KANTOR E A RECUSA DA INTERPRETAÇÃO Ângela Leite Lopes A história do teatro situa no final do século XIX, ou melhor, na passagem do século XIX para o século XX, o surgimento do encenador. Tal surgimento significou uma revolução no teatro: este passou de ofício de convenções a expressão de idéias. O que a tradição que aí se originou deixou de explicar foi que essas idéias não são propriedade do encenador. O conceito de encenação implica na compreensão do fazer teatral como expressão de idéia - não importa que o dono da idéia seja o diretor, o dramaturg, o ator, o cenógrafo, o figurinista, o iluminador, o músico... Vejam só, ia me esquecendo de incluir nessa lista o autor... Ou todos em conjunto. O mundo da encenação permite, e é essa a grande novidade, que o evento cênico se organize em tensões diversas: supremacia da palavra ou do corpo do ator, criação coletiva ou exercício de plasticidade. A gama parece inesgotável. Mas noto, infelizmente, que as principais conseqüências que essa revolução trouxe para a nossa profissão foram o uso de uma nova terminologia e uma nova organização de poder político-administrativo e financeiro. Ou seja, parece que, na profissão, a evolução empacou: é difícil ir além de uma nova distribuição de forças na engrenagem artístico-produtiva. Ninguém quer compreender por que um dia personalidades como Antoine, Stanislavski, Brecht deram-se ao trabalho de conceituar uma nova dimensão para o teatro. Vislumbram apenas que Antoine, Stanislavski, Brecht1 pareceram exercer certo poder quanto às questões de dinâmica e autoria do espetáculo, um poder que era antes exercido pelos chamados atores-monstros-sagrados. E observo um movimento de reação que se forma em surdina nesta passagem do século XX para o século XXI e que poderia ter como lema: chega de dar poder excessivo ao diretor! O palco, afinal, é do ator! Acredito que o século XX tenha sido uma espécie de Renascimento. Foi um período em que, para o bem e para o mal, nos voltamos para toda a nossa tradição e dialogamos com ela. Sem incorrer nos erros do dito Renascimento, que tomou a tradição como regra. Dialogamos, ou seja, investigamos e criamos outra coisa. É sobre essa outra coisa que quero discorrer neste artigo. E essa outra coisa será, para mim, aqui, de maneira privilegiada, o ator.
QUE MORRAM OS ATORES! O Folhetim publicou, em seu número anterior, o ensaio de Tadeusz Kantor intitulado O teatro da morte. Nele, o autor cita Kleist e, em especial, Craig invocando a opinião de Eleonora Duse: “Para salvar o teatro, é preciso destruí-lo; é preciso que todos os atores e todas as atrizes morram de peste... eles é que são um obstáculo à arte...”2 Afirmação que é corroborada pela apologia de Kleist e de Craig da substituição do ator pela marionete. O que eles querem dizer com isso? É só ler o ma-nifesto de Kantor. Ele vai retomando e respondendo a essa pergunta. De forma sucinta, a reclamação é simples: o homem, submetido às paixões, trai os propósitos precisos da arte enquanto criação do espírito. Surpresa? Mas, no fim das contas, todo o trabalho de Stanislavski, defensor do teatro de emoção, é uma tentativa de fazer com que as paixões joguem a favor do ator, e não contra ele! Até o rótulo colocado em Stanislavski de ator-encenador-naturalista decorre dessa sua preocupação: fazer com que o ator, submetido às leis da natureza, faça delas elemento de criação. Só que Stanislavski nos legou um modelo de adequação entre homem e natureza: aquilo que mais vulgarmente chamamos de cópia, de imitação. E que liga o teatro com os outros ramos da arte que participam da mesma discussão.
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