntico virginiano, que tem como característica o gosto pelas ciências exatas. Basta lembrar que o verbo de virgem é analisar, perscrutar. Toda a coisa da lógica sempre me atraiu muito. Tudo o que envolvia reflexão, raciocínio, representava uma imensa diversão para mim. E, ao mesmo tempo, eu era um aluno que estava constantemente envolvido com a turma da bagunça. Sempre gostei de sentar com as meninas, pois ao mesmo tempo que eram bagunceiras, eram muito espertas, inteligentes. E isso continuou depois: nas companhias de dança em que trabalhei, sempre fiquei do lado das pessoas divertidas, até um pouquinho bagunceiras, mas sempre as melhores bailarinas.

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E a dança? Onde entrava a dança em tudo isso? Ela veio entrando em todos os momentos de minha vida, mesmo que não diretamente. Minha observação da movimentação e dos gestos das pessoas de minha família já era uma forma de dança. As histórias que eu contava, as peças de teatro em casa, os espetáculos na escola que eu organizava... Tudo era um caminho de dança que já se delineava aos poucos. ***

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A escola sempre representou para mim um laboratório de novas experiências, quase todas artísticas. Lembro-me que se pedia muito aos alunos que fizessem todas as ilustrações dos trabalhos sobre os temas que estávamos estudando, independentemente da disciplina. Eu adorava fazer isso. Nem sei se desenhava bem, mas creio que para idade que eu tinha, nunca tendo frequentado um curso de desenho, conseguia alguns resultados que me satisfaziam e que arrancavam elogios dos meus professores.

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Lembrando de tudo isso, o que me chama a atenção hoje é que todos os meus desenhos eram enormes. Nos cadernos comuns, por exemplo, eu precisava fazer numa folha em separado, dobrar e colar nas páginas, já que sempre fazia desenhos imensos. Se eu gostava já de fazer longos espetáculos na escola, que precisavam ser encurtados para não chegar a 5 horas de duração, gostava também de tudo que tivesse uma perspectiva de algo que deveria ser visto de longe, de algo grandioso. E essa minha habilidade foi-se desenvolvendo aos poucos. Se havia uma festa de aniversário, e os enfeites deveriam ser feitos, eu logo me candidatava. Adorava copiar os motivos do Walt Disney, como Peter Pan, A Bela Adormecida, A Branca de Neve e todos aqueles contos e filmes que eram moda na época. E tudo era imenso. Não podia ser diferente. Mas era um imenso pelo menos para o meu tamanho. Era a sensação que eu tinha. E era também o meu inegável atrevimento de fazer sempre essas coisas nesses tamanhos. Nunca fiz nada pequeno, nunca. ***

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Nós, mesmo sendo filhos de operários, íamos toda semana ao cinema. Nas terças ou quartas-feiras era o dia das damas, ou o Lady Day, como era conhecido. Nesse dia, o cinema custava mais barato, e minha mãe, logo depois do almoço, fazia um lanchinho, colocava tudo numa sacola e íamos todos assistir a três filmes seguidos. Geralmente, era apresentado um filme americano, um espanhol e outro argentino. Todos, na verdade, relativamente velhos. Nenhum lançamento importante. Mesmo assim, esse era um programa que adorávamos fazer todos juntos. Desde cedo, eu já tinha o hábito de ir ao cinema. Todo aquele ambiente, com as poltronas, a tela, enfim, tudo aquilo se tornava familiar para mim. E essa sensação ficava ainda mais forte porque assistíamos aos filmes comendo os sanduíches que minha mãe havia preparado, quase como num piquenique. E, assim, as horas passavam e saíamos geralmente à noite de lá: eu, minha mãe, minhas duas irmãs e quase sempre alguma vizinha, já que fomos muito sociáveis no bairro.

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Tinha uma família que residia perto de nós, no mesmo quarteirão, que nos marcou de forma especial. Era a família Sánchez Zambrana, vindos da Andaluzia, na época do governo franquista. Carmita e Pepe e suas três filhas se tornaram nossos amigos. Por coincidência, suas filhas tinham quase as mesmas idades da gente: Silvia, a mais nova, Adele, que regulava com minha idade e a mais velha, Chiqui, nome carinhoso que vinha de Chiquita.

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Com elas, tive a grata oportunidade de conhecer muitos costumes daquele povo, sobretudo suas danças. Tanto que hoje, por exemplo, mesmo sem nunca ter feito dança flamenca, tenho conhecimento daquilo, desde a impostação física, os detalhes de movimentos, tudo. Acho que era porque eu havia convivido de certa forma com a fonte, coisa que até hoje me serve demais no meu trabalho como coreógrafo.

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Até o modo como eles falavam o espanhol, com aquele sotaque carregadíssimo da Andaluzia, extremamente exagerado e um tanto nasalado, me interessava. Eles tinham o hábito de falar muito, às vezes quase gritavam, sempre com uma movimentação grandiloquente e gestos amplos. Tudo isso, claro, me chamava a atenção porque era a exata oposição de como tudo acontecia em minha casa, onde imperava o silêncio, o movimento contido, o controle. Tudo era diametralmente oposto na casa dos Sánchez Zambrana. Era uma espécie de algazarra, e havia sempre motivo para se cantar e dançar. Uma casa alegre. E contagiante. Na época da Semana Santa, por exemplo, como meus tios tocavam violão e minha mãe tinha bumbo em casa, algo bem típico do folclore argentino, e eu tinha que tocar acordeom, mesmo detestando, reuníamonos todos no apartamento deles, que era bem menor que o nosso. Lá, se juntavam umas 50 pessoas, todas cantando, festejando, enquanto se cozinhava muito, o tempo todo. Isso era típico deles, dos mouros: aquele frio de inverno, a casa toda fechada, cheia de gente e aquele cheiro forte de comida, de fritura, tudo misturado. Era uma festa.

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E o modo como eles contavam das festas da Semana Santa e das maneiras de cantar as Saetas, músicas cantadas nessa parte da Andaluzia, me fascinava. Acompanhadas unicamente por tambores, as Saetas eram feitas como as músicas dos repentistas brasileiros, ou seja, eram livres, espontâneas, imediatas. Vinha a procissão com a imagem da Virgem cheia de facas de ouro cravejadas de diamantes, fincadas em seu coração, ladeada de velas, trazida pelas pessoas com capuzes que iam fazendo os ritmos marcados, passando pelas ruazinhas antigas da cidade. Contavam que os balcões das casas ficavam cobertos por mantos pretos e seus moradores suplicavam cantando uma graça, algo quase como uma marcha fúnebre. Toda vez que me contavam isso, ficava impressionado. Aquilo era divino, em todos os sentidos. 61

Isso me fez lembrar também o modo como nossa família festejava a Semana Santa. Minha mãe e nós três tínhamos o costume, quase uma superstição, de visitar sete igrejas nessa ocasião. Naquela época, a missa de ressurreição era à meia-noite. Entrávamos na igreja, que não tinha luz, apenas uma ou duas pequenas velas no altar para não ficar totalmente escuro. As imagens ficavam todas cobertas por um tecido roxo e quando dava meia-noite, o sino começava a bater forte. Assim, desde o átrio até o altar, vinha o bispo caminhando pelo corredor com seu séquito. Muito incenso no ar. À medida que iam entrando na igreja, o coral começava a cantar aleluia pela ressurreição, acompanhado pelo órgão. E então as cordas eram puxadas para fazer cair os tecidos dos santos, que surgiam como se nos olhassem lá de cima. Nesse exa-

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to momento, todas as velas e as luzes eram acesas. Fantástico. Toda essa forma de ritual, de espetáculo, de alguma maneira me alimentou muito.

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Outra lembrança que também me alimenta são nossas idas ao teatro. Em Buenos Aires, existe uma avenida central chamada Avenida de Maio, repleta de prédios de arquitetura art nouveau e que até hoje estão bem-cuidados. No início do outro século, muitos espanhóis vindos da região de Galícia logo se instalaram naqueles arredores e essa avenida passou a contar com dois ou três teatros especializados em espetáculos típicos da Espanha. Eram as chamadas zarzuelas, um gênero equivalente à opereta alemã, ou algo mais modesto, e que tem um enredo meio falado e meio cantado, inventado e adaptado pela corte espanhola, que adorava apresentá-la nas reuniões da nobreza. Na Argentina elas se transformaram em espetáculos que falavam um pouco sobre cada região da Espanha, com suas danças e músicas. E, às vezes, faziam uma espécie de viagem ao redor do mundo, apresentando em quadros os diversos países e suas culturas, como também acontecia aqui no Brasil, com os teatros de revista. Além das zarzuelas, vinham também espetáculos de canto e dança, muitos deles mostrando costumes e culturas regionais, como um cartão turístico de varias partes da Espanha. Minha família, típica família de operários, se dava ao luxo de assistir, talvez em um dia mais barato, as zarzuelas sempre que era possível. Sem dúvida,

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tratava-se de um programa especial para nós. Como nunca tivemos automóvel, íamos de ônibus até um ponto e completávamos o percurso a pé, o que gostávamos muito de fazer. Caminhar à noite em Buenos Aires, sobretudo no centro, era felizmente um hábito comum e elegante. Íamos eu, minhas irmãs e minha mãe. Meu pai raramente nos acompanhava, porque além de ser pouco dado a esses programas sociais, tinha a desculpa de que precisava acordar bem cedo para trabalhar, lá pelas 4h30 da manhã. Mas, um programa que ele não perdia, além do seu preferido, o futebol, eram as apresentações do Holliday on Ice, no Luna Park, ao que sempre nos levava com entusiasmo e admiração, assim como nos levava a parques de diversão e aos circos que visitavam a cidade.

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Além das zarzuelas, assistimos aos muitos espetáculos de dança espanhola. Numa dessas ocasiões, tive a oportunidade de ver Antonio Gades, ainda muito novo, quando ainda era apenas um bailarino de uma companhia. Mas seu nome nunca me saiu da cabeça, desde o primeiro momento que o vi. O principal teatro da Argentina, o Teatro Colón, frequentávamos pouco. Ou quase nunca. Não me lembro de ter visto algum balé nele na minha infância. Os concertos eram mais comuns, sobretudo em sessões especiais durante o dia, como atividade da escola. Peças de teatro infantil raramente assistíamos. O gosto era mesmo voltado para os musicais com danças folclóricas argentinas e espanholas.

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Mas o curioso disso tudo é que hoje percebo que fico mais emocionado ao lembrar dos cultos da igreja do que do teatro. Penso que no teatro as pessoas estão sentadas, lendo um programa e possivelmente falando banalidades, enquanto aguardam a peça. Na igreja, as pessoas estão no escuro, rezando o terço juntas, o incenso sendo passado assim, na cara, um silêncio sepulcral. Tudo isso teve sempre um impacto em mim muito maior do que o teatro. Ali, não se é só um observador. Todos são intimados a participar: cantando, levantando-se, orando em pé, escutando o sino, se ajoelhando, abaixando a cabeça... Aquilo era visceral. Era feito para comover as pessoas, no sentido primeiro da palavra comoção. Aquilo era feito realmente com o intuito de provocar os ânimos, de provocar a alma. 64

Um outro elemento importantíssimo de minha infância, que contribuiu de forma definitiva em minha formação artística, foi o rádio. Como entrávamos no colégio às 7 horas da manhã, imagino que acordávamos por volta das 6. Depois que minha mãe nos acordava, ela ligava o rádio que estava sempre sintonizado numa estação nacional dedicada a programas de cultura. Ouvíamos a hora oficial, depois algumas notícias e as previsões do tempo, até que chegava a hora das músicas. Aí, ouvia-se de tudo: música erudita, popular, folclórica e típica. Chamávamos folclórica o que tinha a ver com o campo, e típica o que tinha a ver com a vida urbana, estilo que teria no tango sua maior representatividade. Assim, na hora do café da manhã, me acostumei com a Nona Sinfonia de Bethoven, seguida da canção El dia en que me quieras, com Carlos

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Gardel e Zamba de mi esperanza com Mercedes Sosa. Tudo misturado. Tudo convivendo harmoniosamente junto. Dessa forma, todos os estilos de música foram apresentados a mim de um modo que pude reconhecer a qualidade de cada um, independentemente do que estava sendo tocado. Isso me permitiu desde sempre não ter nenhum preconceito com música. Ela estava lá, todos os dias pela manhã. E eu sem perceber, já vinha amadurecendo minhas percepções. *** Eu estava adiantado no colégio por causa da época do ano em que nasci. Pela idade que eu tinha, deveria esperar o ano seguinte para poder ser matriculado. Só que quando comecei, em companhia de outras crianças pequenas do bairro, a passar as tardes com uma professora especialmente contratada para cuidar de nós, ela logo convenceu minha mãe a colocar-me na escola. Eu deveria ser muito esperto com a idade que eu tinha. Convencida, minha mãe não teve dúvida: mentiu sobre minha idade e conseguiu que eu fosse matriculado na escola antes do tempo permitido. Assim, me formei na escola secundária com 17 anos, quando a maioria se formava com 18.

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No último ano, então, comecei a trabalhar como office boy ou cadete, como se chama essa profissão por lá. Tratava-se de uma decisão minha que logo foi acatada por todos da família. Eu estudava de manhã, entre sete da manhã e uma da tarde, ia para casa, almoçava, e das duas até as sete horas, dedicava-me à minha nova atividade.

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Como office boy, fui trabalhar com um vendedor de artigos elétricos, como tomadas, fios, lâmpadas, esse tipo de coisa. Ele precisava de uma pessoa que o ajudasse, recebendo os pagamentos, preenchendo as notas fiscais, controlando os cheques. Aprendi todas essas tarefas rapidamente, afinal eu faria qualquer coisa para me ocupar durante as tardes. Um dos motivos era bastante importante: esse era justamente o período em que aconteciam as aulas de Educação Física no colégio e, por sorte, eu não precisava frequentá-las, porque estava trabalhando. Mas o verdadeiro motivo era outro: eu simplesmente de-tes-ta-va aquelas aulas.

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Esse desinteresse por essa disciplina pouco tinha a ver com minha relação com meu corpo. Não me lembro de ter sido exibicionista e nem de ter grandes problemas com ele. Mas na época da adolescência, da puberdade, pelo fato de estar adiantado na escola, ficava sim um tanto envergonhado nas poucas aulas de Educação Física que frequentei. Sobretudo nos vestiários, quando eu tinha que tirar a roupa. Acho que era porque eu não tinha pelos, nem debaixo dos braços e nem pentelhos. Era novinho, com meus 11 anos, enquanto todos os coleguinhas já tinham seus 12 para 13. Para criança, isso já era muita diferença. Lembro de todos com muitos pelos, orgulhosos por já estarem se tornando homenzinhos e eu ali, sem nenhum pelinho para contar vantagem. Era uma espécie de timidez do pelo que me assaltava. Lembro que cheguei a raspar a penugenzinha minguada que eu tinha, porque tinham me garantido que se raspasse, cresceriam pelos mais vistosos rapidamente... Que

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besteira, meu Deus... Até hoje não tenho muitos pelos. Acho que por descendência de minha mãe índia. Mas nas aulas de Educação Física havia a parte de ginástica rítmica, com polichinelos ou coisas assim, que eu achava mais interessante. Isso porque era, de alguma forma, mais organizado: filas, contagem, um início, um meio e um fim. Eu conseguia encontrar um pouco mais de lógica naquilo. Mas na hora de jogar basquete ou futebol, o momento constrangedor sempre vinha à tona: ninguém me escolhia para o time, simplesmente porque eu era mesmo péssimo jogador. Outra coisa que odiava era o tal corredor polonês: todos os alunos apostavam corrida e o último que chegasse deveria passar por um corredor formado pelos colegas, que batiam nele. Cheguei a ver meninos ensanguentados depois daquela brincadeira estúpida. Uma manifestação machista de brutalidade, que me produzia um mal-estar enorme. Mas continuava a participar, engolindo a seco tudo aquilo, porque se não as consequências poderiam ser ainda piores.

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Eu não gostava de nenhuma atividade física. Curiosamente. Sempre fui magrinho, mesmo mais tarde, na dança. Quando criança, eu era um espaguete: panturrilha e coxa eram a mesma coisa. No quinto ano da escola secundária, por exemplo, fui reprovado por faltas, já que trabalhava à tarde. Mas o pior era minha inabilidade com os esportes, o que me fazia ficar de recuperação e ter que prestar exame complementar durante o período das férias. Acredito que fui o único da escola a ser reprovado em Educação Física naquela

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época. Já meu pai adorava assistir futebol nos fins de semana. Umas poucas vezes, chegou a me levar com ele, mesmo que eu não demonstrasse lá muita vontade para isso. ***

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Eu tinha uma colega na escola secundária chamada Maria Inês Fernandez, de família espanhola, de quem gostava muito e de quem gosto muito até hoje. Nunca perdemos o contato. Quando eu trabalhava como office boy, até as 7 horas da tarde, como se diz na Argentina, antes de ir para casa, passava na casa dela, que morava perto de nós, num casarão velho. Durante toda tarde, enquanto eu trabalhava, Maria Inês ficava fazendo o resumo da lição que havíamos tido pela manhã. Quando eu chegava, sua mãe me trazia café com leite e um sanduíche, porque já sabia que eu estava a tarde inteira trabalhando e, por isso, faminto. Enquanto comia, Maria Inês lia para mim todos os resumos que ela havia feito e, no dia seguinte, se tínhamos prova, eu tirava dez, e ela não. Até hoje ela se lembra disso. E a gente sempre ri quando ela conta. Mais uma vez, penso que eu conseguia registrar melhor as informações que me chegavam através do ato de ouvir, mais do que pela leitura. Hoje, Maria Inês ainda mora em Buenos Aires. E é ainda umas das poucas pessoas daquela época que ainda encontro, além de Nora Rio, que se sentava na carteira de trás, com Maria Inês, e que sempre me ajudava a sair do sufoco nas provas de inglês, para o que não tinha nenhum talento, até hoje. Aliás, ela vai

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uma ou duas vezes por semana ficar com minha mãe, para conversar, ajudar, fazer algumas compras, essas coisas. Como é formada em psicologia, acho bom que faça companhia à minha mãe. E quando vou visitá-la, tenho sempre a chance de ouvir as mesmas histórias de nossa adolescência, o que é um prazer. *** Existe uma passagem dos meus tempos de escola secundária que sempre conto para os bailarinos com quem estou trabalhando: havia uma professora da disciplina de Direito Civil, que tinha uma miopia muito forte e usava óculos com lentes grossíssimas. Como nossa sala era pequena, e eu estava sempre sentado nas primeiras filas com as meninas mais bagunceiras, elaboramos um plano sofisticadíssimo para incomodar a tal professora. Algo de pura maldade. Coisa de adolescentes. Todos juntos, sérios e fingindo concentração no que ela nos dizia, executávamos um pequeno movimento pendular com o tronco, de um lado para o outro, bem lentamente. A professora, em sua miopia cavalar, tinha então a impressão de que a sala estava balançando, o que lhe causava uma certa tontura, ou um mareado, termo que passou a batizar nossa brincadeira. Aquilo era realmente uma bagunça. Basta imaginar o efeito de todos os alunos vestidos iguais, de terninho e gravata, fazendo aquele pequeno movimento, bem sutil. O efeito era preciso e im-pla-cá-vel. A professora ficava perturbadíssima e mandava que parássemos imediatamente com aquilo. E retrucávamos, dizendo que não estávamos fazendo nada. Que estávamos quietos. Meu Deus, tamanha era nossa crueldade...

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Mas o mais impressionante no mareado era nossa sincronicidade absoluta: todos faziam juntinhos o movimento. Ninguém errava. E olha que não tinha contagem, nada. E por que conseguíamos isso? Porque entendíamos perfeitamente qual era o efeito que deveríamos produzir. Isso é, para mim, o que se pode chamar de dança de conjunto. E essa era, com certeza, minha primeira aula dessa dança de conjunto. E por isso conto essa história sempre para os bailarinos, para que eles entendam exatamente o efeito que se quer causar com aquela dança. ***

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Terminado o ano, com meus quase 18 anos, troquei de emprego, mas não de trabalho. A Argentina sempre foi uma grande exportadora de cereais e grandes empresas do setor estão sediadas em Buenos Aires, sobretudo na região central, ali pelos arredores da Avenida Corrientes e el bajo, o baixo, a parte baixa, antigo reduto de tangueros e, à noite, devido à sua proximidade ao cais do porto, uma zona repleta de night clubs. Fui trabalhar numa delas como office boy. A diferença dessa vez era que, além de trabalhar dentro da firma, onde eu tinha até uma escrivaninha, também trabalhava fora, fazendo alguns serviços de rua. Sempre muito alinhado, de terno e gravata, eu era responsável pela parte de entrega de materiais e também organizava os arquivos, repletos de armários, onde eu organizava os contratos, ordenando-os pelos números, já que naquela época ainda não se podia contar com computador. Eles até já existiam,

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enormes, com rolos, cartões perfurados, mas não funcionavam dentro da empresa, mas, sim, em outro prédio, e pertenciam a uma empresa que prestava serviço de computação para outras empresas. Sempre tive iniciativa nos meus trabalhos, desde o primeiro emprego. Sempre fui voluntarioso. E isso certamente era o que me distinguia dos meus colegas, dos outros cadetes. Nessa segunda empresa, por exemplo, coloquei rapidamente um monte de trabalho atrasadíssimo em dia, mesmo antes que me mandassem. Procurava sempre ser competente no que escolhia fazer e aquilo tudo relacionado a arquivos me parecia sempre muito lógico, quase óbvio. Certo dia, novos funcionários contratados chegaram para esta multinacional e, entre eles, mais dois cadetes. Então, automaticamente, me pediram que eu os instruísse. Ou seja, passei a ser uma espécie de chefe deles, e isso tudo em questão de meses. Comecei, então, a dirigi-los, determinando o que e como deveriam executar cada tarefa, o que me deixou praticamente sem nada para fazer. Claro, pois aquele serviço uma só pessoa daria conta tranquilamente. Assim, comecei a tirar proveito da situação e passei a fazer coisas mais simples, como entregar algum contrato fora da empresa e esperar pela assinatura. Por pura iniciativa minha, enquanto guardava as cópias dos contratos, que eram milhares, nos arquivos, comecei a recalcular as tarifas e impostos pagos na Bolsa de Cereais. Com isso, acabei descobrindo vários erros nesses cálculos, e informei ao chefe de sessão, que logo me incumbiu de verificar todos os contratos e,

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caso apresentassem erros, eu deveria consertar junto à Bolsa. Dessa forma, separava diariamente alguns contratos que deveriam ser verificados, e com Jorge Xavier, meu subalterno preferido, saíamos à rua para resolver os problemas e depois aproveitávamos a tarde para passear pela bela Buenos Aires central, tomar café ou até um cinema.

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Nesse momento, ano de 1969, eu já tinha terminado a escola secundária e estava sem saber que curso fazer na faculdade. Foi justamente um período em que caí numa profunda depressão que eu não identificava como tal, pois nem sabia o que era isso. Eu sempre tinha sido desse jeito: melancólico, solitário, triste. Sem mais nem menos, numa tarde depois do trabalho, me hospedei num hotel da Avenida de Maio e tive meu primeiro impulso tomando comprimidos. Acordei no hospital com Jorge Xavier ao lado da cama me perguntando: Loco, que hiciste? Quando me recuperei e quis voltar ao trabalho, eles me deram aviso prévio e me tiraram da empresa. Não me queriam mais. Sem dúvida, um golpe para mim. Em casa nada se comentou sobre o ocorrido. Em casa era sempre silêncio. *** Era uma depressão que, de certa forma, eu havia captado no ar daquela cidade que era Buenos Aires. Tudo ali encerrava uma tendência depressiva imensa. Não é por acaso que as letras dos tangos se referem o tempo inteiro a morrer, ao sofrimento, à solidão. E não estou falando de um compositor ou outro, mas

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de um povo inteiro, de uma cultura. E o tango, nós argentinos sabemos, exprime exatamente o sentimento do nosso povo. Depois do trabalho ou nos fins de semana, por exemplo, se eu e meus amigos íamos a um cinema ou assistíamos a uma peça de teatro, obrigatoriamente íamos depois a um dos tantos cafés que existem na cidade e ali falávamos um pouco de literatura, ou o que pensávamos sobre um determinado texto recémlançado que havíamos lido. Tudo isso era muito bom e comum, mas de alguma forma um ar depressivo tomava conta de todos nós, quase como uma moda. Sem me dar conta direito, acabei sucumbindo a esse jeito de ser meio melancólico, tedioso, cinza, que estava no ar de Buenos Aires. 73

Passados poucos meses, viajei para Mar del Plata, um balneário turístico ao sul de Buenos Aires, cidade onde nasceu aquele que fez do tango não só a dança e o canto dos argentinos, mas que soube reunir os sons da cidade e do sentimento portenho com extrema precisão e detalhe: Astor Piazzolla. E lá, durante um inverno extremamente frio e melancólico, tive outra crise de depressão. Acho que tudo ali era ainda pior que minha cidade. Só para se ter uma ideia, na praia principal dessa cidade, foi esculpida numa pedra a figura de Alfonsina Storni, poetisa argentina que se suicidou andando para dentro do mar... momento que foi poeticamente registrado na canção Alfonsina y el mar, gravada por Mercedes Sosa. Sua estátua estava lá, como que nos lembrando todo o tempo de sua morte, de sua tristeza e solidão.

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Tudo acontecera semelhante à primeira vez: hotel, comprimidos, hospital. Só que mais intenso. Tanto que fui obrigado a ficar internado num hospital psiquiátrico por mais de um mês. Minha querida tia Dora, irmã de minha mãe, que morava nessa cidade, foi avisada. Ela, então, imediatamente comunicou minha família, e se dedicou a me cuidar, indo me visitar sempre que podia. Minha mãe também viajou algumas vezes para me ver e, logicamente, não conseguia esconder a dor e a preocupação que tudo aquilo lhe causava.

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Foi uma época muito forte, que me proporcionou uma aprendizagem importante. Mesmo sendo modesto, era um ótimo hospital público. Foi uma época dura para mim e, claro, para todos de minha casa, que acabaram sabendo da fase difícil que eu passava. Fizeram certamente tudo o que estava ao alcance deles para me ajudar. E se eu sempre quis parecer independente, decidido, nesse momento não hesitei em mostrar meu lado extremamente carente, meu lado vulnerável. E aceitei todas as ajudas. Hoje, considero todo esse episódio uma experiência psicológica transfiguradora, voltando-me inteiramente para dentro nessa época, abrindo-me para o inconsciente e mergulhando nele. Ao voltar a Buenos Aires, senti que uma considerável mudança tinha acontecido em mim, mesmo sem poder ainda descrevê-la. Mas hoje consigo reconhecer que esse foi um período muito interessante para mim. Tão interessante

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que o diretor da ala psiquiátrica do hospital, doutor Jorge Smith, um senhor careca e baixinho, simpatizou-se comigo e propôs que eu fizesse umas sessões no consultório particular dele. Ele era um homem de aguda inteligência e perspicácia. Apesar da minha idade, tratava-me de igual para igual e tivemos conversas profundas e inteligentes que me ajudaram muito, assim como experiências de hipnose muito fortes e marcantes. Dentro desse hospital, acabei vendo situações intensas. Assisti gente morrer, convivi com pacientes com problemas mentais, outros com problemas de alcoolismo. Lembro-me de uma madrugada, dentro da psiquiatria, em que vi uma freira correndo, desesperada, tentando localizar um médico pelo telefone. E um paciente em estado de convulsão delirante. Impulsivo, e como sempre oferecido, automaticamente me levantei da cama disposto a ajudá-la. Ela me ordenou que voltasse para cama imediatamente. Antes de ir, a vi subindo em cima daquele paciente, sozinha, numa última tentativa de controlá-lo. Uma imagem forte, sem dúvida, que nunca saiu da minha cabeça.

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Nós tínhamos muita atividade lá dentro. E a principal delas era o desenho, material que depois era usado pelos psicólogos em suas interpretações sobre nosso estado. Como eu estava sempre bastante lúcido, me ofereci para ajudar as enfermeiras e rapidamente passei a auxiliá-las no controle dos medicamentos dos pacientes. Não que eu assumisse toda essa responsabilidade. Elas apenas me davam as bandejinhas com os nomes, tudo separadinho, e eu passava pelas

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camas, chamando a atenção, dando ordens a todos. A mesma coisa de sempre, ou seja, esse desejo, esse ímpeto em querer fazer, querer ajudar, querer organizar, querer mandar. Daí em diante, começaram a me dar uma autorização para sair do hospital durante o dia. Assim, eu podia ir à casa de minha tia e voltava à noite para dormir. Quase como uma prisão em regime semiaberto. Até que finalmente me foi dada alta.

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Um pouco antes disso tudo, eu havia começado a namorar uma moça em Buenos Aires, Norma Sánchez, mais velha que eu, que tinha voltado da Espanha após a separação de seu marido. Um namoro um tanto estranho, mas éramos mesmo namorados. Lembro que ela ficou chocadíssima quando soube do ocorrido, pois jamais desconfiaria que eu tivesse essa tendência. Sempre fui muito brincalhão, sobretudo com ela. Durante a internação, recebi um presente seu, um livro, que eu tenho até hoje e que gosto muito de ler e reler: Tao Te Ching de Lao-Tsé. Quase não entendo o que está escrito lá. Mesmo assim, cada vez que leio, alguma coisa se modifica em mim. *** De volta a Buenos Aires, comecei a procurar emprego novamente. Comecei a trabalhar numa empresa prestadora de serviços, recebendo por hora. Estranhamente, essa foi uma época em que trabalhei muito. Era, talvez, uma reação. Lancei-me com todo o empenho ao trabalho e logo comecei a ganhar muito dinheiro, por causa desse esquema de receber por hora. E havia ainda o fato de que eu morava com

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minha família, uma economia no meu orçamento em relação à moradia e à alimentação. Nesse momento, comecei a pensar em cursar uma faculdade. Prestei vestibular para o curso de direito. Passei. Fiz meio ano e parei. Depois foi a vez do curso de arquitetura, que durou para mim apenas três ou quatro meses. Por fim, comecei a estudar cenografia, na Universidad de El Salvador, uma instituição privada, e uma das mais importantes em Buenos Aires até hoje. Comecei e novamente parei. Nunca cheguei a completar sequer um ano nos três cursos que tentei. Mas como eu mesmo custeava meus estudos, meus pais apenas me cobravam que eu terminasse algum curso um dia. Mas eu ainda não havia encontrado minha profissão, meu ofício.

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Paralelamente a todas essas tentativas, eu continuava sempre a ir assistir filmes. Adorava ir ao cinema. Alguns deles eram filmes de dança: O lago dos cisnes, filme russo com Maia Plissetskaya, e Romeu e Julieta, com Galina Ulanova. Mas o filme que me causou o maior impacto foi Morte em Veneza, de Luchino Visconti. E não era um filme de dança. Assisti também a alguns espetáculos da companhia de Oscar Araiz, do Teatro San Martín, que sempre gostei muito. Ele havia formado o Ballet Contemporâneo de la Ciudad de Buenos Aires, com sede naquele teatro, nosso teatro municipal, enquanto o Teatro Colón era nosso teatro nacional, pois estava sediado na capital do país.

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Outra oportunidade que tive de entrar em contato com a dança vinha através dos programas de uma emissora de televisão oficial argentina dedicada às artes, no canal 7. Eles sempre exibiam balés, e me lembro muito de assistir a uma filmagem que não lembro se foi transmitida ao vivo de uma apresentação de Rudolf Nureiev em O quebra-nozes no Teatro Colón. Essa sim foi uma imagem poderosa para mim. Não me lembro se ele saltava, se ele girava, se ele levantava a perna, nada disso. A única coisa de que me lembro era da imensidão do palco do Colón, um enorme candelabro no lado esquerdo, e que ele entrava em cena correndo, de malha branca, e depois terminava caminhando em direção ao público. O impacto foi violentíssimo. Mesmo pela televisão. Tive a sensação de, pela primeira vez em minha vida, estar vendo um animal se mexendo. Eu ainda não tinha 20 anos, e aquilo imprimiu em mim algo que eu ainda não conseguia dar nome. Mas que aos poucos reconhecia sua existência. *** Eu tinha um colega, e ainda hoje um amigo, Miguel Ángel Ibáñez, que sempre me acompanhava ao cinema e ao teatro. E com quem eu sempre tomava um café para discutir o que havia acabado de assistir. Ele sempre me cobrava: Ah, Luis, você já viu tal filme? Ou tal peça? Já leu tal livro? Se ainda não leu, você é um bruto! Essa espécie de cobrança intelectual era típica da Argentina naquela época. E ele, como bom argentino, não fugia à regra. Mas eu não era assim. Isso não fazia parte do meu temperamento. Como

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gostava da companhia dele e como ele sempre me cutucava, me instigando a assistir isso e aquilo, ia com ele e, no fim, acabava achando o programa ótimo. Um dia, fomos assistir, também no Teatro San Martín, Romeu e Julieta, coreografia de Oscar Araiz. Era 1970. Essa mesma versão seria montada também, quatro anos mais tarde, para o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Pois bem, não sei exatamente se sempre fui ingênuo ou extremamente ignorante. E dou graças a Deus por isso. Enfatizo: dou graças a Deus por essa minha primeira ingenuidade ou ignorância porque elas me permitiram naquela época que eu tivesse uma abertura imensa a respeito de tudo que eu recebia como novidade. Eu era poroso, disponível. E isso fez a total diferença em tudo o que eu construiria em dança mais tarde.

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Lembro que, após assistir à encenação de Romeu e Julieta, fiquei com uma sensação estranha de que eu sabia fazer tudo aquilo. Desde dançar, fazer os figurinos e cenários, pensar na iluminação, abrir e fechar as cortinas, enfim, tudo. Eu sabia fazer. E essa sensação não vinha de um suposto pedantismo. Era quase vital em mim. E o mais curioso: eu nem atinava que era necessário antes de tudo aprender a dançar, que aquilo era algo que se aprendia. E também nem sabia da existência da figura do coreógrafo. Pensava que havia apenas um diretor, acostumado que estava com o mundo do cinema. E que os bailarinos já sabiam fazer aquilo desde criança. Talvez eu acreditasse que eles, antes de abrir a cortina, liam a peça Romeu e Julieta, combinavam o que deveriam

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fazer e a partir disso cada um sabia exatamente como proceder em cena. Uma maravilha, não? Não deveria ser mesmo assim? Esse meu amigo, que se encarregava de me desburrizar um pouco, me explicou que existia um coreógrafo, como se formavam os bailarinos, e todo o universo que se escondia por trás daquela cena de dança. Mas nada disso era tão importante quanto aquela sensação que havia me invadido. Hoje em dia sou muito amigo de Oscar. Sempre conto essas coisas para ele, que morre de rir. Tornar-me amigo dele foi um presente que a vida me deu. Assim como aquela oportunidade de ficar frente a frente com a dança. Pela primeira vez. ***

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E eu seguia trabalhando por serviços prestados, mas, agora, para uma empresa conhecida, a Lever, que fabrica produtos de higiene pessoal e limpeza doméstica. Eu era responsável pelo controle dos dados do estoque no depósito de mercadorias da central de Buenos Aires, o que, definitivamente, não era pouca coisa. Fazia manualmente todo o controle de entrada e saída de mercadorias, que era comparado com as informações que vinham da empresa contratada de computação, uma novidade para a época. Como ela não funcionava no mesmo prédio, seus dados sempre vinham depois dos meus, feitos à mão, na ponta do lápis. Logo meus cálculos passaram a servir para verificar se os dados do computador estavam corretos e não o contrário. Algo curioso.

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Fiquei mais de um ano nessa empresa, até que um dia o diretor da minha seção, um velhinho que parecia um papai-noel, ótima pessoa, me disse: Olha... Luis, você sabe que confio em você! Nem controlar seu serviço e verificar se está tudo certo, preciso. Mas a central da empresa está me cobrando, perguntando por que eu tenho um empregado recebendo por hora, o que custa muito caro. Defendi sua permanência conosco, Luís, e eles retrucaram, dizendo: já que ele é tão competente, por que não o contratamos? Claro, fiquei bem feliz com isso. Afinal de contas, era o resultado do meu empenho. E também era um bom sinal que aquelas nuvens mais carregadas que passaram sobre minha cabeça tempos atrás haviam se dissipado definitivamente. Mas o melhor ainda estaria por vir. Esse mesmo chefe completou a conversa dizendo que eu era muito gabaritado para ficar apenas no estoque e que a empresa, disposta a me contratar, me queria trabalhando na gerência, não como gerente, claro, mas ali, ao lado daquelas pessoas importantes. Passei, então, a trabalhar numa linda sala, toda em estilo inglês. Para chegar até ela, atravessava várias salas, onde havia muita gente escrevendo à máquina, até que chegava à minha seção, imensa, com apenas três escrivaninhas. Uma delas era minha.

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Acho que eles viram em mim um futuro promissor. Mesmo sem falar inglês, eu era muito bem apessoado, me vestia bem e era educadíssimo. Eles queriam aos poucos ir me formando, para que eu fizesse uma carreira lá dentro.

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Por coincidência ou não, uma das primeiras coisas que me pediram foi um levantamento dos gastos nos três últimos anos com investimentos em espetáculos e eventos culturais. As pastas que eu abria tinham como título: Espetáculos e concertos com orquestra do Teatro Colón, Espetáculos e concertos no Lago de Palermo. Curioso que tenha sido justamente essa área. E eu estava feliz. Fazia esse trabalho aprendendo a gostar do chá que nos serviam em porcelana inglesa. Definitivamente, um novo mundo se abria para mim.

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Mas, diferente do que imaginava, esse novo mundo não seria exatamente naquela empresa. Um dia, esse meu amigo Miguel me telefonou no trabalho: Luis, estão abrindo as inscrições para a escola de Oscar Araiz. Acho que vou me inscrever. Você não quer ir também? E eu respondi, sem demonstrar muito entusiasmo: Tá... se você puder, me inscreve também... Na verdade, nem pensei muito a respeito, mas aceitei mecanicamente o que o destino me propunha. Algo novo que eu poderia ao menos experimentar. A companhia de Oscar Araiz tinha aberto uma escola voltada apenas para rapazes, devido à carência histórica na hora de se formar o elenco masculino. Era a Escuela del Ballet Contemporáneo de la Ciudad de Buenos Aires, um curso intensivo, de dois ou três anos no máximo, focado em rapazes que já tinham uma certa idade e que, após esse primeiro estágio de aprendizagem, pudessem integrar a companhia. Chegou o dia da prova de seleção dos candidatos. Era o mês de março de 1972, e eu tinha 20 e 1/2 anos.

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Naquela época, a companhia não trabalhava mais no Teatro San Martín, mas no Teatro Cervantes. Em Buenos Aires, todos esses teatros estão perto uns dos outros, e o Cervantes é aquele que fica na esquina do Teatro Colón. Um teatro pequeno, todo em estilo cervantesco, com salas maravilhosas, bem ao gosto espanhol antigo. Cheguei, me dirigi até a secretaria para verificar se meu nome estava na lista. O atendente conferiu e me disse: Está tudo certo. Você pode subir para se trocar. Trocar o quê? perguntei. Meu Deus, tal era a minha ignorância... Não trouxe roupa, um uniforme, nada?!, ele me perguntou espantado. Não sabia que tinha que trazer, respondi com aquela cara de tonto. Bem, vendo que não tinha mesmo jeito, me recomendou que subisse e perguntasse se eu poderia fazer a prova com aquela roupa mesmo. Quando estava subindo, quase atropelei uma pessoa na entrada do elevador. Era Oscar Araiz. Ele me olhou de cima abaixo e perguntou: Você veio fazer a audição? Vim, respondi, mas não tenho roupa. Tudo bem, suba do mesmo jeito. Eu ainda não sabia quem era ele. Não sabia quem era aquele jovem tão bonito, que um dia se tornaria um dos meus melhores amigos.

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Chegando numa sala linda, fiquei espantado com o tanto de gente que estava ali tentando uma vaga. Uma vaga que para mim nunca havia sido realmente desejada. Lembro que muitos rapazes tinham algum conhecimento em dança, o que me tornava ainda mais estrangeiro naquele lugar. Fomos todos divididos em grupos. E à nossa frente ficava uma mesa com Oscar e os professores que nos avaliariam.

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Era mesmo uma sala bem grande, onde ensaiava a orquestra. Num canto, havia um piano de cauda. E a sensação que eu tinha de ser estrangeiro ali se esmaecia rapidamente. Era uma sensação indelével, que não esqueço jamais. Ao observar que eu não havia ido devidamente preparado para a prova, me pediram simplesmente que tirasse os sapatos, arregaçasse a calça e tirasse minha camiseta. Fomos, então, colocados de frente para a barra, pés paralelos, em sexta posição. Ilse Wiedmann era quem coordenava tudo.

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Ilse, com seus quase 40 anos de idade, havia estudado na escola do Teatro Colón, onde logo depois passou a fazer parte do corpo de baile, nos anos 50. Depois, foi a principal assistente do coreógrafo americano John Neumeier, quando ele formou sua companhia em Hamburgo, na Alemanha. Era uma argentina de origem austríaca. Sempre morou em Buenos Aires, sua cidade natal, mas também passou muito tempo dançando em Stuttgart, onde foi colega da brasileira Márcia Haydée, com quem regulava a idade. Até hoje são muito amigas. Foi nessa época que conheceu Neumeier, ainda bailarino de Stuttgart, como ela. Quando ele foi chamado para formar a companhia em Hamburgo, fez questão que Ilse o acompanhasse. Depois de um bom tempo trabalhando com ele, resolveu voltar a Buenos Aires e permanecer com a companhia de Araiz.

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Lembro-me que colocamos a mão sobre a barra e ela nos pediu que fizéssemos um tendu para frente, estendêssemos a perna e em seguida curvássemos o tronco para trás, em um cambré. E eu então me estendi longamente, num suspiro interno, sentindo um prazer enorme naquele movimento. Até hoje tenho essa sensação viva em mim. Uma sensação extremamente emocionante. Parecia que naquele momento eu estava ali inteiro, sem me dar conta ainda do que aquilo representaria mais tarde. Num instante, senti o corpo perder seus limites, flutuando no espaço imenso da sala e o peito rasgado liberava revoada de pássaros. Nunca mais iria esquecer essa sensação. Era como nascer. Não sei mais ao certo o que nos mandaram fazer depois. Acho que tiraram a barra, e enquanto a pianista tocava, pediram que caminhássemos no ritmo atravessando a sala. De todos os rapazes, separaram uns 20, apenas. E me disseram: Amanhã você começa. Lembro até hoje: minha primeira aula foi no dia 13 de março de 1972. Meu amigo passou na prova também.

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Para as aulas, me instruíram que roupa eu deveria usar. E que as comprasse ali mesmo por perto, onde havia muitas casas que vendiam artigos para balé. Na Argentina, tênis é chamado de sapatilha também. Quando me disseram que era necessário comprar uma, apontei para os pés de Oscar, que naquela época usava tênis, perguntando se seriam iguais às dele. Não, responderam, sapatilha de meia-ponta! Sem saber direito o que aquilo significava – meiaponta? – atravessei a rua e comprei.

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No dia seguinte, fui até a empresa e comuniquei que só poderia trabalhar de manhã, porque à tarde eu começaria um curso de balé. Disse isso assim, como se diz normalmente qualquer coisa, sem me dar conta do que aquilo poderia representar para eles. Lembro da cara dos meus superiores, estupefatos. Claro, responderam que não, que isso não seria de forma alguma possível. Então apenas retruquei que, desse modo, estava deixando a empresa, que não me interessava mais trabalhar ali.

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Cheguei em casa e comuniquei à família: Vou começar a fazer balé. Assim mesmo, apenas comuniquei uma decisão que eu havia tomado e que não precisava do consentimento prévio de ninguém. Meu pai não disse nada. Ficou sério. Acho que veio tudo à cabeça dele, todo aquele machismo latino. Já minha mãe, bem mais objetiva e pragmática, disse: Desde que não seja mais uma coisa que você começa e não termina, tudo bem. Veja se faça e termine uma coisa ao menos. Ou seja: ninguém falou: Que maravilha que vai fazer balé!! Mas também ninguém me proibiu de nada. Estava bem assim. E as aulas começaram. Depois de uma semana, os professores voltaram a fazer uma nova seleção na turma e só deixaram dez rapazes. Meu amigo saiu. Eu fiquei. As aulas eram gratuitas. Ilse era nossa professora de técnica de balé clássico. Depois, durante o ano, tivemos também aula de dança moderna com Renate Schotellius, uma alemã já falecida que morou muito tempo na Argentina. Assim, desde que comecei na

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dança, o destino me colocou nos melhores lugares e nas mãos dos melhores profissionais. Nunca procurei conscientemente nada. Simplesmente fui conduzido ao que hoje considero o melhor. Se eu não consegui ser melhor, foi minha a falta de talento e não pelo que o destino me ofereceu. A partir daí, tudo começava a mudar na minha vida. Minha maneira de sentir, ver, pensar e, consequentemente, minha maneira de me movimentar. Tudo. Aquelas aulas de técnica eram minha libertação e representaram para mim um divisor de águas. Passei a viver com o dinheiro que havia juntado em meus trabalhos de prestação de serviço. Era uma boa quantia, que permitia me dedicar integralmente às aulas, ao menos no princípio. Em casa, me disseram assim: Aqui você tem comida e teto para dormir. Mas, passagem para pegar ônibus, um trocado para comer um lanche ou para ir ao cinema, isso é com você. Assim, tive que me adaptar rapidamente às novas condições. Nada que fosse um sacrifício para mim, tão encantado que estava com esse novo universo. Precisaria apenas economizar. Antes, tinha o hábito de comprar sempre muita coisa. Naquela época, usava-se terno e gravata Pierre Cardin. Era o que se considerava elegante para um jovem em Buenos Aires. E eu saía assim: terno alinhado, sapato de marca, camisa bem-cortada. A partir daquele momento, não comprei mais nada. O dinheiro tinha que ser contado para durar um tempo que se mostrava longo demais.

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Nós alunos nos trocávamos no camarim. Eu era, como sempre, extremamente tímido. Ficava quieto, só ou-

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vindo o que meus colegas conversavam. Foi aí que comecei a saber que existia um tal de balé clássico, uma tal de dança moderna, um tal de jazzdance. Esse, por exemplo, era discriminado por aqueles que se dedicavam estritamente ao balé. Havia alguns de nós que já faziam teatro de revista, sobretudo para ganhar dinheiro e poder se sustentar. E eram considerados pela turma como uma espécie de bastardos. E eu nem conhecia todas essas coisas, todas essas divisões e estilos. E todos esses preconceitos também.

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Depois de prontos, para ir até a sala que ficava dois andares acima, tínhamos que passar por um corredor onde estava a sala de ensaio da companhia. No trajeto, podíamos dar uma espiada pela porta, que tinha aquele visor de vidro. Oscar sempre estava lá, trabalhando com seus bailarinos, gente como Gustavo Mollajoli, Bettina Belomo, Julio López, Tony Abbot, Daniel Angrisani, Norma Binaghi, Ana Maria Stekelman, Mauricio Wajnrot, Freddy Romero, Irma Baz, Hugo Travers, Mirtha Amat, Estela Arcos, Cristina Barnils, Enriqueta Fálagan, Esther Ferrando, Susana Ibáñez, Virginia Martínez, Guillermo Borgogno, José Carlos Campitelli, Raul Córdoba, Julio César Guínez, Pedro Ridolfo. Ou seja, bailarinos vindos do teatro Colón, do Teatro Argentino de La Plata, ou de teatros do interior da Argentina ou do exterior. Bailarinos maravilhosos. Eu via uns nas pontas dos pés, outros na meia-ponta, outros descalços, outros de sapato. Oscar nunca teve preconceito de nada. Eles formavam uma companhia em que a ligação artística primava, não a igualdade física, nem os grandes virtuosismos, mas a comunhão artística. Todos estavam imbuídos naquilo que se fazia de uma maneira muito profunda.

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Tive certeza disso, depois de muitos anos, em 1993, quando fui coreografar para o balé de Genebra. Muitos bailarinos da época dele me diziam: Araiz conseguiu fazer desta companhia uma companhia com alma. Sim, ele conseguia dar uma alma artística ao grupo com que trabalhava, e foi desta maneira que passei a aprender e a entender a dança. E é desta maneira que ainda entendo a dança, a profissão da dança. Não sei se consigo fazer isso tão bem como ele, mas pelo menos é desta maneira que eu a entendo. Um movimento profundo de todos os envolvidos. Um modo de compartilhar experiências. Um modo de como aquilo tudo deve funcionar, para que ao chegar ao palco, chegue também à alma de quem está assistindo e provoque alguma coisa. Senão, nada faria sentido. Não me lembro de ficar apaixonado por nenhum deslumbre técnico, mesmo sabendo reconhecê-lo. O que emanava da maneira de ser feita a dança foi o que sempre me atraiu. E isso, aprendi com Oscar.

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*** Foi um ano muito rico, em todos os sentidos, pelo que aprendi diretamente ou indiretamente. Ilse Wiedmann soube nos ensinar dança de uma maneira fantástica, porque ela sabia muito bem o desnível que havia entre nós todos da turma. Uns já sabiam alguma coisa e outros, como eu, não sabiam nada. Ela então optou por partir do zero e isso foi ótimo. Mesmo tendo sido rápido, foi ótimo.

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Eu era um excelente aluno, porque sabia me deixar dirigir, permitia que o professor me conduzisse ao que ele achasse que era o melhor para mim. Lembro que, logo quando comecei, meus colegas falavam para eu ir fazer outras aulas com eles fora dali. Antes de me decidir, consultei minha professora e ela simplesmente me respondeu que ainda não era o momento, que eu esperasse que ela me sinalizaria quando isso seria bom para mim. Então não fui com meus colegas. Acatei de imediato o que Ilse me recomendou e não encarava isso como privação de minha liberdade, mas como uma entrega total de discípulo ao seu mestre. Eu confiava intuitivamente que ela saberia me encaminhar no universo da dança. Só quem se sabe internamente livre é que pode se entregar totalmente ao mestre... 90

Penso que esses primeiros momentos são aqueles em que aprendemos mais, porque estamos mais capacitados à entrega. Propositalmente, escolho a palavra “entrega”. Não se trata de abdicação de liberdade. Nunca tive problema com esse tipo de coisa. Sempre tive minha liberdade, até nos planos mais íntimos. Sempre soube quem eu era, desde criança. E sempre soube até que ponto poderia falar ou não o que eu era. Até hoje, muitas vezes prefiro calar porque sei, dentro de mim exatamente aquilo que quero. E sei que ninguém me tira o que eu quero aqui por dentro. E isso é minha maior liberdade. As liberdades “externas” não existem. São liberdades enganosas. Apenas as “internas” importam. E saber disso vem desse processo de aprendizagem.

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Aprendizagem de dança, de técnica de dança. E meu trabalho hoje é consequência daquilo que aprendi quando comecei. Porque a primeira impressão é a que mais importa. Sempre disse isso ao meu amigo Ismael Guiser. Dizia que os grandes mestres como ele, Tatiana Leskova, Yellê Bittencourt, esses grandes mestres, artistas, é que deveriam dar aulas para as pessoas que estão começando. Sei que pode parecer um pouco cruel para eles, sei que para o professor pode ser terrível dar essas aulas, mas seria a melhor impressão que essas pessoas iniciantes poderiam ter. Em geral se faz o oposto: a primeira impressão que as pessoas têm vem com menos aprofundamento. Depois se passa o resto da vida corrigindo essa impressão errada e o trabalho é redobrado. Eu tive a sorte de ter as melhores impressões desde o início. 91

As aulas começavam às três e meia da tarde e aconteciam no próprio Teatro Cervantes. Se algum aluno chegasse atrasado, um minuto que fosse, mesmo que já estivesse trocado e mesmo que a aula não tivesse efetivamente começado, Ilse dizia: Está atrasado. Volte amanhã! O aluno não entrava, porque a aula era às três e meia em ponto. E pronto. E só podíamos faltar três dias. Esse era o nosso limite. Se o aluno o excedesse, perdia sua vaga no curso. As aulas eram diárias, e a maioria era de técnica clássica, com Ilse. Quando vinha a professora de dança moderna, Renate, o que mais me impressionava era sua extrema precisão de movimentos e sua lucidez intelectual e física. Outra professora que também dava aula era Ana Maria Stekelman, que já veio várias vezes ao

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Brasil. Na época, ela dançava na companhia de Oscar. Era a bailarina que tinha o maior domínio da técnica Martha Graham na cidade. Suas aulas eram fantásticas. Como o curso era no período da tarde, pela manhã eu fazia algum trabalhinho para ganhar uns trocados. Ou então aproveitava para me exercitar. Por questões estritamente econômicas, evitava sair com os amigos, coisa que fazia com frequência antes de começar o balé. E, quando saía, ia para algum café com eles, sentava à mesa, mas não pedia nada, mesmo que tivesse vontade. Nunca vivi isso como um drama. Tudo era tão lógico pra mim, que isso também fazia sentido.

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Depois de uns meses, nós alunos ficamos sabendo que nossos professores e a pianista estavam sem receber salários. E, por isso, o curso foi encerrado antes do tempo previsto. Não tinha incentivo financeiro que precisava, como tudo que era público naquele país. Assim, as aulas aconteceram de março até dezembro daquele ano. Chegou uma hora em que eles disseram que já não era mais possível continuar daquele modo, sem receber por dois anos, já que havia uma primeira turma antes da minha. Essa primeira turma era também formada só por rapazes. Eram uns oito ou nove. Entre eles, havia um brasileiro de quem me lembro muito bem: Rubem da Silva, um mulato que eu achava lindo e que adorava cantar. Eu gostava de escutá-lo falando espanhol, com aquele sotaque brasileiro. Havia ainda um outro brasileiro, Toni Abbot, vindo de Porto Alegre e que dançou durante muito tempo em Buenos Aires,

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principalmente na companhia de Oscar. Voltou para o Brasil e hoje mora em Santos, onde é professor de dança. Naquela época, ele já estava na companhia, e o Rubem era aluno da primeira turma. Nossa pianista, uma senhora chamada Carola Arias Blanco de López, depois de uns meses, passou a vir com uma tipoia segurando um dos braços e assim tocava apenas com uma mão. Certo dia, estávamos executando um passo simples, trinta e dois temps levés na primeira posição, quando um dos rapazes parou. Ilse se virou para ele e perguntou por que ele havia parado. Ele respondeu que estava um pouco cansado, com gripe. Ela, então, parou a aula imediatamente e nos fez uma revelação: Vocês, por acaso, sabem por que a Carol toca apenas com uma mão? Porque ela está muito doente. Ela não recebe faz quase três anos e está aqui todos os dias tocando para vocês. Nós nos olhamos mutuamente, absolutamente desconsertados com aquilo que acabávamos de ouvir. E Carola emendou: Nosso país está tomado por atentados, guerrilhas e essas desgraças políticas. E sabem por que continuo tocando para vocês? Porque sou contra a violência. Tirar a música de vocês, que precisam aprender a dançar, seria uma violência!

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Essa era a minha aula. Essa era a minha professora. O que aprendi com ela foi muito além do que hoje chamamos de técnica de dança. Para mim, sempre foi muito clara a diferença entre técnica clássica e balé clássico. Sei que podem parecer, mas, definitivamente, não são a mesma coisa. Como estava fazendo aula com Ilse Wiedmann, que trabalhou com Neumeier

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e que nessa época estava trabalhando com Oscar, imagino que as aulas de balé clássico deles estavam voltadas antes para promover em nós uma estrutura básica, mais do que construir um estilo de balé clássico. Até porque, eles não faziam balé clássico em seu sentido cênico. O que queriam era que nós adquiríssemos uma consciência do que estávamos fazendo, desde o início. E uma consciência ampla, mais geral possível.

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Tempos atrás fui assistir a um espetáculo de dança, aqui mesmo em São Paulo. Quando li a ficha técnica no programa, confesso que achei curioso: Professor de técnica clássica: fulano de tal; professor de técnica moderna: sicrano; professor de consciência corporal... Professor de consciência corporal? Como assim? As aulas de balé clássico ou de dança moderna não são para consciência corporal? Para que serve qualquer aula, de clássico ou de moderno ou contemporâneo, senão para consciência corporal? Fiquei pensando: será que não entendi nada até agora? *** Um dia, depois de uns três meses de curso, minha professora me permitiu finalmente que fizesse aulas extras de dança, fora da escola. Fui então encaminhado à aula de Eduardo Helling, professor que havia estudado com ela e que lecionava num estúdio particular da cidade. Os estúdios particulares eram quase sempre ruins, geralmente situados em prédios velhos, com salas adaptadas, cheias de colunas no meio. E assim era a sala onde Eduardo dava suas aulas. Achava

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tudo aquilo ótimo. As aulas eram pagas, porque em Buenos Aires não havia o costume de conceder bolsa de estudo para rapazes, como acontece no Brasil. Não me lembro de ninguém que deixasse o aluno fazer aulas gratuitamente, por mais talentoso que fosse. Quando chegou o fim do ano, Ilse quis montar uma espécie de aulinha para mostrar a Oscar e a seus assistentes o que tínhamos aprendido naquele curto espaço de tempo. Não que ele desconhecesse de todo o que fazíamos em aula: às vezes assistia a uma aula ou outra, sempre de um jeito tímido e falando pouco. Cruzávamos com ele pelos corredores. E eu ouvia aqueles comentários típicos dos bailarinos a respeito dos coreógrafos: Ele é terrível!! ou coisas do gênero. Engraçado. O destino me fez amigo dele. Tenho aprendido muito com Oscar, principalmente quando fica hospedado em minha casa. Ele vai para a cozinha e, enquanto prepara um jantar para nós, conversamos sobre tudo. Acho que aprendo com ele ainda mais nesses pequenos momentos do dia a dia. Sinto um carinho imenso por ele, que é extremamente carinhoso comigo. Acho que deve ter orgulho de eu ter começado lá na escola dele. E eu nem cheguei a dançar em sua companhia... Ah, e é preciso que eu conte: ele cozinha muito bem!

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Pois bem, Oscar veio assistir nossa aula e então propôs que cada um de nós fizesse uma pequena composição coreográfica. Tempos depois ela aconteceu. Cada um mostrou o que tinha feito. Aquele brasileiro da outra turma, Rubem da Silva, também se apresentou. Não me lembro da parte dançada

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do solo dele, porque certamente não seria mesmo de se lembrar. Mas me lembro de um momento em que ele parava e começava a cantar Ave Maria, de Gounod. Ele tinha uma voz linda! De tudo, o que era mais inesquecível era a cara de Oscar quando terminamos de nos apresentar. Era horrível. Certamente porque o que a gente tinha apresentado deveria ter sido horrível também. Claro! Não poderia ter sido diferente: éramos ainda muito crus.

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Eu fiz meu solo. Estava na moda, na época, aquela versão com sintetizador da música de Bach, feita pelo músico norte-americano Walter Carlos, que, mais tarde, após sua mudança de sexo, ficou conhecido como Wendy Carlos. Era uma das primeiras vezes que música feita com sintetizador surgia, e ele/ela era uma pioneiro(a) do primeiro instrumento idealizado por Robert Moog. Resolvi, então, usar essa versão eletrônica para minha primeira aventura nesse universo de coreografar. Primeira aventura era modo de dizer, pois que eu já tinha feito aquilo muitas vezes, sem saber que estava coreografando, na infância e na adolescência. Minha dança, se é que se podia chamar aquilo de dança, tinha um percurso bastante delineado, que eu repetia várias vezes e que lembrava o desenho da letra eme. Quando terminei, cheguei até a ouvir alguns poucos elogios de gente que tinha achado interessante. Mas Oscar me perguntou: Que curioso! Por que você escolheu este caminho? E eu respondi, no auge de minha ingenuidade, mas com toda minha

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sinceridade: Compus essa sequência em meu quarto de dormir, que divido com minhas duas irmãs. Como ele tem três camas, paralelas umas as outras, contava apenas com esse espaço entre as camas e os criadosmudos para me mover. Por isso o formato do percurso lembrava a letra eme. Até hoje ele se lembra disso. E até hoje a gente ainda dá boas risadas sobre essa minha primeira “coreografia”. *** Fico pensando quando desisti das três faculdades que iniciei. Fico pensando na diferença que foi quando entrei nesse novo universo que se apresentava para mim: a dança. Deveria ser como o ato de nascer: não se pergunta se se quer ou não nascer. Apenas se nasce. E minha incursão na dança foi exatamente assim, algo sem escolha. Algo absolutamente vital.

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E não era ruim porque era sem escolha. Era um fato. Algo que senti apenas com a dança. Nem sabia se ela iria me tornar alguém famoso, ou feliz, ou rico, ou pobre. Não. Nada disso me passava pela cabeça. Era apenas a dança. E também porque me fazia descobrir meu próprio corpo, tanto tempo apagado de mim mesmo. E, apesar de ter sido uma descoberta relativamente tardia, aos 21 anos de idade, mesmo assim, era fascinante constatar o que meu corpo poderia expressar. Nesse sentido, sempre me vem à cabeça, sobretudo quando estou coreografando, algo importantíssimo que Ilse me falou certa vez durante uma aula: Luis,

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no dia em que souber exatamente o que é frente, trás e lado, você será um grande bailarino. Quando ela me disse isso, eu era novo e devia certamente ter achado uma tolice. Meu Deus, quem que não sabe o que é frente, trás e lado? Qualquer pessoa que anda na rua sabe. Só depois de muito tempo, comecei a perceber a sutileza daquilo: frente, trás e lado em relação a quê? A quem? O que estava por trás desta frase, na verdade, era uma provocação. Ela estava dizendo: Descubra você o que é sua frente, seu atrás e seu lado! E isso fez, e faz, todo o sentido na relação que se estabelece na dança. Uma relação de tempo e uma relação de espaço. E uma relação com o outro. O outro que está em cena com você. E o outro que te assiste. Um sentido de respeito a mim, de saber quem eu sou. Só assim poderia saber o que é frente, lado, trás. Até hoje, os exercícios me servem para descobrir esse ponto de repouso eterno que existe dentro de cada um de nós. Depois, por acréscimo, automaticamente, se sabe mais sobre a relação tempo e espaço. A relação com o outro, a cena e a relação com quem assiste. *** Coincidências ou não, tudo isso é sempre curioso: na mesma época em que vim para o Brasil, minha irmã mais velha, já casada, estava planejando ir para a Austrália, num momento em que o país estava receptivo a pessoas de fora. Eu sempre contava a ela sobre minhas aulas de balé, sobre minha professora, do que eu tinha aprendido, enfim, da minha nova vida. E minha irmã me contava de uma mulher, uma tal

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de Laly, do consulado australiano na Argentina, que ajudou-a a levantar toda a papelada de imigração. Descobrimos mais tarde que Laly e Ilse eram irmãs! Ilse sempre dizia que era Laly quem deveria ter feito balé, porque tinha o pescoço longilíneo, esguio, e pés com colo, enquanto ela era o oposto. Mas Laly resolveu estudar diplomacia. E Ilse foi fazer dança. Estávamos lidando com as mesmas pessoas, ao mesmo tempo, em lugares tão próximos e diferentes. Curioso... Parece que existe um destino já armado e que só na distância podemos reconhecê-lo, quando temos nosso ponto de vista ampliado. Ilse era uma jovem senhora. Hoje está em Buenos Aires, aposentada. E às vezes ministra algumas aulas para os bailarinos do Teatro Colón. Uma grande professora, com certeza. Minha primeira professora. Minha querida professora.

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*** Oscar tinha estreado um balé um ano antes, que se chamava A Rainha de Gelo, baseado num conto de Hans Christian Andersen, sobre uma lenda dinamarquesa muito bonita. Oscar usou música de Tchaikovsky, numa estrutura típica de balé clássico. Era longo e em três atos. Stravinsky tem uma ópera de 1928, baseada nesse mesmo conto, O Beijo da Fada, que compôs homenageando Tchaikovsky, a quem admirava. No início do balé, havia uma cena em que os bailarinos faziam uma flor de gelo que se abria em cânon

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e de onde surgia a tal Rainha de Gelo. No final, a mesma flor se fechava, novamente em cânon. Para essas duas cenas, Oscar precisava de muita gente e por isso usava também alguns alunos da escola. Ao fim do meu primeiro ano na escola, ele resolveu reapresentar esse mesmo balé, no Teatro Coliseu, e novamente precisou contar com seus alunos. Quando os ensaios começaram, Oscar se deu conta que precisaria de mais dois alunos. Veio então até a nossa turma e escolheu dois rapazes. E eu não era um deles.

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Quando a seleção terminou, Ilse, que já era minha fã, me disse: Vá você também. Mas ele não me chamou... retruquei. Você vai e fala que eu mandei você ir e pronto. Claro, não ousei desobedecê-la. Fui. Cheguei à sala dele e falei que tinha sido a senhora Ilse que havia me mandado. E Oscar apenas disse: Tudo bem, aprenda seu lugar. Até hoje, não sei por que motivo acabei entrando para fazer essa cena. Mas, de qualquer modo, fazia o cânon com todo meu empenho. Simplesmente adorava fazer aquela dança. Adorava estar em cena, entre os bailarinos da companhia. Já me sentia um bailarino, de certa forma. E viajava dentro de mim fazendo aqueles movimentos. Mesmo sabendo que era ainda tão cru. E que precisaria de meses para me preparar realmente para aquilo. Essa não foi a primeira vez que subi ao palco. Na metade deste ano, tive outra oportunidade para isso. Joaquín Pérez Fernández, um homem muito famoso da dança na Argentina dos anos 50, fazia seus espetáculos viajando pelos países da Europa, apresentando a dança e a música dos países latino-americanos e

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principalmente da Espanha, seu país de origem. Seus espetáculos eram muito famosos e ele chegou a se apresentar para as cortes de várias rainhas do mundo. Ele teve seus dez anos de glória e depois acabou ficando em Buenos Aires, quase esquecido. Um de seus filhos, Quiqui, apelido que vinha de Joaquín, estudava balé em nossa escola, na turma anterior à minha. Além de dançar, ele também cantava e tocava. Na verdade, fazia de tudo, tocava instrumentos, guitarra, piano, bumbo, pandereta, fazia dança folclórica argentina, dança folclórica espanhola, enfim, tudo. Nesse ano de 1972, o Centro Gallego, em comemoração ao Dia de Galícia, convidou o pai dele para fazer um espetáculo no Teatro Colón. Eram sempre espetáculos grandiosos, com muita gente em cena. E Quiqui me perguntou se eu não queria participar. Não ganharíamos nada. Não passava mesmo pela minha cabeça que eu deveria ganhar alguma coisa, mas acredito que recebemos uma ajuda de custo no fim das apresentações. Assim, comecei minha carreira em pleno palco do Teatro Colón! Fazia uma dança de conjunto, outra dança com tamancos, danças espanholas, folclóricas, enfim, dançava muito e de tudo. Ah, e fazia também um travesti. Numa das cenas, que se chamava Velorio del angelito muerto en Tiempo ‘I Chaya, algo típico do folclore do norte argentino, a morte de uma criancinha era narrada através de canções. Nesse momento, entrava em cena o que lá se chamava las lloronas, as carpideiras. Essas três velhas carpideiras eram três homens vestidos de preto. E eu era uma delas. Que coisa! Estreei como travesti!

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Adorei participar daquele espetáculo. O que mais me lembro de tudo isso foi quando a cortina se abriu pela primeira vez. Nunca vou me esquecer desse primeiro momento. Já estávamos em cena e como no Colón o palco é muito grande, e o fosso da orquestra também é muito grande, aliás, todas as proporções daquele teatro são imensas, não se consegue enxergar nem mesmo a primeira fila da plateia. Só se vê um buraco negro à frente. Mas se ouve, e se sente, de forma implacável, a respiração das pessoas. Algo como uma boca de lobo aberta! Assim, quando a cortina se abriu pela primeira vez e ouvi esse som, fiquei apavorado, mas, ao mesmo tempo, estimulado. Era como se me lançasse num vácuo. A sensação me dizia: se é para dançar, vá, se jogue, vai fazer o que agora? Pensar? *** Minha família sempre ia me assistir. Quando estreei no Teatro Colón, todos foram me ver. E ficaram felizes, porque sentiram que algo finalmente estava se concretizando. Claro que meu pai possivelmente preferisse que eu estivesse jogando futebol, mas o importante é que nem ele e nem ninguém me proibiram de nada. Meu temperamento não suportaria qualquer proibição. Por princípio, nunca consultei ninguém sobre minhas escolhas. Não por falta de respeito, mas porque tinha claro que a decisão era minha e as possíveis consequências também. Assim, nada se discutia. E eles sempre foram me assistir. Ah, e minha mãe ficava orgulhosa do filho em cena!

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Com as apresentações de A Rainha de Gelo, terminou o ano. E terminou também a companhia. Eles ainda trabalharam por alguns meses, mas os bailarinos já procuravam outro lugar para trabalhar. A companhia vivia uma crise de verbas, a mesma que havia atingido nossa escola e causado sua extinção. Por minha vez, procurei outra escola onde Ilse dava aulas. Só que, desta vez, eu teria que pagar. Não havia bolsa de estudos, nem desconto. Mesmo assim, fiz aulas com ela, ao mesmo tempo em que tentava conseguir algum trabalho. Mas esse trabalho teria que estar necessariamente relacionado à dança ou ao teatro. Isso era uma condição para mim. Eu também conseguia uns trocados fazendo fotos como modelo, já que era bonitinho, alto, magrinho, usava roupas moderninhas, como jeans, por exemplo. Minha mãe ainda guarda algumas dessas fotos. Algumas que fiz para a publicidade do tênis Flecha apareceram em outdoors distribuídos pela cidade toda. Eu estava ficando... “famoso”.

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Na verdade, eu queria tudo. Tudo que pudesse me colocar cada vez mais dentro daquele universo artístico. Havia um grupo de teatro que estava ensaiando um musical, e eles trabalhavam de um modo como se fosse, hoje em dia, regime de cooperativa. Para mim, naquele momento, qualquer oportunidade de ganhar dinheiro, estando em cena, valia a pena. A peça era Réquiem (para uma gota de lluvia), de Emilio Cañas, e a coreografia era de Marta Jaramillo. Estávamos no Teatro Avenida, no mesmo teatro onde eu havia visto Antonio Gades dançar pela primeira vez.

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Nesse meio tempo, Oscar havia sido convidado a fazer a coreografia de uma peça de teatro de um autor argentino muito importante, Roberto Arlt, cujo estilo lembra um pouco o de Nelson Rodrigues. A peça era Trescientos Millones, escrita em 1932, e seria encenada no Teatro San Martín, sob a direção do importante José Maria Paolantonio. Era uma obra forte, grandiosa, bastante delirante. E, por isso, deveria ter cenas de dança. Oscar fez uma seleção de bailarinos, pois os atores já haviam sido escalados. Entre eles, estavam Luis Medina Castro, Miguel Ligero, Noemí Manzano, Alejandra Boero e Leonor Galindo. Aos bailarinos não estavam previstas falas, mas, às vezes, teriam que gritar ou cantar. Eu e alguns colegas da escola fizemos a audição e Oscar nos selecionou. Fui escolhido para o elenco. Para mim, só o fato de ser Oscar o coreógrafo, já era uma maravilha.

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Dali a 15 dias, teríamos nosso primeiro ensaio. Paralelo a isso, eu ainda ensaiava naquele grupinho de teatro. Um dia antes do primeiro ensaio de Oscar, machuquei a perna no outro ensaio. Não conseguia sequer caminhar direito. Consegui o telefone residencial dele e, num ímpeto de atrevimento, liguei à noite para sua casa. Achei que deveria explicar o ocorrido e que não poderia comparecer ao ensaio que se iniciaria na manhã seguinte. E ouvi como resposta, num tom seco, curto: Você não se machucou no meu trabalho. Espero você amanhã no ensaio na hora combinada. E desligou o telefone.

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Sempre lidei com gente precisa, determinada, que tinha muito claro em mente o que era profissionalismo em dança. O problema era certamente meu, eu fui o irresponsável. No dia seguinte, não conseguia mesmo caminhar. Mas compareci sem hesitar ao ensaio. Oscar determinou que eu ficasse sentado e aprendesse tudo dali, e que, quando melhorasse, deveria me juntar ao ensaio. Achei justo ser tratado daquele modo. Era o modo profissional. Não me sentia magoado com aquilo. Pelo contrário: tomava aquilo como mais uma aula. Uma aula que ensinava qual deveria ser minha atitude perante o meu ofício. Essa peça acabou ficando muitos meses em cartaz. Trabalhamos bastante, sempre de quarta a domingo, sendo que, no domingo, tínhamos duas sessões. Foi ótimo porque, além de aprender muitas coisas, de ficar da coxia estudando os detalhes da performance da atriz principal, de já me atrever mais em cena, eu recebia meu pagamento mensalmente. E muito bem. Com isso, pude continuar com minhas aulas particulares, mesmo depois de encerrada a temporada. Fazia aulas com Ilse e com outros professores, como Hugo Dellavalle, que trabalhou muito no Brasil, no Rio de Janeiro, em Curitiba e São Paulo.

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Comecei a assistir com mais frequência a alguns espetáculos de dança. Mas eu já os assistia de modo diferente, querendo ver além daquilo que estava em cena. Querendo ver tudo o que não vi ao assistir Romeu e Julieta, de Oscar, pela primeira vez. Foi nessa época que tive a oportunidade de ver Margot Fonteyn dançar, acompanhada pelo bailarino Atílio

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Labis, e por outros solistas da Ópera de Paris, no Teatro Coliseo. Meu repertório de dança aumentava a passos largos. E eu nem sequer poderia imaginar que, no futuro, eu o dividiria com a mesma Fonteyn, em outro país. No Brasil. ***

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Nesse período, influenciado pelos colegas da turma, comecei a me interessar por um tipo novo de aula que logo passou a ser designado como expressão corporal. Fazia no Teatro San Martin, teatro mais voltado para as vanguardas, ao contrário do tradicionalista Colón. Gostava dessas aulas. Infelizmente, fui a poucas. Mas me encantava a possibilidade de estar com os outros, rolando pelo chão, passando a mão nos corpos suados. Toda aquela magia própria dos anos 70, do movimento hippie. Era uma descoberta e tanto. Numa dessas aulas, enquanto rolávamos de olhos fechados no chão e o professor nos dizia que “estávamos voando”, abri os olhos, olhei a sala, meus colegas e a mim mesmo e pensei: isso não é voar. Voar é como os pássaros. No ar. Era meu lado virginiano não me deixando enganar. Quase como São Tomé. Só em pensar que isso acontecia numa Argentina que pouco a pouco se entregava à repressão, expressão corporal se tornava quase que um ato de resistência. Aliás, Argentina e Chile sempre foram países repressivos, moral e politicamente. Talvez por isso sejam países guerreiros. E violentos também. Lembro-me, quando garoto, que a polícia parava as pessoas na

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rua apenas porque tinham cabelos compridos. Ou perguntava abertamente se era homossexual. Uma repressão enorme. Não à toa Che Guevara saiu de lá. Não à toa escritores como Neruda se formaram em países tão repressores. E rapaz fazendo dança naquela época era quase um atentado ao pudor. E, em plena cidade de Buenos Aires, uma aula de expressão corporal seria quase que caso de polícia. *** Nesse meio-tempo, fiquei sabendo de uma oportunidade de trabalho muito interessante. Havia na Argentina uma artista conhecidíssima, chamada Nacha Guevara. Ela era uma espécie de show woman, e se atrevia a ser atriz de novela, atriz de teatro, cantava um pouco, dançava um pouco, ou seja, fazia de tudo um pouco. Acredito que hoje ela deva ser apresentadora de televisão.

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Naquela época, mesmo sofisticada e dada a luxos suntuosos, ela mantinha suas posições socialistas abertamente. Adorava acompanhar as manifestações de universitários, reivindicando posturas sociais mais igualitárias, enquanto sua limusine ao lado a acompanhava, levando seus cães de raça. Esse era seu estilo. Bem, Nacha Guevara preparava nesse ano de 1973 um espetáculo bastante interessante, num teatro muito antigo em Buenos Aires, chamado Margarita Xirgu, localizado no bairro de San Telmo, hoje conhecido por abrigar os espetáculos importantes de tango da cidade. Era um teatro de estilo clássico,

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com pinturas nas paredes e no teto, que Nacha, com sua produção, conseguiu transformar numa espécie de café-concerto ou cabaré-literário, belíssimo. Um local, confortável, para umas 300 pessoas. Tiraram as poltronas e as substituíram por mesinhas decoradas com velas. Servia-se bebida, sobretudo champanhe. Tudo realmente muito chique e com a cara da artista. O espetáculo se chamava Las mil y una Nachas, num trocadilho evidente com Las mil y una noches. Uma bailarina, Alba Vidal, que funcionava como uma espécie de dublê, ajudava no truque para fazer com que a plateia acreditasse que ela estava dançando, enquanto na verdade estava fazendo uma das 70 trocas de roupa previstas. Isso enlouquecia a plateia, até porque as duas eram mesmo muito parecidas. E a maquiagem tornava o truque ainda mais perfeito. Havia muitas cenas, inclusive, que a própria dublê cantava com playback. Era um espetáculo fantástico, muito bem-organizado e dirigido por seu marido, Alberto Favero.

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Nacha era acompanhada ao vivo por uma orquestra, que ficava num pequeno fosso, na frente do palco. E também por cinco bailarinos, todos vestidos com smoking, que a ladeavam em todas as cenas em que cantava e dançava. Ela fazia também pequenos esquetes cômicos, sempre com um humor muito argentino. Numa certa altura do espetáculo, por exemplo, seu marido Alberto, que também exercia a função de diretor musical do espetáculo, tocava ao piano Clair de lune, de Beethoven, e voltando-se ao público dizia: Adoro Clair de lune de Debussy! E o público ria

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da piada, porque tinha preparo para isso. Esse era o tipo de humor que se fazia na cidade naquela época. Outra cena bastante engraçada era quando ela cantava uma versão com texto da Valsa do minuto de Chopin, em que tinha que pronunciar todas as palavras muito rapidamente, para que coubessem na melodia. Mas havia também outras partes menos dançadas e mais sérias, sobretudo quando cantava as canções de Mario Benedetti, um poeta uruguaio de esquerda, ou recitava poemas de Pablo Neruda. Isso em pleno ano de 1973, ano da queda de Allende no Chile! Era um show de protesto também, dentro de toda uma sofisticação, com um humor requintadíssimo. 112

E o público também participava do espetáculo. Muitas vezes, inclusive, insultando-a abertamente, gritando: Sua puta, vai lavar panela, sua filha da puta comunista, ao que ela prontamente respondia. E não era qualquer resposta. Lembro-me que, certa vez, eu chegava para o ensaio e a vi no camarim, de frente para o espelho, gesticulando muito, aos gritos. Diante do meu estranhamento, me explicou que para responder à altura aos insultos que recebia do público, a melhor maneira de ser espontânea e natural era ensaiar. E muito! Que maravilha! Bem, curioso é como cheguei a esse espetáculo. Nacha havia começado a prepará-lo com todo cuidado, pois se tratava de uma grande estreia, em um teatro especialmente adaptado para isso. Era, sem dúvida, um grande evento, como todas as suas produções.

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Ela, seu marido, sua dublê, a orquestra e os cinco bailarinos, já ensaiavam há cinco meses, para que tudo ficasse perfeito. Um mês antes da estreia, um dos bailarinos foi embora. Não sei exatamente a razão, mas ela ficou desesperada, procurando por outro que pudesse substituí-lo, aprendendo rapidamente todas as marcações do show. Fiquei sabendo disso e simplesmente apareci por lá, no próprio teatro, me oferecendo. A coreógrafa do espetáculo, Antoniete San Martin, passou toda uma tarde me ensinando a coreografia, e os manejos com uma bengalinha trucada que tínhamos que usar em cena. Quando estávamos ensaiando no palco, Nacha Guevara chegou para ver como era esse novo elemento que faria parte de seu show, ou seja, eu. Lembro-me perfeitamente da cena: ela, sempre muito exótica, magérrima, branca, muito maquiada, usando peles, fazendo um tipo de diva hollywoodyana, chegou e sentou para me assistir. E eu comecei a passar a coreografia, um tanto nervoso, obviamente. Sei que, num determinado momento, ela saiu andando, arrastando sua pele pelo chão, com um ar entediadíssimo, sem olhar para nós. Atravessou todo o palco gritando: Peguem, peguem qualquer merda! Peguem essa bosta! E com todo esse “incentivo”, ingressei profissionalmente na carreira do music hall... Ela teria certamente razão. Eu deveria ser mesmo muito ruim. Mas ela não tinha escolha, tinha que estrear.

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Com Nacha, tínhamos espetáculos praticamente todos os dias, sendo que às sextas, aos sábados e aos domingos fazíamos duas sessões. Era um sucesso. Um

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verdadeiro sucesso. E eu não só fui melhorando, como a relação com ela foi ficando fantástica. Depois de um curto período, já estava fazendo pequenos solos, e logo passei a dançar todos os números com ela, substituindo o bailarino que fazia isso, quando necessário.

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Trabalhei quase seis meses nesse espetáculo. Foi ótimo, porque aprendi demais. Tive a sorte de dividir meu camarim, que era muito pequenininho, com Julio López. Ele era um excelente bailarino argentino, que já havia dançado no Teatro Colón, depois no Teatro Argentino de la Plata, tinha trabalhado no Chile com Ernst Uthoff e tinha sido ainda solista na companhia de Oscar Araiz durante muito tempo. Naquela época, ele estava parando de dançar, pois era quase um senhor. Aprendi muito com ele, em todos os sentidos. Nossa convivência era, para mim, uma aula diária, principalmente por seu humor, sua sutileza e sua sagacidade nos comentários que fazia. Ele me dava dicas desde como me maquiar, me pentear, me repreendia quando não me barbeava direito, até pequenos toques em cena, uma mão que eu deveria movimentar de tal jeito, um olhar mais dirigido, enfim, algo do seu vasto conhecimento técnico da expressão física no teatro, que eu, inexperiente, tosco, sugava a todo momento. E que carrego até hoje em minha profissão. Agradeço muito a ele por tudo isso. Sempre. Não se pode esquecer que, naquele tempo, a repressão continuava cada dia mais intensa. Nós do elenco fomos presos umas duas ou três vezes, simplesmente porque saíamos do espetáculo tarde da noite. Como era um grupo de cinco rapazes, todos com mochilas,

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alegres, sempre passava um carro de patrulha que nos levava. Não perguntavam nada, simplesmente nos levavam para a delegacia. Às vezes, passávamos a noite lá. Como naquela época não havia computador, eles não tinham como averiguar nossos antecedentes. Resultado: acabávamos dormindo presos. Faziam isso de propósito, simplesmente pelo fato de sermos bailarinos, artistas. A repressão política e moral se manifestava assim também. E a repressão nos assombrava tanto que até nosso espetáculo teve que ser algumas vezes suspenso, por haver ameaça de bomba, sobretudo devido ao caráter socialista de Nacha Guevara. Uma situação que ia ficando cada vez mais tensa. Mas, para mim, um trabalho que eu adorava. 115

*** Justamente nessa época do show com Nacha, uma bailarina e atriz brasileira, Marilena Ansaldi, nos visitou e assistiu ao nosso espetáculo. Marilena, além de bailarina, trabalhava como colaboradora e coreógrafa no Ballet Stagium, companhia paulistana de dança, capitaneada por Marika Gidali e Décio Otero. Na verdade, sua ida ao nosso espetáculo era um pouco mais do que meramente interesse no trabalho de Nacha. Marilena havia sido incumbida de ir a Buenos Aires procurar dois bailarinos: um mais experiente e algum outro um pouco mais novo, imaturo, sem tanta experiência. Isso porque no Brasil, e mais especificamente em São Paulo, havia uma carência de bailarinos homens naquela época.

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Marilena chegou justamente na data em que aconteceu uma audição no Teatro Colón, que ela chegou a assistir. Não encontrando nada de seu real interesse, saiu perguntando aqui e ali sobre lugares onde poderia conhecer outros rapazes dançando. Assim, alguém deve ter falado de mim e do grupo de rapazes que faziam o show de Nacha Guevara. E lá foi ela nos assistir. Quando terminou o espetáculo, ela nos procurou no camarim e me perguntou: Onde você faz aula? E eu respondi: Amanhã de manhã faço aula no estúdio com Hugo Dellavalle. E ela me garantiu que estaria lá, para me ver.

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No dia seguinte, cedinho, ela estava realmente lá, sentada numa cadeira, aguardando o início da aula, num daqueles estúdios pequenininhos de Buenos Aires, horríveis, sujos. Isso era fim de 1973. Quando terminamos, ela se voltou para mim e perguntou se eu sabia levantar uma bailarina. Antes que eu respondesse, ela me disse: Vamos tentar juntos. Num minuto, ela se levantou e fez um sissonne, e eu a carreguei. Ela abriu as pernas e, como estava vestindo uma calça branca justa, ouvimos o som do tecido se rasgando. Isso certamente não seria um problema para Marilena, não com aquele temperamento que ela tinha. Ela simplesmente tirou a calça e, apenas de calcinha, pediu agulha e linha para costurar. Lembro até hoje da cena: ela sentada, em plena sala de aula, costurando os fundilhos da calça. Algo quase inimaginável para nossos modos daquela época. Mas algo que me deixou imediatamente encantado por ela.

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Nesse mesmo dia ela me fez uma proposta de ir morar no Brasil, em São Paulo, e ingressar no Ballet Stagium. Ela propôs e eu aceitei. Aceitei na hora. E apenas depois cheguei em casa e comentei que estava me mudando em alguns dias para o Brasil. Essa era mais uma das minhas decisões. *** Eu já havia ouvido falar do Ballet Stagium, uma companhia que tinha se formado há pouco, em 1971. E nesse mesmo ano de 1973, soube que Oscar Araiz tinha remontado duas coreografias para eles, Adagietto, com música de Gustav Mahler, um pasde-deux dançado por Marika e Décio que mais tarde se tornaria um clássico do repertório brasileiro, e Concerto de Ebony, com música de Igor Stravinsky, que contava com um elenco maior. Uma companhia que tinha em seu repertório obras de Oscar poderia me interessar, claro. Afinal, essa era a minha escola. Alguma coisa em comum eles deveriam ter.

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Na verdade, nunca havia pensado antes em viver no Brasil. Nunca nutri nenhuma curiosidade especial pelo país. Mas agora, puxando um pouco pela memória, lembro que uma família do nosso bairro se mudou para o Brasil, não sei exatamente se para o Rio de Janeiro ou para São Paulo. Quando voltavam para visitar Buenos Aires, eu sempre perguntava como era tudo por lá. E lembro também que, em casa, minha mãe conseguia, não sei bem se comprava ou se alguém nos dava, uma versão em espanhol da revista O Cruzeiro, repleta de fotografias. Lembro nitidamente

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do meu encantamento ao ver as fotos de Brasília, por exemplo. Eram essas as poucas imagens que eu tinha do Brasil. Imagens de um país perto, mas, ao mesmo tempo, tão exótico, sobretudo por ser o único da América Latina onde se falava outra língua. Quando Marilena me fez a proposta, nem sequer perguntei se eu teria onde morar ou quanto iria ganhar de salário. Eu era jovem, com 23 anos, e tudo isso se tornava irrelevante diante da possibilidade de ir conhecer outro país, outra cultura e, acima de tudo, fazendo aquilo que eu mais amava: dançando. Além disso, a situação em Buenos Aires estava se tornando cada vez mais tensa, o que, sem dúvida, pesou em minha decisão. 118

Eu tinha ainda uns dois meses para arrumar tudo. Pedi esse prazo para Marilena, pois ainda fazia o show com Nacha, a quem eu tanto havia me afeiçoado. Lembro que quando contei para ela sobre minha decisão, me disse, sem esconder a tristeza: Que pena, Luis. Mas acho que você faz bem, porque aqui a vida está ficando muito difícil. Vá tentar sua vida em outro lugar. Alguns meses depois que deixei o elenco, eles tiveram que encerrar definitivamente a temporada, tantas eram as ameaças sofridas quase que diariamente. Hoje em dia, sei que ela faz programas de televisão, além de continuar a montar seus musicais, inclusive Evita. Era uma mulher de show. Lembro da canção que abria o espetáculo que fazíamos juntos, cujo texto dizia exatamente isso: Eu canto, danço, atuo, faço tudo mais ou menos. Mas eu me viro! Ou seja, o

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próprio show era uma piada sobre ela mesma. Antes que o público a criticasse, ela mesmo se autocriticava. Uma profissional com quem aprendi demais. *** Durante o período em que trabalhei com Nacha, fiz a audição para entrar na escola do Teatro Colón e passei. Era um curso regular voltado apenas para rapazes, oferecido no próprio teatro, com excelentes professores. Entretanto, fiz pouquíssimas aulas, porque os shows terminavam sempre por volta da meia-noite. Aí, eu tinha que pegar um ônibus para casa e acabava dormindo lá pelas duas horas da manhã. Para chegar a tempo nas aulas, que começavam às sete da manhã, tinha que acordar às cinco. Fiz esse esforço por um tempo, mas desisti, porque estava me exigindo demais naquele momento.

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Nesses últimos meses em Buenos Aires, costumava também fazer aulas com Ilse, Héctor Loussou e Hugo Travers, no estúdio Stella Maris, renomada bailarina de dança moderna, na Avenida de Maio. Lá, conheci Roberto Agustín Giovanetti, ainda aluno, dois anos mais velho que eu, que também estava começando. Estudante de psicologia, trabalhava numa loja especializada em música clássica. Aliás, ele era um expert na matéria. Nossa amizade foi imediata e feliz. Ficávamos juntos o tempo todo. Quando viajei para o Brasil, ele veio comigo. Comecei, então, a me organizar para essa vinda ao Brasil. Tinha que me concentrar nessa nova vida que

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se anunciava para mim. Mesmo sendo ainda muito cru, com apenas dois anos de dança em minha vida, sabia que essa poderia ser uma grande chance e que não deveria deixar escapar. Marilena, até hoje sempre muito orgulhosa por ter me trazido para cá, gosta muito de contar uma passagem engraçada: quando voltou de Buenos Aires, ao chegar na sede do Ballet Stagium, logo perguntaram: E então, conseguiu um bailarino? Ao que ela respondeu: Não... consegui só um rapaz. Ele é novo, não tem muita experiência. Meio sem entender direito o que ela queria dizer com aquilo, insistiram: Mas ele é bom? E ela falou: Não. Ele não dança nada. Mas tem uma educação!!!

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A famĂ­lia, em Buenos Aires

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Luis Arrieta, Brasil, dĂŠcada de 80

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Capítulo II Em São Paulo Chegou o dia de vir a São Paulo. Março de 1974. Era a primeira vez que viajava de avião em minha vida. Ao chegar, fui direto para a casa da Marilena, que naquela época morava no bairro do Brooklin, numa linda casa. Ela era casada com Sábato Magaldi, conhecido crítico teatral, jornalista, professor, ensaísta e historiador, e que era também o secretário de Cultura da cidade. Quando cheguei, ela estava terminando de dar uma aula individual, numa sala ali mesmo, não sei para quem. Fiquei, então, conversando com seu marido, que me recebeu muito bem. Nesse momento, tocou a campainha: chegou Antonio Carlos Cardoso, que há uma semana havia retornado da Bélgica, do Balé Real de Flandres, para assumir a direção do Balé da Cidade de São Paulo, que ainda se chamava Corpo de Baile Municipal, do Teatro Municipal de São Paulo.

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Jantamos os quatro juntos. Em seguida, fomos de carro com Marilena até o Ballet Stagium, na Rua Augusta, no mesmo lugar de hoje. Eles ensaiavam pelas manhãs e à noite. E lá estavam todos: Marika e Décio, os diretores, além de Iracity Cardoso, Ruth Rachou, Jane Blauth e Christian Uboldi. Que coisa! Mal acabava de chegar e já tive o privilégio de conhecer todas essas pessoas! Pessoas com quem eu ainda trabalharia muito em minha vida, em situações diversas. E, na mesma sala, Clarisse Abujamra,

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Patty Brown, Cleusa Fernández, Lalo Freitas, Carlos Demitre, Geralda Bezerra, bailarinos mais velhos e experientes. E as ainda muito novinhas Mônica Mion e Beatriz Cardoso, todas em início de carreira. Nessa noite, fiquei hospedado na casa de um bailarino da companhia. E a cabeça girando, enlouquecida com o mundo absolutamente novo que se formava à minha frente, não me deixou dormir.

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Logo o dia a dia da companhia começou e tive rapidamente que me dar conta daquele funcionamento. Mesmo tendo admirado tanto aquilo tudo, acabei ficando pouco tempo no Ballet Stagium. Talvez uns seis meses, mais ou menos. O suficiente para entender o que significava estar ao lado daquelas pessoas tão geniais, sobretudo Marika e Décio. Minha estreia na companhia foi no Teatro Municipal de Ribeirão Preto. Definitivamente, não foi a das melhores. No trabalho Episódios, de Décio, o cenário tinha uns fios de náilon transparentes, com umas bolas de isopor que, de longe, pareciam estar suspensas. Era um trio de rapazes, e eu, não sei se pelo tamanho do palco, um pouco pequeno, ou por meu descontrole mesmo, no primeiro manège, meu pé enganchou num dos fios e saí arrastando o cenário inteiro. Ao terminar o espetáculo, jurei que Marika iria me mandar de volta para a Argentina. Não. Ela não falou nada. Sabia certamente o risco que estava correndo quando me colocou para dançar. Sábia como ela só.

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Depois disso, participei de duas criações da companhia. Uma de autoria de Décio, Jerusalém, com música de Almeida Prado, que tinha como tema Jesus Cristo e crucificação. Usávamos maquiagens exageradas, quase como máscaras. Comigo, em cena, estavam Beatriz Cardoso, Cleusa Dias, Geralda Bezerra, Lalo Freitas, Miguel Trezza, Milton Carneiro, Mônica Mion, Sebastião Freitas, além dos diretores, Marika e Décio. E a outra obra, de Christian Uboldi, com música de Pink Floyd, Psicuspeculum. Novamente, os mesmos bailarinos. Estreamos no dia 21 de maio, no Teatro Municipal de São Paulo. O Stagium fazia ainda alguns trabalhos na ponta, com estilo neoclássico, como Entrelinhas, de Décio, sobre um concerto de Serge Rachmaninov. Estreado em 1972, ainda era apresentado e eu cheguei a dançá-lo. Mas, lentamente, eles investiam num outro modo de dançar, mais contemporâneo, mais arrojado, que se tornou sua marca mais tarde.

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Para mim, sempre foi um privilégio trabalhar no Stagium, um ícone da dança contemporânea paulista. Ali, pude ter outras experiências riquíssimas, como as aulas de teatro com o diretor Adhemar Guerra, por exemplo. E as aulas que o próprio Décio dava. E, quando podia fazer uma aula avulsa, pegava uma carona na aula da Geralda Bezerra. Foi um momento muito forte para mim. Novamente fui carregado a esse lugar, como acontecia em todos os outros momentos importantes de minha vida. Mas sempre nos lugares certos. Primeiro com Oscar Araiz e Ilse Wiedmann. Agora com Marika Gidali e Décio Otero.

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Ballet Stagium, coreografia JerusalĂŠm, de DĂŠcio Otero, 1974

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Definitivamente, minha carreira começava de modo especial. E eu intuía isso, a cada dia. Minha relação com Marilena, e sobretudo com Marika e Décio, era puramente uma relação de trabalho. Eu era muito tímido. Mas me lembro ter sido na casa dos dois onde experimentei pela primeira vez uma feijoada, num dos primeiros fins de semana em São Paulo. Sempre me vêm à memória as delícias que passaram pelos meus sentidos. Cheguei em casa flutuando e sonolento.

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Fora esses pequenos e agradáveis momentos, era minha timidez que imperava. Só conseguia me soltar quando estava no ambiente de trabalho, ensaiando, fazendo aula. Se precisavam que eu me lançasse numa improvisação, não me poupava. Pelo contrário, via naquilo uma oportunidade de mostrar minha vontade e tudo que tentava aprender vorazmente. Claro. Não tive o tempo de aprendizagem antes de me tornar um profissional. As duas coisas começaram simultaneamente. Eu era muito verde. Tive que aprender muito. Mas foi sobretudo a minha abençoada ignorância, absolutamente necessária, que me permitiu passar por tudo naquele momento. Se eu tivesse, naqueles dias, um pouco do conhecimento ou da percepção que tenho hoje, tenho certeza que ficaria imóvel, diante de tanta incapacidade. Mas Deus é sábio. E fui aprendendo a me dar conta disso ao mesmo tempo em que aprendia, como podia, tudo o que tinha para aprender. ***

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Fui morar num apartamento com o iluminador da companhia e o irmão dele, que fazia uma espécie de direção técnica do palco. Eles ocupavam um quarto e eu o outro, com meu amigo Roberto, de Buenos Aires, na Rua Jaguaribe, perto da Santa Casa. Eu vivia um pouco apertado, pois tinha que começar a pagar meu aluguel e minha comida, uma novidade para mim. Na verdade, um pouco antes de vir ao Brasil, cheguei a morar num curtíssimo espaço de tempo em uma pensão. Queria experimentar como seria morar fora de casa. Mas toda vez que me apertava, corria para casa, atrás da comida de minha mãe. Em São Paulo, para tentar driblar um pouco o orçamento baixo que eu contava para viver, parei imediatamente de comer carne, por exemplo, principalmente porque o preço era impossível para mim. Estava acostumado na Argentina, onde se podia comer carne de ótima qualidade a um preço acessível. Mas isso não representava um sofrimento para mim. Em absoluto. Passei a comer o que o salário me permitia. E parecia algo lógico que fosse assim.

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O que eu achei de São Paulo? No princípio era tudo novo. Tudo me chamava a atenção. Mas, de alguma forma, achei a cidade feia. Eu vinha de Buenos Aires, uma linda cidade, suntuosa, com sua beleza arquitetônica inegável. Por outro lado, trabalhávamos tanto, com aulas e ensaios pela manhã e no comecinho da noite, que nem dava muito tempo de se dar conta de como era a cidade verdadeiramente. À tarde, logo depois do ensaio, o tempo era para um supermercado rápido, preparar algo para comer, deitar uma meia hora e novamente estar na Rua Augusta

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para recomeçar as tarefas. Só me restavam os fins de semana, quando não tinha espetáculo, para sair um pouco e conhecer a cidade. Uma cidade onde eu, sem ainda saber, passaria quase toda a minha vida dali em diante.

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Nas aulas avulsas no Stagium, conheci Penha Pietra´s, que também fazia e dava aulas. Com ela conhecemos, Roberto e eu, muitos lugares da cidade, especialmente aqueles onde se poderia fazer compras mais em conta. Um dia, ela nos convidou para almoçar em seu pequeno apartamento, na região da Bela Vista. Entusiasmados com a conversa, esquecemos o frango assando no forno. Resultado: pegou fogo na cozinha e quase no apartamento todo. Até hoje lembramos disso quando nos encontramos. *** Depois de uns seis meses, resolvi que seria interessante conhecer um pouco mais de perto uma outra companhia, o Balé da Cidade de São Paulo, que ainda se chamava Corpo de Baile Municipal. Eles estavam precisando de rapazes também e, então, me inscrevi para a audição. Queria que Antonio Carlos Cardoso me visse. E pensei comigo: se eu passar, no final do ano peço minha demissão no Stagium e vou para lá. Acontece que Marika ficou sabendo de minha participação na audição e me perguntou, de um jeito direto como sempre foi seu jeito, se era mesmo verdade. Respondi que sim. E ela, então, me disse que fosse embora, que deixasse a companhia.

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Um clima um pouco tenso pairou entre nós durante um certo tempo. Claro, eu não havia ficado nem um ano com eles. Mas, felizmente, isso durou pouco. Hoje, eles me tratam com muito carinho e muita atenção. E sei que também são muito orgulhosos por terem sido os responsáveis por minha vinda a São Paulo e por eu ter começado minha carreira no Brasil no Grupo Stagium. *** Final do ano 1974. Passei na audição do Corpo de Baile Municipal e fui para lá, porque achava simplesmente que era o lugar que eu tinha de ir. Era um time todo que acabava de se formar, por quem eu, mesmo sem conhecer direito ainda, nutria uma curiosidade imensa e com quem tive uma vontade de trabalhar quase que inexplicável. Antonio Carlos Cardoso entrava para substituir Johnny Franklin, que havia estado na direção da companhia desde seu início, em 1968. Era outro que chegava a São Paulo pelas mãos de Marilena Ansaldi, com esforços de seu marido, o então secretário de Cultura, Sábato Magaldi. Já intuindo o perfil que ele gostaria de conceder ao grupo, Antonio tratou de montar uma equipe que falasse sua língua, que dançasse sua dança. Iracity Cardoso tornou-se sua assistente. O espanhol Victor Navarro, o coreógrafo. Marilena Ansaldi, a professora de balé e Ruth Rachou, a professora de técnica de dança moderna.

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Até hoje, todos dizem que o Antonio mudou o estilo da companhia. Mudou sim. Ela já não se ocupava mais dos balés de repertório. Mas, como convivi

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com eles exatamente nesse período de mudança, sempre penso que o que mudou verdadeiramente foi a maneira de entender a dança, de entender uma outra maneira de trabalhar, um outro conceito de espetáculo. E isso me parece fundamental, quando se trata de uma companhia oficial de dança, de uma companhia pública. E todo esse movimento, tão importante, teve total apoio do secretário de cultura, que vestiu conosco a mesma camisa e nos permitiu realizar uma mudança tão profunda como essa.

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Não sei se Antonio já havia me visto dançando no Stagium até aquele momento. Depois da primeira aula que fiz na companhia, com a Marilena como professora, malcomparando com os bailarinos que eles já deveriam ter por lá, acho que eles devem ter pensado algo assim sobre mim: Esse aí, trabalhando bastante, quem sabe? Claro: eu não era, em absoluto, um bailarino pronto. Mas era um bailarino em que se poderia apostar, se poderia investir. E fiz questão de mostrar isso no meu trabalho diário. Nesse momento, passei a conhecer todas as outras pessoas com quem depois eu desenvolveria tantos trabalhos. As mulheres eram ótimas. Grandes mulheres. Sonia Mota, uma grande bailarina, Ivonice Satie... Lembro quando Oscar Araiz veio montar Prelúdios de Chopin, três anos depois, ele selecionou um elenco de umas dez pessoas e entre elas Ivonice, Iracity, Sônia, Ana Mondini, Mônica Mion, Umberto Silva, eu, Demitri, e Alphonse Poulin, e outros mais que estou certamente esquecendo. Ou seja, ele selecionou justamente aquelas pessoas que até hoje estão fazendo,

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Com Antonio Carlos Cardoso, 1980, em S達o Paulo

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ou fizeram alguma coisa transcendental na dança, não só aqui, mas no mundo inteiro. E dizer isso me faz ser pouco modesto, eu sei, porque estou me incluindo na lista. Mas o importante é que não era uma turma de bailarinos com grandes virtuosismos técnicos, se os entendemos como demonstrações acrobáticas. Longe disso, até. Mas era uma maneira especial de trabalhar que foi desenvolvida ali. Até hoje sinto um orgulho imenso de dizer: Meus colegas, de sentir-me igual a eles.

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E esse trabalho de Oscar simbolizou muito para a companhia e eu tive o privilégio de poder participar de sua criação. Eu que, há poucos anos, era um aluno de sua escola, na Argentina. Era uma obra praticamente feita de solos, duos e trios, com poucas partes de conjunto, algo bastante característico do estilo de Oscar. Eu gostava muito de uma situação que se instaurava entre nós, vinda de uma cumplicidade que, a cada solo que estava sendo apresentado, o bailarino que entrasse em seguida teria o comprometimento, dentro de si, de manter aquela mesma qualidade física de seu colega. E isso nos obrigava a encarar uma superação constante de nós mesmos, em nós mesmos. Essa não foi a primeira obra que dancei no Corpo de Baile Municipal. Havia dançado algumas de autoria do Antonio Carlos Cardoso, como Paraíso?, daquele mesmo ano de 1974, com música especialmente composta por Hermeto Paschoal. Uma mudança e tanto no estilo da companhia, pensar aquela sonoridade absolutamente outra, arrojada,

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Com Iracity Cardoso, para revista Iris de fotografia, 1977 Luis Arrieta miolo.indd 135

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Luis Arrieta, 1975, Ilha de Paquetá – RJ

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com aquelas panelas e todo aquele aparato do Hermeto, em pleno Teatro Municipal e sua companhia oficial. E a censura, tão vigente naquela época, implicou com o ponto de interrogação do título da obra. Sinais de mudança. Dancei obras de Marilena Ansaldi, como Medeia, também do mesmo ano. Marilena sempre foi muito chegada aos dramalhões, às tragédias gregas e essa não fugia à regra. Com música de Pink Floyd, sofreu acusações de “falta de decoro”. E dancei ainda Uma das quatro, de Victor Navarro e mais duas de Antonio, Sem título e Soledad. *** No ano seguinte, 1975, tive que enfrentar um problema meramente burocrático, mas que me tirou do meu percurso e me deu a chance de ter uma linda experiência. Como eu era ainda contratado na companhia, mas era estrangeiro, todos os trâmites relacionados ao meu pagamento eram sempre emperrados, o que me causava uma certa dor de cabeça, não raras vezes. Foi então que surgiu uma oportunidade de ir trabalhar no Rio de Janeiro, com Dalal Achcar e sua Associação de Ballet do Rio de Janeiro, uma companhia que ela havia criado já em 1956, e que desde então contava com um elenco que vinha se transformando.

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Eu já tinha estado no Rio nesse ano, durante o carnaval. Quando chegamos à rodoviária, pegamos um ônibus. Depois de uma curva, detrás de uma esquina, apareceu o Pão de Açúcar. Fiquei mudo. Nenhuma foto, cartão, pôster, chegava aos pés daquela reali-

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dade fantástica. As cores da cidade dançavam sob uma luz que eu nunca havia visto. À tarde, fomos ao desfile das escolas de samba, que ainda não acontecia na Sapucaí. Ficamos em pé todo o tempo, sobre um único caixote de maçãs, no meio de uma multidão que se empurrava contra uma corda de segurança. Trinta horas depois voltamos para dormir, exaustos, sujos e esfomeados, sentindo ainda no corpo as vibrações das baterias. Uma experiência magnífica!

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Mas voltando a Dalal. Ela precisava, como sempre, de rapazes para integrar um balé que vinha montando, a Floresta Amazônica, com colaboração do coreógrafo Frederick Ashton, ícone da dança inglesa, e com música de Heitor Villa-Lobos. Senti vontade de experimentar esse novo desafio e então me aconselhei com Antonio, que me disse que fosse. Fui. Fiquei um ano e meio no Rio de Janeiro, naquela cidade maravilhosa, com pessoas maravilhosas. Entre tantas obras que pude dançar, mais uma vez me deparei com Oscar Araiz, que estava montando uma obra chamada Festival, que todo elenco adorava dançar. Ficávamos cada vez mais amigos. Tanto que ele chegou a se hospedar no apartamento que Dalal reservava aos bailarinos de fora, na Rua Alberto de Campos, em Ipanema, no mesmo prédio onde morava Madeleine Rosay, que às vezes cruzava no elevador. Uma noite, lembro-me bem, estávamos eu e Oscar conversando na sala, quando ouvimos um tiro que vinha do morro ao lado, quebrando nossa janela. Acho que era o começo dessa coisa toda de bala

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Com Ivonice Satie, 1981

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo, Prelúdios de Chopin, 1977, de Oscar Araiz. Acima com Alberto Romeiro, Carlos Demitie, Iracity Cardoso e Léa Havas. Abaixo e ao lado com Mônica Mion

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perdida. Assustadíssimos, passamos o resto da noite andando de quatro pela sala, com medo que voasse outro tiro. Tudo isso iria nos aproximando, evidentemente. Ele não era mais apenas meu professor, ou meu coreógrafo. Era meu amigo. Os ensaios da companhia aconteciam na escola da Dalal, que ela mantém até hoje, na Rua dos Oitis, no bairro da Gávea. Foi uma época glamurosa, como tudo que Dalal faz na dança. Uma época em que ela trouxe grandes nomes para dar aulas, coreografar e dançar. Grandes estrelas mundiais, com quem eu jamais sonharia dividir um dia o mesmo palco.

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Encabeçando a lista de professores, um grande mestre para mim, mister Desmond Doyle. Lembro que fazíamos também muitas aulas com Maria Luiza Noronha, uma fiel assistente de Dalal e a atual diretora da Escola Estadual de Dança Maria Olenewa, primeira escola oficial de dança do Brasil. Não poderia esquecer de Miriam Guimarães, excelente professora, com quem aprendi muito. Depois vieram ainda dar aulas para nós Oleg Briansky e sua esposa, Mireille Briane. Ou seja, grandes mestres, com quem eu tive o privilégio de trabalhar. Nesse mesmo período, prestei o exame da Royal Academy of Dancing, método de ensino de Londres, que Dalal havia trazido para o Brasil desde 1969. Ela me incentivou e eu fiz. Contudo, a ajuda fundamental que recebi dela estava relacionada com meu estabelecimento definitivo no país. Ao lado de Márcia Kubitschek, ela conseguiu acertar e regularizar minha permanência.

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A partir de então, passei a ter um documento de residente. Uma dádiva, sem dúvida, pois me possibilitava trabalhar tranquilamente. Isso tudo em 1975. Eu estava adorando viver no Rio de Janeiro. Mas tinha a dimensão de que o ambiente em que eu vivia era, na verdade, um recorte da cidade, já que eu morava em Ipanema e trabalhava na Gávea. Tudo se restringia à zona sul. Então, era fácil adorar aquela linda cidade. Ir para o trabalho, naquela rua tão bonita, com tantas árvores, num lugar tão longe do que sempre vivi em Buenos Aires, tudo era um prazer. Lá estava a natureza, imperiosa. Sempre passava pela feira, na própria Rua dos Oitis, que acontecia uma vez por semana, com aquelas frutas lindas, frescas, coloridas. Adorava ter que atravessá-la para poder chegar à escola da Dalal. Saltava do ônibus ali na praça em frente ao Jockey Clube, e ia a pé. Era muito bonito, mesmo quando chovia. A natureza brilhava. Tudo era tão rico de cores, que era a própria imagem de trópico que eu tinha do Brasil. Para sair desse ambiente, apenas quando tinha que ir ao centro, ao Theatro Municipal, ou algum teatro da Praça Tiradentes. Mas, efetivamente, todo o outro lado da cidade permaneceu desconhecido para mim.

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O pouco dinheiro não me permitia muitos gastos com passeios ou visitas a lugares especiais. Mesmo assim, assistia com meu amigo Roberto a tudo que era de graça e, principalmente, aproveitava os fins de semana para, além de ir à praia, fazer longos passeios de ônibus circular. Acabei conhecendo muitos lugares dessa cidade que eu amava, pela janela dos coletivos. ***

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Com Iracity Cardoso, Uma das Quatro, de Victor Navarro, 1974

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E o Rio era também uma cidade efervescente. Uma época alucinante, aquela. Gente muito louca, festas badaladas e luxuosas em grandes apartamentos da zona sul. Tudo muito excitante e novo para mim. Eu nunca tinha visto aquilo. A dança não ficava de fora desse clima efervescente. Nessa época, por exemplo, estava começando toda aquela tendência do jazzdance. Foi aí que conheci Carlota Portella, uma das grandes iniciadoras dessa dança no Brasil. Ela dava aulas, dançava e coreografava. Tive também o privilégio de conhecer a grande mestra Tatiana Leskova, com quem comecei a fazer aulas e quem me acolheu com muito amor e atenção, colocou sobre mim olhos cheios de confiança e estímulo, e de quem viria a ter também sua amizade. Na escola dela, fiz aulas também com Hugo Dellavalle, que eu já conhecia de Buenos Aires. Depois conheci Jane Blauth, que ainda estava no Rio. Eu faria ainda muitas aulas dela em São Paulo, mais tarde. Conheci também Klauss Vianna. Com ele, também fiz algumas poucas aulas. Sempre gostei muito dele e sentia que ele gostava de mim. Ele vivia elogiando a maneira que eu tinha de dançar, o que me deixava imensamente feliz. Nem sonharia que, anos mais tarde, eu passaria a direção do Balé da Cidade de São Paulo para ele.

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O Rio me deu essa oportunidade de conhecer tantas personalidades da dança brasileira. Todos meus colegas que pareciam rodear-me de carinho e não me deixar sentir falta de casa. Entre eles, Célio Trigo, Claudia Araújo, com quem eu dançava a Valsa das Flores em O quebra-nozes, Max Markstein, com quem

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dividia apartamento no Rio e depois dividiria apartamento em São Paulo, e tantos outros. Coreógrafos os quais gostava tanto de dançar – Renato Magalhães, Gilberto Motta, o artista plástico e figurinista Nilson Pena, a professora inglesa Gil Antony, colega de passeios e papos... enfim, tantos.

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Mas o Rio deu-me oportunidade de conhecer personalidades do mundo também. Dalal Achcar trouxe uma dúzia de estrelas para a cidade. Isso fazia parte de como ela pensava a dança e de como ela queria promover essa dança nesse país. Estou falando de Natalia Makarova e Anthony Dowell, por exemplo. Mas a lista se estende: Margot Fonteyn, Oleg Briansky, Cyril Atanassoff, Merle Park, Doreen Wells, Desmond Kelly, Cynthia Gregory, Ivan Nagy, Fernando Bujones, Georgina Parkinson, David Wall, Wilfride Piollet… todos vinham atuar com participações especiais nas coreografias da companhia de Dalal, em apresentações que se iniciaram no Theatro Municipal e se estenderam em grandes excursões por todo o Brasil. Dançava-se, sobretudo, em ginásios adaptados, quando a cidade não contava com um teatro que nos comportasse. O lugar tinha que abrigar um público de três ou quatro mil pessoas, que queriam assistir aos balés grandiosos. Em Porto Alegre, por exemplo, dançamos no Gigantinho. Em São Paulo, no ginásio do Anhembi. Eram montados tablados imensos e, para que pudéssemos fazer aulas, eram providenciadas barras provisórias nos estádios. Algo emocionante: todos lá, aquelas estrelas internacionais e nós da companhia, misturados, fazendo aula juntos.

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Estávamos em 1976. No espetáculo de São Paulo, enquanto estávamos dançando, percebi um pequeno alvoroço nas coxias. Um certo agito ali por trás. Era Márcia Kubitschek, que trabalhava com Dalal na produção, correndo de um lado para o outro, pois acabara de receber a notícia do acidente com seu pai Juscelino, que o levaria a falecer. Em uma dessas nossas tantas viagens também, tive a oportunidade de conhecer a linda fazenda de dona Sara Kubitschek, em Brasília. Todos nós da companhia fomos recepcionados com muita distinção. E nessa ocasião pude conhecer pessoalmente Juscelino, que fazia questão de nos receber pessoalmente, como um verdadeiro anfitrião, ao lado de sua esposa e de suas filhas, Maria Estela e Márcia. Eu me dava conta de que estava conhecendo a história do Brasil que, de alguma maneira, já conhecia através de todas aquelas fotos de Brasília que havia visto nas páginas da revista O Cruzeiro, ainda em Buenos Aires. Agora eu estava lá, vendo tudo aquilo pessoalmente.

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*** Possivelmente participei da época mais grandiosa da Associação de Ballet do Rio de Janeiro. Foi justamente o período da montagem da Floresta amazônica, em pleno Festival Internacional de Dança, também organizado por Dalal, que aconteceu no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1975. Como estrelas principais, figuravam a grande dama da dança inglesa, Margot Fonteyn, e seu partner, ainda muito novo, o excelente bailarino David Wall. Para coreografar as

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partes dançadas pelos dois, foi chamado Frederick Ashton, que já havia começado a trabalhar com eles ainda na Inglaterra.

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Com e experiência de ter dançado esse balé, uma passagem me marcou muito. Estávamos fazendo os ensaios de palco, ainda sem figurino, mas já com a orquestra do Theatro. Fonteyn havia acabado de chegar de viagem, indo direto do aeroporto para lá, possivelmente ansiosa para aproveitar a oportunidade de estar pela primeira vez com a orquestra. Colocou uma roupa bem simples de ensaio, e ficou marcando suas partes com Wall. Ao chegar a cena final do balé, em que a floresta pegava fogo, nós, em nossos papéis de índios, tínhamos que fazer toda uma cena teatral, bastante dramática, correndo aterrorizados, com medo do incêndio, enquanto o palco era tomado por efeitos especiais que simulavam essa situação. Claro que fazíamos empenhadíssimos essa cena, mas não sem uma certa ingenuidade e até um quê de amadorismo. Num momento muito rápido, porém de uma força que até hoje não posso explicar, me virei, e dei de cara com Fonteyn, que estava ali marcando. Só que ela estava marcando com a experiência que ela tinha. E com aquele rosto de uma senhora de idade, com aqueles olhos brilhantes e gestos tão exatos para denotar o perigo da morte e o medo da floresta queimando, que fiquei paralisado. Meu Deus, ela estava apenas marcando, apenas ensaiando. Essa noite, não dormi.

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Não dormi porque me senti extremamente envergonhado. Certamente me perguntava: Por Deus, o que eu estava fazendo ali? Parece que de súbito entendi o que minha primeira professora, Ilse Wiedmann, havia me dito certa vez sobre saber o que era frente, trás e lado. Saber da dimensão de onde estava. Uma dimensão que Margot Fonteyn estava me dando, me colocando de frente a uma realidade até então inimaginável para mim. E isso foi fantástico. E inesquecível. *** Nós da companhia não dançávamos muitas peças do repertório clássico, reservadas apenas aos bailarinos convidados. No fim desse ano, por exemplo, Fernando Bujones veio pela primeira vez ao Brasil, ainda muito novo, se apresentar em O Quebra-nozes. Mas também tivemos a oportunidade de ver coisas jamais apresentadas por aqui, como o Pas-de-deux de Tchaikovsky, de Balanchine, dançado pela Cynthia Gregory, tão linda com aquele jeito americano de dançar.

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Além disso, havia coreografias dos brasileiros, como Gilberto Motta, com Messias, ainda em 1976. No ano seguinte, Madeleine Rosay, com Mancenilha, Renato Magalhães, com Nhamundá e Catulli Carmina, além das coreografias assinadas pela própria Dalal, como Com Amor, Nosso Tempo e Cenas Brasileiras. Outra ainda dela em parceria com Miriam Guimarães, chamada Grand finale. E ainda tínhamos Festival, de Oscar Araiz

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Lembro que gostava muito de ficar com todo o elenco da companhia. Tinha gente muito talentosa reunida ali. Sempre foi um talento empresarial e artístico da Dalal saber reunir bons bailarinos. Um deles era Paulo de Nubila, excelente bailarino. E boas bailarinas também, como Ana Elisa Ferraiolo, Cláudia Araújo, Helena Lobato e Heloísa Meneses. E tantos outros bailarinos que passei a conhecer apenas naquele momento, pois eram todos do Rio de Janeiro. Afinal, talvez tenha sido essa a primeira vez que trabalhei numa companhia de nível internacional, empenhada em apresentar aquele tipo específico de trabalho. Com o Ballet Stagium eu havia experimentado o profissionalismo, e no Corpo de Baile Municipal de São Paulo também. Mas ali, eu experimentava um ofício de dança que respirava ares internacionais, num outro jeito de pensar o espetáculo, a cena. Nesse sentido, lembro de uma coreografia de Ashton, Meditation from Thais (An oriental dream sequence), criada nos anos 70 com música de Massenet, inspirada na bailarina Anna Pavlova. Era um pas-de-deux, dançado por Merle Park e David Wall. Nessa coreografia, havia ao fundo uma imagem de um deus que ficava sentado durante todo tempo, feito pelo Célio Trigo, um bailarino gaúcho muito bonito. Ele praticamente não tinha que se mover. Certa vez, comecei a revezar esse papel com ele. Adorei fazer aquilo. Mesmo sem praticamente me mover, entendi rapidamente que aquela quietude, que a presença ali atrás determinava a presença dos dois dançando à frente. E a coreografia terminava com os dois bailarinos correndo para este deus, que

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os abraça. Frederick Ashton nos passava exatamente as coordenadas de como seria nossa atitude em cena. E eu me sentia tão bem fazendo aquilo que era como se estivesse me movendo mais que os próprios bailarinos. Afinal, estava em cena com Merle Park e David Wall, numa coreografia de Ashton. Tudo era uma combinação inédita para mim. Aliás, tive o privilégio de poder travar algumas ótimas conversas com Fredrick Ashton graças ao seu bom espanhol, já que ele era nascido no Equador. Aproveitávamos para nos entreter, sobretudo, nas viagens de ônibus até os aeroportos, durante a turnê brasileira, e creio, eu o ajudava a acalmar um pouco o imenso pavor que ele tinha de voar. ***

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No fim de 1976, quando encerramos as temporadas previamente agendadas, não se sabia ao certo o destino da Associação de Ballet do Rio de Janeiro. Para mim, de qualquer forma, havia sido uma experiência riquíssima ter trabalhado com todos aqueles artistas. E isso agradeço até hoje a Dalal. Mas, aos poucos, fui percebendo também que o trabalho com o qual me identificava, que eu realmente queria fazer com a dança, estava mais próximo àquele desenvolvido em São Paulo. E, antes que se tornasse cada vez mais difícil, e não sem sentir muita dor, tomei a decisão de deixar o Rio de Janeiro. Curioso: nem quando saí de Buenos Aires, senti algo parecido. Uma certa melancolia. O Rio tinha marcado definitivamente em minha vida algo que eu levaria para minha dança.

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Ao tomar essa difícil decisão, fui falar com Dalal, que entendeu completamente o que eu expunha. Tudo ficou muito bem com ela. Até porque, curiosamente, naquela época, nós bailarinos a víamos muito pouco, porque, como diretora da companhia, ela tinha muitas outras preocupações. E quando acontecia, quase sempre girava em torno de assuntos mais administrativos.

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Com o passar dos anos, eu e Dalal fomos travando lentamente um contato artístico que resultou numa amizade que prezo muito. Recentemente, tive uma demonstração desse carinho, dessa amizade dela por mim. Em 2005, estava apresentando meu solo Tango, na pequena sala do Teatro Alfa, em São Paulo. Dalal foi me ver. Quando terminou o espetáculo, ela me procurou e senti que estava visivelmente emocionada. E me disse: Agora, Luis, estou entendendo o que você tanto solicita dos bailarinos quando coreografa. É algo que posso ver quando você se apresenta. Não sei bem como dizer, mas... acho que você deveria ter um filho para que alguém ficasse com tudo isso que você tem a dizer. Achei tão forte tudo que ela estava me dizendo, que fiquei muito emocionado. Sempre quando a gente se encontra, percebo um carinho muito grande dela. E uma admiração pelo meu trabalho, por minha atitude, por tudo. Eu me sinto bem com ela e com o carinho dela. *** Voltei para São Paulo, que me pareceu ainda mais cinza que da primeira vez. Eu chegava do Rio de Janeiro e essa impressão ficava naturalmente mais

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forte. Meu amigo Roberto, que também participara de algumas montagens na Associação de Ballet, ficou no Rio, trabalhando com o grupo de Klaus e Angel Vianna, indo em seguida a Belo Horizonte, onde atuou no Grupo Corpo, para mais tarde dançar em Genebra, Hildelberg e Berlim. Era o início de 1977. Voltei para São Paulo e encarei o Corpo de Baile Municipal de São Paulo como a minha casa. Voltei direto para lá. E Antonio Carlos Cardoso, que ainda estava na direção, me recebeu de novo e pareceu contente por eu ter voltado. Eu tinha 25 anos e acreditava ter encontrado meu lugar definitivo. Morei durante um curto período na casa de Ivonice Satie. Morávamos eu, ela e sua filha Ana Carolina, ainda pequenininha, a tia Ma, e um ajudante das tarefas da casa. Depois consegui alugar um apartamento que dividia com um colega da companhia, Max Markstein e sua esposa, com quem já havia morado junto no Rio.

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Meu empenho, então, era para aprender todas as obras que haviam sido montadas em minha ausência. De Victor Navarro havia Apocalipsis e Corações futuristas. De Antonio, Nosso tempo. E de Célia Gouveia, com quem eu ainda não havia trabalhado, Pulsações. Mas me lembro especialmente de Canções, de Araiz, talvez por ter sido uma obra que ele havia trazido de Buenos Aires. Essa peça era construída a partir das Canções de Gustav Mahler, tão lindas. Eu dançava aquilo repleto de prazer.

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Lembro também de Mulheres, só com o elenco feminino, todo vestido com roupas íntimas, um escândalo para a época. Esses eram os balés montados em 1976, quando eu estava fora da companhia. E foi uma surpresa boa para mim encontrá-la com todas aquelas novas obras, com toda aquela vontade impregnada nos bailarinos e nos mestres. Ela parecia estar revigorada, sobretudo em razão de seu novo endereço, na Rua João Passalácqua. Depois de ter a Escola Municipal de Bailado, debaixo do Viaduto do Chá, como sua sede, e de ter passado um tempo ensaiando no salão nobre do Teatro Municipal e no palco do Teatro Paulo Eiró, em Santo Amaro, finalmente a companhia tinha sua casa, onde funciona até hoje. 154

Aquela era a linguagem que eu queria falar, com a qual me identificava. E digo que me identificava não só pelo estilo. Aliás, o estilo me parecia ter menos importância naquele momento. Eu me identificava com o pensamento que estava sendo desenvolvido ali, naquele grupo de pessoas, entre as quais me sentia tão bem. Nesse ano de 1977, novas obras foram inseridas no repertório e um acontecimento definitivo aconteceria em minha carreira. Tivemos a mestra Tatiana Leskova, com quem eu havia feito aulas de balé no Rio, montando para nós O Galo de Ouro, ópera-balé de Rimski-Korsakoff. De Antonio Carlos Cardoso, apresentamos Percussão para Oito, que eu fazia com a ótima Lea Havas, e Soledad com a bela Rosangela Calheiros. De Victor Navarro, Opus e Era uma vez.

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Desta última obra, algumas situações curiosas ainda me vêm à memória. Até aquele momento, tudo que me davam para dançar continha um tom romântico, dramático ou até mesmo linear. Na montagem de Era uma vez, por exemplo, eu fazia o conjunto. Os solistas interpretavam Adão e Eva e um demônio que virava freira e, depois de um strip tease, se transformava numa drag queen com botas altíssimas, chifres e plumas na cabeça. Sem saber ao certo o motivo, o bailarino que fazia o tal demônio saiu da companhia antes da estreia, embora apresentasse todo o tipo físico para aquele papel tão exuberante. Fui escolhido para substituí-lo. Achei ótimo. Me transformei num enorme andrógino. Melhor, liberei-o. Num jornal da cidade, havia uma grande coluna gay chamada Coluna do meio, assinada pelo Celso Curi, e que entre outras curiosidades comentava espetáculos afins. No dia do espetáculo, uma grande foto central minha com plumas e botas ilustrava a coluna que anunciava a estreia.

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Outra situação curiosa se passava nas coxias. Como não havia muito tempo para me trocar, fazia o que tinha que fazer ao lado do palco mesmo, sempre contando com a ajuda de umas das poucas pessoas que não estavam em cena nessa hora. Sempre calhava de ser Solange Caldeira que, vestida de anjinho com trombeta e tudo, se oferecia prontamente a me auxiliar. A cena era impagável: um anjinho ajudava o demônio a trocar seus chifres... Mas foram os Prelúdios de Chopin, coreografados especialmente por Oscar, que me trouxeram uma felicidade imensa: fui agraciado com o prêmio de

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo, Canções, de Oscar Araiz . Acima: Luís Arrieta. Abaixo e ao lado com Mônica Mion

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo, Canções, de Oscar Araiz . Acima: Conjunto. Abaixo com Desireé Doraine. Ao lado Luis Arrieta

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melhor bailarino do ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte, APCA, nesse ano. Meu primeiro prêmio. Que me deixou imensamente feliz. E absolutamente seguro do caminho que eu havia escolhido para trilhar em minha vida. ***

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Eu ainda não tinha tido a experiência de coreografar em uma companhia profissional. De alguma forma, havia saboreado esse ofício, pois sempre participei muito ativamente das criações dos outros coreógrafos. Gostava de saber o que representava cada lugar, cada movimento, cada ação de cada bailarino. Na verdade, já era minha necessidade de coreografar que se manifestava em mim e que vinha desde criança, quando inventava tantas coisas. Desse modo, sempre me senti atrevidamente uma espécie de cocriador do coreógrafo com quem estava trabalhando. Não porque eu inventasse esse ou aquele movimento. Mas porque eu estava lá, presente e disponível, e isso me fazia criador – ah, essa palavra tão pretensiosa! – com ele. Nesse ano de 1977, Antonio teve uma ideia luminosa. Como já era usual no exterior, mas aqui ainda era uma novidade, ele organizou um workshop para novos coreógrafos dentro da companhia. Além de investir na descoberta de talentos, era uma forma encontrada para que nós, bailarinos, tomássemos consciência de todos os lados da dança dentro de uma estrutura como aquela. Que nós começássemos a perceber que a direção da companhia, a assistência, dar aula, coreografar, fazer a iluminação, conceber o figurino, que

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tudo aquilo eram interfaces de um mesmo ofício. E que era de extrema importância conhecer todos esses interstícios, essas habilidades, que às vezes a miopia do bailarino não o permite enxergar. A direção organizou tudo. Os ensaios seriam fora do horário de trabalho, ou seja, depois de nossa carga horária de 6 horas. Quem tivesse interesse em coreografar deveria se inscrever. E, nesse momento, escolhiam os bailarinos com quem desejariam trabalhar. Aí aprendemos uma primeira lição. Se antes achávamos injusto que sempre os mesmos bailarinos fossem escolhidos para os papéis principais, na hora de escolhermos o elenco, escolhíamos justamente aqueles bailarinos apenas. Ou seja, estávamos do outro lado fazendo exatamente a mesma coisa que criticávamos. Antonio não perdia a oportunidade de nos alertar: Mas vocês não diziam que tínhamos que usar sempre todos os bailarinos? Não havia jeito. A primeira escolha era sempre das mesmas pessoas. Ivonice Satie e Mônica Mion, por exemplo, eram sempre as primeiras a serem escolhidas. Sempre.

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Não sei por que motivo, mas não me inscrevi no workshop. Não pensava, naquele momento, em coreografar. Antonio me chamou em sua sala na direção e perguntou se eu não iria me inscrever e respondi apenas que não. Ele me disse, então, que achava que eu deveria sim fazer algo. Ele já reparava em mim. Falava para a companhia que achava interessante como eu estava sempre adiantando o que se propunha coreograficamente. Ele conhecia aquilo muito bem e vislumbrava algo mais em mim.

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de SĂŁo Paulo, Soledad, de Antonio Carlos Cardoso, LuĂ­s Arrieta e Rosangela Calheiros

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Diante daquele ar tão certeiro, tão seguro de Antonio, resolvi aceitar aquele desafio. Como eu havia sido o último a me inscrever, e ainda meio perdido, perguntei simplesmente quem gostaria de participar do meu trabalho. Mas, sem deixar aquele meu espírito megalomaníaco de lado, desde sempre tão presente em mim, fiquei com umas 11 pessoas. E decidi trabalhar com o Andante da Sexta Sinfonia de Mahler. Tudo deveria ser grandioso, desde o início. Não consigo me lembrar exatamente quanto tempo eu já havia trabalhado nessa minha primeira criação. Talvez um ou dois ensaios apenas, porque não tínhamos encontros diários neste workshop, para que não atrapalhasse o andamento normal da companhia. Aconteceu então que me ligaram de Buenos Aires: minha avó havia falecido. Lembro perfeitamente desse dia. Era 19 de agosto de 1977.

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Ela teve uma parada cardíaca e adormeceu. Na manhã seguinte, descobriram que havia falecido. Curioso: quando me ligaram para casa, logo de manhã cedo, eu, de alguma forma, já sabia do que se tratava. Já intuía. Recebi a notícia e imediatamente comecei a agir. Pedi a meu colega que morava comigo que me emprestasse dinheiro para comprar uma passagem para Buenos Aires. Meu desejo era chegar a tempo de estar no enterro dela, para uma última despedida. Pedi licença na companhia. Expliquei ao Antonio que iria faltar um ou dois dias, e ele entendeu perfeitamente. Naquela época, como eu tinha documento brasileiro, para sair do país, tinha que pedir permissão com uma

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certa antecedência. Era um trâmite que durava de 15 dias a um mês, mas que até então eu não havia me dado conta. Cheguei ao aeroporto e fui direto ao guichê da companhia comprar minha passagem. A atendente me disse que eu teria que apresentar documento e permissão de viagem. Que permissão?, perguntei. E ela me disse: Você tem que solicitar isso ao Dops. E isso leva um tempo.

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Um tempo? Eu precisava ir naquele dia. Naquela mesma época, estava aprendendo a dirigir, matriculado numa na autoescola. Nesse meio- -tempo, liguei para lá para avisar que naquele dia eu não poderia ter aula e acabei contando o motivo. E contei, também, nem sei muito o por--quê, da dificuldade que enfrentava com aquela história da permissão de saída do país. A mulher da autoescola que me atendia ao telefone, me deu o telefone do Ferreira Neto, jornalista de televisão já falecido, e insistiu que eu ligasse para ele e explicasse o que eu estava passando. Sem hesitar, liguei para ele que me colocou em contato direto com um dos diretores do Dops. Resumindo a história: em mais ou menos duas horas antes do avião partir, eu estava com a tal permissão na mão. Cheguei de madrugada a Buenos Aires. Fazia muito frio. Quando entrei no recinto onde acontecia o velório, vi minha mãe extremamente abatida. No fundo, sem saber, acho que eu havia ido para lá especialmente para ver minha mãe. Ela estava terrivelmente abalada com a perda. Quase não a reconheci. No dia seguinte, aconteceu o enterro. O frio era intenso. Apenas um sol tímido, que não

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chegava a esquentar. Registrei todo o caminho que percorremos. Tinha muita lama no cemitério, porque deveria ter chovido dias antes. E depois registrei um lugar com muitas pedrinhas brancas, com pinheiros atrás. E essa imagem eu traria eternamente comigo. No dia seguinte, voltei para São Paulo e retomei meus ensaios. Até então nem pensava que meu balé se chamaria Camila. Mas aquelas imagens insistiam em ficar na minha cabeça. Falei sobre elas para os bailarinos. Contei dos pinheiros que balançavam, que eram pinheiros magrinhos, novos, inclinando com o vento enquanto o sol aparecia um pouco por trás. Contei do caminho de pedrinhas brancas. Enfim, contei o que havia sido impresso em mim com tanta força, no dia anterior, tão distante dali onde eu estava naquele momento.

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Depois de um tempo, Oscar esteve em São Paulo. Veio montar Prelúdios de Chopin. Sempre curioso, foi assistir a um ensaio do meu trabalho. Quando terminou, sem que eu tivesse contado nada a ele, imediatamente me disse que eu estava contando a história de uma mulher. Fiquei atônito. Era um olho muito treinado para ver composição, que fazia um resumo certeiro, automático e objetivo do que via em dança. Foi então que decidi colocar o título da peça de Camila, nome de minha avó. No programa coloquei uma frase do fotógrafo e escritor Roberto Keppler, amigo e assíduo público da companhia: Parti para descobrir o que existe atrás do horizonte, não encontrei nada, mas dei a volta ao mundo. E então chegou o dia 24 de outubro, dia da estreia dos traba-

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lhos resultantes do workshop, no Teatro Municipal. E eu ainda nem intuía que coisas curiosas estavam por acontecer.

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Fazendo um salto na história. No ano de 1987, fui convidado para fazer uma remontagem no Teatro San Martín, em Buenos Aires, de algumas obras minhas. Lembro que escolhi Presenças e não sei se mais alguma coisa. Fui, montei quase tudo, e retornei uma segunda ou terceira vez para finalizar a montagem. A estreia, entretanto, estava marcada para o dia 15 de agosto daquele ano. Liguei de São Paulo para minha mãe e disse que chegaria uns dias antes para terminar de ensaiar, colocar a obra no palco, e que no dia15 seria a estreia. E minha mãe me disse: Não, meu filho, não vai ser no dia 15. Vai ser no dia 19. Sua avó Camila me disse. Achei meio estranho aquilo e resolvi telefonar para o teatro para confirmar. E eles me garantiram: Não, Luis, vai ser mesmo no dia 15 de agosto. Cheguei a Buenos Aires e, passada uma semana de ensaios, eles me disseram que a data de estreia teve de ser trocada. Seria no dia 19. Pensei: São mesmo terríveis as mulheres dessa minha família. Coincidentemente ou não, fazia dez anos da morte de Camila. Um dia de manhã, para aproveitar o horário livre, pois só tínhamos ensaios à tarde, resolvi ir ao cemitério levar uma flor para ela e convidei minha mãe para me acompanhar. Chegando lá, disse: Mãe, sempre me lembro desta imagem, desta paisagem. E minha mãe disse: Não, Luis, você está enganado.

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Essa é a parte mais nova do cemitério. Isso tudo, as pedrinhas brancas e os pinheiros, foi colocado há uns dois anos apenas. Antes, aqui era tudo vazio. Tudo isso me ajudou a perceber uma sensação que a dança sempre me trazia, que ainda não me era muito clara: a ideia de tempo e de suas dimensões paralelas. Quando comecei a montar a coreografia Camila, ela não tinha nada a ver com minha avó. Eu não tinha isso em mente. Mas a montagem se deu praticamente toda após a morte dela. Antes eu havia feito apenas dois ou três ensaios. Vejo isso refletido em outros trabalhos meus: ao mesmo tempo em que tenho um lado virginiano, preciso, organizado, planejando tudo a ser feito, paralelamente tenho um outro, extremamente inconsciente, no sentido de uma consciência paralela, que não é caótica, mas que preciso de um tempo para entender. Às vezes, até a crítica me serve para isso. Gostava muito quando Rui Fontana Lopes, que tem formação de psicólogo, escrevia sobre meus trabalhos, porque sua leitura ressaltava alguns aspectos psicanalíticos, e isso me parecia muito interessante. Falava desses meus dois lados, de alguma forma.

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Hoje, sei que minha experiência efetiva em coreografar vem se preparando desde pequeno. Depois, quando entrei na dança, ela ainda continuou se preparando, continuou nesse mesmo processo de construção. Antes de chegar a coreografar realmente, sempre fui muito oferecido. No balé Mulheres, de Oscar Araiz, por exemplo, Ivonice Satie e Iracity Cardoso dançavam e eram, ao mesmo tempo, assistentes coreográficas da companhia. Certa

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de S達o Paulo: Camila, de Luis Arrieta, 1977. Acima com Sonia Mota e Ana Maria Mondini. Abaixo, conjunto

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vez, elas estavam ensaiando esse balé, ou melhor, estavam dançando e dirigindo o ensaio ao mesmo tempo. Uma dançava, parava e tomava nota. Então a Ira tinha que fazer o solo e a Ivo ia e tomava nota, se revezando o tempo todo. E eu me ofereci: Não querem que eu sente e tome nota para vocês? Porque, na minha cabeça, já era assim. Acho que era meu lado virginiano me chamando à consciência. Não precisava saber muito bem a coreografia, apenas reconhecer como era cada parte. Se era todas juntas, era todas juntas. Se tal parte era em cânon, é para distribuir o movimento no espaço equidistantemente. Enfim, estava entendendo exatamente qual era a função de um assistente. Já o conteúdo daquilo, elas sabiam mais do que ninguém, porque tinham trabalhado na criação da obra. Eu, ali, poderia apenas evitar que fizessem aquela correria louca, aquele revezamento insano, e pudessem se dedicar a estar lá dentro, dançando. Acho que, daí em diante, me tornei uma espécie de assistente não oficial. Quando apresentávamos essa mesma coreografia, Mulheres, que tinha alguns efeitos de luz bem específicos, e o iluminador não estava acostumado a lidar com dança, e ficava apreensivo por não saber reconhecer o movimento para entrar com o efeito certo, eu me oferecia: Quer que eu fique ao seu lado e te avise? Como sempre, me oferecendo. Aliás, nunca achei nada demais em me oferecer. Achava que aquele era o procedimento mais normal quando se trabalhava em grupo. E assim ia aprendendo, ia burilando meu ofício.

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No balé Canções, de Araiz, que eu achava e acho ainda tão lindo, há praticamente apenas solos, duos, trios e

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dois conjuntos. Pediram que eu aprendesse um dos pas-de-deux com uma bailarina que eu tanto admirava, Mônica Mion. Nos tempos livres, ou enquanto os outros estavam fazendo suas partes, eu prestava atenção e ficava num canto da sala tentando aprender os outros pas-de-deux, os outros solos, e tudo o mais que eu pudesse aprender. E, cada vez que, nos ensaios, íamos passar todo o balé e o ensaiador combinava: Bom, vamos passar corrido, mas não vamos fazer tal parte porque fulano está machucado, eu dizia: Me deixa fazer? Eu entrava e fazia. E o ensaio transcorria como deveria. Nunca pensei em fazer isso por mal. Se estava lá, era para isso. Não pensava se estava tirando o lugar de algum colega meu. Pensava que estava ajudando o ensaio acontecer. Assim, passava a fazer ou a dividir com o colega escalado as partes que não haviam me mandado aprender a princípio. Sempre entendi diferente toda essa história. Aproveitava o tempo livre para aprender outro solo sozinho, pois me molestava ficar parado. Sempre me cansou mais ficar parado. Em Camila, decidi tudo: cenário, figurino, iluminação, tudo. Fiquei entusiasmado com o leque de possibilidades que se abria à minha frente. Quando estreamos, a direção do Corpo de Baile Municipal decidiu que o meu trabalho ficaria no repertório da companhia. Ele foi apresentado outras vezes, e sempre compunha a noite com alguma outra obra, já que tinha apenas 20 minutos. Embora tivesse ficado imensamente feliz, tenho hoje a certeza que não tinha capacidade naquele tempo de avaliar o que realmente significava aquilo. Sabia ape-

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nas que, para chegar àquele resultado, estava usando as informações que eu havia acumulado todo o tempo. Se penso que, em março de 1972, foi a primeira vez que peguei numa barra, e que em 1977 já estava coreografando para uma companhia oficial, tenho a dimensão de que é muito pouco tempo para aprender, dançar, viajar, mudar de país, dançar em quatro companhias, fazer assistência de iluminação e de palco, montar coreografia. Foi uma bênção fazer isso tudo junto. E, depois de um tempinho, teria mais uma atividade que se juntava a todas essas: a de professor. Nessa época, comecei a dar aula, como forma de melhorar um pouco meus rendimentos, fora do horário de ensaios da companhia. O primeiro lugar que consegui para trabalhar foi na academia da Renée Gumiel, na Rua Augusta, recomendado por Antonio. Eu tinha uma turminha de balé clássico uma vez por semana. E me dei conta naquele momento que quando se começa a ensinar, na realidade, começa-se a aprender. E isso não era nenhuma fantasia mística. Era algo bastante lógico.

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Quando conheci Renée, ela já era uma artista bastante conhecida e respeitada. Sempre gostei muito dela, de seu aspecto exótico, daquele seu sotaque carregado. Nunca chegamos a ter grandes intimidades, mas ela sempre me tratou com bastante carinho. Um tempo depois, passei a dar aula em outra academia que se chamava Centro de Dança e Artes Integradas, na Rua Cubatão, no bairro do Paraíso. Era dirigida por Cleusa Fernández, Vitória Barros e Jane Blauth, que eu já conhecia do Rio e que havia chegado a São

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Retrato no Corpo de Baile do Teatro Municipal de S達o Paulo, 1979

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Paulo como convidada do Grupo Stagium. Aquela sala ampla, que abrigaria tantos artistas importantes da dança paulistana e da dança brasileira, se transformou em um lugar especial para mim, e para a cidade. Lá, eu podia continuar aprendendo quando fazia e quando dava aula. E logo se tornou o lugar preferido dos rapazes do Corpo de Baile Municipal que, em turma, ao final da tarde, faziam aula com a mestra preferida, Jane Blauth. Quando comecei a estudar dança em Buenos Aires, escutava muito de meus colegas frases como: Ah, se eu não der certo como bailarino, vou ser professor, ou coreógrafo. Naquela época, não entendia muito bem o que isso queria dizer. Mas confesso que, hoje, continuo não entendendo. Naquela época não entendia por ignorância. Hoje não entendo por incoerência. Acredito que todas essas atividades deveriam ser conhecidas profundamente pelas pessoas que se dedicam à dança. Deveriam ser experienciadas através de seus corpos. Por todos.

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Evidentemente, quando pude realizar esse primeiro trabalho coreográfico, fiquei com vontade de fazer mais coisas, de experimentar novos desafios da criação. Continuava dançando com a companhia, ao mesmo tempo em que fazia um pouco de assistência. Ajudava no que podia, porque oficialmente não tinha cargo de assistente nem nada. Aliás, trabalhávamos por prestação de serviço. Não pertencíamos aos quadros do município ainda. E, como prestadores de serviços, tínhamos que conviver com regras que iam mudando a cada nova administração.

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Com Cleusa Fernรกndez

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No ano seguinte, 1978, Antonio promoveu mais uma vez um workshop para coreógrafos e, dessa vez, me inscrevi imediatamente. Montei um trabalho novamente com música de Mahler, o Primeiro Movimento da Segunda Sinfonia. Escolhi trabalhar apenas com homens, sete homens. Testemunho causou um certo alvoroço na época, porque não era muito comum ter apenas homens em cena. No ensaio geral, o elenco sofreu um desfalque: um bailarino se machucou. E não havia um substituto para ele. No dia seguinte, com um figurino apertadíssimo e sapatos dois números menores que o meu, entrei em cena. Eu era o único que errava. Em seguida, essa obra também passou a fazer parte do repertório da companhia. Mais uma vez, não me cabia em mim, tamanha era a felicidade. E lembro que, no terceiro workshop, do ano seguinte, eu não precisei mais me inscrever. Antes disso, fui oficialmente convidado pela direção para criar um trabalho.

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*** Depois da experiência com Camila, fui convidado a coreografar para outros grupos. Ainda em 1978, fiz uma coreografia para um jovem grupo independente de São Paulo, composto apenas por moças, chamado Grupo Andança, que havia sido criado no ano anterior por Lia Rodrigues, Juçara Goldstein, Cristina Brandini, Marta Salles, Sonia Galvão, Malu Gonçalves e Silvia Bittencourt. O que me encantou nelas era o fato delas também estarem querendo descobrir uma maneira diferente de trabalhar. Por exemplo, elas não tinham

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uma direção. Todas, de alguma maneira, organizavam tudo, exatamente o que eu já acreditava como deveria ser numa companhia de dança. Criei Pastoral para elas, com as Canções de Auvergne, de Joseph Canteloube de Malaret. Eram canções da Provence, da França. Era uma peça de 20 minutos, muito simples e muito feminina. Elas usavam umas sombrinhas, que concediam um tom pastoral que eu desejava. Foi uma ótima experiência, porque era a primeira vez que trabalhava como coreógrafo fora do Corpo de Baile Municipal de São Paulo. E, confesso, fiquei muito feliz quando elas, neste mesmo ano, ganharam o prêmio revelação da APCA.

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Outra dessas tentativas foi para a escola de Ismael Guiser. Conheci Ismael logo que cheguei a São Paulo, em 1974. Ele tinha uma pequena escola na Avenida Doutor Arnaldo, com sua sócia Yoko Okada. Essa era sua primeira escola, bastante incômoda, em cima de uma padaria. Era o começo de um boom da dança aqui no Brasil, muito estimulado pelo jazz e por programas e novelas de televisão. Nessa época, as escolas tinham três, quatro mil alunos, números que jamais se repetiriam depois. No momento em que saí do Stagium e fui para o Corpo de Baile Municipal, conheci Ismael. Foi através de meu amigo Roberto, que havia estado recentemente com ele. Na primeira vez que nos vimos, ele me recebeu muito bem. Contrariando o espírito de nosso país, me deixou fazer suas aulas gratuitamente, que eu achava muito difíceis. Aliás, Ismael, a partir de então, passou sempre a nos ajudar quando estávamos

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com o dinheiro mais curto. Geralmente era alguma participação numa dança para a televisão, que ele coreografava. Certa vez, vestidos de smoking, ladeando uma escada, acompanhávamos a descida glamurosa da vedete Wilsa Carla. Era um modo legítimo de trabalhar. E Ismael me ensinava isso. Todo o tempo que pude, fiz aula com ele. Até um dia antes de ele morrer. Ele era um professor que, com o passar do tempo, ia ficando melhor, como vinho. Para fazer aulas com ele, tinha que se ter um nível muito elevado de compreensão. Ele era fantástico. Quem se prendia a conceitos banais de movimento, sofreria horrores. Tudo era absolutamente preciso em relação ao movimento, ao uso espacial, ao ritmo, aos tempos e contratempos. Aparentemente, parecia ser uma aula muito simples, com exercícios curtos, algo que qualquer um faria. Mas, pelo contrário, eram exercícios extremamente elaborados. Era uma masterclass.

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Para mim, no comecinho, aquilo tudo que Ismael nos dizia em sala de aula parecia grego. Eu insistia em estar ali porque tinha a sorte de saber me entregar, de saber intuitivamente que o processo de aprendizagem era algo que não tinha muito que opinar, que iria seguir decantando sozinho, para me levar a um determinado lugar, algum dia. Uma coincidência? Ilse e Ismael tinham sido, em épocas diferentes, alunos de Esmée Bulnes, excelente e renomada professora inglesa que morou muito tempo em Buenos Aires. Uma família se formava. Uma família de artistas.

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Ismael Guiser

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Com Ismael Guiser

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Sempre tive a sorte de trabalhar com os melhores professores. Ilse e Ismael em balé clássico. Em dança moderna, Renatte, e no Brasil Ruth Rachou e Odette Flaks. No Corpo de Baile Municipal de São Paulo, algo fantástico acontecia que era a evolução do ensino que vínhamos recebendo. Tínhamos técnica clássica com Yellê Bittencourt, que é sem duvida um homem de grande inteligência física e metodológica; e técnica moderna com o japonês radicado na Inglaterra, Yoshi Morimoto, num trabalho de Graham e reminiscências de folclore japonês que ele tinha estudado de criança. Foi extremamente importante essas presenças porque nos permitiram uma melhor compreensão e realização do que dançávamos. Yellê assistia às aulas de Yoshi e Yoshi as de Yellê. Depois, os dois conversavam longamente, percebendo toda a unidade de base que partilhavam. E tudo isto me influenciava grandemente a cada coreografia que realizava. E até hoje faço aulas de balé. Trabalho com muitos professores e com todos sensorialmente sei mais do que coisas novas: aprendo as mesmas de uma maneira sempre nova. *** Continuava como bailarino do Corpo de Baile Municipal de São Paulo. Em 1978, dancei peças de Navarro, Araiz e Sonia Mota. E ganhei o Prêmio Governador do Estado de São Paulo como melhor bailarino. Nesse ano, a direção da companhia estava passando por uma sucessão de crises. Antonio havia deixado

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Ballet Ismael Guiser: Noch Einmal, de Luis Arrieta

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seu cargo por um curto período, sendo substituído por Navarro, e voltou logo em seguida. Iracity Cardoso permanecia como assistente. A companhia tinha 28 bailarinos, 15 mulheres e 13 rapazes. E nós tivemos um trabalho intenso. Na verdade, 1978 foi um ano especial para a companhia, já que, apenas no primeiro semestre, atraiu um público que somava mais de 30 mil pessoas com seus espetáculos, graças a uma acertada política de preços populares. Fora isso, fizemos uma excursão pelo país, começando pelo Rio de Janeiro e indo de Norte a Sul, apresentando nosso repertório. E eu estava particularmente feliz pelo fato de meu balé Camila estar incluído nele.

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Ainda nesse ano, tivemos a turnê brasileira da Alvin Ailey American Dance Theater, que se apresentou em junho no Teatro Municipal de São Paulo, a grande atração internacional do ano. Apresentaram alguns de seus clássicos como Cry e Revelations. Para uma reportagem de Helena Katz sobre essa estreia, no jornal Folha de S. Paulo, do dia 27 de junho, declarei: Só conheço o trabalho deles por filme, e acho lindíssimo. Mas é muito diferente de assisti-los ao vivo. Estou até apreensivo quanto à apresentação de hoje, mas creio que não vou me decepcionar. O trabalho deles é muito bom, temos sempre que aprender com uma companhia assim. Quanto à vinda do grupo ao Brasil, considero importantíssima. De certa forma, estimula nosso trabalho, pois mostra ao público um trabalho de renovação dentro da dança. Serve como exemplo de que aquilo que tentamos fazer aqui faz parte de um movimento mundial.

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No ano seguinte, 1979, nós do Corpo de Baile Municipal recebemos a visita de um coreógrafo dessa companhia, Clive Thompson, que montou Hoje é amanhã. Esse trabalho, o que era inevitável, dialogava com a linguagem de Ailey, dentro do que estava ao nosso alcance técnico. Além disso, participei da criação de Aquarela do Brasil e Brahms, de Antonio Carlos Cardoso e de Daphnis e Chloé de Navarro. E, apesar de não participar mais do workshop como coreógrafo, em sua terceira edição, que aconteceu no mês de outubro, no Teatro João Caetano, participei como bailarino. No programa contávamos com quatro trabalhos, embora eu tomasse parte apenas de três: Concertinho de Paulo Contier, Balanços de Ivonice Satie e a Missa do Vaqueiro, de Umberto Silva. Ariane Asscherick assinava a outra coreografia do programa. Sempre dancei com muito prazer coreografias de meus colegas.

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Ainda em 1979, fiz para o Ballet Ismael Guiser, Children’s corner, com música de Debussy, minha segunda obra fora da companhia. O lado positivo desses trabalhos, além do próprio exercício de coreografar, era o fato de que eu começava a receber por eles, mesmo que fossem cachês ainda bem modestos. De alguma forma, coreografar se tornava para mim, lentamente, uma profissão também. Voltava a Buenos Aires periodicamente, principalmente nas férias de fim de ano, para passar as festas com minha família e ficar um pouco mais por dentro dos acontecimentos da casa. Isso fazia com que minha saudade ficasse um pouco esmaecida. ***

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de Sรฃo Paulo, Presenรงas, de Luis Arrieta, 1979

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Presenças foi a primeira coreografia com caráter mais oficial que compus. Fui convidado a concebê-la e isso era algo ao mesmo tempo novo e especial para mim. Nesse ano de 1979, ganhamos o prêmio de melhor obra do ano, concedido pela APCA. Usei a Rapsódia sobre um tema de Paganini, de Rachmaninov, com 24 minutos de duração. E decidi homenagear minha mãe. Foi um balé que a companhia dançou por muito tempo, muito importante para mim e para a própria companhia. Era um trabalho de muita energia, e o público ficava muito envolvido com toda sua dinâmica de movimentos. Os bailarinos com quem eu trabalhava no Corpo de Baile Municipal eram ótimos. Eu intuía neles a capacidade de fazer muitas coisas, sobretudo porque, em meus trabalhos, havia sempre destaque para todos. Por um lado, reconhecia todas as dificuldades deles e, por outro, tinha uma fé cega na capacidade do que se podia realizar ali, possivelmente até muito mais do que a fé que eles próprios tinham. Sempre achei que eram eles – os bailarinos – os realizadores da obra, tanto que eu raramente dancei um trabalho meu. Dançava quando tinha necessidade, quando alguém se machucava, ou quando havia algum problema de emergência, mas era algo raro.

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Por esse balé, recebi uma de minhas primeiras críticas. Acácio Ribeiro Vallim Jr. assim escreveu para o jornal O Estado de S. Paulo (01/07/1979): Presenças, trabalho vigoroso e atraente de Luis Arrieta, o que mais impressiona é, sobretudo, a inventividade do coreógrafo. Cada sequência é uma surpresa nova,

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os grupos se harmonizam com muita beleza. Existe no trabalho um constante diálogo de movimentos. Fiquei ainda muito contente com outra novidade. No ano seguinte, a TV Cultura estrearia um novo programa, chamado Corpo de Baile, em que veicularia as obras do repertório do Corpo de Baile Municipal, com filmagens especialmente dirigidas pelo Pipoca. O primeiro programa a ir ao ar, em maio de 1980, apresentou justamente Presenças. Em 1980, fui convidado a ocupar oficialmente o posto de diretor assistente do Corpo de Baile Municipal, já que Iracity havia saído para trabalhar no Ballet de Genebra, com Oscar. Como assistentes, contávamos com Ivonice Satie e Umberto Silva. Na verdade, essa nomeação representava apenas a oficialização de algo que, na prática, eu já vinha fazendo. Assim, fiz assistência de direção, mas continuava desempenhando todas as outras funções, como assistente de coreografia, coreógrafo, bailarino, além de ajudar na iluminação, opinar sobre os figurinos, tudo. E, novamente, me convidaram também para fazer outro trabalho para a companhia, que se chamou da Infância com canções de Mahler. Era um período em que eu estava muito mahleriano. De alguma maneira, todos os meus trabalhos sempre falaram muito de mim, assim como acredito que todos os trabalhos dos outros coreógrafos falem de quem os realiza. Não há muito como escapar disso. Mas, com da Infância, isso aparecia de forma bem nítida, estampada inclusive no

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Retratos 1982

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Retratos 1982

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próprio título, ou seja, o reconhecimento da infância, da visão que eu tinha do que era infância. Claro que essa consciência e essa percepção vinham depois que a obra estava pronta. Dificilmente viriam antes disso. Essa nova obra estreou em julho de 1980, num programa que tinha ainda Cantata, de Antonio, e Danças Sacras e Profanas, de Navarro. Mas esse espetáculo trazia a bela oportunidade de ser apresentado com música executada ao vivo. Para da Infância, por exemplo, tivemos o privilégio de contar com a participação do pianista Gilberto Tinetti e do tenor Eduardo Alvares. Aconteceu uma coisa interessante ainda neste ano. Naquela época, a partir da direção de Antonio Cardoso, o Corpo de Baile Municipal não participava mais obrigatoriamente das óperas da casa. Mas foi solicitada uma participação da companhia na temporada lírica desta vez. E Antonio me perguntou o que se poderia fazer, e eu tive uma ideia, que ele rapidamente acatou.

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Embora fazendo parte da temporada lírica, não usamos música ao vivo e sim gravação. Escolhi A-Ronne, uma obra de Luciano Berio, em que ele usa trechos de obras famosas de outros compositores, como Mahler, por exemplo. A versão que usei era a do grupo vocal que ficou muito famoso na época, Swinger Singers, e esse trabalho teve como título Um retrato. Ele tinha também um forte aspecto psicológico e mostrava como eu estava realmente fazendo uma

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de S찾o Paulo, da Inf창ncia, de Luis Arrieta, 1982. Acima, Monica Mion e Carlos Demitre. Abaixo, conjunto

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Ensaio em BH com Elo, Ballet de C창mara Contempor창neo, 1982

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viagem para dentro de minha vida, desde a infância. Um retrato era uma obra forte, da qual eu participava também dançando. E que tinha alguma influência de dança-teatro. Lentamente, também, eu começava a usar muito mais o chão, algo relativamente novo para nós. E foi também muito interessante até pelas próprias dificuldades enfrentadas na produção desse trabalho. Por exemplo, decidimos que cada bailarino iria propor o figurino que deveria usar. Então, cada um trouxe uma roupa de casa e, dentro daquilo, escolhíamos algumas peças e depois tingimos tudo junto, para dar uma certa unidade na tonalidade do trabalho. Ou seja, vários novos procedimentos estavam sendo testados por nós naquele momento, ao mesmo tempo. 192

Novamente o Acácio Vallim escreveu sobre a estreia, no jornal O Estado de S. Paulo (21/09/1980): “Impressiona em Um retrato a capacidade de Arrieta em criar movimentos, de tal forma contemporâneos, que a relação com a nossa época se estabelece sem dificuldade. Um retrato materializa no palco todo o caos atual num depoimento poderoso e impressionante.” Fiquei especialmente feliz porque, ao terminar o ano, ganhei o prêmio de melhor coreógrafo justamente por essas duas obras, Da infância e Um retrato, concedido pela APCA. Continuava como bailarino, como sempre. Participei, por exemplo, das criações de Antonio Cardoso, Sol do meio-dia e Cantata. Mas ainda criei mais uma obra, de 25 minutos, Sanctus. Usei um disco que estava na

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moda e que se chamava African Sanctus. A partir de registros africanos, recolhidos entre 1969 e 1975, no Egito, Sudão, Uganda e Quênia, por um engenheiro de som e o compositor e etnomusicologista inglês David Fanshawe, tudo foi relido com orquestrações e corais, concedendo um ar mais europeu à matriz. Cinco anos depois, fiz uma nova versão desse balé para o Balé Teatro Castro Alves, em Salvador, e que se tornaria uma de suas obras conhecidas internacionalmente. O diretor de teatro Ulisses Cruz, assim escreveu sobre esse balé no Diário do Grande ABC (13/12/1980): Sanctus de Arrieta, um belíssimo agrupamento de movimentos que transmitem com inusitada emoção sua paixão pela dança. Sanctus é, antes de tudo, isso: uma festa de movimento de um homem apaixonado pelos bailarinos e a dança em sua essência mais cristalina. No palco, somente a luz serve como acessório para evidenciar a magia da dança, e o bailarino é o mensageiro de uma energia extraída do ato de dançar.

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Antes do ano terminar, trabalhei ainda com duas companhias independentes. Fui convidado por Hulda Bittencourt para fazer minha primeira coreografia para sua Cisne Negro Cia. de Dança, que ainda engatinhava com seus três anos de existência: Primeira oração, com o Concerto para órgão, cordas e tímpano de Francis Poulenc. Uma obra linda. Estreou em novembro, no Teatro João Caetano, dividindo o programa com obras de Navarro. Helena Katz, na Folha de S. Paulo (01/11/1980), escreveu: Primeira oração nos remete ao Luis Arrieta de Presenças (...). Aqui, os desenhos e as dinâmicas são mais requintados, mas é

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a mesma competência em explorar o espaço cênico que retorna ao trabalho de Arrieta.

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A segunda companhia foi o Grupo Casa Forte, um grupo recém-formado por Edson Claro, com alunos oriundos de cursos superiores de Educação Física. Fiz Canções para uma criança morta, novamente com Mahler. Nesse grupo, estava Paulo Rodrigues, que mais tarde seria o primeiro-bailarino do Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Ele tinha um solo muito forte, com a canção talvez mais veemente de toda obra. Como ele vinha da natação, ele tinha um porte atlético e costas largas. Vestido de mulher, fazia esse solo que era muito violento. O resultado era uma cena interessante. Aquele homenzarrão vestido de mulher... Não deixava de ser algo forte para época, porque evidentemente ele não pretendia ser uma mulher, mas tratar de uma alma masculina vestida de mulher. E ainda fiz um pequeno solo para minha amiga e colega Ivonice Satie, Céu e inferno, para um documentário em curta-metragem chamado Retrato de Ideko, de Olga Futema. Enfim, um ano que terminava repleto de realizações. E eu nem sabia o que ainda estava por vir. *** Em 1981, Antonio Carlos Cardoso deixou a direção do Corpo de Baile Municipal, após seis anos, aceitando um convite para formar uma companhia estável no Teatro Castro Alves, de Salvador. Diante disso, o se-

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cretário me propôs que eu assumisse a companhia. Ao aceitar, pedi que Ivonice Satie ficasse comigo, como minha assistente de direção, deixando claro que eu continuaria com a proposta que Antonio vinha desenvolvendo. Foi uma época curta, de apenas um ano, pois durou apenas até o início de 1982. Mas foi também uma época de muito trabalho. Realmente foi um grande esforço para mim, aliar tantos afazeres. E me senti inclusive testado fisicamente, já que sempre fui uma pessoa frágil nesse sentido. Claro, o lado administrativo era sem dúvida o mais complexo, já que estava empenhado agora em coreografar. De uma hora para outra, tive que me preocupar com coisas absolutamente novas, que incluía tudo, até pedidos de papel higiênico, copos para café, enfim, todas essas coisas bem pouco “artísticas”. Minha sorte foi contar com Ivonice, uma excelente assistente de direção, assistente coreográfica, além de uma excelente bailarina também. Ela dançava tudo na companhia. E era uma mulher impressionantemente batalhadora.

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Quando assumi a direção, na verdade, não foi uma grande mudança, porque eu já vinha, de certo modo, fazendo muita coisa. Não havia se passado sequer uma década desde que iniciei na dança e eu já estava dirigindo uma companhia oficial. Ou seja, em menos de nove anos, tinha exercido todas as funções: dancei, coreografei, dirigi. E isso sem nunca ter me sentido, até hoje, como se eu não tivesse ainda muito que aprender. Nunca. Até hoje, faço aula de dança para aprender. Não faço aula para me manter fisicamente.

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de S達o Paulo: Sanctus, de Luis Arrieta

Ballet do Teatro Castro Alves: Sanctus, de Luis Arrieta

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo, Sanctus, de Luis Arrieta, com Paulo Contier

Ballet do Teatro Castro Alves: Sanctus, de Luis Arrieta, com Fátima Berenguer e Marcos Napoleão

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Aliás, nesta idade não tenho mesmo nada mais que manter. Faço realmente para aprender. O que também me foi claro desde sempre era que eu jamais pretenderia mudar os rumos que a companhia havia tomado desde a entrada de Antonio. A minha ideia era continuar com aquele pensamento que, na minha maneira de ver, era a maneira mais profunda e verdadeira para trabalhar.

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E, nesse sentido, acumulando as funções de diretor e coreógrafo residente, montei dois trabalhos para a companhia nesse ano. O primeiro deles já tinha sido pensado por Antonio e, por isso, resolvi desenvolver. Ele pretendia fazer uma obra a partir de O Romanceiro da Inconfidência, romance da Cecília Meirelles, de 1953. Desta ideia, chegamos a Libertas quae sera tamen, com a ajuda de Iacov Hillel, que idealizou todo o roteiro e também desenvolveu o projeto de iluminação. Na verdade, o time escalado para essa obra era de primeira. Para a trilha, convidamos Egberto Gismonti, que compôs especialmente a música. Já os cenários e figurinos ficaram a cargo de Flávio Império, que chegou a ganhar o prêmio concedido naquele ano pela APCA, por esse trabalho. Na verdade, essa era sua segunda experiência com dança, já que sua ligação maior sempre foi com as artes plásticas e depois com o teatro. E para mim, especialmente, foi um trabalho muito importante, porque foi meu primeiro trabalho de longa duração, de uma noite inteira, com 80 minutos. Ele era apresentado sozinho, sem intervalo. Uma obra de fôlego, como se costuma dizer.

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E recebemos algumas críticas. Acácio Vallim, por exemplo, assim escreveu para O Estado de S. Paulo (23/04/1981): “Libertas é o resultado da reunião feliz do trabalho de profissionais de diversas áreas. Acima de tudo Libertas empolga pelo casamento perfeito da música de Egberto Gismonti com a coreografia de Luis Arrieta. O resultado é um crescendo de emoções que envolvem o espectador por completo. Alegria autêntica impregnando o palco.” A segunda obra do ano que fiz, Eterno Infinito, com música de Vangelis, era como muitos dos meus trabalhos, ou seja, solos, duos, trios e quartetos, que se alternavam. Sempre gostei muito de usar todo o elenco em conjunto, porque adoro as formações de conjunto, mas, ao mesmo tempo, os usava individualmente, tentando captar o que cada bailarino tinha a me oferecer. Nessa obra, por exemplo, havia possivelmente um aspecto psicológico, não no sentido de lembrança, mas de um espelho encarnado nos próprios bailarinos. Ou seja, como eu me via refletido em cada pessoa do elenco. Lembro que, para isso, lancei mão de alguns pequenos poemas muito bonitos de um poeta árabe, chamado Nemer Ibn El Barud.

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Alguns pedaços desse trabalho foram filmados pela TV Globo, para passar no programa de comemoração do aniversário da cidade de São Paulo, que seria no dia 25 de janeiro do ano seguinte. Como era de costume, a cada ano essa comemoração ganhava um título e a desse ano era São Paulo, terra infinita. Ou seja, tínhamos em comum a ideia de infinito, além de sermos o Balé da Cidade de São Paulo. Justamente

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Ensaio de Libertas, com Paulo Contier, Guilherme Botelho e Ray Costa

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de S達o Paulo: Libertas Quae Sera Tamen, de Luis Arrieta, com Leila Sanchez, Paulo Contier e Julia Ziviani

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nesse ano de 1981, a companhia foi rebatizada com esse nome, algo que já havia sido pleiteado por Antonio, mas que se consolidou apenas na minha gestão. Assim, em dezembro, nós e a equipe da emissora fomos filmar partes desse balé no minhocão. Era madrugada, porque eles queriam captar também o nascer do sol. Encontramos todos às 3 horas da manhã no viaduto. E as filmagens ficaram lindas.

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Nesse ano, não convidei ninguém para coreografar para a companhia. Tinha a intenção de montar uma versão minha para Romeu e Julieta, com a música de Prokofiev. Cheguei a iniciar os ensaios, e fui até a metade do que pretendia. Mas não acabei. Esse foi o único trabalho em toda minha carreira que não terminei. E uma das razões foi minha saída da companhia logo no início do ano seguinte. Em meu lugar entrou, então, Klauss Vianna. *** Entre 1982 e 1985, fiquei longe da companhia. Não foi nada fácil para mim, mas, ao mesmo tempo, sabia que poderia ser o momento de experimentar novas frentes, trabalhar de outras maneiras. Logo em 1982, fui para Belo Horizonte, onde permaneci uns seis meses. Lá, pude me aproximar de Bettina Bellomo, uma bailarina argentina que havia chegado ao Brasil poucos anos antes, em 1974, como professora do Festival de Inverno de Ouro Preto. Mas, antes disso, Bettina já carregava um currículo invejável: havia ingressado com 15 anos no corpo de baile do Teatro Colón, segundo esforços pessoais de Alicia Alonso. Em seguida,

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foi trabalhar no próprio Balé Nacional de Cuba, para depois alcançar o posto de primeira-bailarina do Balé Nacional do México. Disso, voltou para a Argentina, para trabalhar com Oscar. Hoje, sem dúvida, é uma das melhores professoras de técnica clássica desse país. Juntos, então, resolvemos criar um grupo pequeno de dança, chamado Elo Ballet de Câmara Contemporâneo, com bailarinos da cidade. Estava feliz em trabalhar com uma compatriota, confesso. Para viabilizar esse projeto, resolvi me mudar para Belo Horizonte, mesmo que por um curto período. Era uma companhia pequena, independente, sem recursos e com apenas 11 integrantes. Eu e Bettina éramos os diretores. Contamos com a ajuda de Jairo Sette e Suzana Mafra, bailarinos que vinham do Balé da Cidade de São Paulo, e Tânia Mara, como assistentes. E os bailarinos eram: Cristina Carvalho, Eduardo Bactéria, Lúcia Freitas, Geraldo Vidigal, Tânia Miranda e Virgínia Bezerra.

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Para a estreia da companhia, fizemos um trabalho chamado Nascer: ou algumas profecias cotidianas e eternas, o qual abordava as diversas formas de nascimento. Estreamos no Palácio das Artes, em novembro de 1982. Depois nos apresentamos em outros teatros da cidade, como o Francisco Nunes e o Santa Maria. Desse espetáculo, um trio particularmente interessante acabou ganhando vida própria e até mesmo um nome próprio: Trindade, que seria dançado depois por muitas companhias país afora. Na estreia, fizeram Jairo Sette, Bettina Bellomo e Tânia Mara. E a com-

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Elo Ballet de C창mara Contempor창neo. Acima, grupo. Abaixo com Bettina Bellomo

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Elo Ballet de C창mara Contempor창neo. Acima, grupo. Abaixo no destaque, Suzana Mafra

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Elo Ballet de C창mara Contempor창neo

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panhia logo em seguida se desfez, vítima da falta de recursos que sofria. Infelizmente. Nessa mesma época, fiz alguns trabalhos fora do eixo Rio-São Paulo-Belo Horizonte. O primeiro foi para um grupo de Porto Alegre, o Grupo de Dança Imbahá. Fiz Terceira oração ou Oração das mães da Praça de Maio, obra sobre a qual já contei um pouquinho lá no início do livro. Em Maceió, montei a coreografia Maceió para o Grupo Íris de Alagoas, dirigido pela bailarina Eliana Cavalcante. Falava da natureza de lá, da areia, da praia, do mar, de tudo que foi tão impactante pra mim, que vinha de Buenos Aires. E, por falar em Buenos Aires, decidi, pela primeira vez, resgatar o tango em minhas obras. Montei Tempo de tango para a Cisne Negro Cia. de Dança. Tratava-se, sem dúvida, de uma reconciliação, já que, para mim, tango sempre foi música de pessoas mais velhas, de outras gerações. Era um reconhecimento. E, apesar de não usar o tango tradicional, mas as revisitações de Medeiros e Piazzolla, era um modo de ficar mais próximo dele.

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Durante sua montagem, num dos ensaios, tentei olhar o trabalho e reconhecer nele meus pais. Para minha surpresa, como numa visão, constatei que eles estavam lá, mas não como adultos e muito menos como velhos: eram crianças que dançavam entre as cadeiras sustentando os primeiros desejos de afeto de suas infâncias. Em 1983, continuei aceitando convites para coreografar pelo Brasil. Era um modo de conhecer o país e

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Cenas de Trindade, de Luis Arrieta. Acima, Aurea Ferreira, Sandro Borelli, Ana Maria Mondini. Abaixo, LĂ­lia Shaw, Irineo Marcovechio, Nancy Bergamin

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sua dança. Devido minha estada em Belo Horizonte, acabei conhecendo Marjorie Quast, diretora do Grupo Núcleo Artístico, que pertencia à sua escola, criada ainda em 1978, e do Camaleão Grupo de Dança, de 1984. Conheci Marjorie por meio de Bettina, que já trabalhava para sua escola dando as aulas mais adiantadas. Ela me recebeu abertamente, sem medos, feliz do crescimento da dança na cidade, oferecendo seu estudo e muito apoio para a nossa produção. Para o Núcleo Artístico, montei uma coreografia com música especialmente composta por Oswaldo Montenegro, chamada Signos. Na verdade, era um trabalho que Marjorie já havia começado a organizar com Oswaldo, e me chamou para coreografar algumas partes e fazer a direção geral. Eu experimentava, então, maneiras diferentes de entrar num trabalho. Maneiras enriquecedoras.

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*** Nesse mesmo ano, ainda no início, em fevereiro, trabalhei novamente com a Cisne Negro Cia. de Dança. Fizemos uma obra considerada importante para a história da companhia: Do homem ao poeta, com música de Carl Orff. Uma obra longa, de 75 minutos. Na verdade, tive duas fontes que me inspiraram para essa criação. Uma foram as Odes elementares, de Pablo Neruda, que pensei em oposição aos textos profanos da obra de Orff. A outra foi Il Quarto Stato, um quadro de Pelizza de Volpedo, que traduzia as ideias socialistas do pintor no final do século 19. Esse

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Luis Arrieta danรงando Tango, de Luis Arrieta

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mesmo quadro foi usado pelo cineasta Bertolucci, na abertura de seu filme 1900.

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Hulda, diretora da companhia, me encomendou algo assim: ela queria um trabalho em que os bailarinos não precisassem trocar com frequência de roupa, que não tivesse intervalo, e que pudesse ser levado a ginásios ou lugares semelhantes. Ou seja, que pudesse ser apresentado em cidades que não contavam com teatros. Bem, acatei todos os seus pedidos. Os 12 bailarinos entravam e não saíam mais do palco durante uma hora e dez minutos. Tanto que, antes de começar o espetáculo, eles costumavam brincar entre si: Gente, é bom ir ao banheiro, porque agora só depois de uma hora... Não tinha cenário. Não tinha que trocar de roupa. E eu encarava aquele pedido como um desafio. Nunca como uma limitação. Nunca como uma restrição. Nossa estreia foi em Curitiba e em São Paulo estreamos apenas no mês de setembro, no Teatro Municipal. O balé fez sucesso e seguiu sendo apresentado muitas vezes. Não tantas vezes quanto Hulda pretenderia, já que eles tiveram muitos problemas com direitos autorais, pois as obras do compositor não eram de domínio público. Ainda encontrei um tempinho para coreografar em Assunção, Paraguai, convidado pelo bailarino Miguel Bonini. O grupo se chamava Produções Artísticas e, para eles, fiz Paisagem em Azul. ***

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Enquanto estava trabalhando em Belo Horizonte, com o grupo de Marjorie Quast, a direção da Rede Manchete de Televisão me contatou, seguindo uma indicação de Antonio Carlos Cardoso: precisavam com urgência de um coreógrafo em sua equipe. E, daí em diante, uma nova fase começou para mim. A TV Manchete começava a existir. Entrou no ar pela primeira vez em junho daquele mesmo ano, desde então esbanjando uma opulência impressionante, além de ser avançadíssima em termos tecnológicos. E precisavam de um coreógrafo que montasse um grupo de dança próprio da emissora. E eu aceitei esse desafio. Fiquei alguns meses indo com frequência ao Rio de Janeiro, sede da televisão, até a estreia. Depois de muitas reuniões, chegamos juntos ao conceito exato do que eles pretendiam em relação à dança.

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Na verdade, como pude reparar, a dança havia sido levada em conta desde o início por eles. Na sede, por exemplo, na Rua do Russel, no bairro da Glória, havia uma ótima sala de ensaio, além de um teatro maravilhoso, que hoje está, infelizmente, fechado. Eu tinha condições de trabalho inimagináveis até então. Marcamos uma audição para escolher os bailarinos. Apareceram quase mil pessoas, algo inesperado por nós. Uma loucura. Para mim, foi uma experiência e tanto. Vieram muitos integrantes da companhia do Theatro Municipal, como Ana Elisa Ferraiolo, Antonio Negrero, ou seja, excelentes bailarinos querendo

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trabalhar comigo, porque me conheciam, e querendo ter experiência em televisão. Eu e o diretor Paulo Araújo, de show fazíamos juntos a seleção. Tudo era filmado e ele já analisava se o candidato era fotogênico, se funcionava bem para a televisão, essas coisas. Tinha de tudo: tinha gente que só sambava, gente que só desfilava, que só fazia dança de salão... enfim, um pouco de tudo.

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Ao final, escolhi 14 excelentes bailarinos, profissionais muito interessantes. E começamos a trabalhar. Tínhamos aulas diárias de balé dadas por mim e, às vezes, Jairo Sette, que já tinha trabalhado comigo em São Paulo e Belo Horizonte, como bailarino e assistente. Logo começamos a montar o que seriam os primeiros programas de estreia. Uma das coisas que idealizei para aquela ocasião tão especial foi uma releitura de Tempo de tango, de Piazzolla, que eu havia feito para a Cisne Negro Cia. de Dança. Quem idealizava todo o visual da nova emissora era Arlindo Rodrigues, que também dirigia o que eu deveria fazer. Tudo era absolutamente pensado, calculado. Até nosso linóleo tinha que ser preparadíssimo para dança, em um tom de cinza que não cansasse a vista. A sala tinha uma rampa em volta com 5 metros de altura, onde foram colocados projetores e câmeras, caso quisessem experimentar um efeito de luz, ou ter uma outra perspectiva. Enfim, era fantástico. Nós da dança éramos todos bem considerados dentro da TV. Ganhávamos bem. Tínhamos ótimos camarins

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naquele exímio prédio, projetado pelo Oscar Niemeyer. E eu cheguei a conhecer Adolpho Bloch, com quem me simpatizei de imediato. Um homem culto e interessante para se conversar. Por um certo tempo, fiquei indo e voltando, entre Rio, Belo Horizonte e São Paulo. Mas, quando chegou mais perto da data de nossa estreia, aluguei temporariamente um apartamento quarto e sala no Bairro Peixoto, perto de onde morava Tatiana Leskova. Na verdade, um acontecimento pressionou para que eu tomasse essa decisão. Durante um tempo, tive um Fiat 147 e fazia com ele todas as viagens, quase sempre sozinho. Numa dessas vezes, dormi na direção. E bati naquela murada que divide a rodovia. Quase me matei. Não aconteceu nada, mas fiquei apavorado. Minha sorte foi não ter ninguém na estrada. Lembro, então, que fui a um posto de gasolina, molhei um pouco meu rosto, tomei um café bem forte, morrendo de medo de voltar a dormir. Foi horrível. Depois disso, decidi não fazer mais essa loucura e resolvi ficar no Rio, pela segunda vez em minha vida.

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Para esta abertura, fiz também um trabalho com a cantora Watusi, que retornava de Paris, onde fazia enorme sucesso, cantando a canção Só louco, de Dorival Caymmi. Esse seria o grande momento da abertura da emissora. A parede atrás do palco do teatro tinha rodas e por isso era possível abri-la, e dava para a piscina. Fizeram, então, uma escadaria que passava por cima dessa piscina e acabava no palco, por onde ela vinha caminhando e cantando. Tudo coreografado por

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mim. Minha sorte foi poder contar com a simpatia e, sobretudo, com o profissionalismo dela nos ensaios.

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Ensaiávamos muito antes da estreia. Ela usava um sapato com um salto altíssimo e um esplendor que devia pesar uns 30 quilos. Acompanhando, 14 bailarinos e mais umas 40 moças e uns 20 rapazes, todos modelos. Todos nessa escadaria, coisa típica de show de abertura. Num dos ensaios, começou a chover. Por nossa sorte, estávamos ensaiando sem os figurinos. Todos imediatamente saíram correndo, porque estávamos num pedaço do cenário a céu aberto. Mas Watusi continuou marcando, como se nada tivesse acontecido. E eu fiquei ao seu lado. Eu jamais arredaria o pé dali. Quando acabamos, nos enxugamos com umas toalhas e ríamos muito do estado em que estávamos, ali sozinhos, naquele cenário vazio. Ela era uma profissional. Depois dessas experiências riquíssimas, decidi, nesse mesmo ano, deixar a Manchete. Tudo que eu havia experimentado lá já tinha sido suficiente para mim, e acredito que para eles também. O meu assunto era o palco. Era a dança. Era isso que eu sabia e queria fazer. E eu já tinha combinado tudo isso de antemão, ao assumir a direção do balé da emissora. Antes de deixar o Rio novamente, participei ainda como coreógrafo e bailarino no mesmo Tempo de Tango que havia feito para a televisão, mas desta vez num evento organizado por Tatiana Leskova e seu Novo Ballet da Juventude. Sempre gostei de trabalhar com Tatiana. E nunca recuso seus convites.

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Voltei para São Paulo. Não tinha uma casa na cidade. Meu amigo Ismael Guiser era meu porto seguro, deixando que eu ficasse num quarto em sua casa, onde eu enfiava todas as minhas coisas enquanto ficava pulando pelo mundo. Aliás, nesse ano, eu ganharia mesmo o mundo. Antes disso, porém, remontei Paisagem em azul, que havia criado no Paraguai, para a companhia Dança e Cia., de São Paulo, grupo estreante dirigido por Paula Castro, cheio de gente jovem e talentosa. E fiz ainda uma coreografia, no começo de 1984, para uma companhia recém-formada em São Paulo, o Grupo Ópera Paulista. Essa era uma iniciativa da bailarina Ângela Nolf, do bailarino Paulo Branco, e do professor Sacha Svetloff, que se juntaram a alguns outros colegas e, juntos, batalharam por sua existência. Fiz Paisagem com gaivotas, que estreou em diversas cidades antes de estrear em São Paulo, no teatro Sérgio Cardoso, apenas no começo do ano seguinte. Não vi essa estreia. Estava longe. Bem longe.

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Cartaz para Tango, de Gabriel Sala, Wiesbaden, Alemanha, 1984

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Capítulo III Pelo Mundo Nesse ano de 1984, fui para a Alemanha. Nunca tinha estado na Europa, e achei que esse poderia ser um bom momento. Se alguém me perguntar por que Alemanha e, mais especificamente, por que Wiesbaden, não saberia responder. Ou talvez sim, soubesse. Fui para a Alemanha porque minha professora Ilse Wiedmann estava trabalhando lá, em Hamburgo, com John Neumeier. E aí minha intenção era ir para lá e arranjar algum trabalho aqui e ali, que me permitisse continuar viajando e conhecendo coisas novas. Era um plano modesto. Quando comentei com Ilse sobre ele, me disse imediatamente que viesse para Alemanha. Na verdade, ela é quem tinha um plano para mim.

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Ela me contou sobre Anielo Angrisani, um rapaz que havia sido bailarino da companhia de Oscar, quando ainda se chamava Daniel, e que estava na cidade de Wiesbaden, como assistente de coreografia da companhia oficial de lá. E que poderia me ajudar. Quem dirigia era Roberto Trinchero, outro argentino, que morava há muitos anos na Alemanha. Na verdade, eu nunca tinha ouvido falar dessa companhia até então. Ela não fazia balés de repertório, mas algumas obras adaptadas e outras mais contemporâneas, bem ao gosto de Neumeier. Achei que poderia ser um bom destino para mim. E sabia que

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seria recepcionado por Anielo que, a essa altura, já sabia de minha chegada através de Ilse. Ao chegar, ele estava no aeroporto em Frankfurt me esperando. Desde o início, foi carinhoso comigo, embora estivéssemos nos conhecendo naquele momento. Lembro de apenas tê-lo visto dançar na companhia de Oscar, além de algumas poucas conversas na cantina do teatro. Era um italiano, baixinho, que sempre fazia papéis de caráter, com muito temperamento, como o Mercuccio, de Romeu e Julieta. Lindo bailarino. Bem, ele me recebeu muito bem. E logo perguntei se eu poderia fazer aulas de dança na companhia, porque estava já ficando enferrujado. E, como ele era assistente, acreditei que poderia interceder por mim e autorizar esse tipo de coisa. 222

Logo na primeira semana que estava fazendo aula, me perguntaram: Estamos com problemas com dois bailarinos: um está doente e o outro acaba de se machucar. Você não entraria em cena, substituindoos depois de amanhã, em Cinderela, um balé de três atos? Faria pelo menos alguns trechos? Aceitei. Afinal de contas esse era um primeiro trabalho que estava caindo do céu para mim e eu não poderia dar as costas. E seria interessante poder conhecer essa versão assinada por Trinchero. Passei horas com Anielo assistindo ao vídeo do balé, tentando absorver umas coisas. O que pude aprender, aprendi em uma tarde. Na manhã seguinte, ensaiei e, à noite, já era hora de ir ao palco, sem ter experimentado o figurino, nada. Minha sorte

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é que lá é tudo tão organizado que eles te vestem perfeitamente. Cuidam de tudo. Coisas típicas de companhias estatais de Primeiro Mundo, que eu ainda não tinha experimentado. Além de Anielo, eu não conhecia ninguém. E nem sequer conseguia guardar direito o nome das pessoas, quase todos alemães. Sem falar alemão e balbuciando um inglês de índio, me lancei nessa aventura. Lembro, então, que tentava decorar minhas marcações tentando guardar as características físicas de quem estava perto. Com tão pouco tempo para aprender uma coreografia, tinha que lançar mão desses truques. Então marcava: Tenho que ficar atrás deste que é ruivo e do loirinho. Ao chegar à noite, para o espetáculo, tive uma surpresa: estavam todos de peruca e vestidos iguaizinhos. Minha marcação tinha sido em vão. Rezei para que tudo desse certo... E deu.

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*** Essa minha primeira incursão na companhia foi sem nenhum contrato, tudo combinado informalmente. Era mesmo uma emergência, apenas. Mas, logo em seguida, me ofereceram a possibilidade de me contratar para que eu ficasse até o fim da temporada, em julho daquele ano. Aceitei. Foi bom porque pude conhecer outras cidades da Alemanha, e outros países, ao mesmo tempo em que trabalhei muito, dancei muito. Aos poucos, fui conhecendo melhor Trinchero. Como éramos dois argentinos, passamos a conversar com frequência e logo comecei a frequentar sua casa. En-

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Tango de Gabriel Sala, Wiesbaden, Alemanha, 1984

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tão, pude contar que eu já era relativamente conhecido no Brasil, que coreografava e que já tinha dirigido uma companhia oficial de uma cidade como São Paulo. Daí em diante, passamos a discutir os projetos coreográficos que ele estava desenvolvendo e senti que ele achava que eu teria pretensões naquela companhia. Tanto assim, que me ofereceram um contrato como solista. Foi quando senti que deveria esclarecer que não era exatamente aquilo que desejava. Que não tinha aquele anseio. Quando decidi voltar ao Brasil, estava cheio de energia e com vontade de fazer coisas novas. Havia passado muito tempo sem coreografar e isso, de certa forma, já estava me fazendo falta. Era o que me importava de verdade. E não apenas dançar. 226

Em Wiesbaden, tive a oportunidade de acompanhar algumas obras criadas especialmente para a companhia. Não estar na posição de coreógrafo era um exercício de lidar novamente com a troca de lugar, com a troca do ponto de vista. Eu dançava no corpo de baile. Logo, tinha que participar da criação como grupo: entrar nas filas, ficar no lugar onde nos colocavam, cuidar para que todos os braços ficassem na mesma altura, esse tipo de coisa. Mas achava interessante voltar a perceber o que nós, bailarinos, realmente pensamos. Nós, os intérpretes. Voltar a perceber o que achamos que estamos fazendo e na realidade não estamos, nossa demora em registrar o que o coreógrafo nos apresenta pela primeira vez, no primeiro ensaio. Enfim, gostei de saber que tinha a capacidade de trocar de lugares. Isso me dava uma mobilidade no exercício mesmo de coreografar.

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Luis Arrieta, 1984, Wiesbaden, Alemanha

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Voltei para o Brasil. Voltei para São Paulo, que sentia já como sendo minha cidade. E voltei precisando de trabalho, urgentemente. *** Em 1985, recebi um convite para trabalhar com o Balé Teatro Castro Alves que, na época, passou a se chamar Companhia de Dança da Bahia, apenas por um curto período. Quem estava à frente da direção era Lia Robatto.

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Ela me telefonou, perguntando se eu não gostaria de fazer um trabalho com eles. Logo me veio à mente minha coreografia Sanctus, que eu havia criado há cinco anos para o Balé da Cidade. Pensei que poderia, a partir dela, fazer algo mais longo, de uns 90 minutos. Tinha certeza que seria um trabalho que combinaria perfeitamente com o estilo da companhia. Lia aceitou minha proposta e fui para lá. Eu ainda não havia trabalhado com essa companhia que, na época, contava com o elenco original de sua primeira formação. Um elenco praticamente todo da Bahia, e que, também por isso, se movimentava de uma maneira toda especial. O curioso, entretanto, foi que no mesmo dia em que cheguei, Lia me apresentou para os bailarinos e, em seguida, me comunicou que, nesse mesmo dia, estaria deixando a direção. Confesso que me vi numa situação constrangedora, pois quem havia me convidado para trabalhar estava deixando o cargo.

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Mesmo sabendo que era algo premeditado por ela, que queria sair deixando a companhia trabalhando em algo que ela acreditava, mesmo assim, me senti um tanto constrangido. Naquela época, o maître da companhia, que estava desde o início de sua formação, era Carlos Moraes, um gaúcho que havia se mudado para Salvador ainda em 1971, e que dançou no Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Carlinhos era o grande responsável pela formação da maioria dos bailarinos da cidade. Diante do impasse sobre a direção da companhia, aceitei exercer com ele essa função. Percebia que não seria adequado aceitar sozinho esse tipo de coisa, pois eu mal conhecia o ambiente, as pessoas, nada. Queria conhecer a companhia e o melhor modo para isso acontecer, em meu caso, era coreografando para ela, era estar em sala de aula, no dia a dia.

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Foi uma experiência fantástica. Fiquei com eles uns dois meses, durante a montagem de Sanctus. E mesmo meu trabalho em relação à direção não era nada oficial. Momentos depois, Carlinhos assumiu oficialmente, permanecendo em exercício até 1987. E nossa parceria, minha com Carlinhos, posso dizer, deu certo. A companhia fez um grande sucesso com o trabalho que desenvolvemos naquele curto período. E pude também contar com a assistência de alguns bailarinos, como Eliana Pedroso, Maria Freitas e novamente Jairo Sette, que me acompanhava em mais essa jornada.

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Os bailarinos rapidamente se identificaram com o que eu havia proposto coreograficamente. Sanctus virou uma espécie de ícone da companhia. Tornouse representativo da expressão deles, possivelmente pela origem africana da música, pelo caráter tão rítmico das danças e porque encerrava uma série de considerações físicas e espirituais que têm muito a ver com a cultura deles.

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Até hoje eles mantêm esse trabalho no repertório da companhia, tendo sido inclusive levado recentemente nas apresentações que fizeram na Europa. Na Alemanha, por exemplo, costumam chamá-lo de “Revelation da Bahia”, citando a obra clássica do mestre Ailey. E como se tornou muito conhecido lá, Sanctus é sempre exigido no programa. Antonio, que depois voltou a assumir o cargo de diretor, sempre me contava que, toda vez que ele concedia entrevistas no exterior sobre a companhia, ao mencionar Sanctus, os jornalistas falavam do espírito da Bahia, do movimento, de uma mais pura essência do espírito baiano. E, inevitavelmente, acabavam perguntando: Quem é o coreógrafo? De onde ele vem? E Antonio conta que respondia, prevendo a reação: É Luis Arrieta, um argentino... O resultado dessa versão completa de Sanctus sempre me pareceu um acerto para a companhia. E, como uma das provas disso, recebi o prêmio do Conselho Estadual de Cultura da Bahia pelo trabalho. Quando terminou sua montagem, logo depois de algumas apresentações, não quis ficar em Salvador. Tinha outros compromissos assumidos e não queria criar vínculos naquele momento. ***

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Nesse mesmo ano, voltei a trabalhar com a Cisne Negro Cia. de Dança. Eu já tinha uma história sendo construída com aqueles bailarinos que tanto admirava. Entre eles, Beth Risoléu, uma grande bailarina, uma das mais importantes da dança contemporânea desse país. Ela sempre dançou meus trabalhos com uma força, uma qualidade e um rigor realmente admiráveis. Dessa vez, resolvi prestar uma homenagem à colônia japonesa. Mais do que isso: resolvi observar como é a nossa visão sobre o Oriente, sobretudo em São Paulo, cidade onde vivem mais japoneses depois do próprio Japão. Apenas nessa cidade pude travar contato mais definitivo com a cultura japonesa, pois em Buenos Aires ela não era assim tão representativa como aqui. Aliás, em minha cidade natal, lembro-me apenas de um colega do ginásio, Jorge Tamashiro, filho de floricultores, que havia me mostrado por primeira vez música folclórica do Japão. Assim, além desse meu colega e de todos os outros de origem japonesa com quem eu já havia trabalhado, eu estava homenageando especialmente também Ivonice Satie, Suzana Yamauchi e Yoko Okada. Foi um trabalho que gostei muito de fazer. Explorei bastante o uso de elementos cênicos como leques, mesas, cadeiras, panos, malas e usei música japonesa numa versão ocidentalizada, justamente para tratar do que eu desejava. O título que dei foi Unmei que, em japonês, significa Destino, nome pelo qual a obra ficou mais conhecida.

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O crítico Rui Fontana Lopes, assim escreveu na Revista Dançar daquele ano: Em Destino, Arrieta faz uma reflexão sobre as polaridades, múltiplas e complexas,

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Unmei / Destino, de Luis Arrieta, 1985, Cisne Negro Cia. De Dança, Marco Aurélio Nunes

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entre Oriente e Ocidente. Dinâmicas musicais aproveitadas com grande felicidade, cânones utilizados na justa medida, momentos de indescritível genialidade coreográfica. O efeito total do balé é poderoso. Destino é balé-teatro e a cena está sempre em primeiríssimo plano. Luz, figurinos e adereços – todos concebidos pelo coreógrafo – estão amalgamados com o movimento, a dança e a música, fazendo de Destino um espetáculo majestoso e imponente em sua simplicidade e limpidez. Já Helena Katz comentou na Folha de S. Paulo (15/06/1985): “Foi um encontro perfeito. De um lado, Luis Arrieta, o coreógrafo que colore os movimentos a partir das intenções diferentes de cada gesto. Do outro, uma cultura que abre espaço para o detalhe porque sabe que a aparência do geral tende a confundir os espíritos: a cultura oriental. (...) Destino revela em Arrieta um coreógrafo especial, seguro no manejo das técnicas de composição e no uso dos outros recursos cênicos. Tanto a iluminação, primorosa, quanto os figurinos, confirmam isso. Não são muitos os que conseguem escrever poesia com movimentos. Arrieta, em Destino fez isso.”

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Nesse mesmo ano criei um trabalho para o Ballet Ismael Guiser chamado Abraço com o Concerto para oboé, violino e cordas em sol menor, para as comemorações do tricentenário de Bach no Centro Cultural São Paulo. Um trabalho curto, de 15 minutos, que compunha um espetáculo com outras coreografias e que estreou no Teatro Sérgio Cardoso em julho. Voltei também a Maceió, pela segunda vez, e coreografei Colheita, para o Grupo Íris de Alagoas. ***

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Antonio Carlos Cardoso foi convidado para dirigir o Balé da Cidade de São Paulo novamente em 1985. Assumiu no dia primeiro de julho. Mas, na verdade, tratava-se do último ano de uma administração e no ano seguinte começaria uma nova. Sem dúvida, era um momento muito difícil para se assumir a direção de uma companhia pública, mas ele enfrentou esse desafio. E um de seus primeiros atos como diretor foi me convidar para coreografar. Eu voltava para essa companhia que sempre teve uma significação especial para mim e da qual estava distante há anos. E chegava a ela, novamente, pelas mãos do meu amigo Antonio. Decidi montar nada menos que A Sagração da Primavera, de Stravinsky, cuja coreografia original, de 1913, era de Nijinsky. Um desafio e tanto. Mas que decidi encarar de frente. A Sagração era uma obra que eu conhecia há muito tempo. Acredito que desde criança já deveria ter escutado algumas vezes e depois tomei contato com a versão de Oscar, e depois a de Béjart, Pina Bausch, e tantas outras. Trata-se de um clássico. Apesar de vir de Buenos Aires, uma cidade onde ainda se pode notar as mudanças climáticas, diferenciando as estações, nada é igualável ao impacto que tive com a chegada da primavera quando vivi na Alemanha. Do apartamento em que morava até o teatro era perto, percurso que eu sempre fazia caminhando. Atravessava todos os dias um parque muito grande, pisando na neve, com água gelada, algo extremamente solitário. As árvores secas pareciam ter garras ressecadas, negras e cinzas. Com chegada da primavera, num instante, de um dia para o outro,

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Ballet da Cidade de São Paulo: Sagração da Primavera, de Luis Arrieta, 1985

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essas árvores começaram quase que obscenamente a brotar, como se fossem espinhas. Os animais que estavam escondidos durante todo o inverno saíram e faziam sexo descontroladamente. A grama começava a querer aparecer por baixo de uma neve que era escura, misturada com lama. E toda essa imagem era, ao mesmo tempo, nojenta e extremamente violenta. Somente aí pude entender o porquê da violência da música de Stravinsky. E, muito motivado por essa violência, tive vontade de fazer a minha versão de A sagração da primavera.

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Sempre pensei que eu, latino-americano, vivia em um continente em que a natureza estava muito mais presente que no Velho Continente, a Europa. Mas fui descobrir a força dessa natureza justamente lá. A natureza e a violência desta natureza, que eu não tinha ainda registrado na América virgem. Mas naquele momento eu estava em São Paulo. E só poderia pensar uma Sagração completamente urbana, em que não existissem árvores, mas prédios. E as pessoas seriam as tais folhas ressecadas que caem desses prédios, algo extremamente dramático. E essa foi minha maneira de fazer a Sagração. Quis convidar Flávio Império, com quem eu já havia trabalhado, para fazer meus cenários e figurinos. Não foi fácil encontrá-lo. Procuramos muito por ele e não conseguíamos localizá-lo. Depois, ficamos sabendo que ele estava muito doente e em pouco tempo faleceu. Dediquei, então, o programa de estreia a ele.

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De alguma forma, ficamos felizes porque Cecília Cerroti, uma assistente do Flávio, nos ajudou. Fiquei ao lado dela e juntos fizemos tudo, até porque eu desejava algo bem simples. Usamos apenas bonecos, aliás, muitos bonecos, e um andaime em cena. Nos ensaios, esparramados pela sala inteira, tínhamos uns 60 bonecos, que acabaram ficando “íntimos” dos bailarinos da companhia. Às vezes, alguém levava um boneco até a cantina e deixava lá, sentado numa cadeira. Outras vezes, entrava um bailarino na sala e falava Bom-dia! a eles. Chegamos um dia a não saber mais quem estava vivo e quem era boneco. E, como a proposta era que os bailarinos se movimentassem também como bonecos, estávamos de alguma forma querendo provocar mesmo essa confusão. Em cena, às vezes jogávamos um boneco para o alto e o público poderia achar que era uma pessoa, outras vezes um bailarino começava a cair do andaime, parecendo boneco. Enfim, uma mistura que embaralhasse um pouco as percepções. Essa era a proposta. A imagem de corpos despencando de andaimes como folhas que caem no outono, uma imagem forte. E, por baixo da roupa, eles tinham uma túnica vermelha que representava a vida, a árvore que floria no último instante de sagração.

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O programa, que estreou em novembro no Sérgio Cardoso, contou na abertura com Cantares, de Oscar, uma obra que ele havia coreografado para o Ballet de Genebra três anos antes. E eu me sentia orgulhoso por dividir a mesma noite com meu professor, meu amigo e agora meu colega de profissão.

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Rui Fontana Lopes, no Jornal da Tarde (11/1985), escreveu: Com seu novo balé, Arrieta se afirma definitivamente como um grande artista de nível internacional. Sua concepção teatral da Sagração da Primavera é inteiramente original e possui um impacto poderosíssimo. A coreografia jamais se deixa devorar pelo poder da partitura: nesta Sagração, gesto, movimento e música estão sempre unidos e solidários. O balé de Luis Arrieta contém uma enorme força dramática e teatral: Sagração é um balé aflito, angustiante e violento. A imensa força da música encontrou uma equivalência justa e precisa na quase brutalidade da coreografia e na imponente concepção teatral do balé.” *** 238

O ano de 1985 acabou e Antonio decidiu que não desejava mais permanecer na direção da companhia. Ele não via perspectivas com as mudanças políticas que iam acontecer nas eleições deste ano. Era Jânio Quadros quem estava na prefeitura de São Paulo. O mesmo que, em 1954, havia encerrado abruptamente as atividades do Ballet do IV Centenário, uma das maiores iniciativas na área da história dessa cidade, desse país. E, assim, mais uma vez, o Balé da Cidade ficou acéfalo. Na verdade, Cleusa Fernandez sustentava um pouco como podia aquela estrutura, nesses períodos de transição. Sempre muito bem, aliás. Nesse meio-tempo, fui convidado a fazer outros trabalhos e fiquei muito feliz com a possibilidade de retornar a Salvador. Lá, para o Balé Teatro Castro Alves, montei Mandala, usando o Bolero de Ravel. A inspiração, além das próprias mandalas, veio da

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Ballet do Teatro Castro Alves: Mandala, de Luis Arrieta

Ballet de Wiesbaden: Mandala, de Luis Arrieta

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música, totalmente circular, ou melhor, espiralada. O Bolero é uma mandala. Ele é todo construído assim. E eu queria realizar um trabalho que refletisse um pouco esse processo de construção. Isso, porque, muitas vezes, as mandalas são construídas em terrenos sobre os quais as pessoas vão desenhando à medida que caminham. E era isso que desejava coreografar.

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Quando fui fazer este trabalho, na verdade tinha em mente montar algo com música de Alberto Ginastera, Cantata para América Mágica, uma obra muito bonita para percussão e uma cantora soprano dramática. Uma obra difícil, que mostrava uma face moderna do Ginastera. Cantada em espanhol, com algumas palavras astecas, carregava um caráter indígena, no sentido de verdadeiros proprietários da América, das raças que habitaram primeiramente a América. Pensei em usar apenas o elenco feminino. Pois bem, cheguei para fazer este trabalho, mas, como de costume, sempre levo comigo outras músicas, porque gosto de ficar ouvindo e até mesmo porque, às vezes, abrem outras possibilidades que eu não havia imaginado. Naquela época, era Carlinhos Moraes quem estava dirigindo a companhia. No primeiro ensaio, ao mesmo tempo em que estávamos trabalhando na sala de aula, a orquestra estava tocando o Bolero. E a música invadiu nosso ensaio, de forma avassaladora. Num outro dia, estava conversando com Carlinhos. Enquanto me escutava, ele batia a mão no ritmo exato do Bolero e aquele pequeno gesto ficou na minha cabeça. E, por fim, um dia ele me levou para jantar e quando paramos no sinal, no carro ao lado estava

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Ballet da Cidade de São Paulo: Cantata para América Mágica, de Luis Arrieta

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tocando também o Bolero. Me virei imediatamente para ele e disse: Como vamos fazer outra coisa se o Bolero está nos chamando aos gritos?

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Mandala é uma obra muito complicada. Está baseada numa mandala de origem sânscrita, Mandala de Çîcakra, que tem 16 pétalas. Usei, então, 16 bailarinos. Aliás, são 16 pequenos solos, que se engancham aos poucos e lentamente a mandala vai se mostrando ao público como ela é. Na verdade, ela já existe antes de começar o balé, ela já está formada como desenho. Eu apenas evidencio cada parte deste desenho e como cada bailarino vai formando a parte de um todo. Isso tudo em vários estágios. O estágio mais externo, que acontece no chão, o estágio intermediário, com movimentos à meia altura, e a parte interna com um arremate que organiza tudo e volta a jogar a mandala, agora com uma nova frente. Para os bailarinos é muito interessante: se não se concentrarem, é fácil perder a trama que se estabelece. Não há como copiar do colega. Isso porque proponho um dos sentidos da mandala: a concentração. São desenhos que, pela observação, despertam o sentido da atenção e da concentração dos bailarinos e do próprio público. Quando a companhia da Bahia apresentou Mandala no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, aconteceu um fato que evidenciava esta verdadeira intenção do trabalho. Nessa época, começava-se a usar CD para fazer o som dos espetáculos, sempre contando com o risco de alguma hora ele parar ou pular. Quase che-

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gando ao final da obra, o som simplesmente sumiu e os bailarinos tiveram que continuar dançando quase por um minuto sem música. Estavam extremamente concentrados ante um público emudecido, que percebia o que tinha acontecido. Continuaram tecendo a trama intrincada dos desenhos da composição, até que a música voltou, no ponto exato da coreografia em que os bailarinos estavam e, diante do rosto feliz do elenco, o público rompeu em aplausos. Estreamos nesse ano de 1986. Mais tarde, outras companhias também dançaram Mandala, como o próprio Balé da Cidade de São Paulo. E recebi crítica de Helena Katz, no jornal O Estado de S. Paulo (23/08/1986): Uma obra-prima, Mandala é deslumbrante. À ousadia de coreografar o Bolero, de Ravel (música que traz – ou melhor, trazia – o selo de Béjart), Arrieta responde com a grandeza do seu talento. Béjart teve uma sacada de gênio. Arrieta também. Com o sentido mágico das mandalas, a obra invade a sua emoção pela epiderme mesmo. O poder do diagrama criado por Arrieta nos torna cativos. Trata-se de um coreógrafo com sensibilidade de um poeta.

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Em Belo Horizonte, voltei a trabalhar com Marjorie Quast, mas agora coreografando para seu Camaleão Grupo de Dança, sua companhia profissional que existia há dois anos. A qualidade evidente de seus bailarinos tinha uma grife conhecida: Bettina Bellomo. E isso, para mim, tornou o trabalho bem mais fácil. Para eles, criei Encontro no espaço, com música de Villa-Lobos, arranjada por Egberto Gismonti, e Marco Antônio Araújo, que conheci pessoalmente e que havia falecido

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há pouco. Estreamos em junho de 1986, no Palácio das Artes. Luis Sorel escreveu no jornal O Globo, do Rio de Janeiro (09/08/1986): Encontro no Espaço, o novo balé do talentoso coreógrafo Luis Arrieta, assinala uma inquestionável evolução do Camaleão. Todo o balé é cercado de sensibilidade e bom gosto, tendo, ainda, produção cuidada nos mínimos detalhes. É um ‘balé sensorial’, em que os estados de espírito fluem em direção ao âmago da alma humana.

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Mas foi Helena Katz, na Folha de S. Paulo (27/8/1986) quem reconheceu detalhes importantes da obra: (...) Arrieta confirma que há poucos capazes de desenharem um palco com a sua inspirada espacialidade. Principalmente o início e o final da obra servem como ilustrações dessa sua aptidão incomum. Luis Arrieta pratica sua acuidade nos 360 graus do palco. Propõe um acontecimento único e, em seguida, o faceta em dez outros, uma matriz gerando sua continuidade na multiplicação transformadora. E o gesto primeiro se torna outro quando recuperado adiante. *** Em 1986, a Secretaria de Cultura de São Paulo me convidou para retomar a direção do Balé da Cidade de São Paulo. Tive que me organizar e dividir meu tempo. No primeiro semestre, deveria ainda cumprir compromissos assumidos anteriormente, e novamente Cleusa Fernández, minha diretora assistente, tomou pé da coisa. Assumi realmente a direção no segundo semestre que, desta vez, se estendeu até fins de 1989.

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A companhia não estava bem. Estava bastante perdida, desmotivada, os bailarinos fora de forma, precisando re-unir-se novamente em torno de um projeto, de um desejo. E a situação financeira também não andava como deveria, com salários atrasados e uma demora para conseguir condições materiais mínimas de trabalho. Notei isso imediatamente. A primeira coisa que pensei foi nas aulas que a companhia deveria fazer. Tinha certeza que elas poderiam dar uma unidade ao grupo novamente. Para mim, aula sempre foi um ótimo momento de reencontro para uma companhia, mais do que meramente um momento para aquecer ou trabalhar os músculos. Trabalhei com o elenco que já estava. Não havia passado pela minha cabeça refazer ou mudar nada nesse sentido. Primeiro, por questões práticas, como a ausência de verba. Depois, porque sempre acreditei que as pessoas que ali estavam queriam trabalhar. Possivelmente, essa atitude tenha contribuído muito para minha fama de exigente. Mas ela faz parte da fé que tenho em minha capacidade de ajudar a despertar o que às vezes está adormecido nas pessoas, em todos os sentidos: físicos, musculares, musicais, artísticos.

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Justamente por isso, sou sempre muito mal-interpretado. Considera-se quase como um defeito ser exigente. Nunca entendi assim. Jamais trabalharia com alguém que não me exigisse nada. E sei que tudo isso é o que vai se desenvolvendo no trabalho diário, nos ensaios. E vamos também limpando os preconceitos que nos impedem de chegar ao máximo

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do rendimento que podemos ter como artistas. O que me faz exigente é a imensa fé na capacidade latente em cada um deles. São meus irmãos. Todos eles. Elaborei, então, um programa para reestrear a companhia, que exigisse deles um bom preparo físico, um bom desempenho técnico, sem esquecer o aspecto artístico, musical e humano, já que estávamos investindo nisso. Algo para reestruturar as bases. A noite abria com Trindade, um extrato de uma peça maior que eu havia coreografado em 1982, para o Elo Ballet de Câmara Contemporâneo, de Belo Horizonte. Vários elencos dançaram esse trio, como Áurea Ferreira, Carmen Balochini, Beatriz Cardoso, Mônica Mion, Nancy Bergamin, Lilia Shaw, e os rapazes Irineu Macovechio e Bebeto Cidra. 246

Para completar a noite, tive vontade de criar especialmente para eles o Magnificat, de Bach. Uma obra de conjunto, com muitos solos, duos e trios, característicos do meu trabalho. Gosto muito de companhias que possam, ao mesmo tempo, dançar em conjunto e possam ter solistas. Uma coisa faz crescer a outra. Só posso ser um grande solista se conheço bem um conjunto e só posso fazer um bom conjunto se sou um bom solista. Magnificat exigia exatamente isso da companhia. Foi um trabalho prazeroso para mim e para todos os bailarinos, que dançavam com muita alegria durante todos seus 45 minutos, contagiados pela música de Bach. O tema era o momento da anunciação. É o momento de um novo nascimento. E, simbolicamente, para nós, era também um novo nascimento da companhia.

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E aquele era um programa muito esperançoso, sem dúvida. E que deu certo. A companhia entendeu rapidamente o que eu propunha. E os professores trabalharam no mesmo sentido. Dois grandes mestres: Ady Addor e meu amigo Ismael Guiser. Sempre achei importante ter homens e mulheres à frente dos ensaios. Era muito bom os dois gêneros presentes, porque a companhia é feita desse jeito. Tínhamos também assistente homem e assistente mulher, Tony Callado e Lilia Shaw. Ela ainda está na companhia. Tony faleceu. A sala da companhia hoje leva seu nome. Estreamos em novembro no Teatro Sérgio Cardoso, porque nesta época o Teatro Municipal de São Paulo estava fechado para obras de restauração. Durante o tempo que permaneci na direção, a companhia cresceu muito. Acho mesmo que foi uma de suas épocas mais brilhantes. Passamos a dançar com muita qualidade, com muito profissionalismo. Os bailarinos entraram em forma. Mas tínhamos um empecilho terrível que era a falta de espaços para se apresentar. Estávamos impedidos de nos apresentar fora de São Paulo, devido a uma portaria do então prefeito Jânio Quadros que proibia os corpos estáveis de viajar, devido a um acidente com a orquestra num palco da cidade paulista de Americana. Então, sem nossa casa, o Teatro Municipal, tínhamos pouquíssimas opções, como o Sérgio Cardoso e Cultura Artística, dois únicos teatros com estrutura e tamanho para nos receber.

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Foi então que resolvemos dançar, apesar de tudo isso, no ano que viria. Extraímos alguns solos e duos

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Ballet da Cidade de S達o Paulo: Magnificat, de Luis Arrieta, 2004. Conjunto

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Ballet da Cidade de S達o Paulo: Magnificat, de Luis Arrieta, 2004. Acima, conjunto e abaixo, Tiago Menegaz

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Ballet da Cidade de Sรฃo Paulo: Magnificat, de Luis Arrieta, 2004. Acima, conjunto e abaixo Yasser Diaz e Robson Luorenรงo

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Ballet da Cidade de S達o Paulo: Magnificat, de Luis Arrieta, 2004, com Anderson Braz

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que poderiam caber em espaços menores e fomos atrás de oportunidades para nossas apresentações. Afinal, nada seria mais frustrante do que não poder mostrar o que estávamos preparando. Com a ajuda da Cleusa Fernández, conseguimos muita coisa, como apresentações em colégios ou lugares semelhantes. Foi um ano de 1987 em que atingimos a média de cem apresentações, algo muito bom para a companhia. ***

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Eu às vezes participava dos espetáculos como bailarino. Se tinha um programa com solos ou duos, de câmara, estava em cena. Pouco, mas dançava. O que eu não abria mão era de sempre fazer aula com a companhia, ou eu mesmo de dar aula, coisa que sempre gostei de fazer. Fazia também assistência, programa de luz, ajudava a decidir o figurino. E fazia por prazer, ninguém me obrigava. Se não tinha como contratar um iluminador, eu fazia os planos de luz. Se não tinha como contratar coreógrafo, continuava eu mesmo coreografando. Nós fazíamos os desenhos de figurino que eram sempre muito simples, baseados em malhas com algum adereço. Variávamos as cores e tudo estava bem. Não tínhamos grandes condições de produção. A época não estava para isso. E, mesmo assim, aquele foi um dos momentos mais brilhantes da companhia, porque essas dificuldades acabavam nos unindo ainda mais. E nós nos apresentávamos praticamente nus, em todos os sentidos.

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Magnificat, por exemplo, tinha um figurino muito simples: um macacão de malha com um tecido entre as pernas. E o cenário era apenas um vitral, que conseguimos emprestado, por empenho de Cleusa. Ela fez uma pesquisa e acabou chegando até um senhor que morava na Avenida Paulista, num prédio em frente à Gazeta: Conrado Sogernicht Filho. Pediu emprestado um dos vitrais que ele tinha feito para uma igreja no interior de São Paulo e que, como não tinham sido pagos, não haviam sido entregues. Esse senhor era filho de uma família de artesãos que havia feito os vitrais do Teatro Municipal, da Fundação Álvares Penteado, da igreja de São Francisco, entre outros monumentos. Ele nos emprestou uma peça, para nossa felicidade. Escolhemos um dos santos, muito bonito. Artesanal. No dia de montar o cenário, o vitral chegou praticamente desmontado, em blocos. Veio um rapaz e terminou de fundir os chumbos nas bordas e montou tudo. Uma obra de arte conseguida pela boa vontade das pessoas. E isso tudo nos fortalecia, de certo modo.

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Os críticos também souberam observar com precisão a fase que a companhia estava passando. Helena Katz, no jornal O Estado de S. Paulo (07/11/1986), reconheceu o prazer que tínhamos em dançar Magnificat: O que conta, neste Magnificat é o prazer de dançar. Os bailarinos dançam antes da música começar, e continuam dançando quando ela silencia. Como a luz que passa pelo vitral, a dança surge em jorros contínuos, e se estabelece como senhora daquele espaço. As composições dos pequenos grupos são as mais preciosas deste lindo desfile de movimentos.

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E Rui Fontana Lopes, um pouco mais tarde, escreveu para o Jornal da Tarde (01/10/1987): Talento e dedicação com que Luis Arrieta tem dirigido o grupo nos últimos meses. O programa se completa com Magnificat. Arrieta não deixa de explorar uma única fuga, um único cânon, um contraponto sequer da fantástica partitura de Bach. Magnificat é prodigiosa em sua inesgotável invenção e profunda beleza. Mas o que realmente importa é o delicado sentimento de religiosidade que encharca a obra. Arrieta estabelece, em dança, o mesmo sentido de devoção que a música de Bach propõe ao ouvinte. ***

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Eu chegava sempre cedo à sede da companhia. Conferia todos os afazeres da direção e então me lançava ao trabalho que mais gostava: ia para a sala onde estavam os bailarinos. Nessa época, nossos ensaios eram da uma hora da tarde em diante. Seis horas de trabalho. E também tínhamos expediente aos sábados, com uma carga horária menor, de três horas, com aula mais curta e ensaios em que geralmente passávamos o programa corrido. Durante esse tempo, tentei, mas não consegui, convidar alguém para coreografar para a companhia. Pensamos numa remontagem de Quarup, de Décio Otero. Ou mesmo alguma criação dele. Pensamos no Ismael, ou mesmo no Victor. Em todos os casos, tinha que ser alguém de São Paulo, para não precisar pagar hotel, passagem, essas coisas. Acabamos remontando alguma coisa de Victor, muito mais pela boa von-

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tade dele, que deve ter cobrado o mínimo. Depois, remontei Mandala, para uma apresentação especial dedicada à empresa que estava fazendo a restauração do Teatro Municipal. Era um modo de ganhar uma ajuda deles, que pagaram nosso figurino. Aliás, não se refazia os figurinos. Eram sempre os mesmos, restaurados. Dos profissionais que nos ajudaram, ninguém chegou a trabalhar de graça, mas contávamos com a boa vontade de muitos deles. Quem muito nos ajudou foi Murilo Sola, cenógrafo, figurinista e artista plástico já falecido. Ele conseguia muita coisa de graça porque tinha amizade com pessoas de lojas. Conseguia tecidos e trabalhava muito com materiais que sobravam nas tecelagens. Ele tingia, retingia, franzia, engomava, e tudo ficava uma maravilha. Ele era um artista. Era amigo da companhia, da arte, da vida.

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Neste ano de 1987, montei obras pequenas, como o solo Tango. Eu nem cobrava mais pelas obras, simplesmente as dava para a companhia, para que tivéssemos peças pequenas para alguma apresentação fora. E a companhia crescia. Alguns professores foram convidados a trabalhar conosco por períodos curtos. Carlos Moraes, por exemplo, estava na cidade trabalhando com outro grupo, e aproveitou para ficar um tempo conosco. Yellê Bittencourt, um dos grandes professores do Brasil, ficou mais tempo. E também Neide Rossi. Os fixos eram mesmo Ady e Ismael. Mas gostávamos de variar, para dar um descanso ao professor, que, às vezes, também tinha algum com-

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promisso. E também porque, às vezes, na ausência de um professor se aprende muita coisa. O bailarino tem a chance de aplicar todo o conhecimento aprendido com um professor na aula de outro. E o bom professor estimula isso. E, assim, a companhia amadureceu técnica e artisticamente, tanto o elenco feminino quanto o masculino, uma dificuldade histórica no Brasil. E por isso mesmo achei que seria o momento para termos uma obra só com homens, e outra obra só com mulheres: montamos Berimbau e Cantata para América Mágica, respectivamente. As duas, ainda nesse ano de 1987, integraram um programa que estreou em setembro, contando com Magnificat para fechar a noite. E ambas com figurinos assinados pelo Murilo Sola. 256

A ideia foi boa porque criou, de imediato, uma cumplicidade a mais entre os bailarinos. Montei paralelamente os dois trabalhos, mas terminei primeiro o das mulheres. Elas iam sempre para a sala de baixo, a menor da sede da Rua João Passalácqua, e trabalhavam sozinhas incansavelmente. Sobretudo para entender fisicamente a música de Ginastera, extremamente difícil, complicada de contar, com linhas melódicas feitas pelo canto da soprano, e uma orquestra de percussão com 56 músicos. Esse era o trabalho que eu pretendia montar em Salvador, mas que foi substituído por Mandala. Pois as bailarinas ensaiaram tanto essa peça, que passaram a conhecêla musicalmente muito mais que eu. Tinham um domínio daquilo que também não era nada fácil tecnicamente. Isso era interessante, porque tanto o

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trabalho quanto o próprio texto da obra falavam da força dessa mulher latino-americana. E elas estavam mesmo deslumbrantes, fortes. Não posso deixar de nomeá-las: Ana Verônica Coutinho, Carmen Baloquini, Mônica Kodato, Jeanete Guenka, Miriam Druwe, Nancy Bergamin, Lilia Shaw, Luciana Checchia, Áurea Ferreira, Luciana Porta, Lumena Macedo. Mas era Mônica Mion quem, de alguma forma, se destacava para mim. Ela era a Har-Mônica. Lembro que já a vi tropeçar e cair em cena. Quando assisti à filmagem disso, em slow motion, constatei que, até na hora de cair, a Mônica caía harmonicamente. Era um dom. Berimbau era o encontro masculino, extremamente atlético, vigoroso, um tour de force esgotante. Todos tinham que estar em forma para executar aquilo, porque eram 20 minutos sacudidos. Durante os ensaios e mesmo durante os espetáculos, as bailarinas depois de dançar a Cantata, corriam para se trocar para poder ficar nas coxias, sentadas, assistindo à performance dos rapazes. O figurino era uma malha inteira, quase toda branca, com listras que, de alguma maneira, traziam a imagem do arco do berimbau. Para as mulheres, Murilo Sola usou ainda tecidos tingidos, belíssimos, amarrados com couro, que compunham muito bem a imagem telúrica que eu queria dar.

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Helena Katz, numa crítica intitulada Nem tudo está perdido, comenta esse programa no jornal O Estado de S. Paulo (16/12/1987): “Enquanto Cantata é para dentro, Berimbau expande-se para fora. Os corpos repercutem, se tornam flexíveis, ficam secos – são

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Acima, Agnaldo Fonseca, Ajaz Vianna, Jamildo Alencar. Abaixo, conjunto

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Ballet do Teatro Castro Alves: Berimbau, de Luis Arrieta

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Ballet do Teatro Castro Alves: Berimbau, de Luis Arrieta

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pedaços do próprio instrumento. E acontece uma mistura atraentíssima de fontes típicas entre o carnal e a capoeira. Um enriquecimento precioso num coreógrafo cada vez mais sutil e sensível, cujos poros filtram cada dia mais aquilo que nos envolve. São duas criações importantes, que deveriam permanecer sempre juntas. Ajuda sua compreensão.” *** Ainda nesse ano de 1987, fui para Buenos Aires trabalhar com o Ballet Contemporáneo do Teatro San Martín, companhia criada por Oscar Araiz em 1968. Era um convite feito por Norma Binagni, umas das diretoras da companhia que, naquela época, era dirigida por um triunvirato: Norma, Alejandro Cervera, que havia começado sua carreira na dança junto comigo, na turma da escola de Oscar, e Lisu Brodsky, minha colega na montagem da peça Trescientos Millones.

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Nesse momento, ele não estava mais, pois dirigia a companhia de Genebra. A ideia era remontar Presenças, que eu havia feito para o Balé da Cidade. E essa foi uma das minhas poucas saídas da companhia, desde que tinha assumido sua direção. Fui umas duas ou três vezes a Buenos Aires, montava, voltava, montava, voltava, até que o balé finalmente estreou. Outra saída do país nesse ano foi mais uma viagem a trabalho: fui para o Balé Nacional de Cuba montar Presenças, Trindade, e o solo Tango, que eu costumava dançar. Organizei uma data que poderia estar lá sem comprometer os trabalhos aqui, remontei tudo em 20 dias e voltei.

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Cuba foi uma experiência muito interessante. Senti como se fosse um reencontro de muita coisa que, de alguma maneira, era familiar a mim. Familiar no sentido dos pensamentos de minha avó, de coisas que eu admirava. Naquela época, por razões históricas, Cuba estava realmente muito pobre. E não havia voos diretos do Brasil para lá. Era necessário ir antes ao Peru, e de lá tomar um avião da companhia cubana. Como os países sul-americanos estavam sofrendo um surto de meningite, e a vacina vinha de Cuba, país altamente desenvolvido em medicina, ao chegarmos em Lima, tivemos que esperar por três dias, pois o avião estava sendo utilizado para transportar essas vacinas. 262

Esses três dias foram difíceis, porque era uma época de guerrilhas no Peru. Praticamente não saímos do hotel. Ficávamos olhando da janela uma cidade destruída pelos atentados, um povo sofrido. E foi reconfortante quando chegou um avião da companhia cubana, que nos levou até Havana. Ao chegar lá, tive que me deparar com a realidade cubana. O aeroporto era muito simples, praticamente um galpão. Mas, ao mesmo tempo, tudo muito organizado. Ao desembarcar, havia uma pessoa me esperando com um carro que me levaria ao hotel. Carro russo, aquele Lada. Tudo muito modesto. Mas nada me impressionava. Venho de uma família muito simples e sabia o que era aquilo. Então, nada que me impressionasse mal, e muito que me impressionasse bem.

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Achei ótimo ver a cidade sem propaganda, limpa, sem anúncios de refrigerante, de nada. Limpa. Um calor terrível. Fiquei hospedado no Hotel Presidente que, na época áurea, deve ter sido um luxo, mas que naquele momento apresentava sinais de decadência evidentes. Mas, nem por isso, menos interessante. A janela do meu quarto dava de frente para um colégio, e eu podia ver o dia a dia das crianças. Impressionaram a disciplina, a ordem, a pontualidade, a organização, coisas que admiro muito e que podia captar de minha janela. Do hotel, logo em seguida me levaram para o Gran Teatro de La Havana – García Lorca. Lindo teatro de estilo espanhol, mas também sem manutenção. Naquela mesma noite, pude assistir à apresentação da companhia fazendo partes do repertório clássico. A diva Alicia Alonso dançava o segundo ato de O lago dos cisnes. Uma experiência maravilhosa tê-la visto dançar naquele teatro que era sua casa.

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No segundo dia, fui à companhia para trabalhar, para conhecer os bailarinos. Alicia me recebeu pessoalmente. Ela já tinha reservado um horário especialmente para isso. Uma atenção impressionante, uma delicadeza, uma cortesia. Eu levava para ela lembranças de Ady Addor, que havia sido solista daquela companhia. Mal falei o nome de Ady e ela me interrompeu dizendo: Ady é a bailarina mais bela e mais feminina que já vi em toda minha vida. Isso não era pouco. Definitivamente não era pouco. Era o reconhecimento de uma artista que algumas

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vezes não o tem em seu próprio país. Confesso que fiquei emocionado. Andando pela galeria do teatro, me deparei com um retrato seu. Me senti orgulhoso. Assisti a várias aulas da companhia quando cheguei. Eram mais ou menos 160 bailarinos entre solistas, primeiros-bailarinos, corpo de baile 1 e corpo de baile 2. Eu deveria vê-los e escolher com quem gostaria de trabalhar. Eles faziam aula separados, até por uma questão de espaço. E eu os assistia com uma assistente do lado, tomando nota dos nomes, escolhendo comigo o elenco. Eu havia pensado muito sobre a escolha das peças que remontaria lá. Trindade, por exemplo, montei nas pontas, porque eles tinham domínio daquele trabalho técnico. Selecionei um primeiro-bailarino, uma primeira-bailarina e uma primeira-solista, algo absolutamente incomum. Não se podia misturar bailarinos com posições hierárquicas diferentes assim, e eu não sabia. A direção precisou autorizar essa minha escolha. A solista era uma bailarina excelente, era uma primeira-solista e poderia dançar ao lado de um primeiro-bailarino sem qualquer problema. Como não tenho dificuldade em me adaptar ao sistema das companhias, aceitei naturalmente esse tipo de exigência. Sempre achei que fazia parte de minha função adaptar-me. Foi uma experiência muito rica no trabalho efetivo com a companhia, mas também nas pequenas coisas do dia a dia. Eu gostava muito de passear pela cidade, nos tempos livres que tinha. Meus ensaios eram pela manhã

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Ballet Nacional de Cuba, 1987, com Caremia Moreno e Ofelia Gonzรกlez

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e no fim da tarde, de um dia repleto de atividades dos bailarinos que começavam a trabalhar às 9 da manhã, em grandes salas, mas com instalações muito precárias. Lembro que gostava de passear pelo bairro onde estava hospedado, que se chamava Vedado, e onde estavam todas as mansões que, pelo menos naquela época, se encontravam num estado totalmente decadente, acabadas, decrépitas, subdivididas por dentro para poder abrigar muitas famílias. Poucas dessas mansões estavam impecáveis, por terem sido ocupadas por alguma embaixada.

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Outra coisa que me chamou a atenção foi um dia em que me trocava num único vestiário masculino, um grande banheiro, com bancos, com alguns armários e as duchas. Estava me trocando e vi um primeirobailarino puxando a água do piso com um rodo. Perguntei: Vocês têm gente que faz limpeza? E ele respondeu: De um dia para o outro, sim. Mas, durante o dia, se eu tomo banho e fica tudo molhado, é bom que meu companheiro quando entre encontre o banheiro seco. Uma postura incrível. Ainda outra passagem interessante: eu ensaiava Trindade no fim do dia, com o primeiro-bailarino, Rafael Padilla, e com as duas bailarinas, Ofélia González e Dagmar Moradillo. Perguntei a ele, querendo começar uma conversa: E hoje, você trabalhou muito? E ele respondeu: Não, hoje tive uma pausa à tarde, e aproveitei e fui a tal lugar. Não entendendo a que ele se referia, perguntei: O que é isso? Um lugar aonde vamos para treinar tiro ao alvo, respondeu.

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Um primeiro-bailarino atirando... Sim, porque eles viviam uma ameaça contínua de invasão, pelo menos naquela época. Fazendo um contraponto com essa imagem, lembro do dia em que Rafael, num gesto carinhoso, em nosso último ensaio, trouxe um presente para mim: lavada e passada, a velha camiseta que sempre usava, e que me fez, certa vez, elogiar como ela lhe caía bem. Com seu porte de dancer noble, entregou-a para mim. Era como um príncipe dos grandes balés entregando flores. O que me parecia interessante foi a sensação de estar olhando o mundo por um outro lado. Quando assisti à televisão, que também era fraquíssima, acostumado que estava com os padrões daqui, notei que se falava de todas as maravilhas da União Soviética. Fiquei sabendo de festivais de música, de rock, de música moderna, música contemporânea, tudo que estava acontecendo em Moscou. Todos os desfiles de moda na Ucrânia, grandes novidades artísticas, pintores, exposições. Já sobre os Estados Unidos, só se mostrava assassinatos, pessoas morrendo de fome na rua, desempregados, coisas assim. Eu estava vendo o mundo de outro lado, mesmo sem ter ido para o Leste.

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E fiquei impressionado com a relação de todos com o trabalho. Na companhia, solistas, por exemplo, chegavam e trabalhavam. Lembro que, como os ensaios de Trindade eram ao final do dia, certa vez falei para eles: Vocês podem apenas marcar. Sobretudo em Trindade, um adágio cheio de portés e movimentos lentos. E o bailarino, um excelente partner, me disse:

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Não. Nunca dancei antes segurando duas bailarinas ao mesmo tempo. Tenho que treinar! Para ele, aquilo era uma novidade. E isso exigia trabalho. Fiquei sabendo que Dagmar pediu asilo na Espanha no ano seguinte. Já Ofélia, tive a sorte de encontrá-la muitas vezes no Brasil. Era uma primeira-bailarina! Revezava os primeiros papéis com Alonso. Madura, era ao mesmo tempo uma aluna dedicada e entregue. Numa oportunidade, durante um ensaio de Trindade, pedi que ao abrir seu port de Brás, iluminasse a sala com seu olhar. Ela me respondeu: Claro! E o fez. Ela realmente iluminou o espaço. Fiquei paralisado. Ela olhou para mim e começou a rir como uma criança.

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Fiquei uns 20 dias em Cuba. Não pude ficar para a estreia, porque eu tinha um problema de data com o Balé da Cidade. Mas deixei tudo estruturado com a assistente, chamada Carênia Moreno, excelente profissional. Ela já não dançava mais e hoje é uma professora muito conhecida, porque viaja muito. Certa vez, encontrei-a dando aula no Teatro Colón. Certo tempo depois, fui a Buenos Aires visitar minha família. Meu pai ainda era vivo. Ele então me mostrou um pequeno recorte de jornal que guardava, superorgulhoso. Alicia Alonso tinha passado por lá para se apresentar e, numa entrevista, teria declarado: Já que estou em Buenos Aires, quero valorizar muito o trabalho de um coreógrafo argentino que está aparecendo, Luis Arrieta. Tudo me emocionou. A declaração de Alonso. Mas, sobretudo, o orgulho de meu pai. ***

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No ano seguinte, 1988, fiz também mais duas viagens interessantes. A primeira delas foi a Lausanne, Suíça. Recebi um convite para compor o júri na primeira edição da Lausanne Competition – The New Choreographes – Phillip Morris Prize. Era um convite de Maurice Béjart a mim, pois ele estava ligado a esse evento. Mais tarde, soube que Ilse Wiedmann, minha primeira professora, trabalhando na Europa com Neumeier, havia sugerido meu nome. Funcionava assim: através da companhia de Béjart, com patrocínio da Phillip Morris, eles abriram um concurso para novos coreógrafos do mundo todo. Receberam cerca de uns 500 vídeos, que foram selecionados por Márcia Haydée e Neumeier. Desse montante, ficaram apenas cinco coreografias. Por ser aquela a primeira edição, certamente se preocupando em ser politicamente corretos, escolheram um jovem coreógrafo de cada região do mundo: um representando a América Latina, um representando os Estados Unidos, um a Europa, um a Ásia, e um a Suíça, claro. Esses cinco selecionados foram convidados a vir a Lausanne e montar sua coreografia com a companhia de Béjart. Cada obra não poderia exceder 15 minutos de duração.

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O trabalho para o qual fui convidado era justamente assistir a essas cinco peças e escolher a melhor. Da América Latina, o coreógrafo era brasileiro, Cláudio Bernardo, bailarino cearense que já residia na Europa. Éramos 22 jurados, assim divididos: 11 críticos e 11 artistas, entre os quais estavam pessoas como Alvin Ailey, Maguy Marin e Rosella Hightower.

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Nós do júri tínhamos poltronas separadas, para que evitássemos comentários durante as apresentações. Não tínhamos que escrever nada, apenas assinalar com um xis naquele que seria o escolhido. Ao terminarem as apresentações, nos levaram imediatamente para uma sala fechada, reservada para o júri composto pelos onze artistas e outra sala ao lado para o júri composto pelos 11 críticos.

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Tínhamos que resolver tudo muito rapidamente, porque a televisão estava transmitindo ao vivo. E o que me chamou a atenção foi o seguinte: nós, com Rosella Hightower, que presidia o júri, fizemos a votação e como resultado chegamos à conclusão de que não havia apenas um melhor, e que seria interessante dividir o prêmio possivelmente entre dois ou três daqueles cinco jovens coreógrafos. O único que não receberia nada, pois não teve nenhum voto nosso, seria o rapaz dos Estados Unidos. Ficamos sabendo depois que o júri de críticos, por unanimidade, havia considerado o melhor coreógrafo justamente esse rapaz norte-americano. Que coisa estranha esses dois mundos, fiquei pensando. Não lembro como se decidiu esse prêmio. Sei que, quando terminou, nos levaram para jantar num lugar lindo. Em cada mesa havia um cartaz com um nome de uma coreografia de Béjart. Eu fiquei na mesa do cônsul brasileiro, além de outras personalidades brasileiras, como minha amiga Jânia Batista, importante solista da companhia de Béjart, com quem já tinha dançado na Associação de Ballet do Rio de Janeiro, e também um pas-de-deux de Paquita, montado por

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Eric Valdo para a escola de sua mãe, Helfany Peçanha, de Niterói. Eu estava rodeado por aquelas pessoas... E mais importante ainda: estava representando o Brasil. Béjart falou muito bem com todos, porque domina vários idiomas. Para mim, foi um privilégio ter podido conversar com ele, e também com Maguy Marin, coreógrafa francesa que tanto admiro. Como já tinha combinado, antes de regressar a São Paulo, encontrei com Ilse em Paris, cidade que eu ainda não conhecia e que ela fez questão de me mostrar tudo. Foram três dias maravilhosos em Paris. Assistimos, a convite de Béjart, à estreia sua de Souvenir de Leningrado. E, a convite de um dos curadores do Concurso de Lausanne, jantamos deliciosamente num restaurante que, muito tempo depois, numa matéria da TV Cultura, descobri ser o Maxim´s.

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A segunda viagem do ano foi um retorno à cidade de Wiesbaden, na Alemanha. Fui convidado pela companhia com a qual havia trabalhado como bailarino há quatro anos, para fazer um trabalho. Na verdade, o convite havia partido de Gabriel Sala, bailarino argentino/alemão, que estava à frente de sua direção e quem eu já conhecia da primeira vez em que estive lá. Importante bailarino da companhia, com Aniello Angrisani, se tornou meu amigo, e cúmplice. Montei Mandala oder der Weg nach innen (Mandala ou o caminho para dentro), um trabalho que misturava algumas peças que eu já tinha montado, terminando com Mandala. Fiquei lá durante dois meses, num processo intenso, porque era um espetáculo

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grande, longo, de uma hora e meia de duração. Dos colegas de minha época, já não estava mais ninguém. Na Europa, eles costumam renovar constantemente os elencos. Mas havia alguns brasileiros, como Wlamir Nápoli e Carlos Demitre, alguns argentinos, como Marta Steinhebel, importante primeira-bailarina que também se tornou minha amiga fraterna, assim como alguns do Leste Europeu. Essas companhias são sempre cosmopolitas, com gente de toda parte.

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Era um momento muito difícil porque a companhia sofria com o estado de saúde de Aniello Angrisani, aquele que havia me hospedado na primeira vez. Era uma época que não se tinha ainda muitos remédios para sua doença, não sabiam como tratar. E voltando às coincidências da vida, que nunca acho que são realmente coincidências: Aniello, que tinha ido me esperar no aeroporto na primeira vez que fui à Europa, voltava a ele pelas minhas mãos. Após seu falecimento, quando sua família voltava da Europa com suas cinzas, fui ao aeroporto acompanhando e as levava no colo. Levei-o de volta para casa. *** Retornei a São Paulo e voltei imediatamente ao trabalho. Estava saudoso de tudo aquilo. E o melhor era que o Teatro Municipal estava reabrindo, depois de tempos em reforma. Montei, então, uma obra especial para a ocasião com o Balé da Cidade, que se chamou Mar de homens. Era o primeiro espetáculo de dança que acontecia naquele palco depois de sua reabertura. Por isso mesmo, nos deparamos com tudo

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ainda muito cru. Por exemplo, todos os excelentes aparelhos de computação da nova iluminação não podiam ser devidamente utilizados porque não havia pessoal treinado. Uma pena. Mar de Homens me marcou porque foi quando conheci a música do compositor estoniano Arvo Pärt, que me deixou de imediato absolutamente encantado. Fizemos uma peça longa, de 90 minutos, apenas com a música dele. Os figurinos ficaram a cargo de Murilo Sola e a iluminação de Iacov Hillel. O artista plástico Carlos Araújo pintou um quadro especialmente para esta oportunidade, usado para traduzir o balé no cartaz e no programa. Foi um trabalho em que mergulhamos profundamente, eu e todo o elenco e a equipe. Ficamos muito envolvidos pela musicalidade de Pärt, e atentos ao que ele dizia sobre sua própria música, que tem um caráter religioso, no sentido de religar, de algo que se conecta. Trabalhamos com os alunos da escola da Verônica Coutinho, que compunham uma espécie de grupão, uma massa, enquanto um pas-de-deux acontecia entre eles, como se fosse uma nave num mar. Num dos elencos, Mônica Mion e Sandro Borelli dançavam juntos, e mais umas 60 meninas faziam um cânon interminável.

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Mas o que eu mais gostava desse trabalho era a ideia de um tempo esgarçado. Tinha que se ter paciência, que se lutar contra a ansiedade. Inclusive no aspecto visual, porque o palco tinha na frente uma tela feita de plástico cristal, além de outras camadas que o recortavam atrás, de outros tipos de plástico, com

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diferentes opacidades. Essas telas produziam uma distorção visual, pois era assim que eu imaginava como se enxergava debaixo d’água. Lembro que os fotógrafos sofriam com isso, porque a luz que incidia no corpo produzia um brilho que, ao refletir no plástico, ou ao passar por ele, produzia um efeito estranho.

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No início, muitas pessoas que assistiram ao espetáculo falavam que demorava um tempo para que o olho se acostumasse com aquilo. E muitos disseram ter saído meio que atontados, embalados por aquele tipo de música e pela imagem aquosa. Certamente foi uma das vezes que tivemos mais público na temporada toda. Todos os dias, colocávamos cadeiras extras, além de eu ir pessoalmente para fora do teatro, acalmar aqueles que não haviam conseguido entrar: Gente, desculpa, vamos ver se amanhã conseguimos, voltem amanhã, por favor. Eu a-do-ra-va fazer isso. Tivemos críticas, claro, mas que nunca haviam destoado tanto umas das outras como desta vez. Algumas falavam muito bem do trabalho e outras falavam horrores. Era a primeira vez que tive certeza como uma controvérsia como essa alimentava nosso sucesso. Quem fazia crítica na época era Helena Katz, Ana Michaela e Rui Fontana Lopes, que, definitivamente, não apreciou o espetáculo. Elogiou apenas o elenco. Era época de eleições municipais. No início do ano seguinte, ele assumiu o cargo de diretor artístico da companhia. Ana Michaela, na Folha de S. Paulo (10/08/1988), escreveu: A forma renovada do grupo se manifesta em todos os aspectos em Mar de Homens: coreografia, escolha

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da música, cenários e figurinos, iluminação, apresentação gráfica do programa e cartaz e performance dos bailarinos. Luis Arrieta alcança em sua linguagem coreográfica uma síntese baseada na união da sensibilidade e de uma técnica clara e objetiva em sua elaboração. O resultado chega a uma limpeza minimalista, onde as repetições dos movimentos se renovam e se intensificam a cada instante. Mar de Homens é um mar indiscriminado onde olhos atentos podem vislumbrar um ser luminoso emergindo. Do amontoado de seres-humanos-rochas emergem seres ávidos por vida. Helena Katz, numa frase, resumiu muito bem o que pretendi, em sua crítica para O Estado de S. Paulo (02/09/1988): Ao se voltar para o exterior, Arrieta chegou mais perto da síntese entre sutileza e sofisticação que perpassa sua obra. Mesmo quem não penetra na profundeza desse mar é banhado pelo poderoso estado de ser mar que foi construído.

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Foi um espetáculo e tanto. Tanto que ganhamos o prêmio da APCA como melhor espetáculo do ano. Para a cerimônia de entrega, no ano seguinte, Rui telefonou-me para que eu fosse receber o prêmio. Achei que, sendo um prêmio que englobava toda a companhia, deveria ser o atual diretor a recebê-lo. E assim foi. Terminado o ano, terminou também a administração do município. Com as eleições, tudo mudou. Eu estava na lista de quem deveria deixar o cargo. Mas nunca ninguém da nova administração comunicou-me que meu contrato não seria renovado. Minha sorte foi ter

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pegado meus objetos pessoais logo no fim do ano. E partir para outras possibilidades. Que existiam, graças a Deus. E ao meu trabalho. Deixei a companhia em forma, restaurada. Disso, tenho absoluta certeza. Na direção seguinte, fui chamado para remontar alguns trabalhos, como Mandala, Trindade e Presenças. Mas, naquele momento, meu desejo era mesmo trabalhar novamente como free lance. ***

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Em 1989, trabalhei com quatro diferentes companhias em Belo Horizonte, cidade que era praticamente minha segunda casa. Para o Grupo Primeiro Ato, de Suely Machado, fiz um trio, Adeus, com Quarteto para Piano em Lá Menor de Mahler, uma obra pouco conhecida do compositor, embora muito bonita. Era um trabalho curto, de 13 minutos, que eles faziam muito bem. Depois, montei Inconfidência para a Cia. de Dança do Palácio das Artes. A ideia era comemorar os 200 anos da Inconfidência Mineira e o centenário da República. Não à toa, estreamos no dia 7 de setembro daquele ano. A companhia estava passando por um momento delicado, de retorno. Quem estava à frente da direção era Marjorie Quast, minha amiga e com quem eu já havia trabalhado com frequência. No curto período em que ficou, ela me chamou para coreografar. Em seguida Tíndaro Silvano assumiu e meu trabalho seria o primeiro de sua gestão.

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Grupo Primeiro Ato: Adeus, de Luis Arrieta, com Raquel Pires, Marcos T贸 e Yara Cerqueira

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Fizemos Inconfidência, a partir do roteiro de Geraldo Carneiro. Mais uma vez, usei música especialmente composta por Gismonti. Curioso que este tema, tão específico daqui, tenha me tocado tanto. Conheço apenas dois trabalhos de dança sobre ele e os dois são meus: Inconfidência e Libertas quae sera tamen. A história era a mesma, mas contada de maneira diferente. Era outro espetáculo, com outra companhia. Foi uma ótima experiência. O grupo respondeu muitíssimo bem. Uma de suas apresentações foi em Ouro Preto. O espetáculo foi montado no pátio externo da Igreja de São Francisco, cuja pintura do teto estava passando por uma restauração. Foi um belo momento. 278

O pátio era imenso e, ao redor, nas ladeiras, casas com as pessoas nas varandas, encostadas, assistindo. A igreja tinha uma torre onde estava o campanário. Saindo dela, colocamos rendas muito bonitas que vinham do alto, descendo até o chão. E a abertura era pela porta principal, que se abria, e os bailarinos saíam lá de dentro. E isso aconteceu no fim da tarde, quando começava a escurecer. Assim, o espetáculo começava com o crepúsculo e terminava no escuro, pois durava mais de uma hora. Uma imagem linda. Mas outras das coincidências que me acompanham pela vida: quando cheguei ao Brasil, ganhei um cartão-postal reproduzindo uma cena do mestre Ataíde, de Nossa Senhora cheia de anjos em volta. Era uma daquelas pinturas do barroco mineiro, extremamente

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coloridas e tão bonitas. Até hoje guardo comigo esse cartão, que já está todo amassadinho. Serve para me proteger. Bem, quando estávamos nos maquiando e nos vestindo dentro da igreja, numa quase profanação maravilhosa, estava meio escuro lá dentro, com pouca luz para que os bailarinos pudessem se pintar. Foi então que peguei o espelho para retocar um bailarino e, quando viro e olho para cima, rapidamente, reconheço a obra de mestre Ataíde que estavam restaurando, e que estava comigo há tanto tempo. Não me contive e comecei a chorar. Jamais imaginei que em cima de minha cabeça estava algo que admirava tanto. E, com essa sensação, abriram-se as portas e os bailarinos começaram a dançar. Isso foi Inconfidência Mineira. Por fim, tive também meu primeiro encontro com a companhia Compasso, um grupo pequeno, profissional, que saía da escola de Lúcia Vieira. Montei uma primeira versão de um trabalho que chamaria Palhaços, com música de Francis Poulenc, e que ganharia uma versão completa mais tarde com outra companhia.

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E, ainda em Belo Horizonte, novamente com Marjorie Quast, fiz meu quarto trabalho na cidade naquele ano: SOS Brasil, com o grupo de sua escola, o Núcleo Artístico. Sempre gostei de trabalhar com os mineiros, absolutamente talentosos para a dança. Sempre me senti em casa, lá. Mas isso é fácil, em se tratando da hospitalidade mineira. ***

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Nesse ano de 1989, ainda, fiz um trabalho para o Ballet Ismael Guiser, Trívio, com música de Rachmaninov, que fazia parte de uma série de trabalhos de trios e que giravam em torno do número 3, que havia se iniciado com Trindade. Trívio fiz para meu amigo Ismael. Ele teve durante um bom tempo sua companhia, um grupo de câmara, sem bailarinos fixos que recebiam por apresentação. Mas já estava Daniel Lupo, um lindo bailarino argentino, que faleceu. Quem trouxe Daniel para o Brasil foi Cláudia Raia. Ele era bailarino de show, de jazz, em Buenos Aires, e a Claudia ia com frequência para lá, estudar no Conservatório de Dança do Teatro Colón e fazer shows. E ela também era aluna do Ismael. 280

Uma lembrança de Cláudia: quando fui montar Presenças em Buenos Aires, ela estava fazendo algum trabalho por lá. Telefonei para um amigo, Miguel, que há tempos não via, uma das poucas pessoas que ainda conheço na cidade. Aquele que havia me levado pela primeira vez fazer dança e depois virou comissário de bordo das Aerolineas Argentinas. Combinei um café com ele, mas pedi que fosse num lugar mais reservado, para que pudéssemos conversar tranquilamente. Fomos, então, num daqueles cafés bem típicos de Buenos Aires, na redondeza dos teatros, e escolhemos um cantinho bem discreto para sentar. Mal entramos e sentamos, adentrou o recinto Cláudia Raia, muito nova ainda, mas já aquele mulherão, com um macacão de estampas de leopardo colado ao corpo e botas acima do joelho. Ou seja, algo nada impossível de não se ver. Quando ela entrou, todos

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olharam. Sem exceção. Seria impossível algo diferente disso. E ela, lá da entrada, gritou, abrindo um sorriso imenso: Luuuiiiis!!! E Miguel, um tanto surpreso, me disse: Você não queria algo discreto? Cláudia deve ter conhecido Daniel Lupo num teatro de revista, ou numa aula de jazz, não sei. Muito tempo depois ele ficou doente, permanecendo internado por um longo período. Ela, já famosa, ia visitá-lo várias vezes, sempre demonstrando seu carinho por ele. E a clínica inteira parava quando ela chegava. Ele também não conseguiu se salvar. Além de lindo bailarino, era um amor de pessoa. Ismael tinha adoração por ele, pela dedicação que ele tinha ao trabalho, à dança. Tudo que montei ali, Daniel dançou. Em 89 também voltei para o Caribe, mas agora do lado americano. O convite vinha através de Vanessa Ortiz, bailarina excepcional que havia conhecido em Wiesbaden. Porto-riquenha, casada com bailarino brasileiro, Albecio Tavares, me colocara em contato com Ana García, diretora artística do Ballets San Juan. Para eles remontei: Abraço, Trindade, e o solo de Tango. Lamentavelmente ela acabara de ter filho e não pôde dançar. Mesmo assim, o elenco era ótimo, e tive o prazer de trabalhar com Andrés Lewowicz, bailarino venezuelano contratado especialmente para essa temporada. Experiente e maduro, Andrés era claro em tudo que fazia.

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O toque especial nessa montagem foi a assistente Sandra Jennings, conhecida como Sandy, ex-bailarina da companhia de Balanchine, profunda

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conhecedora e remontadora oficial de muitas de suas obras. Ela era inteligente, capaz, ativa, e muito louca. Estava lá também contratada para essa temporada, fugindo da mídia que a perseguia, pois havia tido um filho com o ator William Hurt. A criança, com então seus 5 anos de idade, estava lá com ela. O menino ficava na sala dos ensaios e corria entre os bailarinos enquanto eu montava as coreografias. Muitas vezes vimos fotógrafos montados nas árvores da rua, tentando registrar pela janela da sala alguma situação curiosa. Corríamos, então, para fechar as cortinas, e algumas vezes chegamos inclusive a suspender o ensaio.

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Numa oportunidade, era dia 30 de abril, após o ensaio da tarde, ela veio tomar alguma coisa no hotel onde eu estava hospedado. A areia da praia chegava até o jardim onde estávamos sentados, e resolvi colocar um pouco de música. Como estava trabalhando Abraço, de Bach, também tinha outras obras desse compositor comigo, entre elas o Concerto para dois violinos. Imediatamente Sandy reconheceu a música e gritou: Hoje é aniversário da morte do George, de Balanchine, logicamente. Levantou-se inebriada com o copo na mão e dançou toda a coreografia que, mesmo marcando sobre a areia e sob o céu estrelado do Caribe, executava com conhecimento de causa. Foi um espetáculo à parte. Creio que Balanchine deve ter amado também. Seu filho, exausto de brincar o dia inteiro, dormia num sofá. ***

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Anos 90. E eu continuava com meus trabalhos pelo Brasil afora, o que adorava fazer. Conhecia pessoas novas, artistas, culturas. Logo no começo do ano, a Cia. de Dança do Palácio das Artes, de Belo Horizonte, através de seu diretor, Tíndaro Silvano, me convidou novamente para trabalhar com eles. A companhia estava em ótima forma, devido ao trabalho intenso de Tíndaro e de Patrícia Avellar. E eles queriam um espetáculo de noite inteira, que pudesse ser apresentado com orquestra. Diante disso, propus um projeto arrojado: O Pássaro de Fogo, de Stravinsky, em sua versão completa. E eles aceitaram. Montar esse balé foi importante em muitos sentidos. No sentido plástico, coreográfico, e também no que se referia aos bailarinos e principalmente à orquestra. Eu não sabia de um dado interessante: toda vez que uma obra é tocada inteira pela primeira vez em um país, isso é registrado em arquivos na Suíça. E era a primeira vez que se tocava a versão completa de O Pássaro de Fogo no Brasil, por uma orquestra brasileira.

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Foi emocionante. Sobretudo porque foi uma volta àquelas coisas feitas quase artesanalmente, com as quais estava acostumado. E, naquele momento, com as dificuldades advindas do Plano Collor, ter conseguido erguer aquela produção foi quase um milagre. A orquestra não estava completa e o maestro Emílio de César, que regeria a peça, residia em Brasília. Pelo

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Cia. de Danรงa do Palรกcio das Artes: O Pรกssaro de Fogo, de Luis Arrieta

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menos duas ou três vezes por semana, ele ficava o ensaio todo ao meu lado, para entender exatamente o que eu pretendia. Uma dedicação rara de se ver. Mas o que mais me emocionou foi quando ele me contou que, em uma passagem da música, num único momento, quando está terminando uma das cenas, tem um contrafagote, que toca três notas. A orquestra não tinha contrafagote. E ele, diante desse impasse, tinha que descobrir de que maneira faria essas três notas. Então, o músico do fagote pegou uma cartolina e recortou três alturas diferentes. Como as notas eram bem separadas, ele tinha três pedacinhos de cartolina que colocava no instrumento e fazia as três notas para dar o som mais parecido possível com o do contrafagote. Dou um valor incrível a esse tipo de coisa. As pessoas realmente queriam que aquilo acontecesse. O maestro e os músicos da orquestra.

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Um dia, estávamos no ensaio de palco, passando o balé inteiro, mas utilizando música gravada. Fiquei espantado quando vi a orquestra inteira sentada na plateia nos assistindo. Como eles não poderiam nos ver nos espetáculos, porque estão no fosso, reservaram aquele dia de ensaio para conhecer nosso trabalho. A orquestra toda, em peso. Emocionante. Possivelmente, pessoas que não são da área acham que isso deveria ser normal. Aliás, deveria mesmo ser normal, mas sabemos que não é assim. Sempre digo que o público perde momentos maravilhosos da dança que são o dia a dia dela. O público, no fundo, vê o resumo final da coisa. Mas o que se trabalha no cotidiano, qualquer coisa, uma coisa simples, às vezes

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um tropeço que causa graça e a partir daí sai uma brincadeira, o processo de construção dessa pequena coisa tão simples, tão frágil que é nosso espetáculo, lamentavelmente o público perde. Outras colaborações importantíssimas foram além do elenco: Lydia del Picchia, assistente que sabia impregnar-se de cada cena com conhecimento e alegria, Raúl Belém Machado, cenógrafo e figurinista com quem eu já havia trabalhado no tempo do grupo Elo, empenhou-se ao máximo para acompanhar minha proposta. E todos os outros funcionários do teatro.

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Ainda em Belo Horizonte, com a Meia Ponta Cia. de Dança, criada um ano antes por Marisa Monadjemi, fiz um trabalho que se chamou Wa’ya, em parceria com Tíndaro Silvano, coreógrafo e professor, com quem tive, tenho e terei muitas parcerias e cumplicidade, o que faz prazeroso e fácil nosso trabalho. E, voltando a São Paulo, Rui Fontana me convidou para fazer uma criação para o Balé da Cidade. Escolhi trabalhar com a Suíte nº 1 para dois pianos, Opus 5, de Rachmaninov. Dediquei Ausência a Graham Bart, lindo bailarino inglês, que se afogou numa ressaca do mar, no Rio de Janeiro, quando estava casado com Ana Botafogo. Não o conheci muito, mas de alguma forma precisava estar perto de minha amiga Ana. E essa seria minha maneira mais verdadeira de fazer isso. Por outro lado, na hora que fui avisado do acidente fiquei sabendo das circunstâncias. Ele e o iluminador André Botto foram até a pedra do Leme, porque

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Graham dizia amar o mar. Uma grande onda da ressaca os carregou. Graham era exímio nadador, enquanto André não sabia nadar. O mar ficou com aquele que o amava. Devolveu André às pedras. Eu não conseguia deixar de pensar nisso! Fizemos este espetáculo com música ao vivo. Quem preparou a obra foi Gilberto Tinetti e Paulo Gori. Os dois pianos ficavam no fosso da orquestra à meia altura, o que permitia o público ver as duas coisas, balé e orquestra. Começava com uma imagem congelada feita pelos bailarinos. Não tinha cenário: uma imagem em tom de azul e verde, como água, uma imagem de uma onda subindo com um corpo de um homem em cima e uma mulher que o olha num canto. A obra termina num allegro muito forte, num golpe de uma onda, e então aparece a mesma imagem do início.

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Ana Botafogo não assistiu à estreia. Tinha um compromisso. Logo que pôde, veio. Foi uma grande emoção. Ela foi recebida com todas as honras que merece. O próprio Rui foi apanhá-la no aeroporto. O camarote principal estava reservado para ela. Lembro que, além de mim, estavam Rui e Emilio Kalil, então diretor do teatro. Depois da apresentação, sentimos que ela queria ficar sozinha e nos retiramos do camarote. Foi um espetáculo forte para ela. Um espetáculo que gosto muito, dificílimo, que os bailarinos dançaram maravilhosamente bem. Eu já havia guardado essa obra de Rachmaninov em meus alfarrábios por muito tempo. Sempre quis coreografá-la. Mal o Rui me convidou, cheguei em

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Com Ana Botafogo

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casa, coloquei o CD para tocar e vi a coreografia inteira à minha frente. Ela estava pronta em mim. Nunca montei algo tão difícil como Ausência. O bailarino tinha que ter um conhecimento técnico de Martha Graham e de balé clássico impecável. Ady Addor sempre me cobra que eu remonte essa peça. Não sei se há alguma companhia disposta a encarar esse desafio. São danças de conjunto com bailarinos colados um ao lado do outro, para produzir um efeito de água agitada o tempo inteiro. Uma ressaca. Para isso, tem que se ter um controle técnico preciso. E foi para o grupo de câmara de Ady, que em 1990, remontei Palhaços, ainda em sua primeira versão. Ali conheci Gisele Bellot, bailarina disposta a novos rumos a quem eu encontraria novamente no Ballet Ismael Guiser. Ela participou de muitas das minhas montagens, sempre entregando-se totalmente ao que eu propunha. Dançamos juntos Tango e Nuestros Hijos. Hoje é minha professora.

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Em Caxias do Sul, com o Grupo de Dança Raízes, comandado por Sigrid Nora, remontei Palhaços, agora em sua versão completa. Foi o último espetáculo dançado pelo grupo. Para elaborar o cenário e o figurino, foi chamada uma ótima artista da cidade, Beatriz Balem Susin, com quem me dei muito bem. E a estreia foi em dezembro. O ano terminava e as atividades desse grupo também. Para sempre, infelizmente. Ainda nesse ano tive a experiência de trabalhar com a companhia mais antiga do país, o Ballet do Theatro

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Municipal do Rio de Janeiro. Era uma honra, para mim, poder estar com todos aqueles artistas que eu tanto admirava há tempos. Quando cheguei, Tatiana Leskova era a diretora, prestes a deixar o cargo. Não era a primeira vez que isso acontecia comigo. E encarei meu trabalho, que era o que me importava. Remontei para eles Tempo de Tango. Com o Balé Teatro Guaíra, outra companhia oficial com a qual trabalhava pela primeira vez, remontei Presenças, desta vez com música ao vivo, sob a regência do maestro Osvaldo Colarusso, tendo ao piano Maria Elisa Risarto.

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Marjorie Quast criou nesse ano um novo grupo em Belo Horizonte, Menestréis da Dança. Em setembro, apresentamos outra versão de SOS Brasil, que agora passou a se chamar apenas Brasil. A estreia foi no Palácio das Artes. A ideia era pensar como se deu a fusão de elementos religiosos africanos e europeus no Brasil. Das 12 coreografias do espetáculo, nove eram minhas. E, ao meu lado, como coreógrafos, estavam Carlota Portella, Holly Cavrell e Paulo Buarque. O ano se encerrava e eu havia percorrido o país, trabalhando, sobretudo, com suas companhias públicas. Conhecia todas elas, suas qualidades, seus problemas, suas especificidades, sua dança. E isso fazia de mim um artista um tanto raro, que circulava em tantos ambientes distintos. E eu sabia disso. *** Mal o ano novo começava e eu já recebia convites de trabalho. 1991 prometia. O primeiro deles foi feito

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pelo Carlos Trincheiras, que dirigia o Balé Teatro Guaíra. Ao retornar àquela companhia criei Estância. A música era de Alberto Ginastera, que a havia composto especialmente para dança tempos atrás, usando ritmos folclóricos argentinos. Uma obra musical curta, de uns 15 minutos, mas a coreografia chegava a 20 minutos, usando silêncios e ecos. E coreografei também um pas-de-deux, Pavana para uma infanta defunta, com música de Ravel. Escolhi o elenco: Eleonora Greca e Jair Moraes, que se revezavam com Márcia Castro e Sérgio Oliveira. Como quis homenagear esses bailarinos dei a obra de presente para eles. E todo esse programa também foi com música ao vivo, sob a regência do maestro Alceo Bocchino. Fui convidado mais uma vez pelo Balé da Cidade de São Paulo e escolhi montar Les Noces, de Stravinsky. Ainda não tinha muita familiaridade com aquela maravilha de música. Já havia visto a versão original de Nijinsky em vídeo, e a de Kylian também. Mas era diferente estar diante dessa obra, para que eu desse a ela a minha versão. Os figurinos foram feitos por Renata Schussheim, uma artista plástica, cenógrafa e figurinista argentina que trabalhou muito com Oscar. Ela estava pela cidade por algum outro motivo e aproveitamos a ocasião para convidá-la.

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Lembro que o elenco trabalhou com afinco cada compasso, cada movimento. Rui acompanhava com entusiasmo o trabalho. Kalil não poupou esforços para conseguir uma produção realmente impecável. Dois assistentes de primeira acompanharam essa e outras montagens na época do Rui: Suzana Mafra,

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Est창ncia, de Luis Arrieta, pelo Ballet Ismael Guiser, 1992

Est창ncia, de Luis Arrieta, Ballet Teatro Guaira, 1991, com Rui Alexandre e Regina Kotaka

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Pavana para uma Infanta Defunta, de Luis Arrieta, em montagens de 1993 e 2000. Acima com Gustavo Lopes e Lilia Shaw e abaixo com Karla Couto e Rodrigo GiĂŠse

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velha conhecida e companheira do meu trabalho, e Sérgio Funari, que soube entregar-se e absorver cada ensaio. Sérgio divide hoje seu tempo entre a direção de palco de algum espetáculo e seu consultório de dentista. A piada irresistível: é ele hoje quem me deixa de boca aberta. Literalmente. Depois fui para Natal, convidado por Edson Claro, para trabalhar com a Acauá Companhia de Dança, ligada à universidade federal de lá, que já não existe mais. Era mais uma vez um trabalho que pretendia aglutinar pessoas de educação física com a dança, que havia sido iniciado por ele em São Paulo. Diante do meu encantamento pelas dunas de areia de lá, montei Tempo de dunas. 294

Aconteceu uma coisa curiosa. O papa João Paulo II, em sua terceira visita ao Brasil, passou pela cidade. Eu estava hospedado num hotel na via costeira, que, literalmente, cai para o mar, belíssimo. Em frente, existe uma estrada e, depois, apenas dunas e dunas de areia. No meio de todas essas dunas, existe um centro de convenções oficial que, às vezes, devido à movimentação das areias, chega a ficar escondido. O papa iria rezar uma missa, como faz em todos os lugares que visita. Então, nesse dia, nem pensamos em trabalhar, porque tudo estava parado. Resolvi, então, ficar no hotel, assistindo à missa pela televisão, quando disseram que ele iria ao encontro dos bispos da cidade no tal centro de convenções. Saí do hotel e fiquei parado na estrada da via costeira, esperando que ele passasse.

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Nunca vou me esquecer daquela imagem: uma hora da tarde, aquele sol escaldante, aquele calor, e no perfil contra o céu azul das dunas próximas, brancas e brilhantes que queimavam, um batalhão de soldados com metralhadoras. Além deles, não tinha ninguém, só umas três ou quatro pessoas paradas. E, de repente, passaram vários carros cheios de militares e, logo atrás, o papamóvel, com aquela caixa de vidro, com dois homens de terno, com armas para fora. João Paulo II estava todo de branco, com a roupa engomada, imaculado. Quase transparente. Passou acenando, e fez a curva a uns 5 metros de mim. Não sei bem por que, mas me lembrei da coreografia A Mesa Verde, de Kurt Jooss. Do calor tórrido das dunas de Natal passei para as serras nevadas de Saint Gallen, na Suíça. Por indicação de Ricardo Fernando, bailarino de Brasília com quem havia trabalhado no Rio, em meus tempos da TV Manchete, a diretora da companhia de dança da cidade, Marianne Fuchs, me convidou para remontar algumas de minhas obras, no intuito de completar um programa. Remontei: Adeus, Trindade e Palhaços. Foi um tempo agradável de trabalho, com a pequena cidade praticamente submersa em tanta neve, como eu nunca tinha visto. Silenciosa e tranquila, só se agitava às vezes com os testes de alarme que nos faziam interromper os ensaios e, sem sequer pegar as bolsas, correr para os bunkers na praça em frente ao teatro. Nunca tinha vivido essa situação.

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Nesse mesmo ano, fiz dois duos para duas companhias. Para Cláudia Araújo, de Niterói, fiz um pas-dedeux com música de Arvo Pärt, Ofertorium. Eu já a conhecia desde os tempos da Associação de Ballet do Rio de Janeiro. Ela era uma linda bailarina. E, nesse duo, ela dançava com Servo Campos, um bailarino também de Niterói. Para o Ballet Ismael Guiser, criei Andante, com música de Bach, para Daniel Lupo e Patrícia Alquezar. Algumas vezes, cheguei a dançar também esse duo com Patrícia. Mas uma novidade em minha carreira ainda estava por vir: depois de diversas tentativas frustradas, recebi, finalmente, uma bolsa para fazer uma criação coreográfica da Fundação Vitae. O projeto que havia apresentado dessa vez girava em torno de solos, duos e trios. Chamava-se: Um, dois e três – Luis Arrieta por Luis Arrieta. Era uma sensação diferente aquela, de receber para eu fazer um trabalho meu, sem estar ligado a qualquer companhia. E soube saboreá-la como deveria. Isso eu soube. Convidei bailarinos da cidade, de vários lugares, com os quais me indentificava – Ana Maria Mondini, Beth Risoléu, Clarice Abujamra, Irineu Marcovecchio, Ivonice Satie, Laudnei Delgado, Mônica Kodato, Mauricio Martins, Mauricio Ribeiro, Mônica Mion, Nancy Bergamin, Nilson Soares, Patrícia Alquezar e Suzana Yamauchi. E alguns convidados de Belo Horizonte: Karla Couto, Rodrigo Giése, Lina Lapertosa e Lair Assis. Um time de primeira, enfim. Eu também dançava. Claro! E eu iria perder essa festa?

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Ofertorium, de Luis Arrieta, com Claudia AraĂşjo e Servo Campos

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A música de câmara foi ao vivo. O maestro Gil Jardim, que também tocava, convidou alguns de seus melhores alunos formandos da escola de música da USP, todos muito bem-preparados por ele, para cada uma das peças. Já todas as partes de piano foram preparadas pelo maestro Gilberto Tinetti. Ou seja, pude contar com música de primeira qualidade. E tudo feito contando com a boa vontade das pessoas, porque certamente a bolsa não cobriria jamais esses gastos. No máximo, conseguia dar uma ajuda de custo aos bailarinos.

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Mas contávamos com a preciosa ajuda da produtora Anelise Godoy, esposa do maestro Gil, que, com seu empenho, conseguiu cartazes, programas, flores e tantas outras coisas que fazem parte da produção de um espetáculo. Apresentamos o resultado no ano seguinte, 1992, no Teatro Sérgio Cardoso. Era um espetáculo longo, com quase três horas de duração e dois intervalos. Mesclei algumas peças já compostas com outras criadas especialmente para o projeto. Entre as novas, estavam Oração, um solo dançado por Maurício Ribeiro, que só ele que conseguiria fazer, por ser quase um atleta, e que só foi apresentado nessa ocasião; Outono, uma obra dançada apenas pelas mulheres, com os choros de Villa-Lobos tocados pelo violonista Edelton Gloeden, músico muito importante daqui do Brasil. Era uma cena bonita: ele ficava sentado em uma cadeira, e as cinco bailarinas, Mondini, Beth, Clarice, Patrícia e Suzana se movimentavam como se estivessem enlaçadas entre suas pernas e a

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cadeira, e cada uma ia saindo para fazer o seu solo sucessivamente. Disso surgiu outro trabalho inédito, Dois Clarinetes, um duo para Patrícia e Maurício, que também nunca mais foi levado; Ocean, com música especialmente composta por Gil Jardim e Jether Garotti, que foi apresentado em outras oportunidades no Memorial da América Latina, criado para Beth e Laudnei; Cisne, um solo que eu fazia com a música de Saint-Saëns, que ficou conhecidíssima através do solo magistral de Michel Fokine para Anna Pavlova, A morte do cisne, do comecinho do século anterior; e, por fim, La valse, com música de Ravel, para Kodato e Irineu. Entre as obras já conhecidas pelo público, estavam Palhaço, que fazia Ivonice, Tango, que fazia Nancy, Andante, Pavana, Adeus, Trivio, Trindade e Malambo, de Estância. 299

Todos os dias, mudávamos a ordem do programa. As peças eram as mesmas, mas gostávamos de trocar a sequência em que eram apresentadas, pois não eram feitas separadamente, com aplausos no meio. Não. Isso seria muito fácil para nós. Elas eram, de alguma maneira, interligadas. Só que ficava a cargo de cada bailarino saber como entrar em cena e começar sua peça e também como sair de cena e terminá-la. Isso sem prévia combinação, claro, o que tornava tudo ainda mais instigante. Eu podia fazer isso com aquelas pessoas, todas extremamente experientes e criativas. Era delicioso ver como quem estava começando sua parte ia esboçando o movimento em cena, ao mesmo tempo que tomava para si algum movimento da obra anterior, e emendava com o que viria a seguir. E, de certo modo, os músicos acompanhavam esse processo

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e se alternavam em cena para executar cada peça. Tudo era muito bonito. E fui trabalhando como sempre aqui e ali, como já estava acostumado. Duas criações: para o Balé Teatro Castro Alves, fiz De mar e areia, com música de Gismonti; para o Balé da Cidade, fiz A espera, um trabalho bem introspectivo, lento, para tratar da ideia da espera, usando alguns temas de Villa-Lobos, em versão para piano. E fiz também algumas reposições em companhias. Para o Palácio das Artes, remontei Pavana para uma infanta defunta, que depois de muito tempo, em 2000, montei também para o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, com Nora Esteves e Bruno Cezário, alternando com Betina Dalcanale e Paulo Rodrigues. Gostava muito da Nora com o Bruno. Gostava do contraste da juventude dele com a experiência dela. Remontei Estância para o grupo do Ismael. Algumas vezes eu também me apresentava sozinho, não em espetáculos meus, mas entrava em alguns lugares, em que me oferecia para participar. Nunca tive problemas com isso. Nunca. Em 1992, Rui Fontana, que ainda estava à frente do Balé da Cidade, me pediu que remontasse para a companhia La valse, que ele havia visto no meu espetáculo Um, dois e três e também Pavane. Para o Palácio das Artes, remontei La valse também, além de Tango, De mar e areia e Trindade, ou seja, um programa de solos, duos e trios. E eu me apresentava nesse espetáculo também, com meu Cisne, ou algumas vezes com o Tango.

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Ballet do Teatro Castro Alves: De Mar e Areia, de Luis Arrieta, com Armando Pereno, Flexa II e Augusto OmolĂş

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Marcello Avellar, crítico de o O Estado de Minas (1993), escreveu: La Valse é um pas-de-deux que brinca com a interpretação do corpo – os rostos trabalham com máscaras estáticas que são substituídas por outras máscaras estáticas numa sucessão ao mesmo tempo engraçada e trágica. Obra que, a partir da estilização e da corrupção de passos de valsa, apresenta uma angustiante contradição entre conflito e necessidade.”

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As novas criações do ano incluíram o Balé Teatro Castro Alves, para quem criei um duo, Beijo I, com um adágio de Bach. Para a Cia. Profissão Dançar, um grupo de jazzdance de São Paulo, que vinha de uma academia de dança, Steps, de Cecília Oliveira e Regina Dragone, fiz Willis Now, com música do The Art of Noise, um grupo de rock progressivo. Era um desfile de moda de noivas, que no início estavam mortas e que se levantam para dançar com um homem que era um jogador de beisebol. Uma citação clara ao balé Giselle. Esse trabalho só foi apresentado com essa companhia e nunca mais. E o grupo logo em seguida se desfez. Mas o que gostei mesmo foi a experiência de ter trabalhado com bailarinos de jazz. E essa não seria a última vez. Em 1993, a direção do Balé da Cidade de São Paulo mudou novamente. Quem assumiu foi Ivonice Satie, que me convidou para fazer a remontagem da Sagração da Primavera, em comemoração aos 80 anos da primeira versão de Nijinsky. Fizemos exatamente a mesma coreografia que eu havia criado antes, só que, dessa vez, com cenários e figurinos de Murilo Sola. Apresentamos no Teatro Municipal, com or-

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Com Ivonice Satie

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questra tocando ao vivo. Para eles, criei também um balé com música de Bach, Concerto para 4 Pianos e Orquestra de Cordas, um concerto de Vivaldi que Bach transcreveu. Era um trabalho muito dinâmico, em que eu brincava um pouco com sequências de dança clássica e da técnica moderna de Martha Graham. Chamava-se Warm up. ***

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Um grande convite, ainda em 1993. O Ballet du Grand Théâtre, de Genebra, me convidou para trabalhar com eles. Era uma indicação de Iracity Cardoso, que tinha acabado de sair dessa companhia para assumir a direção do Ballet Gulbenkyan. A princípio, preferia ter feito uma remontagem, em se tratando de um elenco que não conhecia. Mas a condição era que fosse uma estreia. Decidi, então, prestar uma homenagem ao compositor argentino Alberto Ginastera, que havia falecido há 10 anos, na Suíça. Fizemos, então, Pampa, com o Concerto para Harpa no 25, tocado divinamente pela orquestra de La Suisse Romande, sob a regência de David Porcelijn. Para os figurinos, pude contar com o talento de Murilo Sola, que se encontrava na Suíça comigo, embora ele já estivesse muito doente. Apesar de estar debilitado, não parava um minuto no teatro e na cidade. Estávamos hospedados juntos e sempre me esperava no fim dos ensaios com algum presente que tinha comprado durante seus passeios. De volta ao Brasil, ainda vestiu Willis Now, nosso último trabalho juntos.

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Luis Arrieta em Genebra, 1993

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Foi muito interessante trabalhar lá. Oscar já não estava, tinha saído há alguns anos. Quem dirigia a companhia era Gradimir Pankov. O programa ainda contava com mais duas obras, uma honra para mim, porque tive a imensa sorte de estar ladeado por Jiri Kylián e Mats Ek, dois grandes coreógrafos que sempre admirei. Adorava fazer aulas de balé com eles. Fazíamos todos juntos com a companhia. E eu me sentia em casa.

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No Journal de Genève, Gazette de Lausanne, da Suíça (15/10/1993), Michèle Pralong escreveu uma crítica sobre nós, intitulada Magnífico pas-de-trois: Luis Arrieta, Jiri Kylián, Mats Ek: Os três coreógrafos convidados para abrir a temporada de Dança no Grand Théâtre acertaram em cheio. E especificamente sobre meu trabalho, escreveu: Pampa (...) uma criação agradável aos olhos, sóbria e serena, evocadora do vento dentro da natureza argentina. Verdadeiramente uma encantadora música dos corpos. Uma surpresa que me deixou muito feliz em Genebra foi a visita da minha irmã Pochi, da Austrália, que estava a caminho da Espanha. Ela assistiu à estreia. Com seu jeito extrovertido, logo ficou amiga de todo elenco. E voltávamos caminhando do teatro para casa, à noite, com o sol ainda iluminando as ruas e os telhados da bela cidade no verão suíço. Nesse ano, compus também um trio para os primeirosbailarinos do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Ana Botafogo e Marcelo Misailidis, e o solista Hélio Bejani: Tango trio. Essa pequena peça, de apenas dez minu-

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No Ballet du Grand Théâtre de Genebra, 1993

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Luis Arrieta em ensaio

No Ballet du Grand Théâtre de Genebra, 1993, Pampa, de Luis Arrieta

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tos, com música de Piazzolla, foi encomendada para a comemoração de 300 anos da cidade de Curitiba, em um espetáculo grandioso, que contava também com o tenor José Carreras e a Orquestra Sinfônica Brasileira. Foi realizado no Parque das Pedreiras, num palco imenso, conhecido como Pedreira Paulo Leminski, onde cabem orquestra e companhias de balé. Lembro que tivemos o privilégio de poder contar com Arthur Moreira Lima ao piano, nos acompanhando. Havíamos feito alguns ensaios com ele no estúdio de Emílio Martins, em Copacabana. Só que o piano de um estúdio dedicado a acompanhar aulas de balé é um modesto piano de armário. Mesmo assim, Arthur tocou sem nenhum constrangimento. Não apenas uma... senão muitas vezes. Um artista. 309

*** No ano seguinte, trabalhei pela primeira vez com a carioca Carlota Portella, que eu já conhecia de minha época na Associação de Ballet do Rio de Janeiro, da qual ela também era bailarina, além de professora e coreógrafa da escola de Dalal. Para seu Grupo Vacilou Dançou, fiz a primeira versão de Noch einmal, com música de Philip Glass, sobre um Concerto para violino e orquestra. Usei apenas o segundo e terceiro movimentos. No ano seguinte, cheguei a fazer com os três movimentos, mas com o grupo do Ismael. Nessa oportunidade, foi também a primeira vez que trabalhei com a Rosa Magalhães como figurinista, por quem me apaixonei à primeira vista. Fomos apre-

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sentados na casa de Carlota e a afinidade entre nós foi imediata. Acho a Rosa fora de série. Uma artista rica em todos os sentidos, com uma capacidade, com um conhecimento da profissão, com um domínio do métier impressionantes. Só posso falar coisas maravilhosas de Rosa Magalhães, com quem trabalhei em outras oportunidades.

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Nesse ano de 1994, também coreografei e dirigi um trabalho com o Camaleão Grupo de Dança, chamado Telas, novamente com música especialmente composta por Oswaldo Montenegro. Marjorie Quast, a diretora, queria uma obra que transitasse pelo mundo das artes. Algumas partes foram coreografadas por mim, mas, na verdade, fiz mesmo uma direção geral do trabalho. Enquanto isso, minha peça Sanctus havia se tornado um hit no repertório do Balé Teatro Castro Alves. Fui algumas vezes a Salvador para revisar sua remontagem, burilar aqui e ali alguns detalhes, algo habitual. Isso era necessário porque desde sua criação completa para essa companhia, ainda em 1985, todos os anos ela era inúmeras vezes apresentada. Muitas vezes na Europa, Ásia e Estados Unidos. A companhia e eu recebemos diversas críticas, de várias partes do mundo. Camile Hardy, da histórica e conceituada revista americana Dance Magazine (dezembro de 1993) escreveu: “Sanctus, por Luis Arrieta, mostra o formidável dom do coreógrafo para a criação de movimentos.”

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Ballet do Teatro Castro Alves: Noch Einmal, de Luis Arrieta

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Ballet do Teatro Castro Alves: Noch Einmal, de Luis Arrieta. Acima, Leonard Henrique

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Na Alemanha, duas críticas também. No jornal Was (28/05/94), Elisabeth Hoving escreveu: Sanctus, uma grandiosa oração de corpos. Um exemplo da harmonia entre o clássico e o exótico, a civilização e a natureza pura, é a explosiva coreografia de Sanctus, um hino ao mundo além do visível. E Lars Ludwig von der Gonna, do Jornal Recklinghausen, no mesmo dia: Sanctus... Do mais fundo da alma vivencia-se uma confissão que se concentra espantosamente autêntica no essencial. (...) É espantoso que este gesto seja mostrado com naturalidade, coisa que muitos dos nossos autossuficientes ‘esclarecidos fazedores’ de teatro não teriam coragem de fazer. É a comovente síntese dos sonhos humanos com um único credo. Essa era uma amostra de que meu trabalho caminhava em seu entendimento internacional. Que isso seria mesmo possível. O que me deixava extremamente feliz.

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*** Minha relação com a Argentina é minha família, alguns poucos amigos da infância e da adolescência e Oscar. Em 1993, fui passar as festas de fim de ano com eles, Natal e Ano-Novo. Minhas duas irmãs também estavam, a mais nova, que morava em Buenos Aires, e a mais velha, vindo especialmente da Austrália para estar conosco. Foi tudo muito simbólico. Passamos o Ano-Novo na casa de parentes, algo não muito comum em minha família. Meu pai, já nesta oportunidade, comentava que não estava se sentindo muito bem, que

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Bettina Bellomo e Renato Bertolino

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Grupo de Danรงa Camaleรฃo: Encontro no Espaรงo, de Luis Arrieta, conjunto

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possivelmente no ano que vem ele teria que fazer alguma intervenção cirúrgica, ou algum tratamento um pouco mais específico. Acho que, na verdade, ele não sabia muito bem que estava tendo problemas de coração. No início de 1994, ele não passou bem. Eu e minha irmã da Austrália viajamos novamente para Buenos Aires, porque ele havia sido internado, para a colocação de um marca-passo. Em seguida, teve uma pequena melhora. Mas, em agosto, veio a falecer.

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Nesse exato dia, eu estava em Salvador para fazer uma banca de júri numa audição para uma companhia. Era um domingo e garoava bastante. Eu deveria viajar de Salvador para o Rio de Janeiro, para dar um acabamento em Noch einmal, para o grupo de Carlota, que estrearia em pouco tempo. Estava ainda no hotel, pela manhã, esperando a condução que me levaria ao aeroporto. Ainda não sabia de nada. Enquanto estava esperando, fiquei olhando pela janela, porque já estava chegando minha hora. Olhei para baixo e vi uma pessoa que reconhecia de algum lugar. Mas, naquela hora, seu nome não me vinha à lembrança. Num impulso, num ímpeto, coisa nada normal em mim, desci as escadas e fui falar com ele. Quando fiquei frente a frente, reconheci: Você é músico! E ele me respondeu: Sou o Naná Vasconcelos. Prazer, sou Luis Arrieta, sou coreógrafo e já coreografei uma obra sua, Berimbau. E trabalhei com outras músicas também. Em seguida, ele me deu um abraço e nós dois começamos a chorar. E nos desculpamos mutuamente a emoção que nos tocava. Era uma situação totalmente inexplicável aquela. Mais ou menos

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naquela hora, meu pai estava falecendo. Imediatamente, Naná me convidou para o quarto dele, uma suíte no mesmo hotel. Lá, havia uma bandeja sobre a mesa cheia de frutas. Enquanto eu comia, ele pegou o berimbau e começou a tocar e a cantar para mim. Passado um tempo, que nem sei precisar quanto, pedi desculpas, mas precisava ir embora, porque já estava chegando minha condução. Cheguei ao Rio e era quase noite. Na manhã seguinte, entrei na sala da escola da Carlota e pouco antes de começar o ensaio, ela me chamou num canto e me disse que Ismael havia acabado de telefonar: haviam ligado para ele de Buenos Aires, comunicando que meu papai falecera no dia anterior. Chorei muito. Carlota, um tanto assustada, me perguntou se eu preferia ir para o hotel. Não. Eu preferi trabalhar. Fui para a sala e falei: Vamos começar!

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Curiosamente, esse trabalho fala exatamente de uma pessoa que quer passar para um outro lugar. A dança toda era construída dialogando com uma parede de luz, muito bem-idealizada pela iluminadora Deise Calaça. Por ela, o último bailarino deveria passar, mas percebe que só conseguiria fazê-lo despido, pois a roupa era uma casa e, naquele lugar, havia espaço apenas para o tamanho exato daquela pessoa. Então ela fica nua e faz a passagem. Na verdade, eu já esperava aquela situação. Tinha acabado de ver meu pai num estado muito precário de saúde. Ligava sempre para lá, e ficava sabendo das notícias, nem sempre as melhores. Mas não pensava

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que iria ser assim tão rápido. Não fui a Buenos Aires me despedir dele. Já não daria mais tempo. E não haveria sentido.

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Ele foi cremado e guardaram as cinzas em um túmulo de algum conhecido, pois minha família não possui um. Meu pai havia pedido para minha irmã que, quando falecesse, fosse cremado e que suas cinzas fossem levadas para a cidade dele, Olavarria, província ao sul de Buenos Aires, e jogadas sobre o campo de futebol do time El Fortín, que ele havia ajudado a fundar, para quem costumava jogar na sua juventude e para o qual, mais tarde, torcia. Ele adorava mesmo futebol. E teve de abdicar de seu sonho de ser jogador profissional para sustentar a família. Eu não tive que abdicar de nada em minha vida. Tive a oportunidade de brincar com sonhos. E devia isso, de certa forma, ao meu pai. *** Continuei acreditando que o trabalho seria a melhor maneira de lidar com aquela perda tão triste. E me lancei a ele, como sempre fiz em minha vida. Montei uma nova versão de Les Noces para o Balé Teatro Castro Alves, e fiz questão que, no programa, constasse sua tradução em português: As bodas. O mesmo figurinista de Sanctus, Afonso César, trabalhou novamente comigo e, juntos, elaboramos algo que trouxesse a imagem do que seria um casamento dentro do candomblé. Eram roupas cobertas de búzios e colares, um figurino belíssimo. E a companhia

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dançava belissimamente essa obra. Os ritmos de Stravinsky logo encontraram eco nos bailarinos da Bahia. Aquela música, que poderia parecer de início tão estranha, logo foi reconhecida por seus corpos. Remontei Estância e Pavana para o Balé Nacional do Paraguai, uma companhia que fazia um trabalho de dança moderna e contemporânea. Yoko Okada, que eu já conhecia por sua parceria com Ismael Guiser, era co-diretora da companhia com Graciela Meza, e me fez o convite. Era uma companhia pequena, com muitos chilenos, já que o país deveria ter poucos bailarinos. Mas eu adorava conhecer novas companhias, e dessa vez não havia sido diferente. E isso continuaria. Voltei a Genebra, para trabalhar com Beatriz Consuelo, bailarina brasileira importantíssima, cujo filho dança hoje na companhia do Merce Cunningham. Ela tinha uma escola particular e, com os alunos formandos, organizara uma pequena companhia, chamada Balé Júnior. Como havia conhecido meu trabalho com o Grand Ballet, no ano anterior, me convidou para montar alguma obra para seu grupo. Decidi, então, por remontar três duos extraídos de De mar e areia, as três canções de Villa-Lobos, da obra A Floresta do Amazonas, na versão tão bonita de Ney Matogrosso, Assis Brasil e Wagner Tiso.

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Terminava o ano de 1994. Um ano difícil, de perda. ***

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Cheguei hoje do Rio de Janeiro. É dezembro de 2008. Estreamos ontem à noite, no Teatro Maison de France, o trabalho Suíte Floral, mais um dos encontros que realizam Ana Botafogo e a pianista Lilian Barretto. Nesse espetáculo, criei coreografias e fiz também a direção. Volto muito feliz desse encontro.

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Eu já havia trabalhado antes com as duas, em Três momentos do amor, um espetáculo que já tem sete anos. Éramos três coreógrafos, Renato Vieira, Heron Nobre e eu. Mas neste, tudo era mais enxuto, com menos pessoas em cena: três músicos, um celista, um percussionista e um gaitista, Ana, Lílian e o bailarino Joseny Coutinho, seu colega do Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Hélio Bejani assinou algumas das coreografias e fez assistência de direção, enquanto Inês Pedrosa fez assistência de coreografia. A montagem foi bastante rápida. Foi feita para o público se deleitar, porque se trata de um espetáculo extremamente simples, até ingênuo, que fala sobre as estações do ano. Mas não ficamos restritos às estações climáticas. Explico isso no programa: Dizer que vivi tantas estações, só multiplicando por quatro os anos da minha vida, é uma mera probabilidade matemática. Estações. As reconheço presentes em cada dia e as vejo andar paralelas e cruzando-se em cada sentimento que me sulca. Colhi flores desabrochadas de calor tórrido enquanto caía seco de desesperança no leito gelado. A cada manhã acorda-me com um beijo uma delas e todas elas me conduzem pelo dia carregando-me as mãos, os pés e a alma. Das mãos e dos pés destas duas almas (que tanto a nos contar

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têm sua música e sua dança), nos chegam mais do que alegóricas as estações – verão,outono, inverno, primavera, reconhecidas, respeitadas, e aceitas em cada instante das nossas vidas, verdadeiras, constantes e fiéis como a natureza. É a maneira de como vemos o espetáculo. Fizemos obviamente pequenas citações das Quatro estações, de Vivaldi, e estão presentes também algumas estações portenhas de Piazzolla, além de temas como Somente um coração solitário, uma canção de Tchaikovsky que se refere à solidão do inverno. Em nossas conversas com toda equipe, chegamos à conclusão que vivemos um momento de exaltação a tudo que é ecológico, mas que devemos começar a respeitar a presença da natureza e as estações dentro de nós mesmos. Respeitar nossos próprios processos, nossos ciclos biológicos, nossas rugas. E aceitar que, possivelmente, a partir daí tudo pode ser mais fácil.

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E realmente foi um encontro muito feliz. Nos invade uma alegria imensa poder realizar esse espetáculo, sobretudo num momento extremamente difícil economicamente para as artes no país. E o público percebe essa harmonia. Esse é o último trabalho que criei antes de finalizar esse livro. Fiquei pensando em todo esse processo, de levantar cronologicamente todas as minhas atividades profissionais, tudo certinho sobre o que fui fazendo a cada ano. Às vezes, meu lado mais pessoal explodindo, como a passagem sobre o falecimento

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do meu pai. Mas, paralelamente a tudo isso, cada criação, cada montagem ou remontagem, cada aproximação com cada grupo, tudo isso me lembrou a possibilidade do encontro com artistas maravilhosos. Não apenas bailarinos, mas também compositores, artistas plásticos, iluminadores, roteiristas, diretores de teatro, técnicos de teatros, porteiros de hotel, recepcionistas, enfim, todos. Como viajei e viajo muito para trabalhar, conheço muitas pessoas e isso é muito rico. São praticamente as famílias que tenho aqui no Brasil. É impossível falar de todas as pessoas, citá-las nominalmente. Mas queria falar de algumas e devo começar pelo Ismael Guiser, que conheci em São Paulo e que foi um dos meus grandes amigos.

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Conheci Ismael no fim de 1974. A partir daí, mesmo morando fora do país e depois voltando, foi crescendo uma amizade muito forte entre nós. Uma amizade até muito ligada pela língua e pela origem em comum, sem dúvida. Mas o que me encantava no Ismael era sua lucidez, seu brilho, sua agilidade mental. Eu não podia bobear nenhum segundo nas conversas com ele, que pareciam um jogo de pôquer: são frases que, começadas, não precisavam ser terminadas, porque o outro já havia entendido. Eram deliciosos os encontros com ele. E com toda admiração artística mútua, tínhamos uma grande amizade. Outro amigo: Afonso César, que fez meus figurinos de As bodas, Bolero e Sanctus, as produções da Bahia. E Carlos Sérgio Borges, um artista plástico do Rio Grande do Norte, de Natal, que trabalhou muito comigo. Pessoas com quem converso periodicamente, com

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quem me sinto bem quando estou próximo. Outros encontros fantásticos, como Ana Botafogo, Dalal Achcar, Tatiana Leskova. E Ivonice Satie, saudosa e grande colega. Iracity Cardoso, Antonio Carlos Cardoso, dois grandes amigos. Muita e muita gente. Também duas mulheres que têm sustentado minha vida de maneira decisiva: a chilena Inélia García, uma das introdutoras do método Pilates no Brasil e Sonia Cavalcanti, mãe de seis filhos e avó de cinco netos. As conheci em fins dos anos 1980. Fazia as aulas do Ismael com Sonia que retomava à prática que tinha abandonado quando sua prole começara a nascer. Apresentei uma a outra. Sonia se encantou com o trabalho de Pilates, fez sua certificação e ainda retomou a faculdade e se formou em Educação Física. Hoje é professora importante do método.

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Com incrível talento nas mãos, Sonia pintou, bordou, costurou, consertou, desenhou muitos figurinos para meus balés, ajudou-me em tudo, o inimaginável. E ainda mais: ela e Inélia cuidaram de mim quando, em 2000, fiquei internado em estado muito grave, por mais de um mês. Com a pouquíssima consciência que tenho desse período, posso lembrar das rosas vermelhas que Inélia me levava, tentando me contagiar com sua energia. E lembro também dos olhos entre assustados e duvidosos de Sonia. E mesmo com tudo parecendo acabar, elas não me abandonaram. O pintor Carlos Araújo, que há anos não vejo, o maestro pianista Gilberto Tinetti, que sempre esteve próximo, pessoas que vêm de um encontro artístico

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e que se tornaram meus amigos. Agradeço muito minha profissão que me permite fazer isso. Agora mesmo, com a estreia de ontem, no Rio, encontrei muita gente. Bailarinos do Theatro Municipal, da Companhia de Ballet da Cidade de Niterói, Carlinhos de Jesus, gente que foi nos prestigiar. Vão ficando as relações, que são também relações pessoais. E aqui, neste livro, às vezes também me pego falando de coisas extremamente pessoais, mas entendendo que isso faz parte do jogo. Um jogo cujas regras são recriadas a cada momento. Um jogo vivo. E repleto de emoções sempre novas. *** 324

Estávamos em 1995. Fui para o Rio Grande do Norte trabalhar com o Ballet Municipal de Natal. Na verdade, foi um belo reencontro com Roosevel Pimenta, seu diretor, que eu havia conhecido quando de minha primeira turnê pelo Nordeste com o Corpo de Baile Municipal de São Paulo. Montei Fragmentos da Página 5, com música de Villa-Lobos. Um trabalho pequeno, com uma produção extremamente simples, com ótimos figurinos e cenários de Carlos Sérgio Borges. Uma companhia com poucas condições, mas que mesmo assim conseguimos fazer um belo espetáculo. Ainda em Natal, agora com o Grupo da Universidade do Rio Grande do Norte, dirigido por Edson Claro, fiz um trabalho que coloquei o nome de Noch viel mal, expressão em alemão que inventei. Me atrevi ser um neologista, e em alemão!

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Este foi um trabalho que gostei de fazer. Os bailarinos dançavam praticamente o tempo inteiro numa rampa altíssima, com rodas, o que fazia mudar o tempo todo a orientação do palco. Usamos música de tambores japoneses e, de vez em quando, surgia por trás o adágio do Concerto número um para piano em si bemol de Tchaikovsky. Os ensaios não foram os mais fáceis, sobretudo por causa da rampa. Não era só subir e descer sobre ela, mas, às vezes, dançar. E aí os bailarinos tinham que encontrar uma outra referência de verticalidade. E fomos descobrindo, juntos, formas de isso poder acontecer. Descobrimos, por exemplo, que quanto mais tensos, menos funcionava. Ou nos entregávamos a essa nova topografia ou caíamos como um pedaço de carne no chão. E isso desarmava os bailarinos. E os unia ao mesmo tempo. 325

Montei também para o Ballet Ismael Guiser a versão completa de Noch einmal, que havia começado com o grupo da Carlota Portella. Novamente contei com os figurinos da Rosa Magalhães. E, logo em seguida, Antonio Carlos Cardoso me chamou para trabalhar com ele no Balé Teatro Castro Alves. Ele estava querendo fazer um trabalho que tivesse como tema os orixás. Convidamos Egberto Gismonti para compor a música e chamamos a Rosa Magalhães para idealizar o figurino, que, a essa altura, já trabalhava em sintonia absoluta comigo. Durante o processo de criação, aconteceu uma coisa interessante: como sempre faço, tentei aprender um pouco sobre o tema do qual eu trataria em minha co-

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reografia. Ingenuamente, comecei a ler alguns livros sobre os orixás. Era uma ingenuidade de ignorante, que acreditava poder compreender algo daquele universo tão complexo com pouca leitura. Para continuar a contar isso, preciso dar um salto no tempo. Quando fui morar no Rio de Janeiro, para trabalhar com Dalal Achcar, lembro que, no prédio ao lado em que nós morávamos na rua Alberto de Campos, vivia uma argentina de Córdoba, de origem judaica, que tinha morado muito tempo no kibutz em Israel. Era uma senhora alta, de olhos azuis, cabelos longos e encaracolados, lembrando um desenho de Klimt. Chamava-se Rute Zefes e era seguidora do filósofo e esoterista russo George Gurdjieff. 326

Sempre nos encontrávamos na praia e era sempre muito agradável conversar com ela, uma pessoa divertida e espirituosa. Numa oportunidade, comentei que nunca tinha lido a Bíblia e ela me disse: Ah... você nunca leu a Bíblia judaico-cristã? Então vou te dar uma que eu tenho. E, logo no dia seguinte, me deu um exemplar em espanhol de presente, que tenho até hoje sobre minha mesa, quase desmanchado de tanto manuseio. Como bom virginiano, um dia decidi ler a tal Bíblia. Sentei, com um papel e um lápis em punho, abri na primeira página e comecei a ler e a tomar nota. Desde a primeira página. Palavra por palavra. Pretendia entender intelectualmente tudo ali. Logo compreendi a minha estúpida arrogância. E uma tremenda ingenuidade, sem dúvida. Sabe-se que muitos estudiosos dedicam toda uma vida a estudar a Bíblia e chegaram à conclusão de

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que muito ainda deveria ser estudado, para que pudessem começar a entender alguma coisa. Euzinho já queria de primeira entender tudo. E ainda fazer anotações. Pretensão e ingenuidade juntas. E uma grande arrogância também. Logicamente, depois da segunda página, deixei de lado o papel e o lápis. E decidi o seguinte: quero acreditar que algum lugar dentro de mim vai compreender alguma coisa. E li aquela Bíblia do início ao fim, mais de três vezes. Li tudo. Até os dados catalográficos. Tudo. Coisa de virginiano, sem dúvida. E gostava de ler em voz alta. Descobri o prazer de se ler em voz alta lendo a Bíblia. Parece que produz um eco que faz o texto voltar a entrar em mim. E isso não é nada de outro mundo. Toda religião sabe disso. 327

Desta mesma maneira foi como comecei meus estudos sobre os orixás. Carlinhos Moraes, outro grande amigo que descobri com a dança, me passou algum pequeno livro sobre o assunto, que li. Mas logo compreendi que essa leitura serviria apenas como desencargo de consciência. Para que eu não começasse aquele trabalho na mais absoluta ignorância. Pensei, então, que os orixás são a presença da natureza, e eu também sou filho da natureza. Seguramente eles habitariam de algum modo também em mim. E seria através da dança, um elemento importantíssimo para os orixás, a maneira que eu teria para descobrir isso. Quando comecei o processo de montagem, fui me movimentando, fui coreografando e nunca falei para

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Ballet do Teatro Castro Alves: Orixรก, de Luis Arrieta. Ao lado Fรกtima Berenguer e Marcos Napoleรฃo, demais, conjunto

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os bailarinos algo como: Hoje vamos trabalhar Xangô, ou Agora vamos trabalhar Iansã, ou Iemanjá. Não. Mas os bailarinos, que naquela época eram quase todos baianos, conheciam muito bem o assunto. Aliás, muitos deles vinham das danças folclóricas. E muitos deles eram, se não pais de santos, devotos, com alguma relação com o candomblé. E enquanto íamos trabalhando sozinhos, e eu pedia: Vamos passar a parte da dança que vem de trás... e eles falavam entre si: A parte de Oxalá Guia. Aquilo foi me deixando muito feliz. De alguma maneira, eles estavam reconhecendo algumas coisas que eu estava conseguindo traduzir sem praticamente copiar nenhum movimento das danças folclóricas, até porque não saberia realizá-lo.

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Eu já havia ido a terreiros em outras oportunidades. Voltei a ir para fazer esse trabalho. Carlinhos sempre me levava a lugares interessantes, não aqueles conhecidos turisticamente. Às vezes, a gente andava de carro mais de uma hora para chegar a um bairro bem periférico, para participar daquelas cerimônias que iam começar depois da meia-noite, em casinhas muito simples. Nada de espetacular, mas autêntico. Ou quantas vezes o próprio Carlinhos, que fala ioruba, fazia algum comentário, ou falava alguma expressão para mim, assim, do nada. Aquele gaúcho, que dançou muito no Rio de Janeiro e se mudou para Salvador, fala ioruba. Ele ficou tão interessado pela cultura afro-brasileira que se dedicou a estudar com afinco. Lê livros nessa língua. Já presenciei conversas dele com mães de santo nessa língua. Como também já o vi dar aula de algumas danças dos orixás.

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O interessante é que Carlinhos, pelo conhecimento de dança clássica que tem, consegue estruturar cada uma das partes, ou cada um dos passos daquelas danças e traduzi-las de maneira extremamente metódica. Não sei se haverá outra pessoa com esta capacidade. Muitas pessoas sabem dançar, mas não sei se teriam capacidade de destrinchar aquilo didaticamente. Sempre digo a ele que deveria fazer um registro disso, pois é a pessoa que tem condição de fazê-lo. Além do mais, Carlinhos tem uma categoria dentro do candomblé. Ele foi iniciado, fez a cabeça. Orixá ficou como eu queria. E sempre fico feliz com isso. Gideon Rosa, no jornal A Tarde, de Salvador (09/12/1995), escreveu: Produção grandiosa em porte e significado Orixá inova por não apresentar um vocabulário impregnado de movimentos extraídos do folclore. Revela-se ao público como um espetáculo capaz de prender a atenção pela sutileza de gestos e recusa em trabalhar com ideias que já fazem parte do imaginário popular. A coreografia começa falando do primeiro encontro do homem e da mulher, depois do mundo e, finalmente, após a festa dos homens eles transformam-se em deuses, em orixás. É um trabalho extremamente sofisticado. O coreógrafo evitou entregar-se à tentação do descritivo e construiu uma dimensão inovadora no que se refere ao trabalho com o tema. Realiza, em cena, uma transposição que não se propõe a ser reconhecível. Ao contrário, pretende-se deixar apanhar na emoção do homem que tem a capacidade de criar, transformar e, às vezes, virar deus.”

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E, assim como Sanctus, esse espetáculo foi apresentado em vários lugares, em vários países. No Joyce Theatre, em Nova York, a receptividade foi fantástica, como me contou a própria Rosa, que esteve presente na estreia. Não poderia ser diferente, pois eu contava com aqueles bailarinos cujos corpos, de alguma maneira, reconheciam de forma imediata toda aquela informação. Essa era a diferença vital nesse trabalho. O programa era dividido com Berimbau, o que compunha uma bela noite, orgânica.

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Recebemos crítica. O New York Times (31/07/1996) publicou o seguinte texto, assinado por Jack Anderson: O programa foi uma prova de que a dança moderna é uma linguagem internacional que pode aceitar sotaques de quaisquer regiões onde ela floresça. (...) Berimbau origina-se das formas tradicionais de arte marcial brasileira. Sete homens estáticos em poses congeladas... libertavam-se destas formas esculturais em explosões selvagens de corridas, quedas e saltos e quando vão ao chão na parte final parecem atletas ao mesmo tempo exaustos por seus esforços e triunfalmente conscientes de que seu desempenho foi vencedor. Orixá, dança dramática e simbólica, um espetáculo que nos encanta e nos prende pela magia. Os dançarinos movimentamse como ondas por um palco coberto de folhas até o ponto em que é fácil para nós acreditar que todos estão possuídos por forças sobrenaturais. Corpos caem como se estivessem mortos e surgem, de repente, como numa ressurreição. Ver Orixá é como contemplar um universo em estado de metamorfose perpétua. ***

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Áurea Hammerli, primeira-bailarina do Theatro Municipal do Rio, dirigia também a Companhia de Ballet da Cidade de Niterói. Nesse mesmo ano de 1995, me convidou para trabalhar com eles. Era a chance que eu tinha de conhecer mais uma companhia oficial brasileira. E aceitei, claro, propondo criar Na floresta, usando novamente a música de Villa-Lobos, A floresta amazônica, na versão de Wagner Tiso, Assis Brasil e Ney Matogrosso. O figurino e o cenário foram mais uma vez assinados por Rosa Magalhães. Para compor esse mesmo espetáculo, remontei para Áurea e Paulo Rodrigues, Pavana para uma infanta defunta, que eu já havia feito em outros lugares. Um duo para bailarinos de categoria. Eles o eram e o dançaram belissimamente. Continuei trabalhando em Minas Gerais no espetáculo Telas, com a Marjorie Quast. Eu já havia feito esse espetáculo no ano passado, mas dele foi tirado um extrato que batizei como O toque, um duo dançado sobre um cubo, que foi apresentado numa homenagem aos 75 anos do Royal Academy of Dance e a Margot Fonteyn, em Belo Horizonte.

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Em 1995, cumpria-se também dez anos do falecimento de Flávio Império, o artista plástico com quem eu havia tido o privilégio de trabalhar em 1981, na coreografia Libertas, quae sera tamen, para o então Corpo de Baile Municipal de São Paulo. O Sesc Pompéia resolveu prestar uma homenagem a ele, com uma grande exposição no centro de convivência, Flávio Império em cena. Havia uma parte com muitos plásticos transparentes, dispostos como se fossem cortinas sucessivas, e nesses plásticos vinham textos

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contando partes de sua vida. Outra parte mostrava seus figurinos, outra com suas obras plásticas. Enfim, uma grande e interessante exposição.

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Eles me contataram, porque sabiam que eu havia trabalhado com Flávio. Perguntaram se eu gostaria de participar da exposição e se teria alguma ideia. Propus apresentar dois solos meus. Como eu, de alguma maneira, também havia sido parte dos trabalhos dele, resolvi participar daquela homenagem. Me apresentei, então, em dois dias, dançando. Num deles, criei um trabalho especialmente para a exposição, com o Adagietto de Gustav Mahler. Dançava sobre um monte de edredons velhos, embaixo de toda aquela chuva de placas transparentes com textos. Era uma instalação, que não tinha hora para começar e para acabar. As pessoas iam passando e me viam lá, me debatendo em cima dos edredons e dos plásticos. No outro dia, apresentei Ave Maria, com música de Górecki, compositor polonês, que fiz com um figurino feito de sacos desfiados de feijão, todo em fiapos. Fazia tudo na beirada daquele pequeno riacho do centro de convivência. Esse solo, que acabava no chão, fiz ali caindo na água, onde eu ficava por horas. As pessoas passavam, olhavam a água passando por cima do meu rosto, e não sabiam se era um boneco, ou o que era. Flavio Império foi outra dessas pessoas que foi um grande prazer ter conhecido. Quando ele fez toda parte visual e figurinos de Libertas quae será tamen, já era um indiscutível cenógrafo, um artista plástico reconhecido. Mas, nesse ano, ele havia ganhado por esse trabalho o prêmio da APCA. Ao ficar sabendo,

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logo pela manhã, ele me telefonou para agradecer. Ele me ligou para agradecer uma coisa que ele próprio havia feito! Feliz que estava por descobrir uma área nova, que ele dizia ser o corpo. Se ele soubesse... acredito que conseguimos estrear Libertas apenas graças a ele, que usava seu nome e prestígio nas lojas para que lhe doassem todo o material necessário para a confecção do cenário e dos figurinos. Os processos oficiais não conseguiriam jamais acompanhar o ritmo da produção de um espetáculo naquela época. Havia umas máscaras de personagens chamados no roteiro de burocratas, feitas como marionetes, de papel-marchê. Apesar de ter ele ido inúmeras vezes falar com a pessoa responsável pela liberação das verbas, nunca conseguia nada. E decidiu usar para esse preparado os diários oficiais velhos que se amontoavam nos cantos da administração. Um dia, cansado de receber mais um ainda não foi autorizado no diário oficial do funcionário das verbas, Flavio, com seu humor e sutileza característicos, saiu da sala falando: Sabe de que são feitas as cabeças dos burocratas? De diário oficial! Um trocadilho saborosíssimo.

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Aliás, naquela época, tudo era uma novidade para ele. Naquele mundo novo do movimento, ele tinha que saber lidar com coisas práticas, como a necessidade do bailarino se mexer. E eu pude ajudar um pouco nesse processo.

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Sempre fiquei muito impressionado com ele. Eu ia à sua casa e conversávamos muito. Ele morava numa casa muito bonita no bairro do Bexiga, e ficávamos lá no fundo, onde ele trabalhava. Sua mãe preparava uns bolos deliciosos, que devorávamos durante a conversa. Foram várias as vezes em que ele falava comigo enquanto manipulava um pedacinho de papel ou uma madeirinha e dali brotavam objetos instantaneamente.Para esse balé que fizemos juntos, eu pedia a ele que pensasse numa imagem de uma virgem que viria detrás do palco. Ele buscou um papel, uma tesourinha, enquanto falava, manipulou aquilo e sem que eu me desse conta, e em poucos minutos me perguntou: Assim? E fez uma santinha de papel cortado que guardo até hoje. Impressionante. Tudo brotava das mãos dele. Era uma energia fluente. Muito divertido, sempre com grande humor, ele era perspicaz. Em uma de nossas conversas, ele interrompeu e disse: Bom, Luis, agora a gente tem que parar porque tenho que ir dar aula na USP. E eu perguntei: Ah, e o que você ensina lá? Ensinar eu não posso ensinar nada, eles já têm que saber. Só posso dar alguma dica para que o caminho deles seja um pouco mais rápido. Mas, ensinar, não posso não. Meu Deus, ele tinha razão. *** Em 1996, trabalhei pela primeira vez com a Raça Cia. de Dança de São Paulo, companhia dirigida por Roseli Rodrigues, outra pessoa que passei a ter uma relação de amizade. Ela tem uma filha, Isabela, talentosa

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bailarina, para quem fiz um pequeno solo nas pontas, agora no início de 2008, que ela ainda não apresentou, com tema de Piazzolla, chamado Revirado. Lembro de uma passagem desse ano de 1996, quando eu morava em um apartamento dúplex, que tinha uma escada. Roseli vinha sempre à minha casa, mais à noite, quando terminava os ensaios. Ela tem uma ótima escola em São Paulo. E mais seus filhos. Enfim, uma pessoa ocupadíssima. Só tínhamos esse horário para trabalhar, conversar sobre detalhes, ter ideias, hábito que foi fazendo a gente entrar madrugada adentro. Numa dessas vezes, ela passou em casa com Isabela, que naquele ano era ainda bem pequenininha. E eu tinha um gatinho de madeira que ficava no degrau da escada, como se estivesse dormindo. Num momento, Isabela se levantou para tocar o gatinho e eu falei baixinho, sussurrando: Não! Não mexe com ele porque está dormindo. E ela me olhou um pouco desconfiada. No dia seguinte, Roseli me contou que, quando as duas voltavam para casa, ainda no carro, Isabela lhe disse: Mãe, ele falou para não mexer porque o gato estava dormindo. Mas eu acho que o gato era de madeira... Adoro essa historinha. Adoro sua singeleza.

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A Raça Cia. de Dança de São Paulo, desde sua criação, nunca havia convidado outro coreógrafo para trabalhar com eles de um estilo que não fosse o seu de origem, ou seja, o jazzdance. E eu fui a primeira aventura de Roseli no sentido de procurar algo fora daquele estilo. Depois de mim, vieram outros, como

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Ivonice Satie e Henrique Rodovalho. E, se não estiver errado, acho que fui eu que me ofereci para trabalhar com eles. E lembro que Roseli até titubeou um pouco, mas acabou topando. E essa seria minha segunda incursão nesse universo dos bailarinos de jazz. Fizemos um trabalho que se chama Tango três x três. Um trabalho longo, de uma hora de duração. Lembro que Ismael sempre brincava comigo, dizendo: Ah, para você, uma hora e meia é um balé pequeno... Desde criança fui assim. Um lado meu incorrigivelmente wagneriano.

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Tango três x três. O título já era praticamente um disparate, porque, na realidade, o tango não tem compasso três por três. Era uma provocação. A única explicação era o fato de ser dançado por nove pessoas, e ser todo construído com solos, duos e trios. Só tinha um conjunto no início e outro no final. Acho fantástico bailarinos de jazz. Eles têm uma qualidade de movimento, uma dinâmica e um esforço, próprios do tipo de trabalho que realizam, que me desafiam coreograficamente. E mesmo a sensualidade, característica do jazz, tão presente em alguns acentos, no limite do vulgar, me seduz muito artisticamente. Quando começamos a misturar um pouco do trabalho da Roseli com o meu, algumas coisas interessantes começaram a aparecer. Toda aquela energia já começava imediatamente a se expor. Havia uma presença forte do torso, da coluna, de uma energia muito boa, quase bruta. Instigante. E dali surgia um

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novo resultado, um novo elemento. Isso me lembrava muito de minha experiência na Bahia, com o Balé Teatro Castro Alves. A mistura da minha assinatura coreográfica com o modo tão especial deles de dançar. Essa mistura de elementos era o que enriquecia muito nosso trabalho em conjunto. E com o bailarino de jazz não era diferente. Me apresentei várias vezes com eles. Não com a companhia, mas nos espetáculos da escola da Roseli. Eu, na verdade, me oferecia, como sempre: Vai fazer espetáculo? Então... me deixa dançar? Assim mesmo. Na caradura. Se não me convidavam, eu me oferecia. Mais tarde um pouco, em 1999, ela fez um trabalho que se chamava Novos ventos, com música de Erik Satie, que eu ajudei a amarrar as cenas. Ela mesma já estava partindo naturalmente para uma pesquisa mais próxima da dança contemporânea, o que foi ótimo artisticamente para ela e para a companhia. Esse era um pouco o processo pelo qual passou o grupo da Carlota Portella, que tinha o jazzdance também como origem.

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Assim, passei a ser uma figura frequente na escola e na companhia de Roseli. Coreografava pequenas coisas para alguns bailarinos, para se apresentar nos espetáculos de fim de ano, coisa que eu gostava muito de fazer e que já havia aprendido muito desde os trabalhos em Belo Horizonte, com a escola da Marjorie Quast. Em 1998, coreografei para ela um trabalho chamado Achalai!, um trabalho de conjunto, com canções indí-

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genas pesquisadas e adaptadas por Marlui Miranda. Achalai é uma expressão quíchua, que minha avó Camila sempre usava, quando tinha lembrança de algo muito prazeroso, sobretudo coisas de sua infância. Aí, ela soltava um Achalai!, em tom exclamativo. A tradução exata é algo bom e bem perfumado, segundo um pequeno dicionário de língua quíchua que tenho. Mas, para a minha avó, era uma lembrança de algo agradável. Os bailarinos dançavam praticamente nus, durante meia hora, com o corpo pintado.

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Retornando ao ano de 1996, coreografei para o grupo de Ismael um trabalho chamado Trevo, que completava mais uma peça de um ciclo sobre o número 3. Fiz também para ele um outro trabalho que gosto muito, Quebrada, com música folclórica argentina, numa versão belíssima para piano, percussão e charango, instrumento típico nosso. O charanguista era Jaime Torres, músico boliviano cujo trabalho aprecio muito. E usei essa música porque tocava a mim e a Ismael de forma especial. Tanto que até os bailarinos se viram envolvidos com aquilo tudo. Foi interessante ver como o folclore da minha terra mexia com os sentimentos de um grupo brasileiro, que, aparentemente, não teria nenhuma conexão direta. Novamente, trabalhamos dentro daquelas condições mínimas. Cada um trouxe uma roupa, misturamos, tingimos, sujamos e fomos descobrindo qual seria o nosso figurino. Foi uma aprendizagem em grupo, o que acabava sendo o lado bom do amadorismo, o lado amador de quem ama.

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Nesse ano também, trabalhei com o Grupo Beth Dorça, de Uberaba, muito conhecido nos festivais pelo país afora. Novamente, fui eu o primeiro coreógrafo a trabalhar com eles. Logo em seguida, vieram outros. E sempre vencendo preconceitos das pessoas, que muitas vezes perguntavam indignadas por que eu aceitava trabalhar com grupos de escolas de dança. Sempre respondi: Em primeiro lugar, vivo disso, essa é a minha profissão. E, depois, tenho que ir aonde me querem. Tenho que ir aonde o povo está, como diria Milton Nascimento, ou ainda como diria Mercedes Sosa: Cantor canta onde o povo escuta. Tenho a dimensão que, às vezes, trabalhar com grupos menos profissionais dá mais trabalho. Isso é óbvio. Geralmente não é só o trabalho de coreografar, mas tudo o que está em volta também precisa ser revisto. A estrutura toda deve sofrer mudanças, desde a maneira de ensaiar, os horários, a precisão na execução dos movimentos, enfim, tudo. Tenho a impressão de produzir um reboliço ali para transformar aquilo. Um reboliço absolutamente necessário. Para que não permaneça a mesmice, para que alguma transformação se dê. E isso é muito bom. É laborioso, mas é muito bom.

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Montei para eles La telesita, a partir de um tema folclórico argentino, chacarera, uma dança da chácara muito típica. É talvez um dos ritmos mais brilhantes que nós temos. Fiz também um duo, Libertango, famoso tango de Piazzolla, para os dois melhores rapazes que ela tinha no grupo, Fernando Martins, que hoje dança na Quasar Cia. de Dança, e Edson Fernandes, que pertencia à companhia Distrito Cia. da Dança.

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Nesse mesmo ano, numa dessas passagens por Natal, fiquei sabendo que Henrique Amoedo e Edson Claro, ambos com formação em Educação Física, tinham formado um grupo de dança com pessoas portadoras de necessidades especiais, a Roda Viva Cia. de Dança Sobre Rodas. Rapidamente me ofereci para fazer um trabalho para eles, sem cobrar nada por isso. Como sempre, fui eu o primeiro a abrir essa porta, sendo seguido logo depois por Tíndaro Silvano e Ivonice Satie.

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Aquele grupo me impunha um desafio que até então nunca havia enfrentado. Tinha a certeza de que eu seria o maior beneficiário daquele processo todo, na medida em que teria que lançar mão de outros subsídios físicos para poder criar. Isso me aterrorizava ao mesmo tempo em que me desafiava. Fiz, então, um trabalho com eles que se chama Marnatal, um trocadilho com o nome da cidade e o fato de que o homem nasce da água, do mar. Foi uma experiência fan-tás-ti-ca. Tive que aprender muita coisa, muito rapidamente. Primeiro, saber que estava lidando com cadeirantes e não-cadeirantes, ou caminhantes, como são chamados aqueles que caminham. Esses, além de dançar, também ajudam aos outros. Outra lição era saber que ali estavam pessoas com graus diferentes de dificuldade: paraplégicos, tetraplégicos, sem contar a origem desses problemas, que podiam ser de nascença ou fruto de algum acidente, o que sempre vinha à tona, no processo artístico, claro. Lembro que eu contava com pouco tempo para fazer tudo. Sempre havia trabalhado com pessoas extremamente preparadas e, agora, precisava enfrentar

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uma outra fisicalidade. E precisava fazer isso num tempo curto. Enfim, uma tarefa daquelas. Eu tive medo, confesso. Aliás, sempre tenho medo de tudo. Vivo com medo. Então, não me resta outro remédio que viver. Morro de medo da vida. Me escondo. Mas, dentro de uma sala, meu domínio, esse medo milagrosamente desaparece. Mando em todo o mundo, faço o que quero. Mas sempre morro de medo. E aquele era mais um desses medos. Apenas mais um. Nem maior, nem menor. Combinamos, então, começar os ensaios. Quando cheguei, Edson já tinha preparado todos, que estavam apreensivos com minha presença. Antes de tudo, eles faziam um trabalho de aula todo específico. Fiquei olhando aquele aquecimento e ficava pensando se nos três dias que eu tinha, daria para montar algo de três ou quatro minutos. E não importaria se nunca estreássemos isso. O que importava, para eles, mas, sobretudo para mim, era aquela vivência.

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O resultado foi muito diferente daquele que eu imaginava: mais de meia hora de coreografia, minha grande mania. Na hora de começar efetivamente o ensaio, nos primeiros 15 minutos, reconheço que fiquei meio sem saber como lidar com tudo aquilo. Depois de 15 minutos, esqueci absolutamente com quem estava trabalhando, já estava dando ordens como sempre, dizendo: Vamos lá! Chega de preguiça! ou mesmo: Isso está demorando demais!, Isso foi ótimo! Ou seja, coisas que eu diria para qualquer bailarino.

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A certa altura, o Edson me puxou para um canto e tentou me alertar: Você esqueceu da condição deles? Claro que não havia esquecido, mas estava trabalhando com coisas concretas. Na coreografia, eles começavam em grupo. Pedi a todos que abandonassem cadeiras, bastões, bengalas, os ferros nas pernas, tudo. Feito isso, eles se encostaram na parede. Alguns tinham que ser colocados ali, porque não conseguiam ir sozinhos. E pedi que fizessem a movimentação toda no chão, como uma água. Como o mar. Eles moravam ao lado do mar e sabiam o que eu estava solicitando.

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Lembro de uma menina que tinha paralisia na perna e usava aqueles sapatos pesados, com ferros. Montei um trio para ela, com mais dois rapazes, um caminhante e o outro que mancava por alguma lesão. Ela era a mais afetada dos três. Lembro que, na hora de começar o ensaio, pedi para ela tirar todos aqueles ferros e ela me disse: Ai, não... por favor... Eu estava tirando toda a base dela! Insisti. Pedi que ela tentasse. E ela passou a ficar na mão dos dois rapazes o tempo inteiro. Nunca vi uma menina tão feliz, desde o primeiro momento em que experimentou aquilo. Ela se sentiu bela, feminina. De tempos em tempos, Henrique interrompia o ensaio e pedia que a gente fizesse uma pausa de uns 5 minutos. Ele controlava tudo no relógio, porque muitos deles têm o sistema de suor também afetado e, como não transpiram, podem ter uma queda ou um aumento de pressão. Tudo muito novo para mim. Mas, ao mesmo tempo, sabia que estava lidando com gente, com seres humanos, que no fundo eram pes-

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soas iguais a todo mundo: tinha o preguiçoso, tinha o esperto, tinha aquele que aprende mais rápido, o malandro que não quer fazer força, enfim, tudo igual. Uma das coisas que mais me chamou a atenção foi uma experiência com um dos rapazes, Baltazar. Ele tinha 18 anos, lindo. Fazia muito pouco tempo que estava com a lesão. Se jogou no rio, bateu a cabeça. Ficou na cadeira de rodas, tetraplégico. A irmã dele, mais nova, com uns 16 anos, linda também, estava no grupo só para poder estar com ele. Fiz então um duo para os dois irmãos, que era uma brincadeira de roda, cada um em uma cadeira. Ele já era cadeirante, ela teve que aprender, pois era caminhante. Era ótimo, porque ele a corrigia o tempo todo, ensinando truques com a cadeira. Eles deveriam entrar em cena fazendo um caminho circular, encontrando-se no centro do palco. Eu queria que ele a cumprimentasse e fizesse um movimento como se tirasse o chapéu. Nessa hora, Henrique me chamou e me mostrou aqueles desenhos do corpo humano, tentando me explicar por que ele jamais conseguiria executar aquele movimento solicitado. Eu disse que havia entendido. Voltei ao ensaio e disse para ele: Tem que trabalhar! Você não está conseguindo fazer porque é preguiçoso! Precisa treinar! e nem olhei para trás para ver a reação do Henrique.

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Depois de uns dois meses, eles vieram se apresentar no Centro Cultural São Paulo, na sala Jardel Filho. Quando cheguei, estavam ensaiando. Entrei pela plateia e esse menino, Baltazar, de lá do palco, me avistou e gritou: Luis, olha aí! e fez o movimento que

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eu havia pedido. Com muita dificuldade, claro, mas revelando todo um esforço que tinha tomado horas de sua vida. Quando ele me mostrou aquilo, soubemos ambos que tinha valido a pena. E Henrique me acenou de longe, satisfeito também. Esse foi um momento delicioso para mim. Esse rapaz deve ter pensado assim com ele mesmo: Filho da mãe! Você acha que eu não posso? Eu posso. E fez questão de mostrar. E eu, querendo esconder uma emoção enorme que me invadia, ainda disse: Isso! Alonga mais a mão! Ou seja, ainda o corrigi. ***

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Também me apresentei, não lembro por qual motivo, num espetáculo com Luciana Porta, uma bailarina que hoje é do Balé da Cidade de São Paulo. Fizemos um duo, Promenade, com o segundo movimento do Concerto para piano em sol maior de Ravel, tão bonito. Na verdade, comecei pensando que fosse dançado por Ismael e Luciana. Adorava a distância das idades, ele de cabelos brancos, Luciana com seu aspecto tão novo, quase criança. Mas principalmente porque Luciana é fruto puro do trabalho com Ismael. Ela começou a estudar com ele desde cedo e possivelmente seja uma das pessoas que mais tenha assimilado a inteligência e qualidade desse processo. Acredito que a enorme autocrítica de Ismael não lhe permitiu esse encontro que acabou não acontecendo. Pensei na relação entre professor e aluna, em algo circular, reiterativo. Num primeiro momento, é ele quem a ensina a caminhar, a dançar. Em seguida, é

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ela quem o ajuda nesse mesmo caminhar. Tenho até hoje uma foto grande nossa em meu apartamento. Aliás, essa é uma boa história. Essa foto estava exposta numa galeria, na frente de um teatro, onde acontecia um conhecidíssimo festival de dança. Eu havia comentado com Ismael, rapidamente, que tinha gostado muito daquela foto e que gostaria de ter uma cópia. Mas foi um comentário assim, sem intenção alguma. Ismael, então, resolveu me presenteá-la. Mas ele queria aquela foto e não outra. Procurou saber quem era o fotógrafo, queria pedir autorização, ou comprá-la. Tentou de tudo para conseguir o quadro e nada. Ninguém sabia informar se isso seria possível. Numa tarde, cansado de tentar por vias normais sua compra, contando com a ajuda de Roseli Rodrigues, que depois me contou tudo isso, Ismael esperou um momento em que a galeria estivesse vazia e simplesmente pegou o quadro. Tirou da parede e saiu gritando para Roseli: Vá na frente, Rô! Veja se tem alguém chegando! E ela gritava de lá: Ismael! Ismael!! Pelo amor de Deus, Ismael!!

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Com Luciana, fiz ainda um tango, Nuestros hijos. Na verdade, era um hábito meu escolher um extrato de um trabalho antigo e adaptar para uma nova circunstância. Esse, por exemplo, fazia parte de uma coreografia que eu havia feito para a Cisne Negro Cia. de Dança, em 1982, chamado Tempo de tango. Também neste ano de 1996, coreografei um duo que ainda faço com Gustavo Lopes, um bailarino

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excelente do Ceará. Ele já havia dançado no Ballet Stagium, depois foi para o Balé da Cidade de São Paulo e hoje está na Cia. Sociedade Masculina. O duo se chama Milonga del Angel, e usei a milonga, ritmo parecido com o tango. Gosto muito de dançar esse duo, até porque Gustavo é um bailarino excelente. E apesar de ele ter idade para ser meu filho, no palco, de longe, parece que ficamos muito próximos fisicamente, o que, de perto, é o contrário absoluto. E a gente brinca com essa proximidade física num duo que fala sobre como alguém se percebe no outro. Quase como uma conversa no espelho. Sempre quando um de nós está perdendo o equilíbrio, o outro o segura. E essas funções se revezam. E um acaba se reconhecendo no outro. Tive ainda uma grata experiência nesse ano, algo inteiramente novo para mim. A pesquisadora Rosana van Langendonck defende sua dissertação de mestrado no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP, tendo como tema um trabalho meu: Os bastidores de uma obra coreográfica – A Sagração da Primavera. Esse texto foi, em 1999, publicado em livro. A ideia era interessante: a partir de uma teoria, a Crítica Genética, a autora desvelou todo o processo de criação da Sagração da Primavera. Era como se eu não estivesse presente e ela recuperasse todos os meus rastros na feitura dessa obra. Isso era uma novidade para mim, ser tema de uma pesquisa de pós-graduação. Estava acostumado apenas com críticas em jornais, sempre mais curtas e diretas, por sua própria natureza. Daquela vez, podia saborear algo diferente, de fôlego, sobre um

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No duo Milonga del Angel, com Gustavo Lopes

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processo coreográfico intenso que eu havia vivido com aquele balé. *** Em 1997, fui convidado para fazer um trabalho novamente com a Cia. de Dança do Palácio das Artes. Propus uma criação e eles aceitaram: A noite transfigurada, de Schoenberg. A ideia era também fazer com orquestra. E contei com figurinos maravilhosos de Rosa Magalhães.

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Lembro de algo interessante no processo de montagem dessa obra: o Palácio das Artes é um teatro que está no centro de Belo Horizonte, dentro de um grande parque público. As salas de ensaio têm janelas que dão para esse parque. Naquela época, o horário da companhia era de uma hora da tarde em diante, e às vezes chegávamos até as 7 ou 7 e meia da noite. Então, por volta das 6 horas, começava o crepúsculo, e podíamos acompanhar todo o escurecimento do parque lá fora através dos vidros. E Noite Transfigurada fala justamente de algo semelhante. Durante o dia, íamos trabalhando. E reservávamos uma meia hora no final do ensaio para passarmos um corrido da coreografia até o ponto em que tínhamos avançado. Só que essa hora coincidia justamente com a chegada da noite, com aquela transição de luz. Um dia, propus que desligássemos todas as luzes da sala e que passássemos a coreografia com aquela luminosidade que entrava pela janela. Os bailarinos adoraram a experiência e passamos a fazer isso todos

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os dias. Assim, a coreografia começava no entardecer e terminava no escuro total, porque a queda do sol era rápida. O mais curioso é que justamente nesse momento era quando a companhia dançava melhor. Nenhum bailarino se batia, não havia qualquer atrito físico. Aparentemente, era uma proposta absurda aquela minha. Mas tive sorte das pessoas entrarem no jogo. Claro, a companhia poderia ter se negado a fazer aquilo, porque, de alguma maneira, eu estava pedindo algo até perigoso, já que a coreografia tinha passagens rápidas, algumas dinâmicas violentas. E eu tive também a sorte de poder contar com uma ótima assistente – Lydia Del Pichia, que ficava constantemente ao meu lado. Costumávamos rir daquela situação, porque não se enxergava nada, só a silhueta dos bailarinos através da janela. Tudo se transformava em oportunidade para aguçar os sentidos, afinar as percepções. Ficávamos sintonizados todos numa mesma ação. E isso, para aquela minha dança, era fundamental. Sem dúvida, o trabalho alcançou outra qualidade a partir daquele nosso exercício diário. Um exercício escuro. E passei a acreditar ainda mais naquela antiga história de que o excesso de luz pode nos impedir de ver. Que precisamos da escuridão, às vezes, para poder observar melhor o mundo.

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A crítica parece ter apreciado o espetáculo. Primeiro foi Helena Katz, que assim escreveu para o jornal O Estado de S. Paulo (26/10/1998): Dentro da escritura coreográfica de Arrieta, A noite Transfigurada surge como uma de suas melhores criações. Seguro no manejo do vocabulário do balé clássico, consegue produ-

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zir combinações que parecem organizar-se em torno do sopro da respiração, pois pulsam organicamente. E Marcello Castilho Avellar, para o Estado de Minas, (29/10/1998), escreveu: Sessões cheias e muitos aplausos. A Noite Transfigurada, densa, contida. Arrieta apresentou, sob novo olhar, sua já tradicional percepção da realidade como algo metafísico, habitada por seres que parecem vergar sob o peso de si mesmos e do universo para, finalmente, encontrarem alguma forma de libertação… Sob a ótica da interpretação, aqui é a vez de Arrieta mostrar-se mais surpreendente: a construção e a paulatina transformação da máscara facial dos bailarinos em A Noite Transfigurada.

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E o ano continuava intenso. Para a Raça Cia. de Dança de São Paulo, fiz a direção do espetáculo De Minh’Alma, com coreografia de Roseli. Com o grupo da escola de Lenita Ruschel, de Porto Alegre, fiz Dear Friend’s, com a música dos Beatles, que depois, nesse mesmo ano, remontei para o Ballet Ismael Guiser. Fui para Natal, onde me apresentei com a Luciana Porta. Fizemos uma série de solos e duos e, entre eles, havia algumas coisas novas, como La Reveuse, e Spreading. Havia também um solo que eu dançava, Adagietto, de Mahler, feito para Flavio Império. Voltei a tabalhar com o grupo da Roseli, fazendo um duo para Luciene Munekata e Jhean Allex, um bailarino muito presente na companhia, uma marca no grupo. Chamava-se Words Over Water. E para a bailarina Renata Ruiz, excelente intérprete e professora de jazz, fiz um solo com o bolero Pecado,

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cantado por Caetano Veloso. Muito trabalho, enfim. Mas nada diferente do que eu já estava acostumado. *** Nessa época, comecei a falar sobre composição coreográfica em alguns festivais que me convidavam. Era uma atividade que me dava prazer, pois me forçava a sistematizar minimamente o meu ofício, para poder transmitir aos alunos. É algo que eu faço a partir do que aprendi com as pessoas com quem trabalhei. E fui complementando com textos importantes que falavam sobre composição, como o de Doris Humphrey. Formatei, então, um curso teórico-prático.

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A tal da composição é mesmo engraçada. Está sempre presente, mas se alguém quer procurá-la, ela desaparece. Existe um mito sobre o que é compor. Sempre se pensa que é algo ligado a outro mundo, mas existe o treino, o ofício, a habilidade. Muitas vezes, logo no começo do curso, pergunto às pessoas de onde elas vêm. A maioria sempre é de dança. Mas já tive uma vez um arquiteto, que me disse que nunca tinha feito dança, nem ginástica, e porque tinha visto uma coreografia minha, quis fazer o curso. Pedi para ele fazer desenhos a partir do que ia entendendo, já que aquela era a mídia que ele conhecia. E foi interessante, porque falávamos de coisas simples, mas em comum, como simetrias e assimetrias, sucessões e oposições.

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É quase uma ciência, que se desenvolve através do treino. As pessoas vêm para o curso com fantasias sobre o que seja compor, às vezes com uma obrigação de ter ideias maravilhosas, ou revolucionárias, ou inovadoras, logo no primeiro intento. Primeiro é preciso começar o exercício de compor.

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Lembro de uma grande bailarina espanhola, Carmen Amaya, que, segundo dizem, nunca estudou dança e mesmo assim foi uma das maiores bailarinas de flamenco da história. Ela vinha de uma tribo de ciganos e quando se hospedava em hotéis, sempre luxuosíssimos, pois era uma estrela, ela e sua família não tinham a menor compostura, comiam no chão, sujavam tudo. Claro, eram ciganos... Mas bastava que ela começasse a dançar, quando arrancava os sapatos, que já fazia parte do show, para que tudo parasse para assisti-la. Casos de talentos como esse são raros. Mais comum é que esse talento seja desenvolvido através de estímulos, que podem estar nesse curso que ministro, mas que é o próprio exercício do ofício. Lembro de Kylián, quando demos uma entrevista na Suíça, dizendo assim: Depois de trabalhar muito, a gente consegue dois ou três segundos de beleza e muita dor física, e damos graças a Deus. E ele podia dizer isso com a boca cheia. Ele conhece profundamente o que está dizendo. E, nessas conversas, sempre digo: Primeiro, não pense em inovar e ser bom. Segundo, nem tente não ser ridículo. Se você, nos ensaios, ou na composição, tenta o tempo inteiro se esquivar da possibilidade de ser

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ridículo, certamente o será no palco. Assim, é melhor que o seja aqui. Adoro conversar sobre essas coisas. *** No novo ano, segui coreografando. A pedido, fiz um solo curto para Lilia Shaw, uma bailarina do Balé da Cidade de São Paulo, que hoje integra a Companhia 2. O solo se chamava Principia, e era feito nas pontas. Para o bailarino Fernando Martins, do grupo de Beth Dorça, fiz outro solo, Tonada de Luna Llena, com música latino--americana cantada por Caetano Veloso. Esse solo ficou bem conhecido, porque esse rapaz era extremamente talentoso. Outro solo, agora sobre um tango bem tradicional argentino, La yumba, fiz para André Portasio, um bailarino do interior de São Paulo, muito bonito, que reside em Londres.

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Novamente, com o Grupo Vacilou Dançou, da Carlota Portella, fiz Chacona, com música de Bach. Mais tarde, em 2000, usaria esse mesmo trabalho para o espetáculo que o Ismael Guiser organizou sobre os 500 anos do descobrimento do Brasil, com partes coreografadas por ele, por Ivonice Satie, Rogério Maia e por mim. A diferença era que usei uma introdução com gravações autênticas dos índios do Xingu cantando, que se misturavam com a chacona, e depois vinha ainda a Valsa da dor de Villa-Lobos. Isso tudo tinha uma razão. A chacona é, curiosamente, de origem americana, provavelmente nascida no México. Em seu primórdio, era de caráter jocoso, era cantada e as letras eram

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picarescas. Bem, a chacona atravessou o oceano, entrou na Europa, sobretudo na Espanha e na França, e com isso foi mudando um pouco seu caráter. Rapidamente, vários compositores começaram a compor obras sob sua influência, como Bach, quando ela chegou também à Alemanha. Sua composição é de uma profundidade e de uma serenidade dilacerantes. O solo de violino é puro virtuosismo.

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Aí, ouço a Valsa da dor, de Villa-Lobos, compositor brasileiro. A valsa nasce na região da Áustria e da Alemanha. A palavra valsa, waltzer, em alemão, vem do verbo wälzen, cujo significado é girar, dar voltas. Essa ideia de girar era extremamente alegre, quase como uma maneira de perder os sentidos: as valsas vienenses, naqueles salões, verdadeiras caixas espelhadas, iluminadas a vela, com rapé para cheirar, champanhe, e os casais girando em velocidade... o que é isso? Essa valsa atravessa o oceano e chega à América. Villa-Lobos compõe a Valsa da dor, uma das obras mais dolorosas que já ouvi. Então, me perguntei: O que existia nesse oceano que transformava tanto estas coisas? Essa era a indagação. Assim, fiz uma travessia dos bailarinos, a partir de uma moldura quadrada feita de luz. Era bonito porque a estreia foi no Teatro Villa-Lobos e se podia ver de cima e captar a ideia de travessia que eu estava propondo. E os bailarinos da Carlota fizeram muito bem o que solicitei a eles, porque entenderam o que eu estava trazendo para a discussão coreográfica.

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Com o Balé Teatro Castro Alves, fiz Ponto Vitral, ainda em 1998. A trilha foi especialmente composta pelo maestro Gil Jardim, excelente maestro, regente e compositor de primeiríssima qualidade. Mais uma vez, quis estudar um pouco sobre o que estava propondo como material coreográfico: o ponto vitral, ou o ponto do vidro. O vidro é um material que não é sólido e nem líquido: seu estado se chama estado vitroso. E sobre esse estado decidi fazer a pesquisa. O irmão do Nelson Pereira dos Santos, José Pereira dos Santos, nos levou para conhecer fábricas de vidro, pois ele havia trabalhado muito tempo com vidro artesanal. Fiquei extremamente emocionado, sobretudo nessas fábricas que produzem vidro em grande escala, mas que também fazem coisas artesanais. Uma delas construiu peças especiais para nossa música, como um pau de chuva feito de cristal, com gotas também de cristal por dentro, para fazer aquele barulho. E alguns outros instrumentos de percussão foram feitos de vidro, para compor a cena. E, para isso, mandou-se construir tudo de cristal trazido da Alemanha, de empresas que trabalham com instrumentos de precisão para medicina. Um requinte.

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A trilha era requintada também. Milton Nascimento e Celine Imbert, por exemplo, cantavam algumas canções e a percussão era de Naná Vasconcelos. E eles gravaram tudo com esses instrumentos de cristal. Em cena, um dos bailarinos dançava com aquele pau de chuva especialmente construído, sempre com muito

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Ballet do Teatro Castro Alves: Ponto Vitral, de Luis Arrieta

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Com o pau de chuva feito de cristal

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cuidado porque poderia quebrar com qualquer pequeno golpe. Aliás, uma vez, quebrou. E aí soldaram com o próprio fogo, algo tão poderoso que derrete e se cobre de novo. Mas uma imagem em particular ficou em minha mente, quando fomos visitar essas fábricas: um homem de aparência tosca, muito suado por causa da alta temperatura, começou a assoprar aquilo e sua mão imensa fez uma taça de cristal de uma delicadeza impressionante. Aliás, a prática é impressionante, porque só se tem um tempo exato, quando se passa de uma temperatura para outra, o que dura alguns poucos segundos. Aquilo era movimento. E, a meu ver, era dança. 360

Nas canções, poemas de Adélia Prado, além das fantásticas improvisações ao piano de André Mehmari. Os figurinos também foram algo especial. Na verdade, eu já vinha namorando o trabalho dele há muito tempo. Quando me reuni com o Antonio Cardoso, para discutir sobre os figurinos, nós dois abrimos juntos a boca para falar exatamente o mesmo nome: Lino Villaventura, estilista de Fortaleza, que tem base em São Paulo. Sempre achei as roupas dele extremamente teatrais e depois soube que ele havia trabalhado com teatro e cinema. Cheguei inclusive a ir a alguns de seus desfiles e achava aquelas roupas lindas. Lembro que fomos com muito receio conversar com ele, sobretudo no que concernia ao aspecto financeiro. E ele fez com que tudo fosse possível, fosse realizável. Entendeu exatamente até onde o Balé Teatro Castro Alves poderia ir e, depois

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de um tempo, chegou com tudo feito, tudo pronto. Um criador de primeira. Com o Grupo Núcleo Artístico, da Marjorie, coreografei um duo chamado Senhor, meu senhor, com música de Bach, misturada com música africana. Isso seria o começo de um trabalho que eu desenvolveria no ano seguinte, para o mesmo grupo, e que terminou se chamando Aparecida, mais longo, com mais de uma hora de duração. O Balé da Cidade, então sob a direção do diretor teatral José Possi Neto, continuava apresentando obras minhas em turnês pela Europa, da mesma maneira que o Balé Teatro Castro Alves se apresentava levando meus trabalhos, sobretudo Noch einmal e Berimbau, para a Europa e para Nova York. Uma das críticas de dança mais famosas do mundo, Anna Kisselgoff, do The New York Times (30/07/1998), se manifestou: Luis Arrieta, argentino, criou dois trabalhos contrastantes para o programa. O título de Noch Einmal se refere a um símbolo rodoviário. A peça mostra dançarinos que, repetidas vezes, parecem sugados para um lado do palco e forçados a voltar à sua origem sob o som do Concerto para Violino e Orquestra de Philip Glass. O trabalho é dramático e pleno de vida, não um mero exercício minimalista. A imagem predominante é de uma comunidade atraída pela luz que sai das coxias à esquerda do palco e que é sempre obrigada a recuar. Como uma cidade hipnotizada por um vulcão em erupção, que sugere a ira dos deuses ancestrais, o grupo algumas vezes congela seus movimentos antes de retornar ao tumulto da dança. O movimento é

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ativo, cheio de rolamentos, saltos e giros. O final é altamente eficaz, quando um homem nu emerge de uma pilha de confete em um caminho separado da plateia por um painel de plástico transparente. Ele avança em câmara lenta e encontra sua Eva que se despe e caminha enfeitiçada para ele, entrando num reino que outros não puderam. A coreografia tem uma ressonância mítica, uma imagem da humanidade fazendo perguntas sobre os mistérios da vida. Sr. Arrieta deixa espaço para interpretações variadas, mas permanece no controle de uma estrutura firme, que reflete a repetição da música, a onda final que desemboca na terra e também o lirismo do segundo movimento. Na peça Berimbau, sem um roteiro específico e baseada no instrumento de corda usado na música de Naná Vasconcelos e Egberto Gismonti, o Sr. Arrieta apresenta sete homens que, começando com os joelhos dobrados e fechados, oferecem uma performance cheia de energia. Nesse ano ainda remontei mais uma vez Tempo de tango para o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Dessa vez, aconteceram dois fatos interessantes para mim: no mesmo programa estava Magnificat, de Oscar Aaiz, que a companhia já havia dançado anos atrás; e minha irmã Pochi e seu marido Jacinto, de viagem para Buenos Aires, ficaram alguns dias comigo no Rio. Conversaram muito com Ana Botafogo, que adoraram, e em companhia de Renée Wells, fizemos um belo passeio ao Pão de Açúcar, um lugar que eu já tinha levado meus pais há muitos anos, e que sei que provoca em todos um deslumbramento indescritível. Pochi e Jacinto estavam especialmente

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felizes. Maduros e jovens. Essa seria a ultima vez que veria meu cunhado. *** Ainda em 1998, Ismael foi convidado para fazer um espetáculo para participar das comemorações do quarto centenário de São Paulo. Resolve, então, fazer Memória 400/44, que se referia claramente ao Ballet do IV Centenário. Desta vez, ele me convidou para que participasse dançando. E deveria ser, nada menos que representando o papel de Aurel von Milloss, coreógrafo e diretor húngaro, responsável pelas montagens da histórica companhia de balé paulistana. 363

Construí aquele personagem a partir das conversas com Ismael, que havia trabalhado diretamente com Milloss. Busquei complementar com dados em fotografias, em registros como programas e cartazes. Mas era Ismael quem me dava o tom mais exato. Afinal, sua vinda ao Brasil foi respondendo ao convite de Milloss, depois de ter trabalhado com ele na Itália. Ismael veio como solista, por um período muito curto, lamentavelmente. Mas extremamente rico. E, segundo me contava Ismael, o que o Milloss carecia de um certo ofício do movimento, sobrava em cultura e riqueza de informação. Ele era um diretor de espetáculo, mais do que especificamente um coreógrafo. Na tentativa de parecer minimamente com o personagem, eu dançava usando lentes de contato brancas,

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porque diziam que ele tinha olhos azuis claros. A estreia foi no Sesc Belenzinho. Lembro de algumas senhoras que haviam sido bailarinas do VI Centenário e que, quando o espetáculo terminou, vieram me abraçar, extremamente emocionadas. Elas me diziam: Eu vi o Milloss hoje aqui. Fiquei um pouco assustado com aquilo. Mas satisfeito também. Foi um espetáculo que gostei muito de fazer. Eu já havia dançado algumas coisas de Ismael, sobretudo em espetáculos de sua escola. Uma vez ele coreografou uma canção de Wagner chamada Träumen, que eu dançava com Ana Maria Mondini. Adorava fazer aquilo. Primeiro porque a música era belíssima e segundo porque a Ana era tão linda... E terceiro por causa de meu amigo Ismael. 364

*** O maestro Gil Jardim fez um espetáculo no Sesc Pompeia, que se chamava Café com leite, abordando musicalmente o período histórico que ficou conhecido como período café com leite, envolvendo São Paulo e Minas Gerais. Já estávamos em 1999. As músicas eram maravilhosas. E iam desde Inezita Barroso, Cesar Camargo Mariano, até Arnaldo Antunes. Todos, à sua maneira, refazendo os temas daquela época. A direção ficou a cargo de Márcio Aurélio e fiquei incumbido de fazer as coreografias. Chamei três bailarinos, Luis Ribeiro, que havia sido bailarino do Ismael, da Cisne Negro Cia. de Dança e hoje é professor da Escola Municipal de Bailado

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de São Paulo e um dos pianistas mais capacitados e sensíveis para acompanhamento de aulas que conheço, Beth Risoléu e Luciana Porta. Enquanto eles dançavam, o grupo Uakti tocava. O espetáculo era belíssimo. Aliás, todos os trabalhos com o maestro Jardim foram sempre muito interessantes, pois eram de um requinte musical fantástico. Coreografei também pequenas peças, dedicadas especialmente aos bailarinos para quem criava. Para Daniela Steck, que era do grupo de Ismael e Cladimir Kaminsky, fiz Clair de lune, de Debussy. Para a bailarina Simone Pietro, fiz um outro tema daquele CD do Caetano Veloso cantando em espanhol, chamado La golondrina, quase um hino mexicano de meados do século 19. Para Jhean Allex, do Raça, fiz Principia H, e essa letra H diferenciava do Principia que eu já havia feito para Lilia Shaw. Também para o grupo da Roseli Rodrigues, fiz um pequeno duo chamado Valse, música do Paulo Jobim.

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Nesse ano de 1999, Ivonice Satie, que assumia novamente o posto de diretora do Balé da Cidade, criou a Companhia 2, iniciativa que achei maravilhosa. A ideia era reunir os bailarinos mais maduros da companhia, para que trabalhos fossem criados especialmente para eles. Algo no sentido que Kylián havia feito no Nederlands, na Holanda. No início, não sei se todos compreenderam bem a proposta. Possivelmente alguns ficaram sentindo que estavam sendo chamados de velhos. Depois entenderam o sentido de tudo e embarcaram na proposta.

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Ivonice propôs uma criação quase no fim do ano, e convidou a mim, Henrique Rodovalho, Anselmo Zolla e o coreógrafo alemão Olaf Schmidt. Fiz Spreading, que escolhi para remontar. Era um solo que eu dançava, e que naquela ocasião foi feito por Maurício Martins ou pela Lumena Macedo, que se revezavam. Usei uma música africana, Kutambarara. E o figurino era uma batina, porque queria fazer uma citação de algo totalmente ecumênico. Na cabeça, era usado um casquete. Esse figurino, mesmo sendo tão simples, tinha história.

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A batina usada era de padre mesmo. Eu havia ganhado de minha amiga Sonia Cavalcanti. A família dela tinha uma pequena chácara em São Paulo, e num determinado momento decidiu vendê-la. Essa chácara tinha uma pequena capela. Ao se desfazer de tudo, Sonia consultou um padre para saber o que deveria fazer com as coisas dessa capela. Ele, então, orientou que ela podia ficar com todos os objetos, que não haveria problema nisso. A única coisa que ele deveria fazer era retirar a pedra ungida com óleo que estava embaixo do altar. E disso sobraram, por exemplo, as batinas, todas rendadas, lindas, que acabaram ficando comigo. Na coreografia, uso essa batina como se fosse uma peneira. Com o uso de uns confetes, compus movimentos desenhando todo um espaço circular, que indiciavam o gesto de semear, remetendo ao título da peça. E o casquete era todo bordado à mão, em pedrarias e lantejoulas, pelo próprio Ismael Guiser, na época em que ele fazia os shows da Rhodia. Ele deveria ori-

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ginalmente nos remeter ao Charleston, mas acabou virando um casquete de orixá, porque cobria os olhos. Mais ecumênico, impossível. Tinha que se dançar praticamente cego, porque as continhas brilhavam com a luz que incidia sobre elas. Nesse ano, o Sesc Pinheiros fez um evento que se chamava São Paulo Dança Moderna, organizado por Cassia Navas e Marize Mathias. Numa das palestras, Ismael Guiser era homenageado e foi feita uma entrevista com ele, num teatro muito pequeno, para poucas pessoas. Me apresentei com Ave Maria. E fechei o ano homenageando um amigo. *** No início do ano 2000, passei por uma experiência muito difícil. Fiquei internado em estado muito grave por mais de um mês. Voltei para casa muito debilitado ainda, em grande depressão.

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Num ímpeto de me fazer sair daquele estado, minha amiga Ivonice, sempre muito antenada em mim, sempre muito solidária, teve uma atitude que só um artista poderia ter em relação a outro artista: me propôs trabalhar! Foi fantástico. Foi uma redenção. Ela me disse: Luis, preciso que você venha fazer um trabalho com a Companhia 2. Não se preocupe com a estreia. Vá fazendo no seu tempo e vá aos ensaios apenas nos dias que você puder. E quando se sentir mal, vá embora. Só me avise um pouquinho antes para poder organizar o ensaio da companhia de outro jeito. Quando a gente achar que está pronto, a gente estreia. Combinado?

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Eu poderia negar? Eu poderia negar esse pedido que iria me salvar? Jamais. Era uma questão de sobrevivência. A arte me colocando novamente no prumo. Um novo prumo. Mas absolutamente vital. Foi muito difícil no início. Afinal, estava trabalhando com um elenco que ainda não tinha superado a recente formação da Companhia 2. Parecia que só Ivonice tinha ali a capacidade da compaixão. Fiz um trabalho que gosto muito, chamado No porão, que foi apresentado no porão do Centro Cultural São Paulo, um lugar horrível, sujo. Fizemos dele um espaço lindo: 900 metros quadrados só para se dançar. Em cena, apenas oito bailarinos. 368

Era um mergulho em meus porões. E os artistas envolvidos entenderam a gravidade disso. E me ajudaram fazendo o melhor que eles podiam. Usei música gravada e música tocada ao vivo, por um trio: piano, percussão e cello, sob a regência de Gil Jardim. Dos bailarinos, apenas um eu não conhecia, Miguel Angel Cragnolini, argentino que estava passando um ano por aqui, amigo de Ivonice, que haviam se conhecido em Genebra, e hoje mora na Itália. Todos os outros eram meus velhos conhecidos: Andréa Maia, Armando Aurich, Áurea Ferreira, Beth Risoléu, Lilia Shaw, Maurício Martins e Paulo Goulart Filho. Naquela época, Olaf Schmidt estava dando aulas para o Balé da Cidade. Na primeira apresentação, Armando Aurich se machucou. Como Olaf havia ficado sentado num canto da sala por muitos ensaios durante a montagem, incorporou-se rapidamente e

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sem atrito ao elenco. Eram bailarinos todos da mesma faixa etária, mas, principalmente, com experiências e histórias próximas, o que acabou concedendo uma unidade ao trabalho. A cena era toda construída sem uma frente definida. O público, de não mais de 200 pessoas, ficava colocado em todos os cantos, em pequenas arquibancadas especialmente montadas. Esse foi um trabalho que gostei muito de fazer e que me ajudou a superar aquele momento tão difícil. E escrevi no programa: Debaixo desta casa presente habita um subsolo eterno. Espaço de memórias e de raízes. O tempo me fatiga o voo E me lança a um cansaço Que me lança à terra Que me abraça e me absorve e me submerge Jazo sobre a grama de um jardim que cai sem fim na noite subconsciente. Porão, ventre, canto. Sob o piso, o tapete de dança, a roupa e os sapatos. Quarto úmido abismado na alma. Catedral submersa. Cofre enterrado. É a sesta, a manhã ou a tarde. Sempre será porão. Casa de cegos que revela olhos mais subterrâneos em mim… Habitam-no ecos de passos e o canto de um pássaro sem voo.

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Velas piedosas povoam-no de sombras, mais escuras e profundas ainda. Monstros, dores e raivas se arrastam por seu piso e golpeiam seus pilares. Aqui – sopa de escuridões – gera-se o impulso da vida Que farejando como um cão Busca a migalha de luz Que goteja por uma rachadura. Aqui, eu me encontro e me resgato. Recobro a vida. E quiçá o amor.

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Ana Francisca Ponzio escreveu para a Folha de S. Paulo (10/11/2000): Nesta sua mais recente criação, Arrieta faz de um palco incomum, montado nos porões do CCSP, um dos atrativos do espetáculo. Lidando inventivamente com os limites do espaço cênico, interrompido por arestas e colunas, o coreógrafo promove um jogo que revela e esconde imagens. Como sempre, Arrieta tira partido de dois pontos fortes de suas criações – o lirismo e a fantasia. Escapando das articulações lógicas, ele compõe cenas afinadas com estados interiores, interpretadas por personagens que parecem emergir de espaços recônditos da imaginação. Decidi, então, que o melhor mesmo era me lançar com todas as forças ao trabalho. E, assim, nesse mesmo ano, fui para Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, conhecer uma companhia com quem eu nunca havia trabalhado, a Ginga Cia. de Dança, dirigida por Renata Leoni e Chico Neller.

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A partir de um personagem muito especial na cultura deles, concebi um trabalho chamado Conceição de todos os Bugres. Conceição Freitas da Silva, uma senhora de família muito simples da cidade, teve um sonho determinante: a mistura dos povos, índios, brancos e negros, se transformando em bugrinhos, que nasciam da raiz da mandioca. Na verdade, esses bugres representavam o caráter miscigenado dos mato-grossenses-do-sul. Nesse sonho, havia a determinação que ela começasse a esculpir esses bugrinhos. E era explicado o modo exato de como fazê-los: como escolher a madeira e de onde tirar a cera das abelhas. A partir de então, Conceição dedicou toda a sua vida a essa atividade, que passou a ser sua profissão. Com isso, criou seus filhos. E o bugre se tornou um símbolo artesanal de Campo Grande. Hoje, eles são feitos em muitos tamanhos diferentes, e de diversas maneiras por seus netos. A repercussão é tanta que esses bugres já estiveram em várias exposições pelo mundo. Não cheguei a conhecê-la. Infelizmente, ela já havia falecido. Mas fui à sua casa e falei com seus filhos.

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Fizemos, então, Conceição de todos os Bugres, misturando músicas de Marlui Miranda com Bach. Em cena, 14 bailarinos. Entre eles, Beatriz de Almeida, linda bailarina que vinha de uma carreira internacional sólida. Uma experiência muito interessante. Nas apresentações, muita gente se aproximava dizendo que pressentia a presença de Conceição. Tinha relato de gente que afirmava tê-la visto atravessando o palco. Depois fiquei sabendo que ela era espírita. Seguramente, devia estar mesmo andando por ali.

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Em 2001, fiz meu primeiro trabalho com a dupla Ana Botafogo e a pianista Lilian Barretto. Dividindo comigo a tarefa da coreografia, estavam Heron Nobre e Renato Vieira, e a direção ficou a cargo de Cláudio Botelho. O espetáculo se chamava Três momentos do Amor, e contava com os bailarinos Joseny Coutinho e Bruno Cezário, mais tarde substituído por Edyfrank Alves, todos do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Fui também convidado a trabalhar com a Companhia Jovem de Ballet do Rio de Janeiro, dirigida por Dalal Achcar e Mariza Estrella. Muitos deles eram menores de idade, verdadeiros talentos em estado de potência. Hoje em dia muitos desses bailarinos estão fazendo ótimos trabalhos por diversas companhias do país. 372

A coreografia era Um longo e sinuoso caminho. A música era uma versão barroca dos Beatles pelo arranjador Peter Breiner, que resultou no CD Beatles Go Baroque. John Lennon e Paul McCartney apareciam, então, no estilo de Bach, Haendel e Vivaldi. Os figurinos eram de Rosa Magalhães. Lembro que quando apresentei a música para os bailarinos sabia que, para muitos, tratava-se de uma primeira apresentação mesmo, já que não tinham nunca ouvido alguma coisa dos Beatles. Eles tinham 14 ou 15 anos, e eu falava de uma música da década de 1960, do tempo dos pais ou até dos avós deles. Alguns deles começaram a ouvir aquela música e ficaram encantados. E isso foi estimulante para mim e para eles.

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Esta também foi uma oportunidade de trabalhar com Maria Angélica Fiorani, que eu já conhecia dos festivais, nada além disso. Ela é uma argentina, que estudou e dançou no Ballet do Teatro Colón e que hoje vive no Rio de Janeiro, dando aulas no Centro de Dança Rio. Sem dúvida nenhuma, trata-se de uma das melhores professoras atualmente no Brasil. Trabalhar com ela foi um prazer. A energia dela e o modo como ela conseguiu cuidar do meu trabalho, sempre com muito entusiasmo, foram gratificantes. Outra nova companhia pública acabava de se formar no país: o Corpo de Dança do Amazonas. Quem assumiu a direção foi Jofre Santos, que eu conhecia do Ballet Stagium e depois do Teatro Castro Alves. Ele já havia dançado alguns dos meus trabalhos, como Noch einmal, Mandala e Orixá. Ao assumir, ele me chamou para montar Mandala com a companhia, que era formada praticamente por bailarinos de lá.

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Chamei novamente Afonso César para fazer os figurinos, e optamos por fazê-los diferentes dos originais. Cada uma das saias era num modelo especial, com desenhos inspirados na cúpula do Teatro Amazonas, que imitava escamas dos peixes. Um dia, me levaram para conhecer esse belíssimo teatro por dentro, e pude observar de perto aquelas escamas, num formato retangular com uma parte arredondada, superpostas umas as outras. São peças feitas na Europa e trazidas para cá, como, aliás, quase tudo no teatro.

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Nosso trabalho coreográfico não foi dos mais fáceis. Mandala era uma obra difícil para uma companhia que estava iniciando. Mas eles entenderam que deveriam defender aquilo com unhas e dentes e o resultado acabou ficando muito bom. Acredito que foi o grande salto da companhia para o profissionalismo.

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De Manaus direto para Belo Horizonte. Fiz a versão completa de Aparecida para o Camaleão Grupo de Dança, dirigido por Marjorie Quast. O crítico da cidade, Marcello Castilho Avellar, escreveu para O Estado de Minas (21/05/2001): “Em Aparecida, Arrieta explora os seus próprios limites. O coreógrafo argentino radicado no Brasil trabalha, essencialmente, sobre bases clássicas. É um verdadeiro mestre das coreografias de influência neoclássica, propondo frequentemente uma leitura latino-americana da criação de Balanchine e discípulos. Pensa o corpo de seus bailarinos à maneira balanchiniana, acrescentando à influência dois toques pessoais: paixão de intensidade raramente encontrada no papa do neoclassicismo, e conceito contemporâneo de relações no espaço que se contrapõe à visão moderna que marca a encenação balanchiniana. Aparecida desafia os limites de Arrieta porque exige dele a proposição de estruturas corporais que fogem radicalmente da base clássica em que quase sempre se apoia. O desafio é enfrentado de maneira magistral.” *** No fim de 2001, comecei os contatos com o Balé Teatro Guaíra, para fazer uma nova versão de O

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Grande Circo Místico, a convite de Suzana Braga, que estava dirigindo a companhia. Ao meu lado, estaria Rosa Magalhães assinando os cenários e os figurinos, e Joyce Drummond, a iluminação. Na verdade, comemorava-se 20 anos da versão original, reunindo Edu Lobo e Chico Buarque na trilha, Naum Alves no roteiro e Carlos Trincheiras na coreografia. Era, sem dúvida, uma experiência importante para todos, porque muitos deles tinham participado dessa primeira versão. Dani Lima, coreógrafa carioca, ensinou a técnica das partes aéreas da coreografia, usando cordas, tecidos e aros, que os bailarinos aprenderam rapidamente, com ótimo resultado. Edu Lobo fez também novas passagens musicais, a partir das necessidades da minha concepção. Aliás, gostei muito de conhecê-lo. Ele entendia rapidamente o que eu propunha e criava a partir do tema original. E todo o balé apresenta uma história muito especial que quase não é uma história, mas uma sucessão genealógica de circunstâncias. A estreia foi no ano seguinte e, daí em diante, a companhia viajou muito apresentando esse espetáculo.

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Durante muito tempo, recebi cartas, cartões, e-mails, bilhetes, de muitas pessoas do Brasil todo, onde ia sendo encenado o Circo. Cada um me contava sua experiência ao assisti-lo, o que me fazia muito bem. Não estava mais só. Um dia, no final de um espetáculo em que eu estava presente, cumprimentando as pessoas na saída dos artistas do teatro, uma pessoa deu-me um abraço, um beijo, e disse assim, brincando: Você faz tudo isso para ganhar muitos abraços e beijos.

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A equipe do Grande Circo Místico: Dani Lima, Edu Lobo, Luís Arrieta, Luiz Stein, Mauro Zanata, Naum Alves de Souza e Rosa Magalhães

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Fiquei pensando a noite nessas palavras. Senti-me quase descoberto. Preciso dizer que a presença da Rosa foi fundamental para mim. Ela vinha com retalhos de tecidos, expunha cores, texturas, tudo em uma infinita variedade para se escolher. Mas o que mais me encantava era a disponibilidade dela para entrar na viagem que eu estava propondo. Só uma pessoa extremamente criadora tem a facilidade e a segurança de se entregar à proposta de alguém. Nessa época, ela estava programando sua mudança de um apartamento muito bonito no Rio de Janeiro, grande, antigo e, como acontece com todo cenógrafo, também cheio de coisas. Estava procurando um novo lugar para morar, algo ainda maior, talvez uma cobertura. Ao visitar uma dessas coberturas, lá de cima avistou, espremida entre dois prédios, uma casa grande, bastante deteriorada, e bem escondida. Ficou tão encantada que acabou comprando essa casa, consertando um pouco e se mudando para lá. O curioso foi que, na hora de assinar a escritura, ela descobriu que o primeiro proprietário daquela casa havia sido o Oscarito. E ficou felicíssima com isso. E eu dizia a ela: Rosa, só podia ser mesmo para você essa casa.

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*** Em 2003, tive a oportunidade muito agradável de fazer um solo para uma bailarina daqui de São Paulo, Ruth Rachou, um nome importante da dança moderna, e que naquele momento já era uma senhora.

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Fiz um trabalho curto, de oito minutos, A Promessa. Trabalhamos sobre uma milonga argentina, muito antiga, chamada Milonga triste, numa releitura feita pelo genial Astor Piazzolla. Eu havia conhecido a Ruth quando cheguei a São Paulo. Naquela época, queria fazer um pouquinho de aula fora da companhia, fazer um pouco de técnica moderna de Martha Graham e ela era um dos principais nomes dessa vertente. Como não tinha dinheiro, ela sempre me abriu as portas de sua academia de forma muito generosa. Depois de tanto tempo, a gente se reencontrava, agora numa nova relação, de coreógrafo e bailarina. Esse encontro foi uma solicitação dela a Vera Lafer e, então, o Studio 3 patrocinou nosso contato. 378

Nesse mesmo ano, Antonio Cardoso me convidou mais uma vez para fazer um trabalho com a companhia do Teatro Castro Alves. Resolvi fazer um trabalho a partir de Achalai, feito com a Raça Cia. de Dança de São Paulo. Essa nova versão, de uma hora e meia de duração sem intervalo, ganhou também um outro título, Uaikuru, uma palavra quíchua, que significa índio. A proposta cênica era nova para a companhia. O público ficava no palco também, em arquibancadas, que formavam uma semiarena, deixando apenas o lado que dava para a plateia vazio. Aquele teatro enorme permitia esse tipo de coisa. O trabalho começava com os bailarinos sentados com o público, nessas arquibancadas, vestidos como pessoas comuns. Aos poucos, vão invadindo o palco, dançando e

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despindo-se. E descobrindo a origem uaikuru deles. E terminam com os corpos nus, pintados de muitas cores, parecendo deuses indianos. Movimentar-me como índio era quase como voltar às minhas danças da infância. E eu me sentia à vontade nesse universo. Antonio Cardoso, também excelente fotógrafo, fez todo um trabalho muito interessante com fotografias de diversos materiais, como sementes, gramas, flores, pétalas, folhas, algas, conchas, pedaços de cascalhos de areia, sempre recuperando diversas texturas de natureza. Essas imagens eram projetadas sobre o chão, pois o público via de cima da arquibancada. Aliás, o público estava muito perto dos bailarinos, em contato quase direto com eles. E à medida que eles iam se despindo e tornando-se índios, as imagens iam se tornando paralelepípedos, asfaltos, sinais de trânsito.

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No programa, Antonio comentava: ... Ao fotografar a companhia de dentro do palco, percebi como era rico assistir a um espetáculo estando bem próximo aos bailarinos, vendo e sentindo suas emoções com maior intimidade. Me dei conta quanto se perde de detalhes ao assistir espetáculos em grandes teatros, especialmente em obras mais íntimas. Na mesma época li um texto de Peter Brook falando desta proximidade e da importância do ator ver e sentir o público. Decidi, então, partilhar com vocês estas experiências. O trabalho, com música de Marlui Miranda, tinha mixagem de canções de Mercedes Sosa, além de música ao vivo, mais uma vez dirigida por Gil Jardim, com excelentes músicos de Salvador.

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Ballet do Teatro Castro Alves: Uaikuru, de Luis Arrieta

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Ballet do Teatro Castro Alves: Uaikuru, de Luis Arrieta

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O espetáculo terminava com os bailarinos atravessando a quarta parede, dançando pelas poltronas do teatro, até que se sentavam e, durante um bom tempo, já sem a música, eles ficavam assistindo ao público que havia ficado no palco. Foi um prazer todo o tempo de montagem. Eu não queria mais que ele terminasse. Além de um elenco muito envolvido, contava com duas assistentes de primeira: Lílian Pereira, que dançou quase tudo que montei na companhia, e Simonne Rorato, possivelmente a mais envolvida colaboradora que tive. Em 2004, Anselmo Zolla do Studio 3, me convidou para fazer algo para Daniela Stasi, hoje assistente da São Paulo Companhia de Dança, além de excelente professora da técnica de Martha Graham já que dançou por muito tempo na companhia dela em Nova York. Fiz um solo com a dança russa do balé O lago dos cisnes, que ela fez belissimamente.

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Pouco depois, Roberto Lima, do Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro e também diretor da Companhia de Ballet da Cidade de Niterói, entrou em contato comigo para me propor que eu fizesse minha versão da obra Carmen para eles, seguindo uma sugestão da mestra Eugenia Feodorova sobre a obra. Muitas vezes recebo convites para fazer trabalhos cuja ideia eu proponho. Mas, às vezes, recebo também convites com uma ideia já estabelecida. Algumas vezes são dicas, como as de Hulda Bittencourt, da Cisne Negro Cia. de Dança, quando fiz Do homem ao

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poeta, que desejava um trabalho que ninguém saísse do palco, e que pudesse ser levado facilmente para todos os lugares. Ou deseja-se um trabalho para abrir um espetáculo. Ou um trabalho para fechar. Ou um trabalho curto, ou só para tais solistas. Com temas previamente definidos, ou com a trilha já composta, ou que ainda não foi composta, ou já tem o roteiro, ou uma nova versão de algo que já existe, enfim, uma variedade imensa. E sempre achei isso muito rico. São pontos de partida diferentes. E o interessante é que acabo sempre encontrando uma maneira de me apaixonar por aquilo. Porque me é impossível criar sem me apaixonar. Às vezes acredita-se que só podemos nos apaixonar por uma ideia que seja nossa. Isso não é verdade. E desse modo também aprendo coisas que nem tinha pensado em aprender e me lanço a um universo praticamente novo para mim. Desta vez, a proposta era fazer Carmen, e tive que me apaixonar por esse projeto, o que não foi algo difícil de acontecer. Primeiro porque tenho sangue espanhol de meu pai e também porque me criei perto de gente andaluza. Aquilo, de alguma forma, fazia parte de meu universo. Eu conhecia uma versão musical interessante de Carmen já há muitos anos. Tinha até o longplay disso, que tanto apreciava. Na verdade, essa versão era do marido da bailarina russa Maia Plissetskaya, o regente e compositor russo Rodion Shchedrin. Ele selecionou alguns dos momentos mais dançantes da ópera de Bizet, e retrabalhou esses extratos para

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orquestra de cordas e percussão apenas. Nada muito longo. Algo em torno de 40 minutos. O resultado é fantástico. Com interferências de Paulo de Sarasate, Isaac Albéniz e Jacques Brel, minha versão da obra completava uma hora de duração. Decidi apresentar a história de maneira didática. Usei quatro cores muito definidas para marcar cada segmento: o grupo de vermelho era formado por Carmens, os de azul, Dons Josés, as Micaelas, verde, os toureiros, amarelo. Aliás, nessa minha versão não existe toureiro, mas jogadores de futebol, uma ideia que vinha de um filme brasileiro, de Cacá Diegues, Veja essa canção, de 1994. Em um dos quatro episódios, chamado Pisada de elefante, baseado numa canção de Jorge Ben Jor, a história de Carmen é transposta para a realidade dos subúrbios cariocas. O personagem do toureiro, por exemplo, é um jogador de futebol, e isso sempre ficou marcado em minha lembrança.

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Curiosamente, esse espetáculo, apesar de não ter cenas de nu, foi taxado pela própria secretaria de cultura da cidade como inconveniente para menores de 14 anos. Isso era uma novidade para mim, confesso. Mas minha concepção, realização e interpretação do elenco eram de extrema sensualidade, como não poderia ser de outra maneira para essa história. Paralelamente à montagem de Carmen, no mesmo período, Dalal Achcar estava criando o espetáculo Superbacana – Dançando a Tropicália, com sua Companhia Jovem de Ballet que, naquela época, passou a se chamar Cia. Jovem Elpaso de Dança, devido ao

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Cia. De Ballet da Cidade de Niter贸i: Carmen, de Luis Arrieta

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Cia. De Ballet da Cidade de Niterói: Carmen, de Luis Arrieta. Acima, Janete Guenka e abaixo, João Batista, Mariana Mesquita, Luís Kerche e Carla Moita

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Cia. De Ballet da Cidade de Niter贸i: Carmen, de Luis Arrieta

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patrocínio que havia recebido da empresa homônima. Era um trabalho com vários coreógrafos: Carlinhos de Jesus, Ivonice Satie, Renato Vieira, Tíndaro Silvano, a própria Dalal e uma outra moça jovem, Janice Botelho. Cada um coreografou três ou quatro canções. A mim me tocaram quatro: Geleia real, Retreta, Coração e Deus vos salve esta casa santa. A direção ficou a cargo da dupla Cláudio Botelho e Charles Möeller, sempre sob a supervisão geral de Dalal. Eu ficava pela ponte Rio-Niterói, dividido entre habaneras e canções tropicalistas. Fiz esses dois trabalhos tão distintos, mas, ao mesmo tempo, tão prazerosos. Nesse ano também, presenteei o Balé Teatro Castro Alves, com uma peça curta de pouco mais de dez minutos, o trio Sostenuto, com o Concerto no 2 op.18 em dó menor de Rachmaninov, mais precisamente aquele famoso adágio. Depois remontei esse mesmo trio para o grupo Divina Dança.

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Ainda tive tempo para conhecer uma nova companhia nesse ano de 2004, a Companhia de Danças de Diadema, uma cidade do interior paulista. Em seu início, foi dirigida por Ivonice Satie e naquele momento Ana Bottosso estava ocupando o cargo. Para eles, fiz Sala de espera, um trabalho bastante teatral. Tudo se passava numa sala de espera. Mesmo quando as pessoas estão simplesmente sentadas, esperando, existem movimentos gritando dentro de seus corpos. Era como se o espectador tivesse a possibilidade de enxergar esses movimentos, enxergar o que o corpo quer dizer por dentro. Um trabalho lento e difícil.

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Cia. De Danรงas de Diadema: Sala de Espera, de Luis Arrieta. Acima, plano geral e abaixo em destaque Cinthia Nisiyama e Tony Siqueira

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Acima, Fernando Machado e abaixo Thais Lima, Manuela Fadul, Alessandra Fioravanti e Ana Bottosso

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Cia. De Danรงas de Diadema: Sala de Espera, de Luis Arrieta. Acima, Milton Coatti e Manuela Fadul, abaixo, conjunto

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A companhia ensaiava na sala do Teatro Municipal de Diadema que, justamente naquela época, iniciou um processo de reforma. Eles ficaram sem casa para poder trabalhar. Propus, então, que ensaiassem na escola do Ismael Guiser. Na verdade, Ismael sempre abriu as portas de sua escola para todo o mundo, independentemente do estilo de dança. O grupo veio e passou a aproveitar também as aulas de técnica de balé com ele. Interessante que os bailarinos, ao final desse processo, acabaram apaixonados pelo trabalho do Ismael. Algo curioso, porque Ismael tinha um estilo muito acadêmico. Mas os bailarinos perceberam a importância de ter uma estrutura para permitir produzir algo em dança, seja que estrutura fosse e que dança fosse. Resultado: Ismael passou a ser professor da companhia até o momento em que faleceu. Ele ia para Diadema dirigindo seu carro, duas vezes por semana. Confesso que sempre me deixa muito satisfeito a chance de proporcionar esses encontros.

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Nesse mesmo ano, aconteceu um evento chamado Personalidades da Dança no Teatro Municipal de São Paulo, juntando pessoas importantes da área, sobretudo da capital paulista. Me apresentei dançando Milonga del angel com Gustavo Lopes. Em outro evento, Panorama Sesi de Dança, dancei o solo Cisne. Nesse mesmo dia, falei numa pequena conversa com o público sobre a relação homem e dança. Abordei, sobretudo, o fato de um homem da minha idade ainda estar dançando. Foi interessante porque, em seguida, voltei a fazer o Cisne já com roupas de rua, explicando um pouco como era composto o trabalho.

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O fato de eu fazer aula nesta minha idade deixa ainda muita gente impressionada. Perguntam se o faço para manter a forma. E ficam ainda mais desorientadas quando confesso para elas que eu simplesmente gosto de dançar. *** O Studio 3 me convidou novamente para trabalhar com eles. Propus, então, um duo com Ivonice Satie, que criamos juntos. Foi um prazer fazer isso com ela. Chamava-se Conjunção. E já estávamos no ano de 2005.

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Usamos uma música de Olivier Messiaen que eu já havia usado no trabalho No Porão, da Companhia 2 do Balé da Cidade. São músicas recorrentes, que gosto de experimentar em épocas diferentes, sob novos olhares e circunstâncias. Sempre dancei com Ivonice. Desde o princípio, ela sempre esteve presente em minha dança. Quando éramos mais novos, quando éramos bailarinos. Mas também de outras formas, quando éramos assistentes, quando éramos diretores de companhias... enfim, sempre dançamos juntos. E aquela chance que tínhamos era mesmo uma conjunção. Uma conjunção extremamente feliz. Nós dois sempre fomos fanáticos por precisões. Ali, apesar de ser coreografia de nossa autoria, sabíamos exatamente que tal coisa deveria ser em tal momento, em tal lugar e em tal ângulo e não nos permitíamos sair daquilo que havíamos proposto.

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Ao mesmo tempo, sempre tivemos a sensação de que estávamos improvisando. A razão disso era que um corpo estava extremamente amalgamado no outro. Algo raro. Sempre fico feliz quando me lembro desse momento. E não pensava que ia perdê-la tão cedo, apenas três anos mais tarde. Nesse espetáculo, a cada apresentação, convidávamos um bom fotógrafo, que deveria fotografar o duo de cima do palco. Ele deveria nos acompanhar, não o tempo inteiro, mas estar por perto. Em alguns momentos ele se afastaria, ficaria atrás da coxia. Em outros, estaria em cena com a gente. No início, os fotógrafos convidados ficavam tímidos. E nós insistíamos que eles avançassem. Queríamos provocar uma outra situação para eles. Porque mesmo que eles aproximassem a lente com o zoom, não era como estar ali, em cena. E, para nós, funcionava como se fosse uma situação flagrada por aquelas pessoas. E isso nos provocava na questão do movimento, sem dúvida. Para esse projeto, contamos com o apoio da Vera Lafer, que eu havia conhecido há muitos anos, quando fazia aula no Stagium.

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Outro duo que fiz em 2005 foi Felicidade numa flor de campo, para Andrea Pivatto e Alessandro Nascimento, um jovem muito talentoso. Logo em seguida, comecei a me preparar para uma viagem à Alemanha. ***

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Olaf Schmidt, com quem eu já havia estado em alguns momentos, e que inclusive tinha feito uma participação em uma coreografia minha, No porão, mora na pequena e linda cidade de Regensburg, perto de Munique, onde dirige uma companhia. Anualmente, nessa cidade, produziam um evento chamado International Aids-Tanzgala, um encontro de dança para o combate à Aids. Nesse ano, o evento seria dirigido ao Leste Europeu, um dos lugares mais problemáticos do mundo em relação à doença. Esse encontro acontecia em dois locais: num pequeno teatro da cidade e num antigo velódromo, que hoje é uma tenda, onde são apresentados espetáculos inteiros, com uma infraestrutura invejável. 396

Lá, apresentei meu solo, Cisne, e também ensaiei com Olaf para que dançasse comigo minha Milonga del ángel. Cheguei uns três dias antes e ensaiamos. Eu tinha 54 anos e ele deveria ter no máximo 44. Era, como eu, um senhor. Um homem muito bonito, alto, bem alemão, com aqueles maxilares marcados, loiro, forte, enfim, um homem bonito. E um bonito bailarino também. Ficou interessante o duo, agora com os dois senhores. O programa tinha de tudo um pouco, reunindo convidados de várias partes do mundo. De repertório clássico à dança contemporânea. Tudo de muita qualidade. Mas fiquei feliz com um detalhe: após assistirem aos nossos ensaios, os organizadores decidiram por fechar o espetáculo com meu Cisne.

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E realmente foi um estrondo quando acabei de dançar. Recebi uma ovação. Mas o mais curioso ainda estava por vir. Já aqui no Brasil, recebi de Olaf uma crítica sobre o espetáculo. Era assim: Um especial ‘highlight’ foi o pas-de-deux Milonga del ángel, com Olaf Schmidt e Luis Arrieta, que o diretor do Ballet de Regensburg e a estrela argentino-brasileira dançaram sobre música de Astor Piazzolla. A peça, de uma incrível simplicidade e ao mesmo tempo fortemente convincente, nos faz esquecer num só golpe todas as figuras maneiristas e convencionais. Há apenas uma semana atrás, o Vaticano classificou outra vez a homossexualidade como perigosa aberração da natureza. No sábado, foi apresentado para os moradores da cidade natal do papa quanto incrivelmente bela essa perigosa aberração pode ser.

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O autor do texto, publicado no jornal MZ Regensburg (20/11/2005) era Florian Sendtner. Não pude deixar de achar essa pequena polêmica no mínimo saborosa. Eu e o papa, confrontados. Mesmo que meu duo não representasse, de forma alguma, uma relação homoafetiva. *** No ano seguinte, 2006, fui agraciado com o Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna, uma novidade para mim. Não estava acostumado a apresentar projetos em editais de dança, porque eles dão um trabalho enorme de papéis e documentos que nem sempre estou disposto a enfrentar.

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Na verdade, aquela era a terceira vez que eu ganhava algo semelhante. A primeira havia sido a Bolsa Vitae. Depois recebi uma bolsa da Rede Stagium, então dirigida por Cássia Navas, com o projeto de coreografar o Carnaval dos animais. A intenção era iniciar os ensaios em 1999, para me apresentar em 2000. Mas devido ao processo difícil pelo qual passei, o projeto acabou não vingando. Então, com esse Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna, fiz questão de acabar o que havia começado com o Carnaval dos animais. Era uma dívida que eu tinha e que queria saldar, sobretudo com Cássia, que soube tão bem compreender a situação que eu atravessara na época. 398

Além desse trabalho, fiz um espetáculo inteiro chamado L. A. Dança, um trocadilho que me parecia evidente, que recuperava as iniciais do meu nome e, também, sonoramente, dava o sentido do artigo feminino da língua espanhola. Infelizmente, poucas pessoas entenderam isso. Achei que ia ser óbvio, mas não foi. Quando ficou pronto, apresentei no Teatro Sesc Anchieta, um teatro que simplesmente adoro. Era novembro de 2006. Dançava durante uma hora sem parar. Mesclei coisas que já tinha feito antes com outras novas. Por exemplo, começava com um solo de Sanctus, Ave Maria. Tinha partes de A Promessa, que eu tinha feito para Ruth Rachou. Tinha o solo Tango. Enfim, uma revisitação clara às minhas obras. Uma revisitação feita por mim. Para mim.

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Carnaval dos Animais, de Luis Arrieta, 2006. Dança: Luís Arrieta

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Carnaval dos Animais, de Luis Arrieta, 2006. Dança: Luís Arrieta

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Eu me trocava no próprio palco, porque tudo era interligado. Para acompanhar os ensaios e toda essa maratona por trás do palco, contava com Ana Verônica Coutinho, querida bailarina de tantos trabalhos meus e que agora me assistia em tudo e me cuidava como um filho. E terminava com o Carnaval dos animais, que dura meia hora, e que tinha coisas com meu tipo característico de humor.

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Numa certa altura do espetáculo, eu tinha que tirar toda uma roupa e colocar outra, o que me custava pelo menos uns três minutos. Tudo ia acontecendo com uma certa densidade, uma característica do meu trabalho. Até que um pequeno e crescente foco de luz vai revelando, no meio do palco, um bujão de gás, branco. E se escuta a gravação inteira, belíssima, de Nelson Freire tocando Pour Elise de Beethoven. Aquilo era uma piada. Mas nem sempre as pessoas riam, porque não entendiam como piada. Claro, era a música utilizada aqui em São Paulo pelo caminhão do entregador de gás, para avisar as pessoas que estava passando na rua. Mas as pessoas não riam. Ficavam olhando sérias aquele bujão ali, branco, todo sério também. De certa forma, eu pretendia preparar um pouco o humor do público para o Carnaval dos animais, que apesar de não ser engraçado, era irônico. Mas o espetáculo todo era puxadíssimo fisicamente para mim. Até porque nunca fui um atleta. Sempre dancei mais pela alma do que pelo corpo. E quando tinha que cuidar um pouco mais do meu corpo, sempre encontrei pessoas que tratam da

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alma, como Silvio Camargo, terapeuta que trabalha com cura prânica, e que me ajudou a restabelecer o equilíbrio perdido, e Marcos Gabanini, fisioterapeuta, acupunturista, massagista, um amigo. *** Depois reapresentei esse trabalho na pequena Sala B do Teatro Alfa, onde aconteceu uma coisa muito interessante. Os dias que me foram ofertados foram terças e quartas-feiras. Sem esquecer que era lá no Alfa, um teatro muito distante... dentro da cidade de São Paulo. No meu primeiro dia de apresentação, aconteceu uma coisa extremamente significativa: ensaiamos toda a tarde, preparamos tudo, até porque é um trabalho um tanto complexo cenicamente. Quando estava tudo pronto, quase na hora de começar, o Fernando Guimarães, diretor do teatro, veio a mim, todo constrangido, dizendo que só haviam duas pessoas para me assistir. E me deixou à vontade caso eu não quisesse me apresentar. E eu respondi: Eu vou fazer o espetáculo. E foi uma experiência incrível, inédita para mim: o que é preparar algo e não vir ninguém para assistir?

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Eu poderia estar contando uma outra história. Mas essa é a verdade. Mas o mais fantástico ainda viria: quando fui me colocar ao palco, todo o pessoal da técnica do teatro, mais ou menos umas seis ou sete pessoas, ou seja, três vezes mais que o público que eu tinha, veio e me disse assim: Nós vamos assistir, Luis. E se sentaram numa fila, e eu fiz a dança para eles.

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L.A. Dança, de Luís Arrieta. Dança: Luís Arrieta. Acima: A promessa e abaixo: Tango

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L.A. Dança, de Luís Arrieta. Dança: Luís Arrieta. Acima: Ave Maria e abaixo: Tango

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L.A. Dança, de Luís Arrieta. Dança: Luís Arrieta. Acima: Carnaval dos Animais e abaixo: Tango

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Esta foi uma experiência muito difícil para mim. Mas enriquecedora, em muitos aspectos. Naquele momento, me senti extremamente sozinho. Mas, ao mesmo tempo, reconfortado por aquelas pessoas que, na verdade, não tinham mais nada a fazer ali no teatro. O trabalho deles já tinha sido encerrado. Saí diferente depois dessa noite. Não se sai a mesma pessoa de uma situação dessas. Mas, de certa forma, senti orgulho de mim mesmo, por ter enfrentado aquela situação da única maneira que sabia: dançando. Nos outros dias, até que o público foi aumentando, mas nunca chegou a lotar aquela pequena sala, de apenas 199 lugares. Isso era início de dezembro. E fazia parte do acordo que eu deveria cumprir, ou seja, um tanto estipulado de apresentações, exigidas pelo edital que eu havia ganhado.

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Depois apresentei extratos em outros lugares, já que o espetáculo todo era muito complexo cenicamente e pedia um custo alto de produção. Num evento idealizado por Eliana Pedroso em Salvador, chamado Maior de quarenta, reunindo bailarinos maduros, levei Ave Maria. Isso foi em outubro de 2006. O texto dessa música é fantástico. Trata-se da Sinfonia nº 3, opus 36, segundo movimento. Na verdade, os três movimentos são com andamentos muito próximos, cantados por uma soprano. Nesse segundo movimento, o texto utilizado tem uma história comovente. Górecki foi visitar um antigo quartel da Gestapo na Polônia e lá uma prisioneira jovem, que havia sido

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mandada para a câmara de gás, escreveu na parede: Oh, mãe, não chore por mim. Virgem Santa Castíssima, Puríssima, proteja-me sempre, Ave Maria. Ela assinou e datou. Quando viu isso, o compositor polonês ficou muito impressionado e decidiu usar esse texto no segundo movimento. E eu tentei recuperar, de alguma forma, todo esse espírito, coreograficamente.

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Em 2007, um evento de dança organizado em Indaiatuba, interior paulista, quis prestar uma homenagem a Ana Botafogo. Convidaram-na, então, para apresentar o pas-de-deux de Romeu e Julieta de Tchaikovsky com Marcelo Misailidis, que assinava aquela versão. Para completar o programa, convidaram outros bailarinos para se apresentar na mesma noite. Propus, então, e a Ana achou interessante, que nós, eu e ela, fizéssemos o Cisne juntos. Eu faria a minha versão e Ana faria ao mesmo tempo A morte do cisne, com coreografia original de Fokine. O resultado ficou interessantíssimo. Como sou grande e Ana miúda, a imagem era insólita. Eu de costas como um regente, ela surgia como um pássaro branco do meu paletó. No final, como num passe de mágica, sumia coberta pela minha casaca. Muito bonito. Além de estar em cena um coreógrafo e uma primeira-bailarina. Ainda em 2007, reapresentei mais uma vez Carnaval dos Animais na Galeria Olido, que também me solicitou que fizesse algo de caráter didático. Propus, então, fazer o Carnaval dos animais, com uma parte inicial em que eu explicava um pouco como foi elaborado o trabalho. Pude, nessa ocasião, contar o que penso sobre cada uma das partes que dançava. E enquanto falava, ia

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me aquecendo, tirando a roupa e me vestindo. Não parava um segundo sequer. Quando contava sobre o cisne, trazia um pouco da mitologia para o público, e relacionava o cisne com o universo apolíneo. Depois, claro, lembrava que a música era conhecida, sobretudo através da obra A morte do Cisne, de Fokine, do início do século 20, que não apenas imortalizou, mas representou todo um pensamento de dança que nascia naquele momento. Acho que foi um momento especial para mim, porque ao sistematizar tudo aquilo, aprendia sempre coisas novas. Para a entrada da galeria, onde são realizadas exposições, convidei Antonio Carlos Cardoso para fazer o registro fotográfico do espetáculo, e exibi-lo ali, pois admiro muito seu trabalho. 409

*** Em 2008, aconteceram coisas importantíssimas em dança em São Paulo, cidade que eu havia escolhido para viver o resto de minha vida. Para mim, a principal delas foi a comemoração dos 40 anos do Balé da Cidade de São Paulo, companhia fundamental no meu processo de amadurecimento artístico. Para essa ocasião, Mônica Mion, sua diretora, me convidou para criar uma pequena peça. Pensei em umbral, com música de Olivier Messiaen, o último movimento do Quarteto para o fim dos tempos. Aproveitava para comemorar também o centenário de nascimento do compositor, cuja obra esteve tão presente em minhas coreografias.

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Remontei também, para a mesma comemoração, La valse. Fiz a versão original, como pas-de-deux, e uma outra, um octeto. Na verdade, era a mesma coreografia dividida entre quatro casais. E as versões se alternavam: um dia apresentávamos como pas-dedeux e noutro como octeto.

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Helena Katz escreveu para O Estado de S. Paulo (15/05/2008): O segundo ato é de Luis Arrieta. A distância histórica que separa as duas obras aqui reunidas (La Valse é de 1992 e umbral está estreando) instala uma perspectiva de longo alcance no seu percurso coreográfico. La Valse é toda voltada para fora, no seu enfileiramento de competências a serem demonstradas. A excelente versão de Liris do Lago e Israel Alves explora com muita qualidade aquela exteriorização exacerbada que pontua a dança de salão. Talvez percebendo o baile potencial que La Valse embutia, Arrieta criou também uma outra montagem para quatro casais. A nova produção, umbral, com o Oitavo movimento do Quarteto para o Fim dos Tempos, de Olivier Messiaen (1908-1992), deixa muito claro o domínio de Arrieta sobre o métier de fazer coreografias. É como se ele expusesse sua facilidade em cortar, encurtar, dobrar e desdobrar o movimento em combinações que parecem brotar naturalmente delas mesmas. Uma coreografia que puxa um fio e ele vai distendendo a sua forma. Uma forma que lembra os organismos em transformação: o que se vê contém o que já esteve e o que ainda virá a estar. Em umbral, o requinte é outro, mas se mantém o mesmo traço de exterioridade de uma dança que é para fora. Andréa Thomioka, Dielson Pessoa e Wagner Varela tonalizam a química precisa para que as passagens surjam e os trânsitos se façam. É um trio e tanto.”

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Mas o mais emocionante foi o encontro realizado no dia 10 de maio, no Sesc Vila Mariana, reunindo os diretores que haviam passado pela história do Balé da Cidade. Estavam presentes Antonio Carlos Cardoso, Iracity Cardoso, José Possi Neto, Júlia Ziviani, Mônica Mion, sua atual diretora, Rui Fontana Lopes e eu. Ivonice já estava muito doente e não pôde comparecer. E foram lembrados os que já haviam falecido: Johnny Franklin, Klauss Vianna e Marília Franco. Era uma consagração. Um momento, sem dúvida, histórico. Nesse mesmo dia, à noite, eram apresentados umbral, o novo trabalho, e La valse, que voltava ao palco. *** Eu tinha um sonho que me atrevo a contar aqui. Pensava que, se Ivonice melhorasse, gostaria de fazer uma versão de Trindade comigo, com ela e Mônica. Algo que essas duas mulheres experientes poderiam fazer muito bem. Mantendo estritamente a composição original, trabalhar unicamente com o essencial de cada movimento. Tenho anotado isso em algum papel sobre minha mesa: Ivonice, Luis e Mônica. Era essa a versão que queria fazer. Não deu tempo.

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*** Um pouco antes disso, mas nesse ano ainda, Umberto Silva, que tinha acabado de assumir o cargo de assessoria de dança da Secretaria Municipal da Cultura, antes ocupado por Iracity, me deu uma grande alegria, convidando-me para dançar na abertura da Virada Cultural de São Paulo. Na verdade, essa foi uma das

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poucas coisas que ele teve tempo de organizar dentro desse projeto, porque, logo em seguida, viria a falecer. Senti uma dor enorme, porque era mais um colega que havia ido embora. Trabalhei com ele, dancei com ele, dancei coreografias dele, ele dançou coreografias minhas. E ele não seria o único no ano. Uma tristeza. A Virada Cultural é um evento que acontece faz alguns anos em São Paulo, extremamente importante, reunindo espetáculos de dança, música popular e erudita, teatro, circo, performance, tudo. Eles usam teatros, espaços ao ar livre, instalações, esquinas, qualquer recanto debaixo de uma marquise é um lugar em potencial. São 24 horas ininterruptas de apresentações abertas ao público, gratuitas. Um esbanjamento de proposta cultural que enriquece, que contribui. 412

Eu já havia participado indiretamente de uma edição, com uma obra minha que alguma companhia havia apresentado. Mas, desta vez, eu era convidado a me apresentar, abrindo a programação de dança. Isso foi no dia 26 de abril. Havia um palco grande, que ficava no Vale do Anhangabaú, e que comportava as apresentações das companhias de dança, por exemplo. Minha apresentação seria nele. Um pouco antes disso, houve uma apresentação no Teatro de Dança, antigo Teatro Itália, em homenagem a Ivonice Satie, que já não estava bem de saúde. Me apresentei com Ave Maria. Foi um momento emocionante, porque ela estava presente. Aliás, estava todo mundo da dança. Foi um encontro maravilhoso, todos querendo de alguma forma participar, queren-

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do deixar testemunhados a consideração, o respeito e a admiração que tinham por Ivonice. Na manhã desse dia 26, dia da Virada Cultural, Ismael Guiser faleceu. Ismael estava com 81 anos, ele era de 1927. Capricorniano, nascido no dia 8 de janeiro. Ele já vinha com algumas alterações em seu estado de saúde. Não tinha nenhuma afeição especial por médicos e nem se dedicava muito para se cuidar. Entretanto, uma semana antes de falecer, já estava um pouco assustado. Havia passado mal, fez uma série de exames que não acusaram nada. Nesse dia 26, teve uma parada cardíaca e não resistiu. A notícia me deixou completamente desnorteado. Fiquei sem reação. Minha apresentação era às seis da tarde. Enquanto outras pessoas ajudavam com as tramitações de papéis, liberação do corpo, organização do velório, eu estava me apresentando. Era assim que eu poderia ajudar naquele momento.

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Foi uma experiência fortíssima. Eu vinha carregado do impacto da morte de meu amigo e quando subi ao palco para abrir o espetáculo, com o crepúsculo da tarde, avistei uma multidão de mais de 60 mil pessoas. Nunca tinha visto algo assim antes em toda minha vida. E uma multidão que estava em um silêncio inimaginável. Enquanto me movimentava, pensava no Ismael, homenageava-o da maneira que podia. Ao mesmo tempo, pensava em todas aquelas pessoas que nunca tiveram a oportunidade de entrar num teatro e que estavam me vendo naquele momento.

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Eu abri com o Cisne. Ao acabar, fiz uma reverência e dei a entrada para a apresentação do segundo ato do balé Giselle, pelo Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, tendo Ana Botafogo à frente. Aquilo tudo para um público que, possivelmente, não tem a possibilidade de pagar para ir a um teatro, mesmo a preços populares. Experiência extremamente forte. E, para mim, uma contradição engraçada: ter dançado para apenas duas pessoas no Teatro Alfa e pouco tempo depois para 60 mil. Uma vida cheia de reviravoltas. ***

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Acompanhei o velório de Ismael. Tive a sorte de poder chorar muito, de me desafogar. Até hoje, essa lembrança ainda me deixa bastante comovido. Apesar de eu ter um lado racional, que me faz tomar consciência de que ele não está mais aqui, às vezes sucumbo a um esquecimento. Tenho essas coisas com a tal da razão. Ela demora a entender as coisas. Ontem mesmo, estava dando um aquecimento para a Ana Botafogo, depois de termos ensaiado o espetáculo Suíte Floral, que seria apresentado em instantes. Não sei por que motivo, Ana disse assim: Vamos dançar essa noite para o Ismael... E eu pensei: Ótimo! Maravilha! Porque Ismael adorava a Ana. Quando cheguei ao hotel, num instante pensei: vou ligar para o Ismael para contar... Não cheguei a desenvolver o pensamento. Algo me invadiu e disse: Não, você não vai fazer isso. ***

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Eu me ofereci para me apresentar na Mostra de Dança Contemporânea do Festival de Joinville em 2008. Esperei que me convidassem, mas como vi que isso não iria acontecer, resolvi me oferecer. Disseram, então, que gostariam de me homenagear no festival e eu disse que não queria homenagem, queria apenas que me deixassem dançar. Lembro muito de algo que ouvi de Mercedes Sosa, há muitos anos. Ela se apresentou aqui no Ginásio do Ibirapuera e eu nunca tinha visto um show dela ao vivo. O rapaz que fazia a técnica do espetáculo era um argentino que eu conhecia, e ele me convidou para assistir. Entramos pela porta de trás e ficamos conversando. Quando ela chegou e me ouviu conversando com o argentino, me perguntou: Você faz dança? Adoro dança. Sou muito amiga de Oscar Araiz. Continuando a conversa, perguntei: E como está Buenos Aires? Ela respondeu: Não consigo cantar em Buenos Aires. Eles não me proíbem. Só que, quando organizo um show, umas duas horas antes de começar, sempre chega a polícia federal e diz que existe uma denúncia de bomba e que o show deve ser cancelado. E encerrou dizendo: Ai, Luis, eu só quero que me deixem cantar... E começou a chorar copiosamente. Veio o assistente dela, ajudou-a, colocou o poncho e praticamente a empurrou para o palco.

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Ela então me disse que ficasse ali, que assistisse do palco mesmo, numa cadeira colocada especialmente para mim. E perguntou: Que canção você gosta? E eu: Ah, lembra aquela... Azul provinciano, de Pancho Cabral? Eu canto para você, disse ela.

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E diante dessa lembrança, eu dizia para Joinville: Me deixem dançar! Não preciso de homenagem, preciso apenas, e sobretudo, dançar. *** Cheguei hoje à tarde do Rio de Janeiro. Chegar em casa é sempre um porto seguro para mim. Gosto da minha casa, espaçosa e luminosa. Aqui me espera, uma vez na semana, Ivone dos Santos, minha empregada e minha amiga, que tem minha idade. Apreendemos a nos conhecer, a nos escutar. E são de sua autoria os bolos e pudins que me deixam sempre feliz.

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A estreia do espetáculo da Ana foi especial, como sempre. Fico essa semana em São Paulo e na semana que vem vou para Belo Horizonte, para terminar um trabalho com o grupo de Marjorie Quast sobre O herói de mil faces, de Campbel, também com música de Oswaldo Montenegro. O espetáculo comemora os 30 anos da escola Núcleo Artístico e dele participa também o Camaleão Grupo de Dança. É um espetáculo que Marjorie faz reunindo todos da escola e o resultado é sempre muito interessante. Participam jovens que fazem balé, alunos de jazz, de dança de salão, de dança de rua. Aliás, um menino de dança de rua me deixou absolutamente impressionado com sua graça. Seu nome é Gustavo Durso. Ele mostrou para mim uma sequência com todos os movimentos daquela dança. Pedi, então, que ele repetisse aquilo tudo, mas como se fosse em câmera lenta. Como se fosse um adágio. E foi lindo. Aquilo

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se transformou em um solo. Terminei o ano de 2008 experimentando novidades. Dança de rua: eu posso? *** Ainda em Buenos Aires. Nossa família morava numa rua perto de uma família andaluza, como já contei lá no comecinho do livro. Contei também sobre Adela, filha dessa família que tinha a mesma idade que eu. Hoje, depois de muitos anos em Buenos Aires, voltaram a morar em Málaga e Adela é uma mulher ligada à política de lá. Lida com projetos culturais e organizações em defesa dos direitos humanos na Espanha. Havia um clube que distava dois quarteirões de nossas casas que, na verdade, era uma sociedade assistencialista argentina. Uma associação de bairro que promovia, de vez em quando, um baile para aposentados, coisa bem suburbana, para angariar fundos para alguma causa social.

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Na verdade, não se podia falar que aquilo era um clube. Era mesmo uma casa velha adaptada como clube. Mas tinha lá um pequeno tabladinho. Lembro que era dia da criança e não havia nada programado para acontecer por lá. Eu ainda nem sonhava em fazer dança. Mas Adela me instigou: Vamos programar algo? Então, ensaiamos nós dois uma dança, vestimos uma roupinha cheia de flores amarradas e nos apresentamos: era Tico-tico no fubá, de Zequinha de Abreu. Já estava escrito que o Brasil fazia parte do meu destino. Inexoravelmente.

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Luis Arrieta em S達o Paulo, 2001

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Referências bibliográficas ALVARENGA, Arnaldo. “A Companhia de Dança do Palácio das Artes” In: Corpos artísticos do Palácio das Artes: Trajetória e Movimentos. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais, Fundação Clóvis Salgado, 2006 BOGÉA, Inês. Figuras da dança: Luis Arrieta, São Paulo: São Paulo Companhia de Dança, 2009 FARO, Antonio José e SAMPAIO, Luiz Paulo. Dicionário de balé e dança, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989 KATZ, Helena. O Brasil descobre a dança descobre o Brasil, São Paulo: Dórea Books and Art, 1994

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NAVAS, Cássia (org.). Balé da Cidade de São Paulo: Formarte, 2003 _____________ Cisne Negro: 30 anos de vida na dança. São Paulo: Retrato Editora, 2006 NORA, Sigrid. Dança e cultura: A experiência do Grupo de Danças Raízes, Caxias do Sul: Lorigraf, 2003 PEDROSO, Eliana e MELO, Nice (orgs.). Carlos Moraes: dança. Salvador: Secretaria da Cultura e do Turismo, 2004 SUCENA, Eduardo. A dança teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Minc/Fundacen, 1988

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WERNECK, H. e NAVAS, C. 1o Ato / Grupo de danรงa 1o Ato, Belo Horizonte: Banco Rural, 2002 Sites: www.helenakatz.pro.br www.stagium.com.br www.baledacidade.com.br www.apca.org.br www.dalalachcar.com.br www.teatrosanmartin.com.ar/ballet www.theatromunicipal.rj.gov.br/ballet

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Obra Completa 2010 • O Canto do Cisne Negro H. Villa Lobos (O Canto do Cisne Negro) Figurino: Angélica Chaves - Iluminação J. Drummond e L. Arrieta – 4´ Criado especialmente para Luis Arrieta 2008 • La Valse (versão para 4 casais) M. Ravel (La Valse) Cenário: Renata Schussheim e L. Arrieta - Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta – 13´ • Umbral O. Messiaen (Quarteto para o fim dos tempos / Louvação à Imortalidade de Jesus) Figurino: L. Arrieta - Iluminação: Wagner Freire Balé da Cidade de São Paulo – 12´

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• Suíte Floral H. Villa-Lobos (Idílio na Rede - Suíte Floral) P. I. Tchaikovsky (Abril, Outubro, Agosto – As Estações / Apenas um Coração Solitário) A. Vivaldi (Verão, 3º Mov. / Inverno, 2º Mov.) G. Gershwin (Summertime – Porgy and Bess) T. Jobim (Águas de Março) T. Jobim / V. de Moraes (Eu sei que vou te amar) A. Piazzolla (Outono Portenho, Inverno Portenho, Primavera Portenha - As quatro estações portenhas) direção geral L. Arrieta, com Ana Botafogo, Lilian Barretto e Helio Bejani Cenário: L. Arrieta - Figurino: Bianca Marques –

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Iluminação: P.C. Medeiros Criado especialmente para A. Botafogo, L. Barretto e J. Coutinho / Rio de Janeiro – 55´ • As Mil Faces do Herói O. Montenegro (As Mil Faces do Herói – especialmente composta) Direção Artística: L. Arrieta - Direção Geral: M. Quast – Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta, arquivo Núcleo Artístico e elenco – Iluminação: Bruno Rodrigues Núcleo Artístico – Camaleão / Belo Horizonte – 60´

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• Luiza T. Jobim (Luiza) Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Criado especialmente para Inês Amaral e Lena Maia/ Belo Horizonte - 3´ 2007 • Carnaval dos Animais (processo de criação e fotografias de A.C. Cardoso) C. Saint Saëns (Carnaval des animaux) Cenário: L. Arrieta - Figurino: L. Arrieta - Iluminação: Joyce Drummond e L. Arrieta Criado especialmente para L. Arrieta - 50´ • O Cisne (com A Morte do Cisne, de Michele Fokine) C. Saint Saëns (Carnaval des animaux / O Cisne) Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Criado especialmente para Ana Botafogo e L. Arrieta – 3´

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2006 • Carnaval dos animais C. Saint-Säens (Carnaval des animaux) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: Joyce Drummond Criado especialmente para L. Arrieta – 25´ • L.A. Dança (criado especialmente para, dirigido, adaptado e interpretado por L. Arrieta) Cenário: L. Arrieta - Figurino: L. Arrieta e Vs. – Iluminação: Joyce Drummond e L. Arrieta – 60´ Sacro Sanctus - D. Fanshawe (Call to Prayer) Cenário: VT Lau Delgado - Figurino: L. Arrieta Ave Maria - H. Górecki (Sinfonia nº 3 opus 36, Segundo movimento) Cenário: VT Lau Delgado – Figurino: Rosa Magalhães Spreading - D. Maraire (Kutambarara) Cenário: VT Lau Delgado – Figurino: Sonia Cavalcanti

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Profano A Promessa - S. Pianna e H. Manzi (Milonga Triste) Cenário: VT Lau Delgado - Figurino: L. Arrieta Tango - R. Mederos (Todo Ayer) Cenário: VT Lau Delgado - Figurino: L. Arrieta Interlúdio - L. van Beethoven (Für Elise) Cenário: L. Arrieta Carnaval - C. Saint-Säens (Carnaval des animaux) Cenário: L. Arrieta / L. Delgado – Figurino: L. Arrieta / Sonia Cavalcanti

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2005 • Conjunção O. Messiaen (Quatuor pour la fin du temps 8º Movimento) Figurino: Walter Rodrigues - Iluminação: Joyce Drummond e L. Arrieta Criado especialmente para Ivonice Satie e L. Arrieta – 10´ • Felicidade numa flor do campo B. Douglas (Heaven in a Wild Flower) Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta Criado especialmente para A. Pivatto e A. Nascimento – 5´

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2004 • Dança Russa P. I. Tchaikovsky (Dança Russa - Lago dos Cisnes) Figurino: Carlos Mielle - Iluminação: Joyce Drummond e L. Arrieta Criado especialmente para Daniela Stassi – 5´ • Carmen G. Bizet / R. Shchedrin (Carmen Ballet) P. de Sarasate (Carmen fantansie op.25) I. Albéniz (Astúrias) J.Brel (Ne me quitte pás) Cenário: Marcos Arruzo/LA - Figurino: Ricardo Rocha/ LA - Iluminação: Paulo C. Medeiros e L. Arrieta Companhía de Ballet da Cidade de Niterói / Rio de Janeiro – 55´ • Tropicália C. Velloso (Geléia real) G. Gil (Retreta / Coração / Deus vos salve esta casa santa)

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Roteiro e direção: D. Achcar / C. Botelho – Cenário: Charles Muller – Figurino: Charles Muller – Iluminação: Paulo C. Medeiros Cia. El Paso de Dança / Rio de Janeiro - 60´ • Sostenuto S. Rachmaninoff (Concerto nº 2 op.18 em dó menor – adagio sostenuto) Cenário: L. Arrieta - Figurino: Simmone Rorato – Iluminação: L. Arrieta Ballet Teatro Castro Alves / Salvador – 12´ • Sala de Espera G. Crumb (Makrokosmos III) P. Glass (Concerto p/ violino e Orq. Segundo Movimento) L. van Beethoven (Sonata14 op.27 nº 2 – Segundo Movimento) A. Le Pera / C. Gardel (El día que me quieras) J. Rial / G. Barbieri (Rosa de otoño) Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação: William Figueiredo e L. Arrieta Cia. de Danças de Diadema / São Paulo – 60´

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2003 • Uaikuru Adaptação de repertório indígena M. Miranda (Ihu) A.Ramirez e F. Luna (Antiguo dueño de las flechas) Incidental e regência de G. Jardim Cenário: L. Arrieta – Figurino: Zuarte Junior – Iluminação: Heckel Hohlenwerger e L. Arrieta Balé Teatro Castro Alves / Salvador – 90´

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• A Promessa S. Piana e H. Manzi (Milonga Triste) Cenário: L. Arieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação: Joyce Drummond e L. Arrieta Criado especialmente para Ruth Rachou – 8´ 2002 • O Grande Circo Místico E. Lobo e C. Buarque (O Grande Circo Místico) Roteiro: Naum Alves de Souza – Cenário: Rosa Magalhães – Figurino: Rosa Magalhães – Iluminação: Joyce Drummond Balé Teatro Guairá / Curitiba – 100´

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• Na Cadência do Samba C. Eller (Na Cadência do Samba) Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta Criado especialmente para Andréa Pivato – 4´ 2001 • Três Momentos do Amor A. Piazzolla (Libertango / Invierno Porteño / Adiós Nonino) Direção: L. Barreto, A. Botafogo e C. Botelho – Figurino: Ney Madeira – Iluminação: Paulo C. Medeiros Criado especialmente para Ana Botafogo, Bruno Cesário e Joseny Coutinho – 15´ • Aparecida (versão completa) J. S. Bach (Paixão de São João BWV 245 nº 1 – arranjo H. de Courson) Figurino: Sérgio L. Coelho – Iluminação: Henrique Carvalho e L. Arrieta Grupo Camaleão / Belo Horizonte - 45´

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• Um Longo e Sinuoso Caminho The Beatles (The Long and Winding Road / Fool on the Hill / And I Love Her / She Loves You / She`s Leaving Home / Michelle / Goodnight / Yellow Submarine) Arranjos: P. Breiner – Figurinos: Rosa Magalhães – Iluminação: L. Arrieta Companhia Jovem de Ballet do Rio de Janeiro – 25´ 2000 • No Porão F. Zappa (The girl in the magnesium dress / Be-bop tango) S. Piana/ H. Manzi (Milonga triste) J. Adams (Shaker Loops) L. van Beethoven (Für Elise) J. S. Bach (Präludium – 1C – dur BWV 846) B. Ostertag / Kronos Q. (All the Rage) O. Messiaen (Louange à l’Immortalité de Jésus) Dir. musical: Gil Jardim – Cenário: Fábrica da Bijari - Figurino: Geraldo L. Junior – Iluminação: Wagner Freire Balé da Cidade de São Paulo / Cia. 2 – 80’

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• Conceição de todos os bugres M. Miranda (várias de 2 IHU Kewere: Rezar) J. S. Bach (Präludium - 1C - dur BWV 846 / Präludium – fis Moll BWV 883 / Sonata I in G major BWV 1027 andante) Cenário: Luis F. A. Stumpo e Silvia Stumpo - Figurino: Chico Neller e L. Arrieta – Iluminação: Roberto Lima Ginga Cia. de Dança / Campo Grande – 70’

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1999 • Café com Leite (direção Marcio Aurelio) Vários MPB (Reg. G. Jardim e T. Mourão) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: Marcio Aurelio Bethe Risoléu, Luciana Porta e Luis A. Ribeiro – 120’ • Principia H S. Martland (Principia) Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta Raça Companhia de Dança de São Paulo (Jhean Allex) – 3’ • Valse P. Jobin (Valse) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Raça Companhia de Dança de São Paulo – 4’ 428

• Chacona – Valsa J. S. Bach (Chacona da Partita nº 2 ré menor) H. Villa Lobos (Valsa da Dor) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Cia. de Dança Ismael Guiser / São Paulo – 22’ • Novos Ventos E. Satie (várias) Direção cênica: L. Arrieta – Coreografia: R. Rodrigues Raça Companhia de Dança de São Paulo – 20’ • Clair de Lune C. Debussy (Clair de Lune) Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta Criado para Daniela Steck e Cladimir Kaminsky – 6’

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• La Golondrina N. Serradel e N. Zamacois (La Golondrina) Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta Criado especialmente para Simone di Pietro – 3’ • Aparecida, incluindo Senhor, Meu Senhor J. S. Bach (Paixão de São João BWV 245 nº 1 – arranjo H. de Courson) Figurino: Sérgio L. Coelho - Iluminação: L. Arrieta Grupo Núcleo Artístico / Belo Horizonte – 20’ 1998 • Principia S. Martland (Principia) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Criado especialmente para Lilia Shaw – 4’

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• Tonada de Luna Llena S. Diaz (Tonada de Luna Llena) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Criado especialmente para Fernando Martins • La Yumba O. Pugliese (La Yumba) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Criado especialmente para André Portasio – 3’ • Achalai! Adaptações de repertório indígena por Marlui Miranda (Ihu – Todos os sons) Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta Raça Companhia de Dança / de São Paulo – 36’

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• Chacona J. S. Bach (Chacona da Partita nº 2 BWV 1004 em ré menor) Figurino: Rosa Magalhães – Iluminação: Renato Machado e L. Arrieta Cia. Vacilou Dançou / Rio de Janeiro – 16’ • Senhor, Meu Senhor J. S. Bach (Paixão de São João BWV 245 nº 1 – arranjo H. de Courson) Figurino: Sérgio L. Coelho – Iluminação: L. Arrieta Grupo Núcleo Artístico / Belo Horizonte – 5’

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• Ponto Vitral G. Jardim (O Soprador de Vidro) Cenário: Antonio C. Cardoso – Figurino: Lino Villaventura – Iluminação: Franco Marri Balé Teatro Castro Alves / Salvador – 60’ 1997 • Dear Friend P. e L. McCartney (Dear Friend – introdução: L. A. Ribeiro) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Ballet Lenita Ruschel Pereira / Porto Alegre – 10’ • A Noite Transfigurada A. Schönberg (A Noite Transfigurada op.4 – versão para orquestra de cordas, 1945) Cenário: Rosa Magalhães – Figurino: Rosa Magalhães - Iluminação: Fernando Guimarães e L. Arrieta Cia. de Dança de Minas Gerais / Belo Horizonte – 30’

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• Adagietto G. Mahler (Adagietto da 5ª Sinfonia) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: Fernando Guimarães e L. Arrieta Criado especialmente para L. Arrieta – 9’ • La Reveuse M. Marais (La Reveuse) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: Fernando Guimarães e L. Arrieta Criado especialmente para L. Arrieta – 5’ • Spreading D. Maraire (Kutambarara – “Spreading”) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: Fernando Guimarães e L. Arrieta Criado especialmente para L. Arrieta – 7’

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• Pecado C. Babr (Pecado) Pontier Y Francini Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Criado especialmente para Renata Ruiz – 5’ • Words Over Water P. Aaberg (Words Over Water) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Criado especialmente para Luciene Munekata e Jhean Allex – 6’ • De Minh’Alma P. Metheny (várias) J. Faddis Direção Cênica: L. Arrieta - Coreografia: R. Rodrigues

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- Iluminação: F. Guimarães e L. Arrieta Raça Companhia de Dança de São Paulo – 30’ 1996 • Ave Maria H. Górecki (Sinfonia nº 3 opus 36, 2º movimento) Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta Criado especialmente para L. Arrieta – 10’ • Trevo (do ciclo Três) S. Rachmaninoff (Andante da Sonata em sol para violoncelo e piano op.19) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Ballet Ismael Guiser / São Paulo – 6’

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• La Telesita L. Vitale (La Telesita) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Beth Dorça Ballet / Uberaba – 6’ • Nuestros Hijos R. Mederos (Nuestros Hijos) Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta Criado especialmente para Luciana Porta e L. Arrieta – 5’ • Libertango A. Piazzolla (Libertango) Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta Beth Dorça Ballet / Uberaba – 3’ • Promenade M. Ravel (Concerto para piano em sol maior – Adagio Assai) Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta Criado especialmente para Luciana Porta e L. Arrieta – 10’

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• Milonga del Ángel A. Piazzolla (Milonga del Angel) Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta Criado especialmente para Gustavo Lopes e L. Arrieta – 6’ • Quebrada E. Lagos (La oncena) A. Chazarreta (Criollita Santiagueña) Hns. Abalos (La Juguetona) P. Contreras (Huayco hondo) A. Robles (El condor pasa) J. Torres (Charangueando van) A. e N. Abalos (El quebradeño – Carnavalito) Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta Ballet Ismael Guiser / São Paulo – 30’

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• Tango Três x Três A. Piazolla (Hora Cero / Canto e Fuga / Evasão / Meianoite / Solitude / Bandoneón / Melodia em lá menor / Libertango / Morte / Tanguedia / Adiós Nonino) Figurino: L. Arrieta - Iluminação: Fernando Guimarães e L. Arrieta Raça Companhia de Dança / São Paulo – 60’ • Marnatal P. Aaberg (Walking Through Walls / Elegy / Words Over Water / Surround / Walking Through Walls) Figurino: Heronilda Anselmo e Carlos S. Borges – Iluminação: L. Arrieta Roda Viva Cia. de Dança Sobre Rodas / Natal – 25’

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1995 • Fragmentos da Página 5 H. Villa Lobos (Fragmentos da Página 5 de A Floresta do Amazonas, arranjo Wagner Tiso) Cenário: Carlos Sergio Borges – Figurino: Carlos Sergio Borges - Iluminação: L. Arrieta Ballet Municipal de Natal – 10’ • (Noch einmal) *versão completa P. Glass (Concerto para vilolino e orquestra) Cenário: L. Arrieta – Figurino: Rosa Magalhães – Iluminação: L. Arrieta Ballet Ismael Guiser / São Paulo – 30’

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• (Noch Viel Mal) Kodõ Heartbeat Drummers of Japan (3. Monochrome / 1. Miyake) P. I. Tchaikovsky (Concerto no. 1 em si bemol, 2º movimento) Cenário: Carlos Sergio Borges e L. Arrieta – Figurino: Carlos Sergio Borges – Iluminação: L. Arrieta Grupo de Dança da UFRN / Natal – 25’ • Orixá (roteiro de Antonio Carlos Cardoso) E. Gismonti (Orixá, especialmente composta) Cenário: Rosa Magalhães – Figurino: Rosa Magalhães – Iluminação: Franco Marri Balé Teatro Castro Alves / Salvador – 40’ • Na Floresta H. Villa Lobos (Suite nº 1 de A Floresta do Amazonas) Cenário: Rosa Magalhães - Figurino: Rosa Magalhães

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- Iluminação: Paulo César Medeiros e L. Arrieta Cia. de Ballet da Cidade de Niterói – 30’ 1994 • (Noch einmal) P. Glass (Concerto para violino e orquestra) Cenário: L. Arrieta – Figurino: Rosa Magalhães – Iluminação: L. Arrieta Vacilou Dançou / Rio de Janeiro – 20’ • Telas (co-direção com Marjorie Quast) O. Montenegro (Telas, especialmente composta) Cenário: Sérgio Luis – Figurino: Geraldo Lima Junior – Iluminação: Ricardo Teixeira Grupo Camaleão / Belo Horizonte – 70’

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1993 • Tango Trio A. Piazzolla (Adiós Nonino) Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Criado especialmente para Ana Botafogo, Marcelo Misailidis e Helio Bejane - 9’ • Warm-up J. S. Bach (Concerto para 4 Pianos e Orquestra de Cordas) Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação: Fernando Guimarães e L. Arrieta Balé da Cidade de São Paulo – 15’

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• Willis Now The Art of Noise (In Visible Silence / In No Sense Nonsense / The Best of The Art of Noise) Cenário: Murilo Sola e L. Arrieta – Figurino: Murilo Sola e L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Profissão Dançar (Steps) / São Paulo – 70’ • Pampa A. Ginastera (Concerto para Harpa nº 25) Cenário: Murilo Sola - Figurino: Murilo Sola – Iluminação: L. Arrieta Ballet Grand Théâtre de Genève – 30’

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• Beijo I J. S. Bach (Adágio da Sonata nº 1 em Sol Menor para Violino BWV 1001) Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Balé Teatro Castro Alves / Salvador – 6’ 1992 • De Mar e Areia N. Vasconcelos (O Berimbau / Dado) E. Gismonti (Fogueira / Tomarapeba / O Dia, à Noite) H. Villa Lobos (Três Canções: Cair da Tarde, Canção de Amor e Melodia Sentimental) Cenário: J. Cunha – Figurino: J. Cunha – Iluminação: Irma Vidal e L. Arrieta Balé Teatro Castro Alves / Salvador – 50’ • Oração J. S. Bach (Ária da 4ª Corda – Suíte para orq. em Si menor / BWV-1067)

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Figurino: L. Arrieta – Iluminação: Fernando Guimarães e L. Arrieta Criado especialmente para Maurício Ribeiro – 6’ • Cisne S. Säens (O Cisne / Carnaval dos Animais) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: Fernando Guimarães e L. Arrieta Criado especialmente para L. Arrieta – 3’ • Outono H. Villa Lobos (5 Prelúdios para violão) Figurino: Margot Delgado – Iluminação: Fernando Guimarães e L. Arrieta Criado especialmente para Ana Maria Mondini, Bethe Risoléu, Clarisse Abujamra, Patricia Alquezar e Suzana Yamauchi – 15’

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• Dois Clarinetes F. Poulenc (Sonata para dois Clarinetes) Figurino: Murilo Sola – Iluminação: Fernando Guimarães e L. Arrieta Criado especialmente para Patricia Alquezar e Mauricio Ribeiro – 6’ • La Valse M. Ravel (La Valse) Figurino: Renata Schussheim – Iluminação: Fernando Guimarães e L. Arrieta Criado especialmente para Mônica Kodato e Irineu Marcovecchio – 12’

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• Ocean G. Jardim e J. Garotti (Movimentos em Água, para Luis Arrieta) Figurino: Margot Delgado – Iluminação: Fernando Guimarães e L. Arrieta Criado especialmente para Bethe Risoléu e Laudinei Delgado – 12’ • A Espera 1 H. Villa Lobos (Valsa da Dor) Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Balé da Cidade de São Paulo – 7’

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• A Espera 2 H. Villa Lobos (Prelúdio) Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Balé da Cidade de São Paulo – 9’ • A Espera 3 H. Villa Lobos (Canto do Sertão) Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Balé da Cidade de São Paulo – 6’ 1991 • Estância A. Ginastera (Estancia - Ballet Suíte opus 8 A) Cenário: L. Arrieta – Figurino: Murilo Sola – Iluminação: Carlos Kur e L. Arrieta Ballet Teatro Guairá / Curitiba – 15’

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• Pavana para uma Infanta defunta M. Ravel (Pavane pour une Infante défunte) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Ballet Teatro Guairá / Curitiba – 10’ • Les Noces I. Stravinsky (Les Noces) Cenário: L. Arrieta – Figurino: Renata Schussheim – Iluminação: Fernando Guimarães e L. Arrieta Balé da Cidade de São Paulo – 25’ • Tempo de Dunas Larkin (O’cean / Emergence) Cenário: L. Arrieta - Figurino: Carlos Sergio Borges – Iluminação: Castelo Casado e L. Arrieta Acauã Cia. de Danças / Natal – 25’ 439

• Offertorium A. Pärt (Pari Intervallo) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Criado especialmente para Claudia Araújo e Sergio Campos – 8’ • Andante J. S. Bach (Andante da Sonata nº 1 em Sol Maior para Piano e Cello) Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta Ballet Ismael Guiser / São Paulo – 7’ 1990 • O Pássaro de Fogo I. Stravinsky (L’Oiseau de feu) Cenário: Raul Belém Machado - Figurino: Raul Belém

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Machado – Iluminação: Jorge Luiz e L. Arrieta Ballet da Fundação Clóvis Salgado (Palácio das Artes) / Belo Horizonte – 55’ • Ausência S. Rachmaninoff (Suite nº 1 para dois Pianos opus 5 – Fantasia) Figurinos: Margot Delgado – Iluminação: Mario Martini Balé da Cidade de São Paulo – 20’ • Palhaços F. Poulenc (Trio para Piano, Oboé e Fagote / Sexteto para Piano, Flauta, Oboé, Clarineta, Fagote e Corno) Cenário: Beatriz Balem Susin - Figurino: Beatriz Balem Susin – Iluminação: Fernando Guimarães e L. Arrieta Grupo de Danças Raízes / Caxias do Sul – 40’ 440

• Wa’ya (co-direção com Tíndaro Silvano, Marisa Monadjemi e Juliana Grillo) E. Gismonti (Vale do Eco) A. Pärt (Cantus in memory of Benjamin Britten) H. Villa Lobos (Valsa da Dor) Cenário: Mônica Sartori – Figurino: Kalluh Araújo – Iluminação: Jorge Luiz e L. Arrieta Meia Ponta Cia. de Dança / Belo Horizonte – 15’ 1989 • Inconfidência E. Gismonti (especialmente composta) Cenário: Décio Noviello - Figurinos: Décio Noviello – Iluminação: Jorge Luiz e L. Arrieta Ballet da Fundação Clóvis Salgado (Palácio das Artes)/ Belo Horizonte – 55’

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• Palhaços F. Poulenc (Sexteto para Piano, Flauta, Oboé, Clarineta, Fagote e Corno) Figurinos: Sergio Luiz Coelho – Iluminação: Jorge Luiz e L. Arrieta Compasso Cia. de Dança / Belo Horizonte – 20’ • Trívio (do ciclo Três) F. Schubert (Allegro Moderato da Sonata para Cello e Piano em Lá Menor) Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta Ballet Ismael Guiser / São Paulo – 12’ • SOS Brasil (versão completa: co-direção com Marjorie Quast) P. Glass (Mishima – partes) J. Gwanga (Freedon – partes) L. Gonzaga (Asa Branca) Enya J. Ma. Nóbrega e L. P. Fonseca Cenário: Sergio Luiz Coelho - Figurino: Sergio Luiz Coelho – Iluminação: Ricardo Teixeira

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1988 • Mandala (Der Weg Nach Innen) S. Rachmaninoff (Rhapsody on a Theme of Paganini opus 43) S. Barber (Adagio for strings opus 11 / Second Essay for Orchestra op.17 / Overture to “The School for Scandal” for Orchestra op. 5 / Medeas’ Meditation and Dance of Vingeance op. 23-A) M. Ravel (Bolero) Cenário: Jorge Villareal - Figurinos: Jorge Villareal – Iluminação: L. Arrieta Cia. Oficial de Wiesbaden / Alemanha – 90’

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• Mar de Homens A. Pärt (Tabula Rasa / Arbos – partes) Cenário: Murilo Sola – Figurinos: Murilo Sola – Iluminação: Iacov Hillel Balé da Cidade de São Paulo – 90’ 1987 • Cantata para América Mágica A. Ginastera (Cantata para América Mágica) Figurino: Murilo Sola – Iluminação: Cacá D’Andretta Balé da Cidade de São Paulo – 35’ • Berimbau N. Vasconcelos (O Berimbau) Figurino: Murilo Sola – Iluminação: Cacá D’Andretta Balé da Cidade de São Paulo – 20’ 442

1986 • Encontro no Espaço H.Villa Lobos/E.Gismonti (Trem Caipira) C. Haden (Silence) E. Gismonti (O Aamor que Move o Sol e as Outras Estrelas) M. A. Araújo Cenário: Sergio Luiz Coelho e L. Arrieta – Figurinos: Sergio Luiz Coelho e L. Arrieta – Iluminação: Ricardo Teixeira e L. Arrieta Grupo Camaleão / Belo Horizonte – 70’ • Mandala M. Ravel (Bolero) Figurino: Afonso César e L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Balé Teatro Castro Alves / Salvador – 20’

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• Magnificat J. S. Bach (Magnificat, com quatro interpolações natalinas) Cenário: Conrado Sogernicht Filho e L. Arrieta - Figurinos: L. Arrieta e Renata Schussheim (1990) - Iluminação: Cleuza Fernández e L. Arrieta Balé da Cidade de São Paulo – 45’ 1985 • Destino (Unmei) S. Fukai (Quatro Movimentos Paródicos) M. Ohki (Meditação Noturna) Y. Kiyose (Festival de Danças Japonesas) K. Yamada (Mandara No Hana) Figurinos: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Grupo Cisne Negro / São Paulo – 70’ 443

• Sanctus (ou Segunda Oração) versão completa D. Fanshawe (African Sanctus) Figurinos: Afonso César e L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Balé Teatro Castro Alves / Salvador – 70’ • Abrazo J. S. Bach (Concerto para Oboé, Violino e Cordas em Sol Menor) Figurinos: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Ballet Ismael Guiser / São Paulo – 15’ • Colheita K. Jarrett (The Köln Concert - partes) Figurinos: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Grupo Iris de Alagoas / Maceió – 15’

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• A Sagração da Primavera I. Stravinsky (Le Sacre du Printemps) Slides: Leo Tavares e Luiz Antonio Fernandez – Espaço cênico: L. Arrieta – Figurinos: Cecília Cerroti e L. Arrieta – Iluminação: Iacov Hillel Balé da Cidade de São Paulo – 40’ 1984 • Paisagem com Gaivotas Vangelis (Chariots of Fire) Figurinos: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Ópera Paulista / São Paulo – 20’

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1983 • Signos O. Montenegro (Signos, especialmente composta) Figurinos: L. Arrieta Grupo Núcleo Artístico / Belo Horizonte – 60’ • Do Homem ao Poeta C. Orff (Carmina Burana / De temporum fine comoedia – partes) Figurinos: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Grupo Cisne Negro / São Paulo – 75’ • Paisagem em Azul C. Haden (Silence) P. Metheny Group (The Search) Figurinos: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Grupo Produções Artísticas / Assunção, Paraguai – 15’ 1982 • São Paulo Eterno Infinito (especial para a TV Globo) Vangelis (várias músicas) Externa: Elevado Costa e Silva

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Figurinos: L. Arrieta Balé da Cidade de São Paulo – 35’ • Terceira Oração (ou Oração das Madres de la Plaza de Mayo) A. Ramírez (Misa Criolla) Figurinos: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta Grupo Imbahá / Porto Alegre – 20’ • Maceió Vangelis (Chariots of Fire – partes) Figurinos: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Grupo Íris de Alagoas / Maceió – 15’ • Tempo de Tango R. Mederos (Nuestros Hijos, Todo Ayer) A. Piazzolla (Adiós Nonino) Figurinos: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Grupo Cisne Negro / São Paulo – 20’

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• Nascer ou Algumas Profecias Cotidianas e Eternas Vangelis (Odas -partes) / S. Barber (Adágio para Cordas opus 11) / G. Verdi (Réquiem – parte) / G. Mahler (Adagietto da 5ª Sinfonia) / L. Berio (Sinfonia) / C. Orff (De temporum fine comoedia – partes) Cenário: Raul Belem Machado – Figurinos: L. Arrieta - Iluminação: Ricardo Teixeira e L. Arrieta Grupo Elo / Belo Horizonte – 80’ • Trindade (de Nascer ou Algumas Profecias Cotidianas e Eternas - do ciclo Três) S. Barber (Adágio para Cordas opus 11) Figurinos: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Grupo Elo / Belo Horizonte – 10’

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1981 • Libertas, quae sera tamen E. Gismonti (especialmente composta) Roteiro: Iacov Hillel – Cenário: Flávio Império – Figurinos: Flávio Império – Iluminação: Iacov Hillel Corpo de Baile Municipal de São Paulo - 80’ • Eterno Infinito Vangelis (várias músicas) Figurinos: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta Balé da Cidade de São Paulo – 35’

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1980 • Da Infância G. Mahler (Canções) Figurino: Murilo Sola – Iluminação: Iacov Hillel Corpo de Baile Municipal de São Paulo – 40’ • Um Retrato L. Berio (A-Ronne) Cenário: L. Arrieta – Figurino: a Companhia – Iluminação: L. Arrieta Corpo de Baile Municipal de São Paulo – 35’ • Primeira Oração F. Poulenc (Concerto para Órgão, Cordas e Tímpano) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Grupo Cisne Negro / São Paulo – 30’ • Sanctus (ou Segunda Oração ) D. Fanshawe (African Sanctus) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: Iacov Hillel Corpo de Baile Municipal de São Paulo – 25’

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• Para un Niño Muerto G. Mahler (Kindertotenlieder) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Grupo Casa Forte / São Paulo – 30’ • Céu e Inferno (para o curta metragem Retrato de Ideko) Vangelis (Céu e Inferno) Figurinos: L. Arrieta Solo para Ivonice Satie / São Paulo – 5’ 1979 • Children’s Corner C. Debussy (Children’s Corner) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Ballet Ismael Guiser / São Paulo – 15’ 447

• Presenças S. Rachmaninoff (Rapsódia sobre um tema de Paganini opus 43) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Corpo de Baile Municipal de São Paulo – 24’ 1978 • Testemunho G. Mahler (1º Movimento da 2ª Sinfonia) Figurino: Murilo Sola – Iluminação: L. Arrieta Corpo de Baile Municipal de São Paulo - 20’ • Pastoral anônimos / Canteloube (Canções de Auvergne) Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Grupo Andança / São Paulo – 20’

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1977 • Camila G. Mahler (Andante da 6ª Sinfonia) Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta Corpo de Baile Municipal de São Paulo – 20’

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Índice No Passado Está a História do Futuro – Alberto Goldman

5

Coleção Aplauso – Hubert Alquéres

7

Apresentação – Luis Arrieta

11

Introdução

19

Em Buenos Aires

25

Em São Paulo

123

Pelo Mundo

221

Referências bibliográficas

419

Obra Completa

421

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Crédito das Fotografias Alice Bravo 297 Antonio Carlos Cardoso 23, 259, 260, 359, 380, 381, 382, 404, 405, 406, 418 Arnaldo J.G. Torres 293, 349 Beto Magalhães 277 Cesar Cichero 104, 106, 110 Emídio Luisi 239, 241 Gerson Zanini 126, 127, 135, 139, 140, 141, 144, 156, 157, 158, 159, 162, 168, 196, 197, 200, 201, 212, 213, 235, 292, 293 Isabel Gouvêa 258, 301, 311, 312, 358 Ismael Francisco 265 José Eduardo La Marca 29 Junior Gama 187, 188 Marc Van Appelghem 305, 307, 308 Osmar G. 328, 329 Ramón F. Rivera 224, 225, 227 Reginaldo Azevedo 399, 400, 401 Robson Lourenço 250 Silvia Machado 248, 249, 250, 251, 390, 391, 392 Theo Gröne 220 A despeito dos esforços de pesquisa empreendidos pela Editora para identificar a autoria das fotos expostas nesta obra, parte delas não é de autoria conhecida de seus organizadores. Agradecemos o envio ou comunicação de toda informação relativa à autoria e/ou a outros dados que porventura estejam incompletos, para que sejam devidamente creditados.

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Coleção Aplauso Série Cinema Brasil Alain Fresnot – Um Cineasta sem Alma Alain Fresnot

Agostinho Martins Pereira – Um Idealista Máximo Barro

Alfredo Sternheim – Um Insólito Destino Alfredo Sternheim

O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias Roteiro de Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylaert e Cao Hamburger

Anselmo Duarte – O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten

Antonio Carlos da Fontoura – Espelho da Alma Rodrigo Murat

Ary Fernandes – Sua Fascinante História Antônio Leão da Silva Neto

O Bandido da Luz Vermelha Roteiro de Rogério Sganzerla

Batismo de Sangue Roteiro de Dani Patarra e Helvécio Ratton

Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaia e Carlos Reichenbach

Braz Chediak – Fragmentos de uma Vida Sérgio Rodrigo Reis

Cabra-Cega Roteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman

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O Caçador de Diamantes Roteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo Barro

Carlos Coimbra – Um Homem Raro Luiz Carlos Merten

Carlos Reichenbach – O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra

A Cartomante Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis

Casa de Meninas Romance original e roteiro de Inácio Araújo

O Caso dos Irmãos Naves Roteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio Person

O Céu de Suely Roteiro de Karim Aïnouz, Felipe Bragança e Maurício Zacharias

Chega de Saudade Roteiro de Luiz Bolognesi

Cidade dos Homens Roteiro de Elena Soárez

Como Fazer um Filme de Amor Roteiro escrito e comentado por Luiz Moura e José Roberto Torero

O Contador de Histórias Roteiro de Luiz Villaça, Mariana Veríssimo, Maurício Arruda e José Roberto Torero

Críticas de B.J. Duarte – Paixão, Polêmica e Generosidade Luiz Antonio Souza Lima de Macedo

Críticas de Edmar Pereira – Razão e Sensibilidade Org. Luiz Carlos Merten

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Críticas de Jairo Ferreira – Críticas de invenção: Os Anos do São Paulo Shimbun Org. Alessandro Gamo

Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão – Analisando Cinema: Críticas de LG Org. Aurora Miranda Leão

Críticas de Ruben Biáfora – A Coragem de Ser Org. Carlos M. Motta e José Júlio Spiewak

De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias

Desmundo Roteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina Anzuategui

Djalma Limongi Batista – Livre Pensador Marcel Nadale

Dogma Feijoada: O Cinema Negro Brasileiro Jeferson De

Dois Córregos Roteiro de Carlos Reichenbach

A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho

Os 12 Trabalhos Roteiro de Cláudio Yosida e Ricardo Elias

Estômago Roteiro de Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da Natividade

Feliz Natal Roteiro de Selton Mello e Marcelo Vindicatto

Fernando Meirelles – Biografia Prematura Maria do Rosário Caetano

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Fim da Linha Roteiro de Gustavo Steinberg e Guilherme Werneck; Storyboards de Fábio Moon e Gabriel Bá

Fome de Bola – Cinema e Futebol no Brasil Luiz Zanin Oricchio

Francisco Ramalho Jr. – Éramos Apenas Paulistas Celso Sabadin

Geraldo Moraes – O Cineasta do Interior Klecius Henrique

Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo Luiz Zanin Oricchio

Helvécio Ratton – O Cinema Além das Montanhas Pablo Villaça

O Homem que Virou Suco Roteiro de João Batista de Andrade, organização de Ariane Abdallah e Newton Cannito

Ivan Cardoso – O Mestre do Terrir Remier

João Batista de Andrade – Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano

Jorge Bodanzky – O Homem com a Câmera Carlos Alberto Mattos

José Antonio Garcia – Em Busca da Alma Feminina Marcel Nadale

José Carlos Burle – Drama na Chanchada Máximo Barro

Liberdade de Imprensa – O Cinema de Intervenção Renata Fortes e João Batista de Andrade

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Luiz Carlos Lacerda – Prazer & Cinema Alfredo Sternheim

Maurice Capovilla – A Imagem Crítica Carlos Alberto Mattos

Mauro Alice – Um Operário do Filme Sheila Schvarzman

Máximo Barro – Talento e Altruísmo Alfredo Sternheim

Miguel Borges – Um Lobisomem Sai da Sombra Antônio Leão da Silva Neto

Não por Acaso Roteiro de Philippe Barcinski, Fabiana Werneck Barcinski e Eugênio Puppo

Narradores de Javé Roteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu

Olhos Azuis Argumento de José Joffily e Jorge Duran Roteiro de Jorge Duran e Melanie Dimantas

Onde Andará Dulce Veiga Roteiro de Guilherme de Almeida Prado

Orlando Senna – O Homem da Montanha Hermes Leal

Pedro Jorge de Castro – O Calor da Tela Rogério Menezes

Quanto Vale ou É por Quilo Roteiro de Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio Bianchi

Ricardo Pinto e Silva – Rir ou Chorar Rodrigo Capella

Rodolfo Nanni – Um Realizador Persistente Neusa Barbosa

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Salve Geral Roteiro de Sergio Rezende e Patrícia Andrade

O Signo da Cidade Roteiro de Bruna Lombardi

Ugo Giorgetti – O Sonho Intacto Rosane Pavam

Viva-Voz Roteiro de Márcio Alemão

Vladimir Carvalho – Pedras na Lua e Pelejas no Planalto Carlos Alberto Mattos

Vlado – 30 Anos Depois Roteiro de João Batista de Andrade

Zuzu Angel Roteiro de Marcos Bernstein e Sergio Rezende

Série Cinema Bastidores – Um Outro Lado do Cinema Elaine Guerini

Série Ciência & Tecnologia Cinema Digital – Um Novo Começo? Luiz Gonzaga Assis de Luca

A Hora do Cinema Digital – Democratização e Globalização do Audiovisual Luiz Gonzaga Assis De Luca

Série Crônicas Crônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeças Maria Lúcia Dahl

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Série Dança Rodrigo Pederneiras e o Grupo Corpo – Dança Universal Sérgio Rodrigo Reis

Série Música Maestro Diogo Pacheco – Um Maestro para Todos Alfredo Sternheim

Rogério Duprat – Ecletismo Musical Máximo Barro

Sérgio Ricardo – Canto Vadio Eliana Pace

Wagner Tiso – Som, Imagem, Ação Beatriz Coelho Silva

Série Teatro Brasil Alcides Nogueira – Alma de Cetim Tuna Dwek

Antenor Pimenta – Circo e Poesia Danielle Pimenta

Cia de Teatro Os Satyros – Um Palco Visceral Alberto Guzik

Críticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como Oficio Org. Carmelinda Guimarães

Críticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas e Uma Paixão Org. José Simões de Almeida Júnior

Federico Garcia Lorca – Pequeno Poema Infinito Antonio Gilberto e José Mauro Brant

Ilo Krugli – Poesia Rasgada Ieda de Abreu

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João Bethencourt – O Locatário da Comédia Rodrigo Murat

José Renato – Energia Eterna Hersch Basbaum

Leilah Assumpção – A Consciência da Mulher Eliana Pace

Luís Alberto de Abreu – Até a Última Sílaba Adélia Nicolete

Maurice Vaneau – Artista Múltiplo Leila Corrêa

Renata Palottini – Cumprimenta e Pede Passagem Rita Ribeiro Guimarães

Teatro Brasileiro de Comédia – Eu Vivi o TBC Nydia Licia

O Teatro de Abílio Pereira de Almeida Abílio Pereira de Almeida

O Teatro de Aimar Labaki Aimar Labaki

O Teatro de Alberto Guzik Alberto Guzik

O Teatro de Antonio Rocco Antonio Rocco

O Teatro de Cordel de Chico de Assis Chico de Assis

O Teatro de Emílio Boechat Emílio Boechat

O Teatro de Germano Pereira – Reescrevendo Clássicos Germano Pereira

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O Teatro de José Saffioti Filho José Saffioti Filho

O Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: Ópera Joyce – Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso – Pólvora e Poesia Alcides Nogueira

O Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um teatro veloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantos de Maldoror – De Profundis – A Herança do Teatro Ivam Cabral

O Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e Dona Coisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista Vilma Noemi Marinho

Teatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o Ar Neyde Veneziano

O Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista – O Fingidor – A Terra Prometida Samir Yazbek

O Teatro de Sérgio Roveri Sérgio Roveri

Teresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadas em Cena Ariane Porto

Série Perfil Analy Alvarez – De Corpo e Alma Nicolau Radamés Creti

Aracy Balabanian – Nunca Fui Anjo Tania Carvalho

Arllete Montenegro – Fé, Amor e Emoção Alfredo Sternheim

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Ary Fontoura – Entre Rios e Janeiros Rogério Menezes

Berta Zemel – A Alma das Pedras Rodrigo Antunes Corrêa

Bete Mendes – O Cão e a Rosa Rogério Menezes

Betty Faria – Rebelde por Natureza Tania Carvalho

Carla Camurati – Luz Natural Carlos Alberto Mattos

Cecil Thiré – Mestre do seu Ofício Tania Carvalho

Celso Nunes – Sem Amarras Eliana Rocha

Cleyde Yaconis – Dama Discreta Vilmar Ledesma

David Cardoso – Persistência e Paixão Alfredo Sternheim

Débora Duarte – Filha da Televisão Laura Malin

Denise Del Vecchio – Memórias da Lua Tuna Dwek

Elisabeth Hartmann – A Sarah dos Pampas Reinaldo Braga

Emiliano Queiroz – Na Sobremesa da Vida Maria Leticia

Emilio Di Biasi – O Tempo e a Vida de um Aprendiz Erika Riedel

Etty Fraser – Virada Pra Lua Vilmar Ledesma

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Ewerton de Castro – Minha Vida na Arte: Memória e Poética Reni Cardoso

Fernanda Montenegro – A Defesa do Mistério Neusa Barbosa

Fernando Peixoto – Em Cena Aberta Marília Balbi

Geórgia Gomide – Uma Atriz Brasileira Eliana Pace

Gianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri

Glauco Mirko Laurelli – Um Artesão do Cinema Maria Angela de Jesus

Ilka Soares – A Bela da Tela Wagner de Assis

Irene Ravache – Caçadora de Emoções Tania Carvalho

Irene Stefania – Arte e Psicoterapia Germano Pereira

Isabel Ribeiro – Iluminada Luis Sergio Lima e Silva

Isolda Cresta – Zozô Vulcão Luis Sérgio Lima e Silva

Joana Fomm – Momento de Decisão Vilmar Ledesma

John Herbert – Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa

Jonas Bloch – O Ofício de uma Paixão Nilu Lebert

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Jorge Loredo – O Perigote do Brasil Cláudio Fragata

José Dumont – Do Cordel às Telas Klecius Henrique

Leonardo Villar – Garra e Paixão Nydia Licia

Lília Cabral – Descobrindo Lília Cabral Analu Ribeiro

Lolita Rodrigues – De Carne e Osso Eliana Castro

Louise Cardoso – A Mulher do Barbosa Vilmar Ledesma

Marcos Caruso – Um Obstinado Eliana Rocha

Maria Adelaide Amaral – A Emoção Libertária Tuna Dwek

Marisa Prado – A Estrela, O Mistério Luiz Carlos Lisboa

Mauro Mendonça – Em Busca da Perfeição Renato Sérgio

Miriam Mehler – Sensibilidade e Paixão Vilmar Ledesma

Naum Alves de Souza: Imagem, Cena, Palavra Alberto Guzik

Nicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em Família Elaine Guerrini

Nívea Maria – Uma Atriz Real Mauro Alencar e Eliana Pace

Niza de Castro Tank – Niza, Apesar das Outras Sara Lopes

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Paulo Betti – Na Carreira de um Sonhador Teté Ribeiro

Paulo José – Memórias Substantivas Tania Carvalho

Paulo Hesse – A Vida Fez de Mim um Livro e Eu Não Sei Ler Eliana Pace

Pedro Paulo Rangel – O Samba e o Fado Tania Carvalho

Regina Braga – Talento é um Aprendizado Marta Góes

Reginaldo Faria – O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis

Renata Fronzi – Chorar de Rir Wagner de Assis

Renato Borghi – Borghi em Revista Élcio Nogueira Seixas

Renato Consorte – Contestador por Índole Eliana Pace

Rolando Boldrin – Palco Brasil Ieda de Abreu

Rosamaria Murtinho – Simples Magia Tania Carvalho

Rubens de Falco – Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia

Ruth de Souza – Estrela Negra Maria Ângela de Jesus

Sérgio Hingst – Um Ator de Cinema Máximo Barro

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Sérgio Viotti – O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert

Silnei Siqueira – A Palavra em Cena Ieda de Abreu

Silvio de Abreu – Um Homem de Sorte Vilmar Ledesma

Sônia Guedes – Chá das Cinco Adélia Nicolete

Sonia Maria Dorce – A Queridinha do meu Bairro Sonia Maria Dorce Armonia

Sonia Oiticica – Uma Atriz Rodriguiana? Maria Thereza Vargas

Stênio Garcia – Força da Natureza Wagner Assis

Suely Franco – A Alegria de Representar Alfredo Sternheim

Tatiana Belinky – ... E Quem Quiser Que Conte Outra Sérgio Roveri

Theresa Amayo – Ficção e Realidade Theresa Amayo

Tony Ramos – No Tempo da Delicadeza Tania Carvalho

Umberto Magnani – Um Rio de Memórias Adélia Nicolete

Vera Holtz – O Gosto da Vera Analu Ribeiro

Vera Nunes – Raro Talento Eliana Pace

Walderez de Barros – Voz e Silêncios Rogério Menezes

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Walter George Durst – Doce Guerreiro Nilu Lebert

Zezé Motta – Muito Prazer Rodrigo Murat

Especial Agildo Ribeiro – O Capitão do Riso Wagner de Assis

Av. Paulista, 900 – a História da TV Gazeta Elmo Francfort

Beatriz Segall – Além das Aparências Nilu Lebert

Carlos Zara – Paixão em Quatro Atos Tania Carvalho

Célia Helena – Uma Atriz Visceral Nydia Licia

Charles Möeller e Claudio Botelho – Os Reis dos Musicais Tania Carvalho

Cinema da Boca – Dicionário de Diretores Alfredo Sternheim

Dina Sfat – Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto

Eva Todor – O Teatro de Minha Vida Maria Angela de Jesus

Eva Wilma – Arte e Vida Edla van Steen

Gloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya

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Lembranças de Hollywood Dulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo Sternheim

Maria Della Costa – Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx

Mazzaropi – Uma Antologia de Risos Paulo Duarte

Ney Latorraca – Uma Celebração Tania Carvalho

Odorico Paraguaçu: O Bem-amado de Dias Gomes – História de um Personagem Larapista e Maquiavelento José Dias

Raul Cortez – Sem Medo de se Expor Nydia Licia

Rede Manchete – Aconteceu, Virou História Elmo Francfort

Sérgio Cardoso – Imagens de Sua Arte Nydia Licia

Tônia Carrero – Movida pela Paixão Tania Carvalho

TV Tupi – Uma Linda História de Amor Vida Alves

Victor Berbara – O Homem das Mil Faces Tania Carvalho

Walmor Chagas – Ensaio Aberto para Um Homem Indignado Djalma Limongi Batista

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©

2010

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Pereira, Roberto Luis Arrieta : poeta do movimento / Roberto Pereira – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010. 472p. : il. – (Coleção aplauso. Série Dança / Coordenador geral Rubens Ewald Filho) ISBN 978-85-7060-750-8 1. Dança 2. Coreografia - Argentina I. Arrieta, Luis, 1951 II. Ewald Filho, Rubens. III. Título. IV. Série. CDD 792.820 982 Índice para catálogo sistemático: 1. Dança : Brasil 792.820 982. Proibida reprodução total ou parcial sem autorização prévia do autor ou dos editores Lei nº 9.610 de 19/02/1998 Foi feito o depósito legal Lei nº 10.994, de 14/12/2004 Impresso no Brasil / 2010 Todos os direitos reservados.

Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 Mooca 03103-902 São Paulo SP www.imprensaoficial.com.br/livraria livros@imprensaoficial.com.br SAC 0800 01234 01 sac@imprensaoficial.com.br

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Coleção Aplauso Série Dança Coordenador Geral Coordenador Operacional e Pesquisa Iconográfica Projeto Gráfico Editor Assistente Assistente Editoração

Rubens Ewald Filho Marcelo Pestana Carlos Cirne Claudio Erlichman Karina Vernizzi Aline Navarro dos Santos Ana Lúcia Charnyai

Tratamento de Imagens Revisão

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José Carlos da Silva Dante Pascoal Corradini

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Formato: 12 x 18 cm Tipologia: Frutiger Papel miolo: Offset LD 90 g/m2 Papel capa: Triplex 250 g/m2 Número de páginas: 472 Editoração, CTP, impressão e acabamento: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

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Coleção Aplauso | em todas as livrarias e no site www.imprensaoficial.com.br/livraria

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