COMPANHIA DOS SATYROS - UM FAROL NA PRAÇA ROOSEVELT José Simões de Almeida Jr.
Uma reflexão sobre Os Satyros não pode ser dissociada dos lugares nos quais a companhia realiza seus projetos cênicos e culturais, os teatros: Espaço dos Satyros I e II uma vez que existe, desde a sua origem, uma forte relação entre os espaços ocupados pela companhia e a sua proposta cênica/social. Atualmente os Satyros e seus teatros são pólos agitadores da cena contemporânea. Compreende-se, aqui, cena contemporânea “como aquela apoiada nas associações, justaposições, na rede, numa nãocausalidade que altera o paradigma aristotélico da lógica de ações, da fabulação, da linha dramática, da matização na construção de personagens” (1). Trata-se da cena das simultaneidades, das sincronias, apoiadas em modelos de justaposição e amplificadora das relações de sentido. Uma cena, enfim, que incorpora em sua tessitura a velocidade do moderno. A proposta de trabalho dos Satyros, em termos de linguagem teatral realizada pelo grupo, tem sua origem a partir da observação e experimentação realizadas nos últimos 17 anos de atividades da companhia. Tais processos foram sistematizados e denominados “teatro veloz”. As premissas dessa metodologia, de acordo com o grupo, envolvem vários elementos estruturantes, que perpassam diferentes teóricos, como Meyerhold, Stanislavsk e Artaud. Entretanto, no conjunto dos artigos publicados sobre o assunto no site do grupo e em suas montagens nota-se certa afinidade entre os conceitos artaudianos em torno da criação contínua, linguagem, consciência e espacialidade, com o “teatro veloz”. Outrossim, tal constatação para uma análise do trabalho da companhia reforça a indissociabilidade das propostas cênicas dos Satyros com o seu espaço. O Espaço dos Satyros é formado por duas salas distintas -Satyros I e Satyros II- localizadas na mesma rua, uma a poucos metros da outra, em frente a uma praça. Não se trata, todavia, de uma “praça qualquer”, mas da Praça Roosevelt, ícone do centro deteriorado de São Paulo, com seus travestis, prostitutas, garotos de programa, moradores de rua, traficantes e menores abandonados, todos mergulhados em meio a uma paisagem grafitada, com pouco ou nenhum verde. Em ambas as salas temos a mesma estrutura interna na relação palco/platéia. São espaços únicos, sem divisões formais pré-estabelecidas; concebidos como uma grande “caixa preta”. As salas podem se modificar a cada encenação. Esses lugares teatrais, portanto, tem como fundamento “o desejo” não só de uma comunicação direta entre o artista e o espectador, como também de se tornar um espaço capaz de se “adaptar” a cada espetáculo. Lugar, enfim, dotado de “neutralidade”.
As condições físicas das salas, porém, não possibilitam a realização de tais “desejos”, pois apresentam uma série de marcas estruturais -rugosidades das paredes, diferenças de altura do teto, pisos imperfeitos, recortes, vigas de concreto, entre outras,– que imprimem determinadas características e significações ao lugar, de modo a, não permitir a qualquer pessoa, dentro daquele espaço, esquecer-se de que se encontra em um edifício adaptado à atividade teatral. Um lugar incomum ao imaginário simbólico do edifício teatral, um lugar ressignificado e que acaba por evocar uma sensação do “provisório” ou do “inacabado”, interferindo nos processos de comunicação. Bem por isso, cada encenação deverá ser o resultado, em parte, de um diálogo entre o lugar teatral e os textos propostos pelo encenador. De outra parte, deverá ser o resultado da relação do público com o lugar teatral, compreendido este como um espaço vivido. Desse modo, podemos observar, de modo mais evidente, o espaço como agente da comunicação teatral e não como um depósito da cena. No bojo das significações desse espaço, convém destacar que algumas de suas características, resultado das marcas concretas da arquitetura cênica da sala, interferem na cena introduzindo, nos processos nela realizados, alguns conceitos fundamentais ligados à cena contemporânea, como a mobilidade, fluidez e a instabilidade. Todas essas características ligadas á estrutura arquitetônica têm em comum a noção de intencionalidade, que atua no sentido de um espaço a ser organizado, de modo voluntário e consciente, por meio da relação entre os objetos da cena, atores e os outros colaboradores (cenógrafo, figurinista, sonoplasta, diretor, etc). Porém a relação entre os integrantes da montagem não se constituem numa criação à parte do espaço pois, segundo Milton Santos (2004: 40), “o espaço é formado pelos objetos; mas não são os objetos que determinam objetos. É o espaço que determina os objetos”. Destacase, assim, a presença ideológica desse espaço, que não pode ficar despercebido. Reforça-se, ainda, a questão de que o espaço físico dos Satyros, em termos de dimensão, não tem de fato vocação para cenografias “pesadas”, isto é, sua estrutura não comporta receber cenários que não sejam “ágeis”, para montar e desmontar, seja porque as salas apresentam uma alta rotatividade de espetáculos, seja pelas condições arquitetônicas impostas em edifício que foi adaptado à função teatral. A dimensão reduzida do espaço não permite a valorização de grandes deslocamentos cênicos, pois são salas pequenas, para um público em torno de 90 a 100 pessoas em cada uma. Em conseqüência disso, os resultados dos desenhos de cena das encenações (marcações) tendem a uma forma concentrada e reduzida nos movimentos, que tem origem na dialética entre a mobilidade e a imobilidade. Tais observações podem levar a supor, aos que não conhecem os espaços dos Satyros, que eles realizem somente trabalhos com poucos atores em cena. Paradoxalmente, os últimos espetáculos da companhia têm cerca de10 a 15 atores em cena, fato que sugere a existência de um diálogo preciso, em termos de organização e conhecimento do espaço pela companhia.
Não pretendo encerrar aqui as questões decorrentes da discussão entre o espaço e o teatro, mas refletir sobre a tendência de um repertório mais ligado à palavra em lugares teatrais pequenos. De fato, um dos componentes característicos dos Satyros, é o de ser focado em um teatro que discute a palavra e as suas imagens, e aqui, mais uma vez, se aproximam conceitualmente das propostas de Artaud. Um outro dado a ser considerado, Independentemente das múltiplas conotações e leituras do environnement social entre a cidade e o espaço dos Satyros, é a sua visível relação e afetação com o entorno social, no sentido de transformação e interação entre o lugar teatral e a cidade. A Praça Roosevelt, hoje, é um outro espaço social depois da chegada dos Satyros. Cabe observar que as duas salas são privadas, e nelas são realizados de 12 a 15 espetáculos por semana, aproximadamente 10% a 12% da produção teatral paulista, a se considerar o universo em torno de 110 espetáculos teatrais apresentados, em média, semanalmente, na cidade de São Paulo. O que justifica um olhar mais apurado sobre as produções realizadas nesses espaços, com ênfase no trabalho da Companhia dos Satyros, na tentativa de compreender o movimento ou as tendências da cena contemporânea teatral paulista. A trupe tem 17 anos, foi fundada em 1989 em São Paulo, por Rodolfo Garcia Vazquez e Ivan Cabral, estreou com o espetáculo Arlequim e depois se seguiram Sades ou noites com os professores imorais, Saló Salomé, filosofia da Alcova, De profundis, Sapho de lesbos, Kaspar, Cosmogonia, A vida na Praça Rossevelt, para citar só alguns, dentre os 47 espetáculos produzidos pela companhia. A proposta do trabalho cênico forjado pelos Satyros, de acordo com seus fundadores e coordenadores Rodolfo Vazquez e Ivan Cabral, é baseada no conceito do teatro veloz, que “são exercícios, embasados pela Bioenergética, alguns, e fundamentados nas teorias preconizadas por mestres como Stanislavski, Meyerhold e Artaud, entre outras influências, que no caso das práticas de atuação cênica, levam os indivíduos envolvidos em um mesmo processo criativo à reflexão, ao auto-conhecimento e a uma apreensão diferenciada do todo em que se inserem, segundo disposições do imaginário” (2). Afirmam, ainda, ser “um dos objetivos do Teatro Veloz predispor os atores a uma prontidão de respostas aos estímulos oriundos do meio, com o envolvimento emocional e intelectual dos participantes. Esse Teatro, como um catalisador de processos que condicionam o indivíduo a repensar a sua realidade e a se reposicionar em relação a ela, é fruto de um dos princípios que norteiam as atividades da Companhia dos Satyros, calcado no não–conformismo e resistência aos padrões arbitrariamente impostos pelo meio social”. Basta verificar os títulos e repercussão de suas encenações nos meios de comunicação para comprovar que a questão social nunca se ausentou de suas montagens, como se pode constatar no último espetáculo da companhia, que estreou em 2006 -120 dias de Sodoma - baseado na obra do Marquês de Sade. A montagem de 120 dias não se constitui como uma proposta cênica radical e renovadora. No entanto, possui elementos que caracterizam, em parte, o trabalho da companhia. O que se tem em cena é a necessidade de se contar a fábula do texto, calcada no desejo de dialogar com a sociedade. E é a partir desse elemento – a fábula - que se revela o minucioso
trabalho de direção de Rodolfo Vazquez. A fábula desejada não é a da noção aristotélica de “junção de ações realizadas”, busca-se uma outra noção da fábula, ambígua, estruturada nas relações possíveis entre o narrativo e o discursivo, a saber, entre a história contada e o seu modo de contar. A encenação de 120 dias dialoga entre “o que se conta” e “como se conta”. Sade nos mostra que para chegarmos ao conhecimento são necessários o isolamento, a dor, a liberdade e, para isso, rompe os canais de comunicação do Castelo de Selling com o exterior, estabelecendo um “outro” mundo. Um mundo dos prazeres da mesa e da intimidade. Em ambos os mundos o “prazer” proposto por Sade ocorre mediado por meio das palavras. Suas palavras evocam outras palavras que buscam uma materialidade na forma de imagens. O conhecimento associado à paixão e poder proposto por Sade, via palavra/imagem da palavra, organiza o mundo como um teatro. Essa é a matriz perceptível na encenação de Rodolfo Garcia Vazquez para a criação do espaço cênico e dramático: a palavra/imagem. O espetáculo é construído por uma sucessão de narrações, vozes que contam e, de certa forma, ordenam o caos que Sade impõe ao seu leitor/espectador. As cenas são na sua maioria elaboradas plasticamente imóveis, como uma grande tela viva, na qual se busca valorizar a materialidade do significante das palavras do texto. A encenação proposta pelos Satyros dialoga com os tempos políticos que vivemos no Brasil de hoje, assim como a maioria dos textos montados pela companhiaem sua trajetória nesses 17 anos, como afirma Rodolfo Vazquez – “Fazemos um teatro crítico, isso é inegável”. 120 dias de Sodoma é uma montagem corajosa, nela o exercício da palavra em cena, não se configura um discurso vazio, inoperante, mas como o de uma palavra orgânica e ambivalente. A proposta cênica de Rodolfo Garcia Vazquez que valoriza a palavra, estruturada nas simultaneidades e justaposições, faz com que o texto de Sade, a cada noite, se pareça com um relato de uma “notícia de jornal”- urgente e atual – no sentido de que ele não pode ser narrado no dia seguinte. Como se o texto adaptado para a cena tivesse um “tempo da urgência”, e fosse estruturalmente “provisório” e propositalmente “inacabado”. Tal como a sensação que nos impõe o espaço dos Satyros. Costuma-se se dizer que, “o teatro paulista vive em crise”, ou “não há luz no final do túnel”. Acredito que podemos estar em crise, mas não estamos mais submersos dentro de “túneis”. O teatro paulista, pelo contrário, nos últimos anos tem tomado às ruas na busca de encontrar seu papel social e cultural na cidade de São Paulo. Basta ver as atividades de algumas das principais companhias teatrais contemporâneas , como o Teatro Oficina (Os sertões: o homem; a terra e a luta – 2006; Vertigem (BR3 – 2006); Os Parlapatões e Pia Fraus (Stapafurdyo-2006) e grupo XIX de teatro (Hysteria e Hygiene2006), Os Fofos (Assombração do Recife Velho- 2006), entre outros.
Esses grupos do teatro paulista, e outros mais, buscam reconstruir “suas pontes” com a cidade e repensar o seu espaço e identidade na cultura da metrópole. O teatro compreendido não como periferia, a parte da cidade ou mesmo como uma atividade alternativa. E esse é um dos objetivos dos Satyros, nas palavras de Rodolfo Vazquez – “Detesto o titulo alternativo. Ele abarca muitas coisas que não tem a ver com o tipo de trabalho que procuramos fazer. Somos underground? Não - se essa expressão quiser dizer que fazemos nossas artes escondidos debaixo da terra. Afinal, nosso trabalho quer se mostrar luminosamente o máximo de tempo possível”. Nesse sentido, os Satyros, seja por meio do “teatro veloz” ou pela função social dos seus espaços ou pela sua presença estética,como também, pela presença maciça de artistas e espetáculos que transitam em suas salas, formam um mosaico luminoso e efervescente do panorama teatral. Por fim, pode-se metaforicamente afirmar que os Satyros são hoje, situados na Praça Roosevelt, centro de São Paulo, um farol vigoroso que ilumina e, de certo modo, guiam e alertam a cena contemporânea paulistana. Notas: 1. Cohen, 1998: XIX. Volver 2. Texto retirado do site da companhia – http://www.satyros.com.br/. Volver
Bibliografía: Cohen, Renato. 1998. Work in progress na cena contemporânea. São Paulo, Perspectiva. Santos, Milton. 2004. A natureza do espaço. São Paulo, Edusp.