VENTANIA peça Alcides Nogueira

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VENTANIA

ALCIDES NOGUEIRA


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"Quando olho através da memória, mais que saudade eu sinto medo." José Vicente de Paula

Para Gabriel Villela, com todo o amor. Para Zé Vicente, com todo o meu respeito.

Alcides Nogueira São Paulo, inverno de 1993


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VENTANIA

Esta peça não tem absolutamente nada a ver com a vida pessoal de José Vicente de Paula. Trata-se de uma forma de homenagear um Autor que teve a coragem de navegar por águas muito duras e congeladas, com seu barco bêbado e louco. Talvez, por conta dessa aventura, todos nós tenhamos conseguido nos libertar um pouco mais. Em VENTANIA tudo é ficção, pura ficção, mas consequência de um grande amor e respeito que devoto a ele - o convalescente. A.N.


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PERSONAGENS

VICENTE

LUZIA

A AVÓ

A MÃEMORTA

A DEUSA

GEORGE MICHAEL


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ESCURO

QUASE

TOTAL.

OUVE-SE

“SAN

VICENTE”,

COM

MILTON

NASCIMENTO. UMA FRESTA DOURADA MOSTRA A SILHUETA DA DEUSA, FLUTUANDO, COMO MAL TOCANDO O CHÃO. LINDA, ELA POSSUI ASAS COMO UM ANJO, E UMA PRESENÇA DE CAMPOS E ESTRELAS. DE SEUS CABELOS SAEM PEQUENOS RAIOS QUE ILUMINAM SUA PASSAGEM SILENCIOSA. A DEUSA NÃO SE DETÉM. CORRE O PALCO DE PONTA A PONTA, ENQUANTO O VENTO AUMENTA, AUMENTA, AUMENTA. COM GESTOS DELICADOS, ELA CONDUZ O VENTO! O VENTO ASSOBIA, FAZ TREMER O QUE HOUVER EM CENA, DEIXA UM CLIMA DE MUDANÇA, DE COISAS QUE ESTÃO PARA ACONTECER. A DEUSA, FINALMENTE, ESTANCA EM MEIO AO PALCO. DIRETAMENTE PARA A PLATÉIA. SORRI, DIVINA, ENQUANTO ACENDE UM BASEADO E COMEÇA A FALAR:

DEUSA -

Como se fosse um chiffon! Um tecido leve, muito leve, cada vez mais leve, que alça vôo quando se estende a mão. Não há vento que segure o chiffon! O Vento... Ah, está aqui o vento... O vento vai levando tudo que foi ruim. Uma memória medonha que ficou instalada em todos vocês. Uma memória esquisita, de pânico e medo. Uma memória que ninguém queria ter. Mas a memória tem sua força própria. A força da memória está nisso: em ser ela mesma, sozinha contra o vento. O vento... Ah, o vento... Eu sei que muitos dariam tudo, dariam seus ouros, seus poderes, suas coisas mais sagradas para que o vento parasse. Mas o vento... Ah, o vento! Este vento só pára quando chegar o final da história... E o final da história é tão bonito... Tão delirantemente bonito, como se fosse um conto-de-fadas,


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uma

balada

romântica,

um

bolero

dançado

em

uma

churrascaria de estrada, uma valsa do Imperador, um truque de mágica, um gesto de amor, uma palavra solta... O vento... Ah, o vento... Havia o Casarão. Morava gente nesse Casarão, que, aos poucos foi ficando quieto. Um dia fecharam as portas, depois apagaram as luzes, depois a chuva quase destruiu o telhado, a cumeeira quase caiu. Mas o vento... O vento espantou os medos, e o Casarão ficou. Como ficou quem foi embora e só se lembrava dele. Uma história é feita de imagens que ficam na cabeça, nos olhos, nas retinas, no coração. Uma história é mentira. Toda história é mentira, porque se quiser, cada um muda tudo. Cada um faz a sua. Cada um sabe que história é história é história.

A DEUSA RODOPIA, E SOME. COM O VENTO SENDO OUVIDO CADA VEZ MAIS FORTE. LUZ INDICA A MÃEMORTA VINDO DO FUNDO DO PALCO, CAMBALEANTE, COM UM VIDRINHO NA MÃO. A AVÓ VEM ATRÁS, NERVOSA. LUZIA, A FILHA CEGA, ESCONDIDA POR ALI.

AVÓ -

Deus condena quem se mata! Ninguém pode tirar a vida de ninguém. Nem a sua própria vida. Você vai penar no Fogo Eterno porque fez essa bobagem. E ainda mais com veneno.

MÃEMORTA - Se eu morri, não preciso mais ouvir a senhora reclamar de tudo! Sempre reclamando de tudo. Sempre... sempre.... Eu passei a vida ouvindo a senhora falar disso, daquilo.... Não quero passar a Eternidade desse jeito também.


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AVÓ -

Você não sabe o que espera sua alma na Eternidade!

MÃEMORTA - Faz tanto tempo que não tenho alma.

AVÓ -

Não fale isso... Se as crianças escutam!

MÃEMORTA - As crianças nunca me escutaram. Eu queria tanto que Vicente estivesse comigo. Talvez ele até bebesse um pouquinho da formicida comigo. Ele gosta de saber o que acontece quando a gente morre. Ele sempre brinca de morto, a senhora nunca reparou? O Zé fica lá, brincando de padre, todo metido, todo cheio de Aves-Marias, levando a coitadinha da irmã pela mão, vestida de Santa Luzia... e o Vicente sai por aí.

AVÓ -

O Vicente é filho do Mal! Você não devia ter parido aquele moleque. Nem o Zé. Nem a Luzia!

MÃEMORTA- O Vicente tem os olhos mais bonitos de todas essas montanhas. Eu me lembro de quando ele nasceu. O Pai já tinha morrido. Avó, o Pai dele morreu quando mesmo? No terceiro ou no quarto mês da minha gravidez? Não consigo me lembrar direito disso...

AVÓ -

Eu acho que o Pai nem existiu.

MÃEMORTA - Existiu sim! Foram tantos pais... Foram tantos...


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AVÓ -

Feche essa boca de pecados... pelo menos depois de morta. Eu vou fechar seus olhos.

MÃEMORTA - Vou ficar como minha filha ceguinha. Agora eu vou saber como ela é.

AVÓ -

Ainda bem que ela e o Zé continuam brincando de procissão. Não viram essa pouca-vergonha que você fez. Onde está o vidro da formicida?

MÃEMORTA - Sei lá... Deve ter ficado por aí... Talvez em cima do pichichê. Talvez dentro da escarradeira que foi do Avô. Eu não sei. Tomei a formicida com suco de pitanga e foi ficando tudo vermelho. Sabe, Avó, tinha uma Deusa.

AVÓ -

Não fale mais bobagem! Eu preciso te preparar para o enterro. A

Missa da Cova vai ter de ser bonita. Muito bonita. Não vou

dizer pra ninguém que você se matou. Morreu de tifo. Tifo é bonito. Deixa os mortos com cara de quem não sofreu muito. O Casarão vai ficar cheio de flores. Você ainda gosta de angélicas?

MÃEMORTA - Não ponha angélica perto do meu caixão. Fica muito cheiro no ar. Não, pode por sim. A Deusa...

AVÓ -

Pare com essa história de Deusa e morra de uma vez! Mas onde você botou o vidro da formicida? Eu não posso deixar as


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crianças acharem essa porcaria...

MÃEMORTA - Sabe, Avó... Gozado, eu nunca a chamei de Mãe, foi sempre de Avó. A senhora já nasceu tão velha, acho, que nunca teve cara de Mãe. Sempre foi de Avó...

AVÓ -

E você nunca teve cara de Mãe. Sempre de biscate. Nunca soube o quanto eu chorei quando você ficava tremendo. Eu sabia porque você tremia. Entendia porque você sentia aquele calorão... E saía correndo, de madrugada, pro meio do pasto...

MÃEMORTA -

AVÓ -

Sabia nada...

Sabia. Você ia fazer coisa feia no meio do capim.

Ficava

deitada, nua, olhava pra lua, pedindo que a luz viesse até você. Iluminasse os seus miúdos que mulher nenhuma pode mostrar, a não ser pro marido que o Padre abençoou no altar - e sempre no escuro, de camisola - e você ficava lá... Mostrando tudo. Querendo. Ai, meu Deus, eu não posso dizer isso...

MÃEMORTA - Eu digo. Querendo que viesse um enorme cavaleiro... Um Lancelot... Cheirando a estrume, feno e cachaça, e me abraçasse e rolasse comigo pelo capim e me penetrasse!

AVÓ -

Cala essa boca, lazarenta!

MÃEMORTA - Agora eu posso falar tudo. Não calo mais minha boca não. Eu


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queria que esse homem que não existe viesse e me arrancasse tudo de dentro de mim. E me enchesse com o leite dele. Aquele leite quente, grosso, com cheiro de lenda. A senhora já sentiu o cheiro de lenda que tem o leite do homem?

AVÓ -

O Inferno já abriu as portas pra você.

A MÃEMORTA VAI PARA OUTRO PONTO DO PALCO. OUVE-SE ELVIS PRESLEY CANTANDO “LOVE ME TENDER”.

MÃEMORTA - Uma noite, eu sabia que estava pra acontecer. Era o vento me dizendo. (COMEÇA A FALAR PRO IMAGINÁRIO) Vem! Você pode me conhecer inteirinha por dentro! Vem!

SURGE A DEUSA, QUE VAI PARA A MÃEMORTA. COMEÇA A AFAGÁ-LA. A MÃEMORTA VAI SE ENTREGANDO, GEMENDO DE PRAZER. TRANSAM.

MÃEMORTA - Olhe para cima! No céu há uma porta se abrindo. (T) Subia e descia um anjo, com asas prateadas. Na porta, surgiu um Viajante! Meu primeiro filho! Será o Cavaleiro do Dia, que caminhará em direção ao Sol. (APALPA O VENTRE) Tudo aqui dentro está gritando pela Noite. Eu posso sentir porque o movimento dele é outro. Na estrada da Capital tem um príncipe da cor da Serpente. Na mãe esquerda ele segura um punhal; na mão direita, um Cálice. A cidade grande brilha como um metal e acena com as luzes. Ela tem o cheiro da Máquina. E é a Máquina por dentro e por fora, com garras e dentes. Ele tem o


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cheiro da Máquina. Ele é o Cavaleiro da Noite e navegará com um barco negro e desgovernado. (T) Ela quase nem fala. É a hora da Solidão. A Hora da Cegueira. Ela é a Deusa do Crepúsculo. A filha ceguinha, que vai estar sempre por aí brincando de Santa Luzia. Os olhos na mão. Os olhos na Mãe.

A MÃEMORTA VAI PARINDO OS TRÊS FILHOS. A DEUSA SURGE E ANUNCIA:

DEUSA -

Zé, Vicente e Luzia!

A MÃEMORTA ESTÁ NO CHÃO, DEITADA COM OS PEITOS À MOSTRA. ZÉ, VICENTE E LUZIA AVANÇAM SOBRE ELA, MAMANDO AVIDAMENTE NELA. A MÃEMORTA, APESAR DA DOR, SENTE MUITO PRAZER. ATÉ QUE SURGE A AVÓ, FIRME E RÍGIDA.

AVÓ -

Parem vocês três! (ESPANTA ZÉ, VICENTE E LUZIA E FALA COM A MÃEMORTA) Você está pensando que isto aqui é a fundação de Roma? Já para o seu caixão!

A AVÓ VAI VESTINDO A MÃEMORTA COM UMA ROUPA NEGRA.

MÃEMORTA- Tão cheios de vida...

AVÓ-

Leite com formicida é pior do que leite com manga. Você ainda vai matar esses três coitados!

MÃEMORTA- Leite de loba. Tudo tão bonito. Tudo tão dolorosamente forte.


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AVÓ -

Você mistura a Dor com tudo. Mas que coisa!

MÃEMORTA- É que dói mesmo. Eles me sugaram com tanta força... Mas é dor de felicidade. Agora eles estão batizados com esse leite.

AVÓ-

Leite com formicida? Não me conformo...

MÃEMORTA- A senhora não disse que eu morri de tifo? O que é meu de dentro agora está fora. Na boca deles. Três bocas abertas para o mundo, e quem deu esse mundo a eles fui eu. Com o que presta e com o que não presta. Com o que bom e com o que é mau. Vida, Avó! Corpo de todos os Cristos sendo levado para que todos o vejam!

AVÓ -

Corpo de Cristo tem que ser mostrado na procissão. Já para o seu caixão!

A MÃEMORTA VAI PARA UM OUTRO PONTO, ONDE, EM PÉ, ASSUME A POSTURA DE UMA MORTA.

MÃEMORTA - A Via Sacra vai começar!

LUZ SOBRE LUZIA, DE ÓCULOS ESCUROS, TENTANDO NÃO CAIR DAS COSTAS DE ZÉ, QUE VEM ENGATINHANDO COM ELA EM CIMA. OS DOIS CANTAM “CORAÇÃO SANTO”.

ZÉ -

Santa Luzia que nos abençoe! Santa Luzia que nos mostre o


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caminho do Bem! Santa Luzia que abra os olhos dos homens e mostre o verdadeiro Jesus!

AVÓ -

Miserere nobis!

LUZIA -

Eu ia ser Santa Izildinha!

ZÉ-

Mas é Santa Luzia e pronto!

LUZIA -

Tô cheia de ser Santa Luzia! Todo dia é assim. Você fala que vai sair a procissão e eu fico toda feliz, achando que vou ser Santa Izildinha ou Santa Maria Goretti... Mas aí você mente pra mim e vai colocando a roupa de Santa Luzia. Tô cheia de ser Santa Luzia!!!!

ZÉ -

Cega só pode ser Santa Luzia!

LUZIA -

Não me chama de cega!

ZÉ -

Vou te chamar do quê? Você não vê. Quem não vê é cega, e Santa Luzia é a protetora dos olhos. Pronto, taí porque você tem de ser Santa Luzia e vai ser Santa Luzia e agora pára de ficar abrindo esse bocão porque a procissão tá atrasada. Olha o povo esperando pra receber a hóstia consagrada.

LUZIA -

Como eu posso ver se sou cega?


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ZÉ -

Sendo Santa Luzia, você pode ver. Credo, será que é tão difícil acreditar assim na Santidade? Por isso que você vai pro inferno. Quando você morrer, você vai pro inferno, vai ficar lá, queimando, virando torresmo na mão do Chifrudo, e eu não vou te salvar não. Eu vou estar subindo aos céus, de dourado e cheio de luz, numa corda bamba feita de fios de ovos, como se fosse um santo. Você acha que eu sou um santo?

LUZIA -

E tem santo chamado Zé? Nunca vi!

ZÉ -

Se fosse o Vicente você ia dizer que tem santo chamado Vicente, e que por isso ele ia pro céu, ia encontrar o Espírito Santo, ia entender o mistério da Santíssima Trindade e tudo. Mas só porque eu chamo Zé... Olha aqui, sua ceguinha de merda, Zé é um nome muito bonito. O nome do pai de Jesus.

LUZIA -

Não me chama de ceguinha de merda que eu saio da procissão!

ZÉ -

Como que é ser cega?

LUZIA -

Tapa os olhos, seu bobo!

ZÉ -

(TAPANDO) Não é a mesma coisa. Eu posso não estar vendo nada, mas eu sei que posso ver. Viu como é diferente? Quer dizer não viu como é diferente? Cego não precisa tapar nada...


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LUZIA -

Eu vejo...

ZÉ -

(SE APROXIMANDO) Vê?

LUZIA -

Vejo. Toda noite, quando você já está dormindo, eu abro a janela do quarto. Eu finjo pra Avó que estou esperando o Vicente, mas eu fico espiando o Casarão.

ZÉ -

Não fala do Casarão!

LUZIA -

Tá com medo? Pois vai ter mais medo ainda... Eu fico espiando o Casarão de noite. Sabe, Zé... Tem uma Deusa que toda noite vem lá do Céu, toda dourada, toda de asa, como se fosse a Sininho... Aí,

a Deusa senta no telhado do Casarão e fica

olhando pra mim.

ZÉ -

Mentira!

LUZIA -

Olha pra mim e fala com uma voz tão suave que parece voz de passarinho... Luzia, Luzia... o Zé tá dormindo?...

ZÉ -

(CURIOSO) Ela perguntou por mim?

LUZIA -

Eu olho pra você, vejo que tá dormindo e respondo... Tá sim, dona Deusa... O Zé tá dormindo...

ZÉ -

Duvido! Deusa não fala! Nem tem voz de passarinho!


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LUZIA -

Essa tem. Aí, ela pergunta, com aqueles olhos lindos de doer... E Vicente, tá dormindo?

ZÉ -

O Vicente nunca dorme.

LUZIA -

Eu minto pra ela. Sabe por que eu minto? Porque ela quer que todo mundo durma, de mansinho, bonito, sonhando as coisas que a gente quer ter na vida. E o Vicente, se não dorme, não vai ter nada na vida. O Vicente... Zé, eu tô com medo, mas eu acho que o Vicente é alma penada... É coisa do Mal... Com essa mania de querer ser cantor andrógino... (T) Zé, o que é andrógino?

ZÉ -

Sei lá...

LUZIA -

Agora eu vou continuar falando da Deusa!

ZÉ -

Cega e mentirosa! A Mãe ia te castigar!

LUZIA -

A Mãe tá morta. Zé, por que a mãe morreu? E morreu assim, tomando formicida? A Deusa um dia me disse que ela tinha um amor que não podia amar. Que tinha uma febre no corpo que não cedia...

ZÉ -

A Mãe nunca foi doente. E não morreu com formicida coisa nenhuma. Foi tifo!


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LUZIA -

Foi formicida. Eu vi a garrafinha jogada debaixo da cama. Naquele dia, ninguém percebeu que eu estava atrás do armário. Na hora que a Avó entrou no quarto. Olha aqui o vidrinho! Acredita agora?

ZÉ -

(EXAMINA O VIDRINHO) Formicida Tatu! (T) Formicida não mata!

LUZIA -

Então, bebe! Tem um pouquinho ainda aí dentro. Bebe, vai... Se fosse o Vicente ele bebia.

AVÓ -

(CHEGANDO, PEGA O VIDRINHO) Ai, achei o vidrinho de formicida! Graças a Deus! (SAI)

ZÉ -

Pára de falar no Vicente. Ele não bebia nada. Ele não tem coragem pra nada. O Vicente... O Vicente é... Eu não sei o que ele é... Mas ele NÃO é corajoso.

LUZIA -

Muito mais que você, Zé. Será que a gente nasceu do jeito que a Mãe contou pra Avó?

ZÉ -

Você inventou tudo isso!

LUZIA -

(SAINDO) Se eu inventei, então inventa outra Santa Luzia pra você, seu besta. Tô cheia e vou mudar de brincadeira. O filho da Pretinha me convidou pra ser Iemanjá no terreiro dela. Vai ser muito mais animado, quer apostar? E agora dá licença que


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tá na hora do programa “Hoje é Dia de Rock”, na Rádio Mayrink Veiga... E eu não perco um! Bye bye...

LUZIA SAI. ZÉ FICA POR ALI. ELE SE AJOELHA DIANTE DA MÃEMORTA.

ZÉ -

Mãe, eu pequei.

MÃEMORTA ABRE OS OLHOS E ENCARA ZÉ.

ZÉ -

Mãe, eu pequei porque tapei o sol com a peneira. Se sou mesmo o Filho do Sol...

MÃEMORTA - É, você é o Filho do Sol. Havia uma mulher velha, que morava no Caminho das Índias, que dizia que o Filho do Sol não morre.

ZÉ -

MÃEMORTA -

ZÉ -

De doença, de bala ou de outra coisa?

De tudo. Da pior das doenças: a culpa.

Eu sou culpado.

MÃEMORTA - De quê?

ZÉ -

De não amar Vicente!

MÃEMORTA CAI NUMA GARGALHADA. LUZ SOBRE OUTRO PONTO, ONDE SURGE VICENTE. FORTE, DE NEGRO, UM SER DA NOITE. ELE PEGA UM


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MICROFONE E CANTA “THE END”, DOS THE DOORS, COM VOZ MUITO SENSUAL. DEPOIS DE ALGUM TEMPO, ZÉ CORRE PARA VICENTE. OS DOIS FICAM SE ENCARANDO. CLIMA ENTRE ELES.

ZÉ -

Não gostei da música.

VICENTE -

Não perguntei nada.

ZÉ -

Você tá diferente.

VICENTE -

Me disseram que eu vou morrer. Gozado, você estende o braço, os caras te tiram um pouco de sangue, você fica olhando pra cara deles e aí espera. Um, dois, três, sei lá quantos dias... Aí, o cara volta e te entrega um papel. Você abre e aí... this is the end, my friend!

ZÉ -

Você tomou veneno?

VICENTE -

Acho que sim. Mas diferente da formicida da Mãe.

ZÉ -

Ela não tomou formicida. Foi invenção da Cega.

VICENTE -

A Cega que tudo vê. Eu vou morrer, Zé. Mas não tenho medo. Acho que pode ser uma viagem como essa que eu sempre imaginei. Os rios se abrindo pra mim. Eu dirigindo um barco.

ZÉ -

Você sempre quis um barco.


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VICENTE -

É... Mas nunca teve rio aqui. Só montanha.

ZÉ -

E vento.

VICENTE -

Só se fosse um barco bêbado, um barco drogado, um barco com sexo, um barco com vida. Com vida, tá entendendo? Eu só quero coisas com vida. Eu só quero coisas que estejam pulsando. Assim. Como a jugular da minha veia. Como o coração. Como a luz do letreiro que fica piscando a noite inteira. Vento... (T) Como é a luz do Sol?

ZÉ -

Acorda mais cedo e veja!

VICENTE -

Prefiro perguntar pra Luzia.

ZÉ -

Ela vai te falar da Deusa.

VICENTE -

A Deusa me deu pó pra cheirar ontem. Era diferente. Não era crack, nem coca, nem haxixe, nem fumo, nem nada. Era outro pó. Louco, me bateu, me levou pra uma terra onde havia uma árvore imensa.

ZÉ -

Baobá.

VICENTE -

Eu não leio o Pequeno Príncipe. Eu me senti imerso no furor de um barulho que vinha do mar. Era inverno. Parecia inverno. Nevava em Minas. Eu fiquei surdo. Parecia um cérebro de


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criança. Fui deslizando, havia pensínsulas em pânico. Elas turbilhonavam marés. Marés de um mar que a gente não conhece.

ZÉ -

O mar é verde? É azul?

VICENTE -

Verde e anil. A Dama do Mar abençoou minhas manhãs marítimas. Era como seu eu fosse uma rolha. Dancei nessas ondas. Por cima das ondas. Sobre as ondas. Como aquela música, lembra? A música que a Mãe cantava.

A MÃEMORTA E A AVÓ COMEÇAM A CANTAR “SOBRE AS ONDAS”. ZÉ SOBE NAS COSTAS DE VICENTE. OS DOIS BRINCAM QUE ESTÃO NUM BARCO. DEPOIS, CAEM NO CHÃO. VICENTE VAI PARA CIMA DELE. FAZ UM CARINHO NO ROSTO DE ZÉ. DEPOIS NO CORPO DELE.

VICENTE -

Você imagina o que estou imaginando?

ZÉ -

Eu tenho medo.

ZÉ SE LEVANTA, CORRENDO. VICENTE SENTA-SE E GRITA, RINDO.

VICENTE -

Cagão! Sempre tem medo. Sempre tem medo. Vai rezar. Vai brincar de missa. Vai viver rodeado de anjinho. E da Santa Luzia. Até quando?

COMEÇA O VENTO FORTE. ZÉ SAI. LUZIA SURGE. VICENTE VAI PARA ELA.


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VICENTE -

(CHAMANDO) Luzia!

LUZIA -

(FELIZ) Vicente! (T) Você aqui? Mas já é de noite?

VICENTE -

Não reparou que o Zé foi embora? Agora é a minha vez... Ele não quis de novo...

LUZIA -

Não quis o quê?

VICENTE -

Não quis... Você precisa ir embora, Luzia...

LUZIA -

Eu estou sempre indo embora. Minha hora é só uma horinha. A amarelinha ainda está desenhada no chão?

VICENTE -

Tá. Tem dois Céus. Não tem Inferno.

LUZIA -

Graças a Deus. Isso é um milagre. Tudo é um milagre. Acho que a vida é um milagre. A morte pode ser um milagre. Até a Rádio Mayrink Veiga é um milagre!

VICENTE -

Você é milagreira demais.

LUZIA -

Sabia que posso olhar as estrelas? Sabia que posso olhar o Sol, a Noite, até Deus?

VICENTE -

Deus não existe.


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LUZIA -

Por isso que eu olho. Sabe, Vicente, eu só vivo com a memória. Aí, eu posso olhar tudo, porque eu invento o que quero olhar. (T) Você vai morrer.

VICENTE -

Você já sabe?

LUZIA -

Você tem medo?

VICENTE -

Ainda não sei.

LUZIA -

Cadê a amarelinha? Me leva até a beiradinha dela.

A LUZIA COMEÇA A PULAR A AMARELINHA, CANTANDO “TEREZINHA DE JESUS”. VICENTE A ACOMPANHA COM UMA GAITA. NISSO, OUVE-SE UMA VOZ MASCULINA CANTANDO JUNTO.

LUZIA -

É ele! (PÁRA DE BRINCAR E VAI SAINDO) Até, Vicente. Depois, quando o dia raiar, você vai ver que a minha procissão de tomorrow vai ser linda! Não vou mais ser Santa Luzia. Vou ser Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e vou fazer um monte de milagres pra você... Bye bye... So long... Very well...

VICENTE VAI ATÉ A AMARELINHA, BRINCA UM POUCO. DEPOIS, TIRA UMA BULA DE REMÉDIO DO BOLSO. AMASSA E JOGA NO CHÃO.

VICENTE -

Nada é um milagre porra nenhuma! Um dia, eu peguei uma amostra de um produto farmacêutico. Diziam que era um


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milagre. Cinco anos de pesquisa. Eu peguei o milagre. Eu contemplei o milagre na mão. Aí, esmaguei o milagre com a mão. Joguei o milagre no chão. Pisei em cima do milagre. Eu tomei horror de todos os milagres!

OUVE-SE “BOHEMIAN RHAPSODY”, COM O QUEEN. A DEUSA VEM, VESTIDA COM UM MANTO DE REI E COROA. VAI PARA JUNTO DE VICENTE, SENSUAL.

DEUSA -

Me dá fogo?

VICENTE -

Ué, você não é capaz de acender uma porra de cigarro?

DEUSA -

Não. Você não ia escrever uma carta?

VICENTE -

Já estou escrevendo. Você me deu a data e o começo. Inverno de 1993. Ou 83? Ou 2003? Ou só 3?

DEUSA -

(RINDO) Tem importância?

A DEUSA ACARICIA VICENTE MAIS AINDA. VICENTE GOSTA. COMEÇA A PASSAR A LÍNGUA NO PEITO DA DEUSA. NOTA O JEITO DA DEUSA.

VICENTE -

Você não traga quando fuma.

DEUSA -

Sou meio politicamente correta. Fumo mas não trago. (T) Como é a carta?


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VICENTE -

Uma carta de despedida. Palavras ao vento.

DEUSA -

Ah, o vento... Meu menino, eu tenho tesão por suas olheiras. (T) Fala mais do barco que você sonha. Da viagem.

VICENTE -

Eu quero viajar por uma água verde. Uma água verde que vai se instalando no casco do meu navio. Doce. Muito mais doce do que uma maçã que você dá pra uma criança. Mais doce que o gosto dos venenos. Aí, eu me sinto livre, livre, livre, livre de lemes, de arpões, de qualquer coisa que me prenda. E mergulho num sarcófago de estrelas.

A DEUSA APLICA UM PICO EM VICENTE, QUE, COMPLETAMENTE CHAPADO, COMEÇA A RODOPIAR. ELE AGARRA A DEUSA, COM TESÃO.

DEUSA -

Trepa comigo? Aqui?

VICENTE -

Eu quero as estrelas todas nas minhas veias. Eu quero jogar minha porra em direção ao céu. Eu quero que minha mãe chore. Eu vivi. Eu quero chorar pelo que não vivi. Mas posso viver. Eu quero te foder inteira como se fosse a Deusa...

DEUSA -

VICENTE

(RINDO) Eu sou a Deusa!

COMEÇA A COMER A DEUSA. OUVE-SE UM ROCK PESADO

PONTUANDO A TREPADA VIOLENTA DOS DOIS.


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DEUSA -

Esporra em direção à lua. Flores e sons cairão. E o vento explodirá como se fosse uma balada. Uma fuga sem dó.

OS DOIS VÃO TREPANDO, LOUCOS. LUZ VAI PARA ONDE ESTÁ ZÉ.

ZÉ -

Uma vez eu disse: vou para o convento. Quero ser monge. Mas pensei: se eu for, vão dizer que é por causa do Vicente. Aí você escreveu uma carta. A carta que eu queria escrever. Então comecei a escrever cartas para pessoas imaginárias. Como se eu fosse um Santo, o Monge, o Iluminado. Mas eu não era o Iluminado. Eu brincava como uma criança obcecada que levou uma flechada e saiu sangue. Aí, eu tentei ser São Sebastião. (FAZ A POSE DO SANTO) Não deu certo! Aí, mudou tudo. Inventei que queria ser um Imperador Asteca. Me sagrei descendente do Rei Sol. Eu era magnânimo, generoso, meu Reino era um teatro alegre, campestre. Era a eterna adolescência. Tinha enigmas, demônios de mentira e eu fazia questão da legenda. Havia rituais que, no fundo, eram exorcismos. Mas a gente não dizia. Éramos um império secreto. (P/ VICENTE) Ecce homo, nobre irmão! (T) Fazíamos da mendicância o nosso luxo. Eu deslizava sobre as águas como uma gaivota teleguiada. Aí você apareceu de novo. Bastou você botar o pé dentro deste Casarão e o meu Reino partiu. Eu ainda chamei o meu reinado e disse: fica. Fica!!! Mas ele foi-se embora, levando pontes, pedras preciosas, minhas princesas indígenas, rituais... Eu fui abrindo os olhos, abrindo os olhos e vi: eu não precisava mais do meu império secreto.


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LUZ EM VICENTE, QUE, CHAPADO, BERRA:

VICENTE -

O barco bêbado! O barco bêbado vai levar a gente! Vai tirar a gente do meio desse medo que estão botando nas nossas cabeças. Eu vou explodir o mundo, cacete!

CAI A LUZ. QUANDO SOBE, A MÃEMORTA CONTINUA EM SUA POSIÇÃO, E A AVÓ E LUZIA BORDAM.

AVÓ -

Ninguém aqui é sócia da fábrica de linha. Pára de desperdiçar, Luzia. Parece que não enxerga o bastidor.

LUZIA -

O difícil é saber onde está o riscado.

AVÓ -

Então não borde.

LUZIA -

Se eu não bordar, não faço o enxoval. Agora que a Mãe morreu, eu tenho de me virar sozinha. Se não fizer enxoval, não caso.

AVÓ -

Casar? Casar com quem?

LUZIA -

(TÍMIDA) Com ninguém...

AVÓ -

(FIRME) LUZIA, quem você anda vendo?

LUZIA -

Eu não vejo, Avó.


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MÃEMORTA - Deixa a coitada em paz, Avó. Depois de mim, agora é em cima dela que vai cair a sua ira? Se sua vida não foi um mar de fodas, o problema é seu.

LUZIA -

Eu ouvi um barulho.

AVÓ -

(INCOMODADA) Foi o vento.

LUZIA -

Ah...

MÃEMORTA - O vento o cacete. Fui eu. Pensa que porque me botou aqui, Avó, eu vou ficar de boca fechada? Vou coisa nenhuma... Eu sei que a Luzia tá namorando, sim. Só que ela é tão louca, que namora um moço que não existe.

AVÓ -

Pra Avó não se mente. Você sempre foi boazinha. Foi a Santa Luzia mais linda que eu vi. Se você pudesse ver, ia saber do que tô falando. Linda, com sua roupinha toda passadinha. O Zé sempre te deixava mais santa que a própria santinha. De tão caprichoso que era.

LUZIA -

Por isso que ele virou viado, Avó?

AVÓ -

Que é isso, menina? Quem disse que o Zé é invertido?

LUZIA -

Falam por aí. Dizem que ele anda com os moços atrás do muro da Estação.


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AVÓ -

Gente maldosa. Gente que tem fel no coração. Seu irmão é uma moça.

LUZIA -

É o que eles falam. Que o Zé é uma moça.

AVÓ -

Uma moça em outro sentido. Gentil como os cavalheiros dos livros que eu lia, quando ainda conseguia ler.

LUZIA -

A senhora não lê mais?

AVÓ -

Agora os livros trazem palavras fortes.

MÃEMORTA - Palavra forte pra ela é pênis, vulva, vagina e clitóris. Queria ver se ela ouvisse pau, boceta, cu e outros mimos.

LUZIA -

Foi o vento de novo?

AVÓ -

São as velas que deixaram acesas. Eu vou apagar.

AVÓ VAI ATÉ PERTO DE ONDE ESTÁ A MÃEMORTA DEITADA E APAGA AS VELAS. RECLAMA COM ELA E ESPETA A MÃEMORTA COM A AGULHA.

AVÓ -

(PARA MÃEMORTA) Cala essa boca, jararaca!

MÃEMORTA - Ela namora, sim. Está louca pra poder fazer tudo o que tem direito. Ela namora um moço que só tem dentro do rádio.


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AVÓ -

Dentro do rádio?

LUZIA -

Posso ligar o rádio, Avó?

AVÓ -

Nós ainda estamos de luto.

LUZIA -

Ninguém passa aqui perto do Casarão. Quem vai ouvir a gente? Eu ligo bem baixinho.

MÃEMORTA - Deixa ligar. A coitadinha quer amar um pouco.

AVÓ -

Pode ligar o rádio. Bem baixinho. Não quero que pensem que só porque sua Mãe morreu, nós estamos fazendo festa. Até que a gente podia fazer, mas costume é costume.

LUZIA LIGA O RÁDIO. OUVE-SE UMA MÚSICA DE GEORGE MICHAEL. LUZIA FICA ARREPIADA. TREME TODA. A AVÓ CONTINUA BORDANDO, SEM PRESTAR ATENÇÃO. GEORGE MICHAEL ENTRA.

LUZIA -

George Michael?

A LUZ MUDA TOTAL. GEORGE MICHAEL APARECE, CANTANDO. TIRA A LUZIA PRA DANÇAR. OS DOIS DANÇAM. A CONTINUA SEM DAR ATENÇÃO. DEPOIS DE UM TEMPO, GEORGE FALA COM LUZIA:

GEORGE -

Sorry, Blind... It's time to go!


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LUZIA -

Eu não falo inglês!

GEORGE -

They're paying just for one music. It's impossible to stay here. I love you, Blind.

LUZIA -

I love you eu entendi... Mas e o resto?

MÃEMORTA - Ele está dizendo que só pagam por uma música. Espera um pouco. Depois, ele canta outra e você namora de novo.

GEORGE -

Thank you, my mother-in-law.

LUZIA -

O vento...

GEORGE -

Yes...The wind. Blowing in the wind. I don't sing this song. You know, it’s a problem of copyright. Bye, bye, Blind...

LUZIA -

Bye, bye... my love...

GEORGE MICHAEL SOME. A AVÓ REAGE.

AVÓ -

(VINDO) Desliga o rádio. Quem aprende inglês fica que nem o Vicente, com o sangue podre. (T) Quem era o moço?

LUZIA -

Que moço? Eu não vi nada...

AVÓ -

Claro que não viu. Você não vê. Mas EU vi! O mocinho de


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cruzinha na orelha, de calça de couro, com cara de maconizado, de amigo do amigo do amigo do Vicente!

LUZIA -

(SAINDO) Não tem moço, Avó. Imagina! Eu sou uma boba. Eu só sirvo pra ficar olhando pra fora, porque não tem pra onde olhar mesmo...

VICENTE ENTRA, DROGADO. ZÉ, ATRÁS DELE, SEM JEITO.

AVÓ -

Já estou avisando que não quero briga aqui dentro.

LUZIA -

(NERVOSA) Vicente, estou sentindo cheiro de sangue!

VICENTE -

Eu me cortei quando fazia a barba!

LUZIA -

Eu vou limpar seu sangue.

ZÉ -

(NERVOSO) Não!

DEUSA -

Deixa de ser idiota, Zé. Qual o problema?

VICENTE -

Esquece o sangue...

AVÓ -

É sangue podre, Zé. Eu já disse...

VICENTE -

Avó, eu conheço os céus crivados de clarões, as trombas, as ressacas, as marés. Eu conheço o entardecer. Eu conheço a


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Aurora em explosão. Uma explosão que parece um bando de pombas. E algumas vezes eu vi o que o homem quis ver!

AVÓ -

Você andou tomando aquelas injeções de “cacaína” na veia de novo, Vicente?

ZÉ -

Andou!

VICENTE -

Dedo-duro!

ZÉ -

Eu não gosto de ver você louco. Me dói! Me dói, entende?

VICENTE -

E pensa que eu gosto de ver você dando o rabo atrás da árvore?

ZÉ -

Eu não sou viado!

AVÓ -

Que conversa é essa aqui no Casarão? Esta casa é um verdadeiro monastério!

VICENTE -

Tá pra você, Zé. Bota aquela tua batina de antigamente e reza a missa. Pega a Luzia e faz a coitada passar por Santa Edviges. Essa é a dos Impossíveis, não é?

ZÉ -

Vocês não respeitam minha religião!

VICENTE -

Tua religião é outra, Zé. Tua religião é a do sexo e da loucura.


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Como a minha. Temos o mesmo destino. Só que você tem medo da estrada, tem medo de sair desta casa... Seu mariquinha!

ZÉ -

Eu te arrebento a cara!

VICENTE -

Tem coroinha levantando a batina desse padre!

ZÉ -

Vem! Vem!

OS DOIS SE ATRACAM. COMEÇAM A BRIGAR. ROLAM NO CHÃO.

MÃEMORTA - (EXCITADA) Me levem pra ver a luta! Eu sempre quis ver meus filhos brigando. Me levem pra ver a luta!

AVÓ -

(PRA MÃEMORTA) Pára com isso, desgraçada! Pára de atiçar! (SEPARANDO OS DOIS) Sai, Vicente! Xispa! Sai de cima do Zé!

VICENTE DEIXA ZÉ SE LEVANTAR. ELE VAI SAINDO.

ZÉ -

A sua benção, Avó.

AVÓ -

(CHEIA) Deus te abençoe, vai...

VICENTE -

Luzia, me aperta este elástico aqui.

LUZIA -

(INDO PARA ELE) Outra injeção, Vicente?


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VICENTE -

A vida, Luzia, a vida é trânsito, é dia útil. Não é domingo.

LUZIA -

Que bom que não é domingo, porque hoje é Dia de Rock!

ZÉ -

Se fosse domingo, você teria de pensar em Deus também.

VICENTE -

Eu descobri que a verdadeira Santidade é Lúcifer.

A MÃEMORTA GARGALHA.

AVÓ -

Não se fala no Cão nesta casa. Não se fala no Demo no Casarão. Fora todo mundo! Eu quero ficar com a minha dor.

A DEUSA SURGE. VAI PARA VICENTE E O LEVA. LUZIA TAMBÉM SAI.

AVÓ -

Eu queria saber o que você tinha no leite que amamentou essa criançada.

MÃEMORTA - Mel de beira de estrada, Avó. Muita quimera para alimentar uma geração inteira. Diferente do leite que eu mamei. Aguado e incolor. (T) Tudo na senhora é falso. Os seus cabelos... (ARRANCA A PERUCA DA AVÓ) Cabelos falsos... E os seios? (TIRA OS SEIOS DELA) Postiços. Duas bolotas de paina. Não podiam mesmo dar bom fruto.

AVÓ -

Leite de paina. Mas eu te dei mesmo assim. Aguado e pouco, esta é a minha parte nesta dor. Eu sacrifiquei a minha vida


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inteira por vocês. Eu nunca soube o que tem do lado de lá da porteira. Minha vida inteira foi dentro deste Casarão.

MÃEMORTA - Um dia, quando eu era pequenininha, eu vi a senhora saindo. Foi até a porteira e parou.

AVÓ -

Eu me lembro desse dia. Eu tentei. Aí, veio um vento tremendo. Um vento com cara de Deus e não me deixou fazer mais nada. Então, eu voltei. (T) Me dá um beijo, filha?

MÃEMORTA - Beijo de morta?

AVÓ -

Hoje eu me contento com tão pouco... Dança comigo, filha. Nem que seja uma vez só.

AS DUAS FICAM UM TEMPO SE OLHANDO. VÃO SE APROXIMANDO LENTAMENTE. COMEÇAM A DANÇAR UMA VALSA ANTIGA. A PRINCÍPIO, FRIAMENTE. DEPOIS, RODOPIAM. A AVÓ, FELIZ, RINDO, RINDO, RINDO. LUZ VAI CAINDO QUANDO AS DUAS SE ABRAÇAM. VENTO FORTE. LUZ SOBE. ELAS NÃO ESTÃO MAIS ALI. NA ESTRADA, CHEIA DE PIRILAMPOS, NA HORA DO CREPÚSCULO, SURGE A DEUSA, DE MANTO DE REI E COROA. LUZIA APARECE, CANTANDO UMA CANTIGA DE RODA.

DEUSA -

(CHAMANDO) Luzia!

LUZIA -

Ah, é a senhora? Fiquei com medo que fosse um pirilampo. Eles podem me levar embora. Às vezes, eu me sinto tão


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magrinha, tão sozinha, tão fininha e quietinha, que acho que um pirilampo pode me levar embora. E eu não sei se quero ir embora... Não sei... Quase que não sei de nada...

DEUSA -

Um pirilampo é bonito. Como se fosse a Sininho na mão da gente.

LUZIA -

Será que ela é namorada do George Michael?

DEUSA -

(RINDO) Não... O George Michael deve gostar de mulheres mais fortes. O que ele ia fazer com ela?

LUZIA -

Não sei... Nunca vi o tamanho da Sininho....

DEUSA -

Pensa na distância que existe entre seu coração e sua alma!

LUZIA -

A alma deve estar grudada no coração.

DEUSA -

É o tamanho da Sininho.

LUZIA -

Jura?

DEUSA -

Eu nunca juro. Você reparou que agora é a sua hora?

LUZIA -

Por isso eu vim pra estrada.

DEUSA -

Você tem medo?


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LUZIA -

Só medo do medo. E de continuar tendo de ser Santa Luzia pro resto da minha vida. Sabe, eu tenho um outro lado, uma outra cara, um jeito que ninguém conhece.

DEUSA -

Eu conheço.

LUZIA -

A senhora deve conhecer mesmo. Sabe de tudo. Mas eu nunca mostro esse meu lado pra ninguém. Eu sei muito bem o que a Mãe sentia quando saía correndo de casa de madrugada. A Avó dizia pra gente que era pra tomar ar, que a Mãe sofria de constipação e precisava do ar do campo... Mas eu sei que ela tinha...

DEUSA -

O que ela tinha?

LUZIA -

(FIRME) A mesma coisa que eu tenho de vez em quando. Um desejo. É esse meu lado feio.

DEUSA -

Desejo não é feio!

LUZIA -

Nem desejo de homem?

DEUSA -

Nem desejo de homem, nem de mulher, nem de nada... É desejo da carne.

LUZIA -

Por que a senhora está sempre no telhado da casa?


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DEUSA -

Eu vim buscar você, o Zé e o Vicente.

LUZIA -

A senhora é a Morte?

DEUSA -

Eu sou o vento que passa, levando a flor. (APONTA GEORGE MICHAEL, QUE SURGE POR ALI) Olha quem vem vindo!

LUZIA -

(NERVOSA) Ele? Eu não sei falar inglês...

DEUSA -

Não precisa falar inglês. Estende a mão, abra os braços, deixa o peito assim, sem a parte de cima!

LUZIA -

Não! Eu sou moça de respeito!

DEUSA -

Deixa de ser boba! Quem falou que é falta de respeito? É o corpo. É o Fogo!

GEORGE MICHAEL SE APROXIMA CADA VEZ MAIS DELA. COMEÇA A CANTAR. A DEUSA TIRA O MANTO E A COROA E COLOCA NELE. DEPOIS SAI. FICAM SÓ GEORGE MICHAEL E LUZIA.

GEORGE -

Hi!

LUZIA -

Oi! Gudinaite!

GEORGE -

Be quiet! Be happy!


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LUZIA -

Répi é feliz! Eu me lembro disso!

GEORGE -

I was a litlle boy...

MÃEMORTA - (DO SEU CAIXÃO) Eu era um menininho...

GEORGE -

Oh sweet memories...

MÃEMORTA - Ó doces lembranças…

GEORGE -

And then I was absolutely free!

MÃEMORTA - Então, eu era totalmente livre!

GEORGE -

All the world was mine!

MÃEMORTA - O mundo todo era meu!

GEORGE -

But one day I understood that solitude was not just a word.

MÃEMORTA - Mas um dia eu entendi que solidão não era só uma palavra.

GEORGE -

And so, everything had changed.

MÃEMORTA - E, então, tudo mudou.

GEORGE -

Broked my soul…


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MÃEMORTA - Minha alma foi quebrada…

GEORGE -

Compressed my heart…

MÃEMORTA - Meu coração comprimido…

GEORGE -

I felt I was a man!

MÃEMORTA - Percebi que era um homem!

GEORGE -

Solitude!

MÃEMORTA - Solidão!

LUZIA -

Mas e a Sininho? Não te ajudou?

GEORGE -

Look to the trees! The litlle birds!

LUZIA -

Isso é passarinho!

GEORGE -

Open your arms. My head supported by your breasts! Stay with me. Take care of me. I am so tired! The radio is a prision. The lonely and winding road...

MÃEMORTA - A longa estrada para Ventania…

GEORGE -

Do you remember?


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GEORGE MICHAEL COMEÇA A ASSOBIAR “THE LONELY AND WINDING ROAD”, DOS BEATLES. A MÚSICA ENTRA COM TUDO. ELE PUXA LUZIA PARA PERTO DE SI. NÃO SE FALAM. OLHAM-SE INTENSAMENTE. MÃEMORTA OBSERVA TUDO DE SEU CANTO.

MÃEMORTA - Ó Deus, como é duro ser abandonada. Fincar o dedo na própria ferida para ver se dói. A todo instante. Para continuar mantendo a febre da memória. A dor da memória. A mentira da memória. A paixão. (VEM PARA PERTO) Parece que eu já vivi essa cena.

MUDA O CLIMA. LUZIA FAZ CHARME PARA GEORGE MICHAEL.

GEORGE -

Quantos anos você tem?

LUZIA -

Adivinha!

GEORGE -

Let me see... Dezesseis, han?

LUZIA -

(COQUETTE) Quase…

GEORGE -

Eu não estou escutando. Você poderia falar aqui perto de mim, que eu não escuto a essa distância?

LUZIA -

Nojento! (T) Mas imagina também se eu sou tão difícil assim! Eu vou e sento em cima da mesa, bem assim...

GEORGE -

Quer passear comigo?


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LUZIA -

Tira a mão de mim que minha mãe foi à igreja e pode voltar a qualquer momento. E eu tenho dois irmãos, ouviu? Dois. (T) Eu devia dizer que tenho dois irmãos?

GEORGE -

Se você se casar comigo, eu te ensino a falar inglês.

LUZIA -

Então fala pra eu ver, fala!

GEORGE -

Só se você casar comigo.

LUZIA -

Quando?

GEORGE -

Agora... Aqui...

LUZIA -

Aqui? Na estrada? Mas você não me ama…

GEORGE -

I love you!

LUZIA -

Você mente como respira!

GEORGE -

I love you!

LUZIA -

Se eu perder essa chance, nunca mais na vida...

GEORGE -

Então vamos, gracinha?

LUZIA -

Diz quer você me ama!


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GEORGE -

I love you!

LUZIA -

Cínico!

GEORGE -

Se eu estou dizendo I love you é porque I love you!

LUZIA -

Então repete com toda a convicção!

GEORGE -

Com toda a convicção: I love you! Vem, medrosa. Você está linda hoje! (COMEÇA A CANTAR “IT´S NOW OR NEVER”, DO ELVIS PRESLEY)

ELE VAI SE APROXIMANDO DE LUZIA. COMEÇA A ACARICIÁ-LA.

LUZIA -

I love you! Nunca pensei. Nunca esperei que um dia, numa tarde de sábado, hoje, você pudesse sair de dentro do meu rádio, para dizer, olhando para mim, I love you... Você foi a primeira pessoa que disse para mim I love you!

GEORGE -

Você tem um perfume de igreja. Minha indiazinha...

LUZIA -

Teus olhos têm estrelas e astros dentro...

GEORGE -

Que mais?

LUZIA -

Diz meu nome, diz!


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GEORGE -

Luzia! (T) Não foge de mim, criança! (VAI ATRÁS DELA)

LUZIA -

Minas!

GEORGE -

(INVOCADO) Quem é Minas?

LUZIA -

Ninguém...

GEORGE -

(ABRAÇANDO) Me conta o seu segredo, han...

LUZIA -

Minas... Adivinha... (T) Eu te amei tanto. Quando eu queria sair de Minas e não sabia como. Como se eu fosse uma estrela caindo do céu, longe, longe... Então, eu imaginava você vindo...

GEORGE -

Por que você diz “imaginava”?

LUZIA -

Então eu dizia I love you...

GEORGE -

I love you...

LUZIA -

(APAIXONADA) E você diz I love you... E eu dizia I love you... E eu digo I love you...

OS DOIS COMEÇAM A SE BEIJAR. ELE VAI TIRANDO A ROUPA DE LUZIA.

OS DOIS -

(EXCITADOS) I love you... I love you... I love you...


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ROLAM PELO CHÃO, TREPANDO. GEORGE SEMPRE MUITO CARINHOSO COM LUZIA, QUE É SÓ PRAZER. (T) ELA SE SEPARA.

LUZIA -

Milagre! Eu estou vendo... A Estrada de Ventania…

LUZ VAI CAINDO. QUANDO SOBE, GEORGE MICHAEL SAIU. LUZIA JÁ ESTÁ GRÁVIDA. ZÉ E VICENTE POR ALI. VEM A DEUSA, DESLIZANDO, E COLOCA O MANTO DE REI EM ZÉ. VICENTE PEGA SUA GUITARRA E COMEÇA A TOCAR “BLOWIN´ IN THE WIND”, DE BOB DYLAN, ENQUANTO FALA.

VICENTE -

Não precisa falar nada. Eu assumi o Mal e me fiz apóstolo do Mal, porque o Bem favorecia os mentirosos, os hipócritas... Eu sentia dentro de mim o crime e a possibilidade do crime. Agora, eu sinto horror das pessoas honestas. Minha revolta encontrou no Mal um veículo certo e eficiente. Depois, comecei a ver que esse tipo de apostolado me sujava de tal forma, que não era mais eu quem assumia o Mal. Mas o Mal que me assumia. E eu me confundia nele.

ZÉ -

Minhas orações e cânticos e incensos também de nada adiantaram! Rezei para Deus como se o altar fosse minha cama. Sempre tinha alguém a mais nos meus lençóis. Eu não sou viado, Vicente! Eu não sou viado! Eu só amei um rapazinho bonito, porque ele tinha cara de anjo. Eu queria amar um anjo. Só isso. Eu não sou viado. Se eu sou, todos os anjos são! Eu tive o Cálice de Ouro nas mãos em missas que não celebrei. A carne para comer. O sangue para beber. O pão branco,


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transparente, consumível. As minhas mãos tocaram no sangue e eu vi o sangue escorrendo entre os meus dedos e não pude fazer nada. A minha natureza é sacerdotal mas a minha palavra não é mais. Tudo o que eu quero é a minha adolescência. Mesmo sabendo que nem tudo o que passa do lado de fora desta roupa é sagrado. As minhas mãos são litúrgicas. Os meus braços são litúrgicos. Até a minha cabeça é litúrgica. Mas meu coração não consegue deixar de ser humano!

VICENTE CANTA MAIS ALTO, COM RAIVA, O “BLOWIN´ IN THE WIND”. ZÉ E LUZIA, GRÁVIDA, SE APROXIMAM DELE. CUMPLICIDADE ENTRE OS TRÊS.

VICENTE -

Agora não tem volta!

ZÉ -

Não tem volta?

LUZIA -

Não tem volta?

VICENTE -

Nós provamos do fruto e ele deixou em nós o seu gosto e o seu veneno.

A DEUSA VEM COM O MANTO E COBRE OS TRÊS, SUAVEMENTE.

AVÓ -

Eram tão bonitos os três. Passeavam pela cidade de mãozinhas dadas, como três principezinhos encantados. Vicente, garboso, de negro, levando o estandarte da Noite. Luzia, de vestidinho cor de Manhã, sorrindo meio boba, mas sempre feliz. O Zé


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vinha fechando o cortejo. De branco. Como o Sol. E eles iam. Você se lembra? Ventania toda olhava para seus filhos... Bonitos! Fortes! Cheios de uma coisa quem ninguém sabia o que era. Ninguém nunca soube. Eles não contaram nunca. Nem pra gente, minha filha. Seus príncipes e sua donzela. Lindos de morrer. Lindos de doer. Eu me lembro tão bem... Ou estou inventando tudo?

MÃEMORTA - Seis de janeiro. Dia de Reis. Minhas três romãs. Minhas estrelas do Oriente. Eles já pegaram a estrada. Eu não quero impedir a partida. Essa é a minha parte na história. Eles desaparecem fio a fio na fotografia enquanto eu vago solta pelo Casarão. Mas não adianta chorar ou abrir as asas ou gritar home sweet home... Olho para os três... E vejo a foto que se desrevela. Não há como deter a pressão do dedo sobre o disparador da máquina. (T) A foto, Avó!

ZÉ, VICENTE, LUZIA, A DEUSA, A MÃEMORTA E A AVÓ POSAM PARA UMA FOTO. EXPLODE O FLASH. VENTO MUITO FORTE.

ZÉ -

Então, ele tomou o pão, deu graças, e o repartiu entre os seus dizendo: tomai, comei todos vós...

VICENTE -

Pegou o vinho, abençoou, e disse: tomai, bebei todos vós... Este é o meu sangue!

OUVE-SE MUITO ALTO O “CORAÇÃO SANTO”. VICENTE APLICA UM PICO EM


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ZÉ. ESTE FAZ O MESMO EM VICENTE. OS DOIS, ALUCINADOS, COMEÇAM A DANÇAR, A RODOPIAR. LUZIA ALISA SUA BARRIGA GRÁVIDA. A AVÓ VAI PARA UM CANTO. A MÃEMORTA FICA OLHANDO OS DOIS FILHOS, QUE SE BEIJAM, SE ABRAÇAM, CAEM NO CHÃO E SE AMAM, FINALMENTE.

MÃEMORTA - Zé... Vicente... (FORTE) Zé Vicente!

O VENTO SOPRA CADA VEZ MAIS FORTE. A LUZ VAI CAINDO. BLACK. SOBE NOVAMENTE SOBRE ZÉ, VICENTE E LUZIA.

ZÉ -

Quando olho através da memória, mais que saudade eu sinto medo.

VICENTE -

Estamos apodrecendo juntos!

LUZIA -

O tempo fugiu... Esse fim... A vida tão curta...

FOCO SOBRE A DEUSA, QUE RODOPIA POR ALI.

DEUSA -

O fim de uma vida não é o fim dos tempos. A morte de um homem não é a morte do Homem! E este é um happy-end, sim! (T) Quem sabe, sabe!

MÃEMORTA - Zé, Vicente, Luzia... É preciso tentar, incansavelmente. Esse é o dever absoluto do ser que foi favorecido com a consciência, a imaginação e a previsão.


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ZÉ -

Somos uma raça de gente que guarda dentro de si o Menino Jesus e o Esquadrão de Extermínio. Doçura sem solução. Revolta inútil. Somos a procura, a entrega, a fome, somos também o abutre do lixo. Somos a desproteção e todas as armas. Somos os explorados, de quem até a morte foi roubada. Somos a festa, o carnaval e a alegria. E somos também a tristeza mais triste que jamais conheci. Somos uma impossível e monstruosa legenda, tão impossível e tão monstruosa, que não dá pra chorar mais lágrimas do que já choramos. Nem assim teríamos a História que nos foi recusada, por Destino ou Fatalidade.

VICENTE -

(BERRANDO) Tomorrow is such a long time. Nobres irmãos, sigamos o nosso caminho antes que tarde seja, pois não demora a Noite para a qual teremos tão cedo o Sol!

ZÉ, VICENTE E LUZIA ACENAM. ESTÃO PARTINDO PELA ESTRADA. LUZIA CANTA BAIXINHO “LET IT BE”, DOS BEATLES. ESTÃO A DEUSA E GEORGE MICHAEL. A MÃEMORTA E A AVÓ TAMBÉM ACENAM PARA OS TRÊS QUE, AGORA, CANTAM ALTO O “LET IT BE”. LUZIA ALISA A BARRIGA GRÁVIDA. VÃO SAINDO. O VENTO SOPRA. O CASARÃO BALANÇA. AS LUZES PISCAM. MUITO MUITO MUITO VENTO. BLACK.

F I M


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