DRAMATURGIA NOS PROCESSOS COLETIVOS DE CRIAÇÃO – UMA INTRODUÇÃO Por Silvana Garcia A descontinuidade e a negação fundam a arte do nosso tempo. Os movimento artísticos do século XX pretenderam romper radicalmente com o passado, numa operação crítica que ao mesmo tempo negou e instituiu esse passado como tradição, dando-lhe corpo e revelando os liames internos que o sustentaram como percurso no tempo histórico. Ao romper-se com a tradição, no dizer de Otávio Paz, estabeleceu-se uma nova tradição, essa a da ruptura1, e o século XX instala-se como produto da tensão entre as duas tradições, que se defrontam e se justificam mutuamente. Nessa perspectiva, o século XX é o século da “desmontagem”, da contaminação dos princípios que sustentaram a tradição – em especial o princípio do ilusionismo – traspassados pela exploração da teatralidade. Instala-se a compreensão do espetáculo como um “texto complexo” – usando o termo de Marco de Marinis, um texto “sincrético, composto por textos parciais, ou subtextos, de diversas matérias expressivas (...) e regido, entre outras coisas, por uma pluralidade de códigos freqüentemente heterogêneos entre si e de diferentes especificidades”. 2 Passa-se a compreender a cena como uma conjugação de elementos que são muitas vezes reinventados em novas disposições, diferentes daquelas onde estariam habitualmente alocados: a dramaturgia despega-se do cânone dramático para refazer-se em modalidades não cristalizadas de escrita, favorecida pelos procedimentos da colagem, e tendendo à intertextualidade, à combinação de vozes, à penetração por elementos do universo do real e à fusão com outras escritas anteriormente discriminadas, como a literatura. Altera-se a compreensão acerca da natureza e do lugar da personagem no esquema espetacular, entendida agora não mais como “cópia consubstancial do ser”, mas como – assim a vê a semiótica –um “lugar de confluência de funções”, como “elemento essencial em torno da qual se articulam as poéticas do texto e da representação”.3 O trabalho do ator é revisado em novos termos e sobre ele se acumulam teorias e práticas, visando a realizar, ainda que em parte, ou na medida do possível, os ideais preconizados e transmitidos por Gordon Craig, Meyerhold, Artaud, Grotowski, Joseph Chaikin e tantos outros. 1
“A tradição da ruptura implica não apenas a negação da tradição, mas também da ruptura”. Los Hijos del Limo, Barcelona: Seix Barral, 1998, p. 17ss: 2 Comprender el teatro, Buenos Aires, Editorial Galerna, 1997, p. 23. 3 Anne Ubersfeld, Lire le théâtre I, Paris: Belin Sup, 1996, pp. 89 e 101