A Arrombada peça Antonio Rogério Toscano

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A Arrombada de Ant么nio Rog茅rio Toscano (1997)

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Personagens: (As personagens têm origem na commedia dell’arte italiana e não sofreram, para efeito de exercício e escolha do autor, transformações radicais em suas estruturas básicas. Por isso, alguns nomes permanecem como na origem. As duas enamoradas, também baseadas na mesma fonte, contudo, tiveram nomes abrasileirados, assim como o capitano, que recebeu nomenclatura extra. Isso foi feito com interesse puro de arrecadação de comicidade.)

Pantaleão, dono da companhia de teatro volante Virna, sua filha Mirna, gêmea idêntica de Virna Brighella, servo de Pantaleão Arlecchino, ajudante de Brighella Capitano Rambo Rimbaud, ator enamorado por Virna Tartaglia, juiz da cidade

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APRESENTAÇÃO AO LEITOR

(Uma companhia de teatro volante prepara-se, ainda de madrugada, para fazer um espetáculo numa nova cidade. O dono da companhia é Pantaleão, viúvo sovina, pai das gêmeas Virna e Mirna - que são aparentemente idênticas, mas bastante distintas de personalidade. Virna é marruda, tempestuosa. Mirna está apaixonada pelo Capitão, primeiro ator do grupo, que não retribui sua paixão. Pobretão, ele tem poucas mas ardentes esperanças de conquistar Virna, que o rechaça. Brighella e Arlecchino são empregados de Pantaleão. Faz parte da trama também o gago Tartaglia, juiz da cidade.)

PRÓLOGO (Atores caracterizados com máscaras de Commedia dell’Arte cantam enquanto descarregam as malas da chegada da cia. de teatro na cidade. Pantaleão apenas comanda, com grandes broncas, a operação. É madrugada ainda.) “Todavia, o que de bonito e triste havia No canto da cotovia Torna-se cantilena maltratada Nos ouvidos sonolentos da madrugada

Carregar as malas é uma missão Se você não é Pantaleão!”

(Todos saem. Permanece em cena apenas Virna.)

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CENA1 (Virna. Depois, Brighella.)

(Virna, jovem carrancuda e obesa, entra com um molho de chaves na mão e vai até um baú onde se lê em letras garrafais: ARCA DE PANTALEÃO. Próxima do baú, ela verifica se alguém a observa. Ninguém. Tenta, então, com várias chaves, abri-lo. Desiste. Muito irritada, senta-se sobre ele. O baú geme! Ela, desconfiada e curiosa, senta-se novamente. A arca geme mais um pouco e, ao ouvir o gemido, Brighella aparece num canto da cena e a espia. Ela não o vê e volta a forçar a abertura do baú.)

VIRNA

(Para o baú.) Se está pensando que me assusta... (senta-se, com

muita força) ...agüente, que me torno mais robusta! (O baú grita. Satisfeita.) Teve o seu castigo por estar zombeteiro comigo, bauzão!

(O baú asteia pequena bandeira branca que sinaliza derrota.)

BRIGUELLA

(Para Virna.) Vejam se não é um urubu campeando carniça no fundo

do baú! VIRNA

(Com um olhar de rapina, para ele.) Só se eu estivesse te caçando,

servo carnicento. BRIGHELLA

(Irônico.) Nem tento descobrir o que você caça com tanto talento.

Estou interessado é no meu por cento. O chaveiro aí na mão, é para quê? (Noutro tom.) Roubar o pai é coisa de safado... VIRNA

Ousado! Pensa que eu sou...?

BRIGHELLA

(Interrompendo-a.) Vixe, bagunçou! Se puxou pro pai, então...

piorou! VIRNA

(Restritiva.) Mais cuidado com Virna, irmã de Mirna, a filha de

Pantaleão! BRIGHELLA

É... E eu que pensava que por aqui só havia um ladrão...

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VIRNA

(Entendendo que ele fala de seu pai.) Ladrão ou não, Pantaleão é o

seu patrão! BRIGHELLA

(Como quem apenas comenta.) Eu sei... E acho que ele não vai gostar

nadinha, quando ficar sabendo que a sua filhinha... VIRNA

É uma santinha! (Ameaçadora.) E cujo milagre você vai sentir como

um soco, e sem que eu tenha que descer do meu pedestal... BRIGHELLA

Mas é de uma cara-de-pau, hein, santa do pau oco!

VIRNA

(Cínica.) Ora, Brighella, deixe de ser mau. Eu só estava passando por

aqui, vi o baú e resolvi sentar o meu... corpinho cansadinho...

(Senta-se. O baú grita novamente.)

BRIGHELLA

(Aludindo aos gemidos do baú.) Cansadinho e pesadinho! Resta saber

se o peso não é na consciência... VIRNA

(Nervosa.) Quando me chamam de gorda, eu perco a paciência! Mas

se me acusam de ladra, aí eu beiro a demência! Arre, valha-me minha Santa Clemência!

(Vai até o servo para lhe dar um tapa.)

BRIGHELLA

(Escapa.) Eu não acusei ninguém, mas se o capuz serviu em

alguém... VIRNA

Se o baú aprendeu a falar, eu não posso me responsabilizar!

BRIGHELLA

(Visivelmente cínico.) Eu acredito, Virna...

VIRNA

Maldito! Não me provoque, mascote de pagode! (Ameaçadora,

levando a mão sem perceber ao buço pronunciado.) Cuidado! Com mulher de bigode, nem o diabo pode!

CENA 2 (Virna, Brighella e Arlecchino.)

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ARLECCHINO

(Aparecendo repentinamente de dentro do baú. Fala para si mesmo,

com muito medo do que se falou há pouco sobre o diabo.) Eu estava achando pesado, mas, em se tratando do diabo, o peso é redobrado! (Dolorido.) Estou todo quebrado! (Macho.) Vá de retro, pé-mancado, senão eu é que fico endiabrado! BRIGHELLA

(Surpreso com a aparição de Arlecchino.) Então o saco de peido ali

era esse peido no saco aí! VIRNA

(Para Brighella.) E esse é dos fedidos!

ARLECCHINO

Epa, não gosto de apelidos!

BRIGHELLA

Então, explique! Que história é essa de se trancar no baú? Para fazer

piquenique? VIRNA

Isso cheira a trambique! Todo enlatadinho na arca, feito um atum!

ARLECCHINO

Mas eu estou assim tão fedorento? Numa hora me chamam de atum,

agora há pouco me xingaram de pum... Que palhaçada! VIRNA

(Tapa o nariz, quando sente o bafo de Arlecchino.) Banho que é

bom, nada! (Breve pausa. Recorda-se.) Então era o senhor que estava gritando quando eu estava sentada, gambazudo? Percebi logo um bafo de baleia desmamada! ARLECCHINO

Já eu, só senti mesmo o peso da baleia!

BRIGHELLA

(Perdendo a paciência.) E a explicação, ô, fedor de meia?

VIRNA

(A Brighella, sobre o que Arlecchino falou.) Ele está me chamando

de obesa? Saiba que Virna quebra mesa quando a deixam com a raiva acesa! (Magoada.) O regime está fazendo efeito... tá?! E chove de gente que em mim não vê defeito! ARLECCHINO

Nem a chatice?

VIRNA

Ai, minha Santa Valdenice! Ouviu o que ele disse, Brighella? Eu

mato esse gambá tagarela! Eu vou ter que falar com papai! BRIGHELLA

Vai!

ARLECCHINO

(Provocando a moça, imitando-a numa tentativa de saída de cena

afetada.) Ai... Ai... Falar com papai...

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BRIGHELLA

(Segurando-o pelo colarinho.) E agora, chega de demora! Quem não

vai a nenhum lugar antes de explicar por que o tatu foi cavar buraco no baú é o senhor, Arlecchino! O que estava fazendo lá? ARLECCHINO

O tatu ou o gambá?

BRIGHELLA

Fala!

ARLECCHINO

Eu?

VIRNA

Não, filisteu! O Zé do Bregueneu!

ARLECCHINO

Quem?

BRIGHELLA

O que aconteceu com a sua língua, ô, meu? O gato comeu?

ARLECCHINO

(Assustado, escondendo a língua.) Quem?

(Brighella o esbofeteia.)

ARLECCHINO

(Indignado e muito confuso.) A gente tenta entender, mas não adianta

tentar. Cada hora, uma história! Assim não cabe na memória! (Burro, tentando compreender.) Deixe ver... O fedor de atum espantou a baleia, que inchou até ficar cheia quando o tatu cavou buraco no baú, mas o Zé do Bregueneu estremeceu quando o gato comeu... BRIGHELLA

(Irritado.) Chega, Arlecchino! Desembucha, antes que leve outra

bucha! ARLECCHINO

De buchada, basta a Virna sentada aqui na minha lombada!

VIRNA

Ele está dizendo que eu estou estropiada? Papai!

BRIGHELLA

Chega! Arlecchino, diga o que fazia ali dentro, que eu já não agüento

mais azia desse coentro! ARLECCHINO

(Revoltando-se com a situação.) E quanto a vocês dois?

BRIGHELLA

Só estamos querendo dar nome aos bois!

ARLECCHINO

Nome de vaca é Mimosa! Desconfio é da prosa, não da intenção!

Queriam passar a mão na bufunfa de Pantaleão? BRIGHELLA

Eu? Não! A Virna é quem estava aí, sentada no baú com olhar

esperto de coruja...

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VIRNA

(Repentinamente épica, para disfarçar da acusação feita por

Brighella.) Ôxe, minha Santa Emília! Sou a coruja que faz a vigília sobre a fortuna da família! BRIGHELLA

Mentira, sucupira! Estava na moita, toda afoita, tentando arrombar o

cofre! VIRNA

Oh, meu Santo Onofre! (Explicando-se.) O Brighella, Arlecchino, é

que fica inventando querela para me deixar suja de lama até a canela! ARLECCHINO

Que feio, hein, Brighella?

VIRNA

É mesmo! Que feio!

ARLECCHINO

Já sabemos por que, até aqui, ele veio. Para surrupiar o velho!

BRIGHELLA

Arlecchino, deixe de idéia idiota!

VIRNA

(Para Brighella.) Charlatão! Nojentão! Agiota!

ARLECCHINO

Eu não sei qual chuchu está mais podre nesta horta, mas Pantaleão é

bem esperto de me colocar aqui no aperto. Ele decerto sabe que, por perto, tem mandarová de olho no seu pomar...

(Virna, que aproveitando a richa entre Arlecchino e Brighella, foi olhar dentro do baú, meio às escondidas, tem um ataque de tosse.)

VIRNA

Cof! Cof! Cof...

ARLECCHINO

São Braz! Na panela tem mais, bicho voraz!

BRIGHELLA

(Socorrendo-a, sem entender a razão do ataque. Virna aponta

desesperadamente para o baú. Os servos não a compreendem. Para Arlecchino.) Ela não estava comendo nada, filhote de satanás! ARLECCHINO

Ela, eu não sei. Mas eu... Estou com uma fome que nada me

satisfaz...

(Virna continua a tossir e a apontar para o baú.)

BRIGHELLA

Fala, criatura! O que é que tem...?

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ARLECCHINO

(Que foi até o baú e olhou dentro.) Acho que é este o problema...

Não tem... BRIGHELLA

Epa! Quem fez a crocodilagem? (Num riso contido, mas sagaz.)

Olhem só... A malandragem levando vantagem... E o Brighella vai ficar de fora? Ora...

(Brighella, que segurava Virna, solta-a, e ela cai no chão e pára de tossir.)

VIRNA

(Ainda arfando. Traumatizada.) Do dinheiro, sequer sentirei o

cheiro! ARLECCHINO

(Irritado.) Vá entender esse povo chique que não passa fome! Tem

chilique porque sente o cheiro, chama de gambá... Depois, vem um estrimilique porque não vai cheirar! Ah, vá se danar! Come tão bem que esvareia! Chega a ter tosse sem colocar na boca nenhum grão de areia. Se é como eu, que não tenho quem acuda... Não fica buchuda! VIRNA

(Chocada, para Brighella.) Ele está tentando dizer que eu estou

rechonchuda? Papaaaaai!

CENA 3 (Virna, Brighella, Arlecchino e Pantaleão.)

(Pantaleão chega e está furioso com a bagunça. Brighella, muito rápido, fecha o baú, que estava aberto, para que Pantaleão não perceba o que acontece.)

PANTALEÃO

Que é essa folia? Estão pensando que podem gritar como na casa da

tia? Temos que fazer o espetáculo já... já... Pouco depois do sol levantar! VIRNA

(Apavorada, deixa cair o molho de chaves que trazia.) Papai!

PANTALEÃO

Estão pensando que ninguém escuta, seus filhos da...? Não se pode

mais dormir? Vou ter que entupir a boca de todo mundo para ter paz por um segundo? (Cínico.) Já descarregamos tudo da carroça, tenho direito a um cochilinho! Ainda nem amanheceu, e vocês fazendo esse escarcéu!

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ARLECCHINO

Eu concordo. Estava tirando ali uma sonequinha, sonhava que comia

uma canjiquinha, até que fui acordado por este bando desgraçado! PANTALEÃO

(Pegando Virna pela orelha.) Minha filha, posso saber por que a

senhorita balia feito uma cabrita? BRIGHELLA

Pode parecer absurdo, Pantaleão, mas sua filha estava aqui fazendo

plantão com um molho de chaves na mão... PANTALEÃO

(Desconfiado.) Molho de chaves?

VIRNA

(Interrompendo-o, mentirosa.) Besteira... (Repreende Brighella e

senta-se sobre o molho de chaves que está no chão.) Pare de botar lenha na fogueira! (Para Pantaleão.) Eu estava preocupada, pápi, pois estes dois queriam colocá-lo numa enrascada! BRIGHELLA

Só se preocupação mudou de nome... Descarada!

PANTALEÃO

Veja como fala com a minha menina!

BRIGHELLA

Que estava tentando esvaziar a sua mina!

VIRNA

Mentira, meu pai! Pergunte a Arlecchino, que é prova de que este

servo inventa uma calúnia contra a sua petúnia... (Falsa, abraça Pantaleão.) ARLECCHINO

(Escapista.) Eu não sou testemunha! Nessa hora aí que eles estão

falando, eu estava ali cortando a unha... Não sei nadinha dessa mumunha! BRIGHELLA

Virna é que faz picuinha!

VIRNA

(Para o pai, mais mentirosa.) Está vendo como mente? Confunde-me

com minha irmã. Acusa Virna como se falasse de mim, Mirna. BRIGHELLA e ARLECCHINO (Muito surpresos.) Mirna? VIRNA

Veja, papai, como sou boa! Estava passando por aqui, à toa, quando

Brighella decidiu armar essa pinguela... PANTALEÃO

(Crente na filha.) Oh, minha alcachofra, não sofra. Eu acredito em

tudo o que você me diz... Se fosse com aquela aprendiz de meretriz infeliz da sua irmã... Ah, ela me pagaria! Veriam só um negócio intessante... BRIGHELLA

(Comenta a respeito de Virna.) Essa meliante está sacaneando!

PANTALEÃO

Seu servo de porcaria! Está querendo difamar a maior riqueza do

meu lar? Eu te esfolo, bicho sem miolo!

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VIRNA

(Vingada, fazendo-se, boa.) Deixe-o, pápi, eu o perdôo. É um

mentiroso: rato querendo levantar vôo. Não passa do teto, e eu, com isso, não me afeto... É apenas um projeto de morcego que não me quer dar sossego! PANTALEÃO

Mas vai ganhar uns tabefes para não soltar mais os seus bofes!

(Pantaleão vai agarrar Brighella.)

BRIGHELLA

(Dedo-duro. Refere-se a Arlecchino.) Epa! Tem bofe solto que devia

estar cuidando da arca... ARLECCHINO

Cala essa matraca!

PANTALEÃO

(Vendo Arlecchino.) É pelas costas que o diabo ataca! (Agarra-o.)

Arlecchino não tinha que estar cuidando da fechadura...? (Dá-lhe um tapa na orelha.) ARLECCHINO

Ai, que quentura nas venturas! A arca está ali sossegada, segura...

PANTALEÃO

Quem decide o que está seguro é Pantaleão! Ou não? E é bom que,

antes do seu patrão mudar de tom, lá dentro você se ponha, pamonha! Quando poderei dormir em paz na minha fronha?

(Arlecchino, num átimo, corre para dentro do baú. Pantaleão o tranca com uma chave que tira do bolso. Brighella o ajuda. A raiva de Pantaleão não permite que ele se lembre da zanga com Brighella, que está incólume.)

BRIGHELLA

Outra chave? Que trucão!

VIRNA

(Sem graça.) Imitação!

PANTALEÃO

Servo meu que descuida do meu tesouro acaba no matadouro! Eu

ainda te assassino, Arlecchino! VIRNA

(Fingida.) Pena que a minha extrema bondade me impeça de dedar

um certo mentiroso que acaba de lhe ajudar, pápi... (Cínica, como quem comete uma gafe.) Arre! Caluda! BRIGHELLA

Bocuda! Faz-se passar pela irmã, mas não perde a chance de mugir

feito uma vaca!

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PANTALEÃO

Está chamando a minha Mirna de vaca?

BRIGHELLA

Bruaca! Eu disse Bruaca!

PANTALEÃO

O quê?

BRIGHELLA

Não, quero dizer, sim... Fuja antes de ganhar algema: este é o meu

lema!

(Brighella escapa, mas permanece em cena, escondido.)

CENA 4 (Virna, Pantaleão e Brighella escondido.)

PANTALEÃO

Não suporto mais tanta desobediência...

VIRNA

(Afetada.) A paciência é uma virtude nobre, meu pai, e quem a

descobre faz com que o mundo se desdobre, enchendo incessantemente o seu cofre... (Percebe que não se aproveita nada do que foi dito. Sem graça.) Belas palavras de Santa Ermengarda... PANTALEÃO

Pra lidar com esses salafrários, só a espingarda! Mirna, pegou a

doença da santa daquela sua irmã? VIRNA

(Mais afetada, querendo parecer a irmã.) Virna é mesmo uma

santa... Coitada, sofre porque ninguém a acalanta. PANTALEÃO

Estou perdido! Uma filha santa e outra querendo colocar-lhe a manta.

VIRNA

Veja que sorte.

PANTALEÃO

Estou preferindo a morte.

VIRNA

Credo, papi! Todos, um dia, sentirão a luz que emana da escuridão de

sua cabeça. Virtude é atitude: exija e ofereça. PANTALEÃO

Se fossem somente os servos as causas do meu reumatismo... Aquela

sua irmã é traumatismo... VIRNA

(Afetadíssima, após o ataque do pai à sua pessoa.) Ora, Virna é uma

pessoa tão boa... Todos os espinhos de uma rosa não a tornam menos vistosa.

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PANTALEÃO

É. Mas essa rosa rejeita o cravo...

VIRNA

Talvez porque o cravo tenha magoado a rosa... Lembre-se, “o cravo

brigou com a rosa...” PANTALEÃO

Mas fala porcaria, hein?

VIRNA

(Vendo que não surgem os efeitos esperados das suas falas.) Virna

não se casará. E essa decisão é firme como uma castanha-do-pará. Fez promessa a Santa Eloá! PANTALEÃO

Ou ela se casa, ou eu a caso com o primeiro demônio que topar

matrimônio! VIRNA

(Descontrolando-se. Nervosa.) Ah, que ignorância, viu? Um pouco

de tolerância é bom e eu gosto! Aliás, exijo! E juro! Não há casamento sem meu consentimento! PANTALEÃO

(Surpreso com a filha.) Mirna?

VIRNA

É isso! A decisão está tomada! Não há capelão nem tabelião que veja

Virna casada! PANTALEÃO

Por que defende aquela machona safada?

VIRNA

Machona? Pantaleão ainda não viu nada!

PANTALEÃO

(Resignado.) Eu esperava mesmo o dia em que veria Mirna

transformada em Virna e Virna, em Mirna! É o inferno! (Raivoso.) Mato as duas! E começo por você, que ainda não está acostumada com essa mania desbocada!

(Aproxima-se dela para castigá-la.)

VIRNA

(Sem saída, é obrigada a retornar à imitação da irmã.) Não, papai,

tudo isso é um absurdo... Acho que tive um surto, não sei... Perdi o controle, não me esfole! A compreensão é material sublime, transubstancial, que oprime a violência produzida pela demência de um momento sangrento... PANTALEÃO

Com quem anda tendo aula de poesia, para dizer tanta porcaria?

VIRNA

Deixe isso para lá... Nosso espetáculo logo começará e o senhor não

gosta que atrasemos, pois prejuízo, nem dos pequenos! Não é mesmo?

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PANTALEÃO

Veja se avisa a todos que se o espetáculo da Companhia de Pantaleão

Bisognosi não sair um brinco, não haverá trinco de porta que salve a pessoa culpada de estar morta! VIRNA

Eu avisarei.

PANTALEÃO

E avise à Virna que eu a casarei!

VIRNA

(Querendo se safar.) Está bem. Posso ir?

PANTALEÃO

Pode. Mas só depois de me ajudar a levar o baú para um lugar

protegido, longe dos olhares dos servos. Bandidos! Ande, sem reclamação! VIRNA

Que amolação!

(Pai e filha saem carregando o baú. Virna está muito irritada. Eles não percebem, mas Arlecchino, que estava dentro do baú, permanece no mesmo lugar, em posição esdrúxula. Brighella não entende o que vê. Há um buraco no fundo do baú. Levam a arca, mas não Arlecchino, que dorme em roncos assustadores. O molho de chaves permanece no chão.)

CENA 5 (Brighella e Arlecchino.)

(Arlecchino ronca.)

BRIGHELLA

(Que está escondido, tem dificuldade para acreditar no que viu.)

Quanta treta ainda vai aprontar o capeta? ARLECCHINO

(Acorda assustado ao ouvir falar do capeta.) Eu não vou estar por

perto quando a coisa estiver preta! BRIGHELLA

(Bate em Arlecchino.) Era por isso que o dinheiro havia sumido?

ARLECCHINO

Estou com um zunido no ouvido...

BRIGHELLA

Foi Arlecchino o bandido?

ARLECCHINO

(Indignado.) Que é isso, ô, meu, vá procurar marido!

BRIGHELLA

Mas está ficando atrevido...

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ARLECCHINO

(Tira uma faca.) Não me atiça que eu te compro!

BRIGHELLA

(Tira outra bem maior.) Vê se afina este seu ronco!

ARLECCHINO

Está a fim apanhar?

BRIGHELLA

Não. De te apanhar! (Luta com Arlecchino, que perde.) Lembrou com

quem você está falando? ARLECCHINO

Estou falando e estou andando... (Tenta sair de fininho.)

BRIGHELLA

Primeiro vai explicar o que fez com o dinheiro.

ARLECCHINO

(Sem saber do que Brighella fala.) Todo dinheiro que eu pego

escorre pela privada... BRIGHELLA

É o seu esconderijo?

ARLECCHINO

Não, compro comida! A comida vira bosta e escorre junto com o

mijo. BRIGHELLA

Então não foi você quem fez o furo?

ARLECCHINO

Não, juro. Já nasci com ele.

BRIGHELLA

No baú!

ARLECCHINO

Ah, pensei que era no...

BRIGHELLA

(Aponta para onde estava o baú.) Aquele, por onde você saiu.

Lembra? ARLECCHINO

Não mete a minha mãe no meio, que eu viro bicho feio!

BRIGHELLA

Do baú. Como foi que você saiu?

ARLECCHINO

Eu saí?

BRIGHELLA

Claro! Como é que você está aqui?

ARLECCHINO

Sabe que eu também fico me perguntando...

BRIGHELLA

(Desistindo.) Alguém arrombou o cofre do Pantaleão. E nesse

dinheiro eu vou meter a mão. (Pensativo.) Há um buraco na arca... Ela foi arrombada... Se não foi a anta do Arlecchino quem o fez... Não, ele não atinaria! Quem pode ter sido...? (Pausa.) Virna! Batata! ARLECCHINO

(Por ter ouvido “batata”.) Opa! Pode passar a batata pra cá, que a

fome está de lascar!

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BRIGHELLA

Mas, se foi ela quem arrombou, essa história tem um entrave. Não dá

pra entender o... (É muita coincidência, mas o molho de chaves encontra-se sob seus pés.) ...molho de chaves! (Eureca. Muito decidido.) Que idéia! Ah, eu me vingo dessa mocréia! Não me fez passar por mentiroso? Roerei até o osso desse caroço! É, Arlecchino, creio que vamos ter lucro. ARLECCHINO

Nem fale, que eu dou um treco!

BRIGHELLA

Deixe de ser besta, burro chucro!

ARLECCHINO

(Esperto, estendendo a mão.) Pode passar a minha parte.

BRIGHELLA

Bem mais tarde. Primeiro terá que fazer uma entrega.

ARLECCHINO

(Preguiçoso.) Já vem ele com papo xumbrega.

BRIGHELLA

Vá levar este molho de chaves para a Virna e diga que Brighella

mandou avisar: “Eu sei de tudo”. ARLECCHINO

E o que eu ganho?

BRIGHELLA

Um tapão sem tamanho! É isso que está merecendo!

ARLECCHINO

E uma rosquinha? Só uma! Minha barriguinha anda tão vaziazinha,

que eu ando comendo mosca... BRIGHELLA

Está bem... Te dou a rosca!

ARLECCHINO

(Malicioso, vai dar um beijinho em Brighella.) Ai, não vejo a hora,

viu? BRIGHELLA

(Esculhamba-o.) Apague esse paviu, clodovil! Vai querer a rosca ou

não? ARLECCHINO

Vou. Mas eu quero daquelas que têm um buraquinho, sabe?

BRIGHELLA

(Irritado.) Corra! Antes que eu te acabe... (Usando de muita

paciência.) Então, deu pra entender o que é preciso fazer? ARLECCHINO

Mais ou menos.

BRIGHELLA

Deu ou não deu?

ARLECCHINO

(Muito afetado.) Dei mais ou menos, ué!

BRIGHELLA

Então, vá! E diga para Virna o recado: “Eu sei de tudo! Sobre o

arrombamento.”. ARLECCHINO

Já sei. Falar com Mirna e dizer...

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BRIGHELLA

Com Virna! Ouviu? Virna!

ARLECCHINO

Mas se é igualzinha! Como eu vou saber? Não tem nenhuma

diferençazinha! Ai, o que eu não faço pela sua rodela? (Brighella volta a se irritar.) A rosquinha... Aquela que você vai me dar. (Brighella avança sobre Arlecchino. Vai bater.) Bem, melhor eu me calar! (Foge. Tromba de frente com o Capitano Rambo Rimbaud, que, ao tentar entrar em cena, cai sentado, espatifado.)

CENA 6 (Brighella e Capitano Rambo Rimbaud.)

(O capitano Rambo Rimbaud está sentado e atordoado.)

CAPITANO

(Eloqüente e covardão, tentando ainda entender o que o derrubou.)

Viver tem se tornado, a cada dia, mais perigoso! Um tornado, quem diria, passa a fazer parte do dia-a-dia! Isso é odioso! (Comenta sobre a passagem de Arlecchino.) Em meus dias de luta, quando se entumesciam os canhões para matar dragões, não havia ventania como esta: que fedorenta! Bem, para tornar sublime este instante de nostalgia e saudade, a necessidade clama para que eu decline meu diamante de poesia e liberdade! (Retira, do seu bolso, ainda sem ver Brighella, um papel muito amassado. Lê.) “Foi deus quem fez você, ó, sol/ E as estrelas./ Mas quando gira o mundo e eu chego ao fundo e não posso vê-las/ Vem o vento, vento, vento, vento.../ Para parar o vento: pára-brisas/ Então.../ Diga, aí, ó, deus, o que irá fazer/ Vai desmanchar um fusquinha pra me defender?” BRIGHELLA

(Fala pelas costas do Capitano.) Lá vem o capitão, cheio de paixão...

(Interpela-o.) Então, está precisando de defesa? CAPITANO

(Pensando ter ouvido a voz de deus, com quem falava em seu

poema.) Valha-me, São Tomé! Se não foi por excesso de “mé”, eu acabo de ouvir a voz de deus; ou do diabo a responder aos apelos meus... BRIGHELLA

Acho que a segunda hipótese se encaixa melhor.

CAPITANO

(Muito medroso.) Reclamar a deus tornou tudo pior?

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BRIGHELLA

Essa ladainha eu já sei de cor...

CAPITANO

(Medroso.) Ai, que aumenta o meu suor!

BRIGHELLA

Por que lamentava tanto, agora há pouco?

CAPITANO

É que “não posso mais alimentar a esse amor tão louco. Que sufoco”!

BRIGHELLA

Está apaixonado?

CAPITANO

Desbaratinado! Faria qualquer coisa para me ver casado. (Temeroso,

mas decidido.) Venderia minh’alma ao diabo! BRIGHELLA

Gostaria, aqui, da ajuda do tinhoso?

CAPITANO

(Após gesto histriônico de medo, recompõe-se.) Sim. Antes que meu

estado se torne calamitoso! BRIGHELLA

(Não entende.) Calami... O quê?

CAPITANO

Não imaginava que o diabo possuísse tão poucos dotes intelectuais...

BRIGHELLA

(Coça o saco.) É que você desconhece os outros dotes especiais...

CAPITANO

(Que olhou pra trás e deu de cara com o baixo ventre de Brighella.

Ainda pensa que fala com o demo.) Além de tudo, é vulgar! BRIGHELLA

Confie em mim, que sua amada irá te amar!

CAPITANO

E o que eu devo fazer?

BRIGHELLA

Ouvir sempre aquele servo, o Brighella. E obedecer!

CAPITANO

Por quê? Justo Brighella?

BRIGHELLA

(Aparecendo para o Capitano.) Qual o problema? É ele quem o

interpela! CAPITANO

(Muito constrangido, mas bravo, ao descobrir que não falava com o

demo.) Servo de meia tigela! BRIGHELLA

(Gozador.) Coração de berinjela!

CAPITANO

Convoco-lhe para um duelo!

BRIGHELLA

Você não tem chance, pé-de-chinelo.

CAPITANO

Afirma que eu seja covarde?

BRIGHELLA

Não. Mas cão que muito late não morde. (Armando-se para a luta.)

Eu mordo...

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CAPITANO

(Afinando.) Sugiro, então, que façamos um acordo. Você sabe... Os

cães ladram, mas a caravana não pára! BRIGHELLA

E a tal coragem?

CAPITANO

Entenda, Brighella, a discórdia nem sempre traz vantagens...

BRIGHELLA

Então desentala, por quem sente este amor selvagem?

CAPITANO

Por Virna... (Pausa.) Ou será Mirna o nome? Tenho uma memória de

alicate... Bem, é aquela que me bate. BRIGHELLA

Virna, com certeza!

CAPITANO

Não é uma beleza?

BRIGHELLA

Quem sabe servida à mesa...

CAPITANO

Ah, que refeição... Seus olhos são feitos de luz!

BRIGHELLA

Credo em cruz! Prefiro comer cuscuz...

CAPITANO

Ajude-me a conquistá-la, senão em meu próprio peito cravarei uma

bala... (Chorão.) Pantaleão proíbe a minha aproximação daquela que é minha única paixão, para quem fiz o seguinte poema: (Pega um outro papel amassado do bolso.) “Todo domingo,/ Havia banda/ No coreto do jardim...” BRIGHELLA

(Interrompe-o.) Pode parar... Se está querendo ajuda, vou dar. Mas há

uma condição... (Faz sinal de que cobrará o serviço prestado.) CAPITANO

(Desesperado.) Não falemos sobre isso nesta ocasião. Pantaleão daria

a mão da filha a qualquer um que tivesse um tostão. Mas a mim? Um ator chinfrim! (Indignado.) Como o velho pode esperar que eu nade em dinheiro se ele mesmo, que é meu patrão, não me paga o salário...? Salafrário! Trabalho nesta companhia de teatro desde que abandonei as batalhas e, com minhas reservas, não se compra nem minha mortalha. Além de tudo, a moça retalha o meu coração, pois rechaça minha paixão. BRIGHELLA

(Cínico.) Ah, ela não te ama?

CAPITANO

Inclusive me difama!

BRIGHELLA

Rapaz, como reclama! Faça o que eu mandar e a terá em sua cama.

Custe o que custar! CAPITANO

Virna não quer se casar.

19


BRIGHELLA

(Aproveitando-se do ensejo para preparar sua revanche contra a

filha de Pantaleão.) Mas vai! Porque eu vou me vingar! CAPITANO

Vingar?

BRIGHELLA

(Muito cínico.) Quem disse essa palavra?

CAPITANO

Quanto irá cobrar?

BRIGHELLA

Após o casamento, chegará o momento em que trataremos do

pagamento... Tem dividendo correndo por aí, que ninguém está vendo. Mas, por ora, não adianta cravar a espora... Depois da comunhão de bens, falaremos da nossa divisão de bens...

(Brighella sai.)

CENA 7 (Capitano e Mirna.)

CAPITANO

Enfim, uma esperança no deserto sem fim da minha desilusão...

MIRNA

(Entra.) Olá, capitão.

CAPITANO

(Não a vê.) Se há pouco escutei a voz do cão, agora me parece que

não. MIRNA

Se insiste com esse tipo de palavrão, não sou eu quem vai lhe dar

sermão. Pensa que não o conheço? Eu lhe manjo... CAPITANO

(Surpreso e babão.) Querem me revirar do avesso? Agora ouço um

anjo? MIRNA

Só estou aqui porque tenho que lhe dizer algo que me atormenta.

CAPITANO

(Decidido.) É um anjo! Sinto o hálito de menta...

MIRNA

Parece que ao menos não vai me destratar, como nas outras

ocasiões... (Dá-lhe um beliscão.) CAPITANO

(Levantando sua espada.) Eu só maltrato dragões!

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MIRNA

(Irritada.) Então, a contar pelo passado, eu poderia ficar ofendida

com o que você falou... Ficar uma fera! CAPITANO

(Novamente com medo.) Então já não sei o que me espera... Achei

que era um anjo, mas acho que ele foi embora... MIRNA

Ora... Fui, no passado, igualzinha ao que sou agora. E você me

destratou! CAPITANO

(Aterrorizando-se, ao imaginar que fala com uma fera.) Em nada

mudou? MIRNA

Continuo a mesma... que você nunca amou!

CAPITANO

(Julga ainda que fala com uma fera.) Conheço muitas feras que se

disfarçam, sendo por isso mais perigosas... MIRNA

(Joga-lhe o lenço. Ele ainda não a vê.) Sou sua melanciona

saborosa... Magoada, mas vaidosa e ansiosa, à espera de um gesto cavalheiresco... CAPITANO

Como pode me querer enganar de modo tão pitoresco? (Encantado.)

Transforma-se num lenço solitário, bordado com arabescos! (Desconfiado.) Recuar! Uma vez, quando escalava uma montanha gigantesca, uma leoa disfarçou-se de camaleoa para me devorar, ... (garboso) ...mas eu a descobri. (Novamente encantado.) Mas, com essa voz de colibri... MIRNA

Senhor capitão, vai pegar ou não, o meu lenço de mão, que ainda está

no chão? CAPITANO

(Ele a vê.) Mas que formosa! Que madeixas encaracoladas!

(Novamente desconfiado.) O que estou a dizer? Essa fera está querendo dar o bote... Vou tapeá-la, revidando com meu velho truque do rebote... (Vai atacá-la. Tropeça e cai nos braços de Mirna. Apaixonado.) Sinto que vou glosar o mote... MIRNA

(Estarrecida, deixa-o cair.) Se glosar o mote, te amo até a morte!

CAPITANO

(Acha que fala com Virna.) Por que fala em tal sorte, ó rapariga que

eu amo...? MIRNA

Se não glosar o mote, eu o descamo!

CAPITANO

Então, vamos! Farei uma pequena récita declarando o meu amor

incondicional,...

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MIRNA

(Afoita.) Glosa o mote, catatau!

CAPITANO

(Empinado. Tira do bolso um papel amassado.) Agora, para todos os

ouvidos desprevinidos, uma seresta que os levará ao torpor. Quem é o autor? Ora, ninguém menos que o Capitão Rambo Rimbaud, o poeta lutador! (Lê.) “Se você vê estrelas demais.../ Lembre que um sonho não volta atrás.../ Chega perto e diz.../ Anjo./ Ó, minha menina.../ (Fala de modo bem pronunciado.) Virna...” MIRNA

Quem?

CAPITANO

(Tentando voltar à leitura, que foi interrompida.) Escute, meu bem,

meu amor está além... MIRNA

Eu sou uma coitada! Ninguém me ama... Ninguém me quer... Não há

mais nada a fazer... Seja o que deus quiser... CAPITANO

O que você está querendo dizer, meu pitéu?

MIRNA

Minha vida está indo para o beleléu...

CAPITANO

Ainda não entendi.

MIRNA

Eu não sou Virna, sou Mirna.

CAPITANO

Mirna? Mas que cisma! Nunca deixará de me perseguir? Dou-te um

aviso: pode desistir! (Sofredor, para si mesmo.) E precisava ser igualzinha à outra? Terei que sofrer duplamente, vendo minha amada mesmo quando ela estiver ausente? MIRNA

Então não mente? É isso o que sente?

CAPITANO

Exatamente.

MIRNA

Eu não aguento mais esta situação, capitão! A cada encontro, nova

decepção! CAPITANO

(Metido.) Perdão... Mas não é seu meu coração.

MIRNA

Eu devo ser mesmo um dragão, para que me trate com tantas armas

na mão. CAPITANO

Não! É idêntica àquela que, do meu navio da paixão, é o leme. Só

que não consigo trocar o “V” pelo “M”. É por Virna, não por Mirna, que o meu coração geme... MIRNA

Entretanto, é bem safado quando, no escurinho, não sabe quem é que

te espreme!

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CAPITANO

Tens razão: sou um verme!

MIRNA

Pois é melhor se comportar quando me encontrar! Hoje, a prosa foi

curta... Às vezes, nem sei que coisas você me furta! CAPITANO

Prometo que é a última vez que esta confusão acontece!

MIRNA

Quem sabe você aprende e não mais coma o que não lhe apetece!

(Dá-lhe um tapa.)

CAPITANO

Cada um leva o que merece...

CENA 8 (Capitano, Mirna e Pantaleão. Depois, Arlecchino.)

PANTALEÃO

(Entra muito bravo.) Não haverá, será, um minuto de tranqüilidade

nesta nova cidade? Temos um espetáculo por fazer, e olhem o que eu tenho que ver: minha filha sozinha com esse mariquinha! MIRNA

Papai, tudo eu posso explicar...

PANTALEÃO

Comece pelo vestido... Por que foi se trocar? Para encontrar esse cara

de curau derretido? MIRNA

Não entendo... Que vestido?

PANTALEÃO

(Refere-se ao encontro com Virna, que se disfarçou de Mirna.)

Vestia vermelho antes de se encontrar com esse pentelho. Por que agora está de amarelo? MIRNA

Não que eu não ache belo... Mas só se veste de vermelho quem não

tem espelho... Como aquela azeda... PANTALEÃO

Não se exceda! (Muquirana.) Pouco importa a cor, desde que não

vista seda... Economia no farelo é fartura no futuro! Mas botar amarelo só para se encontrar escondida com esse pé-de-chinelo? É o cúmulo! Minha filha preferida quer me ver no túmulo... Eu a proíbo! Que falta de tino! E Arlecchino, que deveria estar aqui lhe vigiando,

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como eu mandei? E vigiando a sua irmã... E a minha arca... E limpando o local para o espetáculo de já... já... Onde ele está? Eu o esgano!

(Arlecchino entra trazendo o molho de chaves na mão.)

PANTALEÃO

É só falar do diabo, que aparece o rabo...

ARLECCHINO

E basta aparecer o rabo pra ter que levar nabo!

PANTALEÃO

O que está fazendo com o meu molho de chaves na mão? (Vai tomar

dele.) ARLECCHINO

De mim ninguém tira isso, não... Brighella mandou entregar para a

sua filha... (Joga o molho de chaves para Mirna.) MIRNA

Estou fora, farroupilha...(Passa o molho de chaves para o Capitano.)

PANTALEÃO

(Para Capitano, que não sabe o que fazer com as chaves.)

Estropiarei sua virilha, se não devolver as chaves do meu porta-milhas... CAPITANO

Eu, hein? Vou pra longe dessa forquilha! (Sai correndo. Pantaleão

vai atrás.) MIRNA

(Dúbia.) Ufa! Desta eu escapei... Pensei que papai ia saber que eu

dei... ARLECCHINO

...as chaves para o capitão! Eu vi!

MIRNA

(Enrubescida.) Que horror! Não resisti!

ARLECCHINO

Por que tanto pavor?

MIRNA

Estou perdida de amor! E o capitão não me ama porque sou boa...

Gosta de mulheres à toa! Quanto sofrimento esse malvado criou... Para ele, não passo de um brinquedo! ARLECCHINO

(Mudando de assunto.) Brighella mandou te dizer um segredo...

MIRNA

Segredo? (Gelada.) Vindo daquele monstrengo, começo a ficar com

medo... ARLECCHINO

Ele mandou dizer que sabe do arromabamento, de tudo...

MIRNA

(Apavorada, achando que ele fala de seus encontros com Capitano.)

Diga que o mandei ficar mudo!

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ARLECCHINO

Não sei se ele vai topar.

MIRNA

Eu farei tudo o que ele mandar... O que ele quiser! Uma aliança é o

que proponho. Ninguém poderá saber disso, nem em sonho! ARLECCHINO

Então, o que eu devo dizer?

MIRNA

Que ninguém deve saber! E que não entendi por que me mandou o

molho de chaves. Quase me colocou numa fria. ARLECCHINO

Gato que não tem fome, não mia... Eu vou indo, pois ainda pretendo

ter azia... Vou comer rosquinha até arrombar a bacia! MIRNA

Vá logo dizer a ele, bisonho! Pestinha!

ARLECCHINO

(Ansioso.) Brighella ficará risonho, e eu ganharei a minha rosquinha!

CENA 9 (Mirna. Depois Tartaglia.)

MIRNA

Ai... Eu sou uma fracassada! Se meu pai souber de tudo, acabarei

assada! (Conclui.) É... Eu sou uma coitada... Não basta ter uma aflição? Não basta amar o capitão? Não! Logo vem maior provação... Brighella sabe de tudo e, se o conheço, não ficará mudo... (Recuperando-se.) Mas chega desse chororô. Não merece as minhas lágrimas aquele Capitão Rambo Rimbaud... Babão... (Pega um espelho para se recompor das lágrimas. Assusta-se e chora.) Ai, eu sou um dragão!

(Entra Tartaglia, juiz gago que, muito míope, tropeça na moça. Cai.)

TARTAGLIA

(Muito gago.) Que tro...peção!

MIRNA

Não vê por onde anda, mal-educado?

TARTAGLIA

(Desconfiado, sem nada ver, devido à miopia.) Acho que tem alguém

ir...ritado... MIRNA

Não consegue se levantar?

TARTAGLIA

Se você pu...der me ajudar...

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(Mirna ajuda-o a se recompor. Ele, muito míope, ao aproximar os olhos dela, fica embasbacado.)

MIRNA

Por que me olha com olhos tão grandes? Miopia?

TARTAGLIA

É para te ver melhor... Da...li, não te via.

MIRNA

E seu nariz, por que chega tão perto?

TARTAGLIA

É para melhor te chei...rar que te aperto...

MIRNA

(Fugidia.) Eu estou reconhecendo essa história de algum lugar...

TARTAGLIA

(Encantado.) A...cho melhor não ten...tar lem...brar... Continue a

brin...car. MIRNA

(Arisca.) Quer que eu pergunte da sua boca? Pode tirar o cavalinho

da chuva. TARTAGLIA

Só estava te fal...tando a touca, minha uva.

(Brighella entra, vê o que acontece e se esconde. Ouviu as últimas falas.)

BRIGHELLA

(À parte, escondido.) Um juiz! Esse cara, agora, cai nos meus planos

como uma luva...

(Virna, recompondo-se do assédio quase involuntário.)

MIRNA

Era só o que me faltava...

TARTAGLIA

Está me man...dando às favas?

MIRNA

(Compenetrada em sua condição.) Sou uma donzela em apuro...

TARTAGLIA

Pos...so te ajudar, juro!

MIRNA

Preciso me casar.

TARTAGLIA

Ajuda minha, en...tão, não deve recusar...

MIRNA

Amo a quem não posso amar.

TARTAGLIA

(Galante.) Não pretende trocar seu par?

26


MIRNA

Que azar! Quem é o senhor?

TARTAGLIA

Is...so tem tanto valor?

MIRNA

Ora, por favor! Aceitar auxílio de quem não conheço?

TARTAGLIA

(Encantado.) Ao ver os seus cílios, en...louqueço...

MIRNA

(Desapontada.) Que martírio! Vivo neste exílio e meu amado não

deseja viver um idílio comigo... Oh, coração maltrapilho! TARTAGLIA

Ofereço-te o meu amor...

MIRNA

(Horrorizada.) Mais essa para inflamar o meu tumor! Não tem um

pingo de pudor? Zombar assim do meu amor, esse torpor que é o único alívio para a minha dor... TARTAGLIA

Seja como for, es...tou ao seu dis...por.

MIRNA

Fale logo. Quem é o senhor?

TARTAGLIA

Tar...taglia, o juiz da cidade.

MIRNA

Não se envergonha de assediar mocinhas da minha idade?

TARTAGLIA

Não vejo nis...so nenhuma maldade.

MIRNA

(Brava.) Não te amo nem por caridade!

TARTAGLIA

Oh, minha bel...dade... É nova na ci...dade?

MIRNA

Pertenço à companhia de teatro que irá se apresentar por aqui... E

daí? TARTAGLIA

(Repentinamente sério.) Não gos...taria de inibir nos...sa paquera,

mas, se é as...sim, minha obrigação impera. Sua companhia só se apresentará se eu não con...seguir im...pedir... Não farão apresen...tação sem a minha autori...zação. Preparam-se escondidos para não pagar impostos, impostores? Têm que pagar à cidade os devidos favores... MIRNA

(Para si.) Então, preciso avisar Pantaleão...

BRIGHELLA

(Entrando na cena de vez, mostrando-se aos dois.) Receio ter ouvido

uma parte dessa falação e me sinto na obrigação de meter a mão... MIRNA

Brighella! Ai, que vergonha! (Sai correndo, desesperada, pois sabe

que ele “sabe de tudo”.) BRIGHELLA

Por que foge essa pamonha?

27


TARTAGLIA

Tam...bém não enten...di... Mas... de onde você saiu, que eu não vi?

BRIGHELLA

Eu sempre estou por aí... Ouvi dizer que é juiz?

TARTAGLIA

Agora, depois desse fora, um juiz infeliz. E você, quem é?

BRIGHELLA

Sou Brighella. Acho que posso ajudar o senhor a conquistar aquela

que saiu daqui na banguela... TARTAGLIA

Que be...leza de don...zela... Gos...taria de me casar com ela! Mas

dizem que toda don...zela tem um pai que é uma fe...ra... BRIGHELLA

O dono da companhia é o pai dela...

TARTAGLIA

(Pretensioso.) Podemos, en...tão, tentar uma nego...ciação. Afinal,

auto...rização nem é tão fundamental quando se é o futuro sogro do juiz... O que me diz? BRIGHELLA

Acho que sei de um acordo que fará todo mundo feliz... Você é

daqueles juízes que fazem casamento? TARTAGLIA

Sempre que houver con...sentimento, para que não haja so...frimento.

Se não for as...sim, lamento... Finjo que não estou em casa, no momento... BRIGHELLA

Então, vou te ajudar, mas o caso complicado... É preciso ter muito

cuidado, experiência, canja... Manja? A gorduchinha que saiu daqui tem uma irmã que é um veneno. Não se aproxime dela, que é pior que o demo! TARTAGLIA

Não... Só estou interes...sado nes...sa! É papo firme! Essa gordinha é

uma parada! É demais! BRIGHELLA

Cuidado: as duas são iguais! Gêmeas idênticas!

TARTAGLIA

Cada uma deve ter a sua marca autêntica, que a di...di...di...ferencie...

BRIGHELLA

Têm. Essa que estava aqui é boazinha. A outra, nem o nome

pronuncie... (Repentinamente ameaçador.) Se o fizer, prepare a sua mortalha, juiz Tartaglia... TARTAGLIA

Então, ensine-me chegar até o meu do...cinho...

BRIGHELLA

(Cínico.) É, amigão, acho que vou te ensinar o caminho... Ela e o pai

não estão muito longe, mas é difícil chegar sozinho, sem nenhuma informação... TARTAGLIA

Tem razão.

BRIGHELLA

Para chegar até lá sem que se perca, deve caminhar vinte passos e

virar à esquerda. Depois, dê mais vinte passos e vire novamente à esquerda. Novos vinte e

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vire à esquerda. Ao fim de vinte passos, vire, por fim, à esquerda e chegará até nós, quero dizer, até eles. TARTAGLIA

Nem sei como te agrade...cer, rapaz.

BRIGHELLA

Já me sinto agradecido, meu juiz de paz...

(Tartaglia vai.)

CENA 10 (Brighella e Arlecchino.)

ARLECCHINO

(De fora.) Brighella! Preciso falar com você!

BRIGHELLA

(Refere-se ao recado a ser dado a Virna.) E aí? Fez por merecer?

ARLECCHINO

(Entrando.) Estou louco pra saber... O recado está dado, com isso

não precisa ficar preocupado. A moça ficou apavorada... BRIGHELLA

Virna? Apavorada? Não estava desbocada?

ARLECHINO

Não.

BRIGHELLA

Já vi que você não fez nada!

ARLECCHINO

Fiz!

BRIGHELLA

Então, me diz! O que ela falou? Muito palavrão?

ARLECCHINO

Nenhum, coitadinha. Falou que fará o que você mandar se você

mantiver a boca fechadinha! (Decidido.) Agora me dê a rosquinha! BRIGHELLA

(Desconfiado.) Ela vai fazer o que eu mandar?

ARLECCHINO

Só continuo a falar depois que ganhar a rosca...

BRIGHELLA

(Dá-lhe um tapa.) Fale! Depois eu te dou duas... Senão vai continuar

comendo mosca... ARLECCHINO

Eu não quero briga... Melhor duas roscas na mão, do que uma na

barriga... BRIGHELLA

Ela vai seguir as minhas recomendações?

ARLECCHINO

Vai. E disse mais um bando de lamentações...

29


BRIGHELLA

Quais?

ARLECCHINO

Sei lá... Tanto faz...

BRIGHELLA

(Ameaçando-o.) Vai falar ou não?

ARLECCHINO

Falou de todo o coração... A moça não quer que nada chegue aos

ouvidos de Pantaleão. BRIGHELLA

Então foi ela quem surrupiou o tesouro da mala! Eu sabia... E já

estou preparando uma festa de gala! ARLECCHINO

Quem não sabia era ela... O que fazer com o molho de chaves...

BRIGHELLA

(Sem dar importância para o que Arlecchino disse.) Eu conseguirei,

em breve, cuecas para que ela lave! O capitão colocou tudo na minha mão. Vou ficar com a grana sem precisar colocar um dedo na chave. Vou preparar toda a tralha e falar com Pantaleão sobre o juiz Tartaglia...

CENA 11 (Brighella, Arlecchino e Pantaleão.)

(Pantaleão entra muito nervoso.)

PANTALEÃO

Nem me fale desse maldito Tartaglia! Eu vou afogar esse juiz com

uma toalha! BRIGHELLA

Por que tamanha fúria, Pantaleão?

PANTALEÃO

(Gritando.) Pega ladrão!

ARLECCHINO

Epa! Não fui eu não!

PANTALEÃO

Irresponsável! Minha arca foi arrombada! Ela não estava sob sua

responsabilidade, Arlecchino? BRIGHELLA

Justo com esse cabeça de pepino?

PANTALEÃO

Eu pago para o pulha me proteger, e ele deixa isso acontecer?

ARLECCHINO

Nem paga! E quando paga, paga tão mal, que eu quero mais é que

roubem até o seu bilau...

30


PANTALEÃO

Socorro! Se não acharem meu tesouro, eu morro! Além disso, tem

um tal juiz querendo impedir a minha apresentação do meu espetáculo nessa porcaria de cidade inútil! Estão querendo me ver falido? Esqueçam! Eu agarro o bandido! E, agora, esse bostinha de juiz atrevido!

CENA 12 (Brighella, Arlecchino, Pantaleão e Tartaglia.)

(Tartaglia volta ao mesmo local.)

TARTAGLIA

Então, é a...qui o reduto dos pu...lhas?

PANTALEÃO

Pulha encontra pulha na medida em que vasculha!

(Enfrentam-se. Olham-se muito de perto.)

TARTAGLIA

Deus me livre! Se não é a imun...dície em pessoa o que eu ve...jo, é o

sósia dela fazendo gra...cejo! PANTALEÃO

(Reconhecendo-o.) Tartaglia! Ainda não está morto, restolho de

repolho? BRIGHELLA

Ué...?

TARTAGLIA

Continua o mesmo trapa...ceiro! Quer entrar na cidade como um

foras...teiro. E só para não pagar imposto? PANTALEÃO

Cada um tem o seu gosto...

BRIGHELLA

(Para si.) Não é que o pé reconhece o chulé! Ninguém contava com

esse banzé! TARTAGLIA

(Continuando seus ataques a Pantaleão.) Achei que o fim da

juven...tude tivesse lhe trazido algum tipo de vir...tude... PANTALEÃO

Fim da juventude só traz o fim da saúde.

TARTAGLIA

Nes...te caso, melhor esta...ria num ataúde, velho a...butre!

31


PANTALEÃO

Estão vendo? (Choroso.) Faz de tudo para que eu me lembre da

minha finada... Ôxe, coitada! Aquela desgramada já deve estar ressecada... Faz tanto tempo que foi enterrada! TARTAGLIA

Já mor...reu sua esposa? Que cousa! Deve ter sido de des...gosto, por

ter um marido sem-vergonha que não paga im...posto! Velho mu...mu...mu...mu...munheca! PANTALEÃO

É que você não a viu depois que entortou a muqueca! Mais mão de

vaca que aquela cadela, só outra igual a ela! TARTAGLIA

Tive sorte em fu...gir dessa família...

PANTALEÃO

E a desgranhenta só me deu filha! Não tenho um varão para proteger

o meu quinhão... TARTAGLIA

(Referindo-se a um passado em comum.) Está pa...gando pelo que

fez, Pan...taleão! PANTALEÃO

Por que não se casou você, gagão, com aquele canhão? Deixou pra

mim o rojão. E o que me sobrou? Duas raparigas mais bundudas que formigas! TARTAGLIA

Que elas não puxem por você, hemor...róida cozida!

PANTALEÃO

Ah, se você não tivesse fugido da raia, Tartaglia! Eu não estaria

miserento, economizando impostos para cobrir os prejuízos... ARLECCHINO

(Apenas comentando, surpreso.) A cascavel, quando chora, sabe

chacoalhar o guizo... TARTAGLIA

Quando eu na...mo...rava sua mulher, foi você quem me...teu a

colher. Trapaceou e conseguiu... Mereceu! Apro...priou-se do papel de galã, que era meu! Eu fui ser juiz, deixei o te...atro de lado. Herdou o barril... É seu! Foi você quem quis, agora pa...gue o pa...to! PANTALEÃO

Eu não te perdôo porque não fez nada! Deixou que eu me casasse

com a sua amada... Livrou-se da miséria que a desgraçada carregava! Foi feliz, virou juiz... (Egoísta.) Exijo que repare o erro! TARTAGLIA

Pare de cho...rar como um bezerro.

PANTALEÃO

Já vi que no seu dedo não tem aliança...

TARTAGLIA

Não adianta fazer co...brança.

PANTALEÃO

Se ainda é solteiro, vai se casar com uma franga do meu viveiro!

32


TARTAGLIA

Estou aqui é para co...cocô...brar o seu dinheiro...

PANTALEÃO

(Chora.) Deixaram-me só de cueiro... Fui roubado! Arrombaram o

meu baú! TARTAGLIA

Sai pra lá, u...ru...bu! Essa é velha... O tru...que do baú!

PANTALEÃO

(Em camaradagem forçada.) Em homenagem à falecida... Livre-me

dos impostos e, do passado, esquecemos nossa ruptura: te entrego uma das minhas tanajuras! BRIGHELLA

Aproveite. Ele é o pai da sua doçura!

TARTAGLIA

(Tendo a noção exata da proposta.) Ai, me se...gu...ra! Jura que

aquela mocinha sali...ente que eu conheci ali é a sua menina, velho sovina? PANTALEÃO

É Virna, a que vai desencalhar! Ia dar muito trabalho arranjar outro

marido para aquela lá... BRIGHELLA

(Intrometendo-se rapidamente, ao ver seu plano ser comprometido.)

Era de Mirna que ele estava falando... PANTALEÃO

Mas é com Virna que eu o estou casando! Comigo não tem mais

papo... Agora vou atrás do ladrão do meu saco... TARTAGLIA

Se for aquela belezinha...

PANTALEÃO

É outra igualzinha!

BRIGHELLA

(Nervoso, vendo seus planos naufragarem. Sugere, rápido e

decidido.) Espere, Pantaleão... Que tal, então, se realizássemos a tal comunhão em cena? O juiz Tartaglia já foi ator... Não acha que vale a pena? PANTALEÃO

Nem que a vaca muja e gema!

TARTAGLIA

(Magoado com o passado.) Diz isso porque eu era o primeiro ator e

você limpava o chão! PANTALEÃO

Pois não haverá nova humilhação! Ganhou a vaga o melhor

garanhão. E é bom Tartaglia fazer logo a tal liberação, que o espetáculo é meu e o farei onde e quando quiser, com ou sem autorização. (Ranheta.) Colocar Tartaglia no palco? A resposta é não! Só se for para limpar o chão! (Sai.)

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CENA 13 (Brighella, Arlecchino e Tartaglia.)

BRIGHELLA

(Puto.) O molho estava indo bem demais para não desandar! Preciso

encontrar o capitão e tomar umas providências! Virna se casará com ele. E sabem por quê? Porque eu vou enfiar a mão na grana que ela roubou! Ah, vou! (Ao juiz.) Bem, meritíssimo, vamos ao que interessa. Não tenho muito tempo para explicar, portanto preste atenção: irá entrar em cena mesmo contrariando Pantaleão. TARTAGLIA

Desculpe... Não posso.

BRIGHELLA

Como não pode?

TARTAGLIA

Fiz promessa. Não faço mais teatro nem raspo o bigode.

BRIGHELLA

Por isso continua com essa cara de bode. Se deseja agradar à sua

amada, entre na peça e dê uma boa aparada. TARTAGLIA

Desculpe... Não posso.

BRIGHELLA

(Já gritando.) Pode sim! E se não fizer, não tem comunhão! Eu acabo

com as chances dessa tua paixão! (Ameaçador.) Como fica esse troço? TARTAGLIA

Bem, então eu posso.

BRIGHELLA

(Instrutor.) Tudo o que estiver na sua mão, qualquer papel que lhe

entregarem, o senhor dá um assinão. TARTAGLIA

Assim não? Como assim?

BRIGHELLA

Assinão, malandro. Assinão de assinar, está sacando?

TARTAGLIA

Ah, vou logo as...sinando...

BRIGHELLA

Isso, dignidade.

TARTAGLIA

Só isso?

BRIGHELLA

Só. Falô?

TARTAGLIA

Falou o quê?

BRIGHELLA

Falô é modo de falar!

TARTAGLIA

Ah, então es...tá falado.

BRIGHELLA

Vamos dar uma ensaiadinha. Pegue um papel (Tartaglia vai sair

para pegar um papel.) Onde é que o senhor vai?

34


TARTAGLIA

Pe...gar o pa...pel.

BRIGHELLA

Ai, meu deus do céu! É teatro, meritíssimo, lembra? Tudo

mentirinha, como o senhor fazia antigamente, esqueceu? TARTAGLIA

Ah, claro, teatro! (Pega um papel imaginário.) Fá...cil!

BRIGHELLA

Uma caneta!

TARTAGLIA

Já sei! (Pega caneta imaginária.) Ca...neta!

BRIGHELLA

E o senhor assina.

TARTAGLIA

As...sino o quê?

BRIGHELLA

O papel!

TARTAGLIA

Que pa...pel?

BRIGHELLA

(Mostrando o papel imaginário.) Este, que está na sua mão, ora!

TARTAGLIA

(Desesperado, mas já íntimo das gírias de Brighella.) Mas não tem

nenhum, não... Mora? BRIGHELLA

(Bravo.) Papel de teatro, cretino!

TARTAGLIA

Ah, claro! On...de eu as...sino?

BRIGHELLA

Em qualquer lugar...

TARTAGLIA

Em qual...quer lugar não tem validade!

BRIGHELLA

É mesmo? Tem certeza?

TARTAGLIA

Cla...ro que tenho! A...final, eu sou um juiz!

BRIGHELLA

Onde é melhor assinar?

TARTAGLIA

Em...baixo do que es...tiver es...crito, óbvio!

BRIGHELLA

Então, assine!

TARTAGLIA

(Olhando para o papel invisível em suas mãos.) Mas não tem nada

es...crito... BRIGHELLA

(Perdendo a paciência.) Na hora vai ter e o senhor nem vai precisar

ler! Agora só estamos ensaiando! TARTAGLIA

Não precisa ficar ner...voso... Eu es...tou me es...for...çando!

BRIGHELLA

Está bem, simpatia. Entendeu tudinho?

TARTAGLIA

Tu...dinho e mais um pou...quinho...

35


BRIGHELLA

Ótimo! Continue ensaiando com Arlecchino. Mais tarde nos

encontraremos. TARTAGLIA

Es...tá bem. Pe...go o pa...pel e as...sino o pa...pel!

BRIGHELLA

Que maravilha! Um ator como este não se encontra nem nos testes!

(Sai.)

CENA 14 (Arlecchino e Tartaglia.)

TARTAGLIA

Cocô... Cocô... Coitadinho de mim! En...frentar Pantaleão em cena

depois de t...antos anos... Es...pero que ele não me cause nenhum dano! Não vou desistir. A fi...lha dele é um pi...téu. E já dei a minha pa...lavra de juiz! Vou já en...saiar o meu pa...pel! (Vai entusiasmando-se aos poucos.) Pego o papel e assino o papel. (Trágico.) Pe...go o pa...pel e assino o papel. (Melodramático.) Pe...go o pa...pel e as...sino o pa...pel. (Mostra para o público o papel imaginário e comenta, envergonhado.) Te...atro! Fazer teatro assim é fá...cil! ARLECCHINO

Ei! Psiu!

TARTAGLIA

Quem está aí, que eu não ve...jo, apesar de ter o de...sejo.

ARLECCHINO

Sou eu, Arlecchino!

TARTAGLIA

Que bom que você es...tá por aqui, viu? Dê uma es...piada no meu

en...saio e ve...ja se está bom! ARLECCHINO

Eu já estava espiando faz tempo e vi que está muito ruim!

TARTAGLIA

Mas o Bri...ghella me ensinou assim. Pego o papel e assino o papel...

ARLECCHINO

Qual papel? (Indica o papel imaginário de Tartaglia.) É este o seu

papel? (Ri.) TARTAGLIA

Ué... Foi o que me fa...laram...

36


ARLECCHINO

Para fazer bem este papel é melhor ficar numa posição mais teatral,

quer ver? TARTAGLIA

Que...ro.

ARLECCHINO

(Coloca Tartaglia numa posição acrobática absurda.) Assim é muito

melhor! (Indicando o baixo ventre do juiz, que está em destaque.) Que nobreza! Assim, ninguém vai conseguir dormir, pois estava difícil manter o público acordado! Agora, diga o texto... TARTAGLIA

Se você a...cha... (Ao tentar dizer o texto, desequilibra-se e

Arlecchino não consegue segurá-lo. Esborracha-se no chão. Com o tombo, cura-se da gagueira. Muito eloqüente.) Ei, cuidado comigo, rapaz. Eu sou o juiz da cidade! Apesar de estar fazendo este espetaculozinho aqui hoje... (Nota que parou de gaguejar.) Você ouviu o que eu ouvi? ARLECCHINO

Foi exatamente o que eu ouvi. O que houve?

TARTAGLIA

Arlecchino, você é um gênio!

ARLECCHINO

É? Posso saber por quê?

TARTAGLIA

Porque seu truque me livrou da gagueira! Ensina-me mais alguns, viu

Arlecchino? Quem sabe você me cura da miopia. ARLECCHINO

Não só te ensino, como te dou garantia! Tenho um repertório de

idéias que vai te deixar doidinho... TARTAGLIA

(Saindo, com Arlecchino.) Sou um ator que não gagueja, brotoeja!

CENA 15 (Mirna e Capitano.)

(Mirna entra desesperada de amor.)

MIRNA

(Desfolha uma flor.) Amor pra mim... Amor pra outra... Dirá que

sim... (Decepcionada.) Sou uma ostra! (Pausa.) Ah, que vida sofrida! Meu amado não me ama e já estão sabendo de tudo... Estou frita...

37


(Capitano Rambo Rimbaud entra.)

CAPITANO

(Julga que fala, novamente, com Virna.) Nem posso acreditar que

estamos sozinhos... Vamos aproveitar melhor nosso tempinho? MIRNA

E ter você só um pouquinho, para depois ficar só com a lembrança?

CAPITANO

(Surpreso.) Ela respondeu? Será meu tempo de bonança? Bem, é

preciso manter a esperança... MIRNA

Quem espera nunca alcança!

CAPITANO

As coisas estão caminhando...

MIRNA

Para onde?

CAPITANO

(Surpreso com a suposta atenção dada por Virna. Ainda não sabe

que fala com Mirna.) Para um final feliz, claro! Não estamos sozinhos nesta aventura. MIRNA

E disso você se orgulha? Brighella sabe de tudo, seu safado!

CAPITANO

(Sem jeito.) Não é bom ter amigos do nosso lado?

MIRNA

Meu amor está sendo massacrado... Rambo Rimbaud, o tempo está

passando e você não faz nada! CAPITANO

Não a entendo, numa hora está boa, na outra está danada... De

qualquer modo, não se aflija... Não suporto te ver assim. MIRNA

Então faça algo por mim!

CAPITANO

Recito um poema sobre a morte de seu pai...

MIRNA

Ai!

CAPITANO

Foi apenas uma brincadeira...

MIRNA

(Sinistra.) Mas não é de todo besteira... Um ato corajoso é do que

preciso. CAPITANO

(Muito medroso.) Não sou nenhum medroso, mas lhe aviso: tudo o

que tenho a oferecer neste caso é um poema sobre o ocaso desse dilema. (Tira do bolso um papel muito amassado. Meloso.) “Mas se ela gosta de mim/ Por que vive dizendo não?/ Nem tem pena do meu coração/ Que só vive nessa ilusão...” (Mirna lhe dá um safanão.)

38


MIRNA

Capitão Rambo Rimbaud, “você abusou! Tirou partido de mim!

Abusou”! Saiba que se não fizer algo que me valha, há quem faça: o juiz Tartaglia! CAPITANO

(Repentinamente desesperado.) Sem seu amor, posso sucumbir,

Virna! MIRNA

(Estarrecida, por saber de quem fala o capitão.) Quando vai me

parar de confundir? Eu sou Mirna, a boa, delicada... (Chora.) Que acabará como coroa descasada... Ah, eu sou uma fracassada! Essas confusões já estão dando muita dor de cabeça. Ou me ama de fato, ou, por favor, me esqueça! (Reticente.) Mas saiba que eu “só quero que você me aqueça nesse inverno... Que tudo o mais vá pro...” CAPITANO

(Também irritado.) Que inferno! Mirna de novo? Estarei condenado

a nunca encontrar a minha pitchula, aquela fera coicenta feito uma mula? MIRNA

(Magoada.) Mesmo que não se importe aqui, com a pequena, saiba

que você está enlameado até o pescoço com o meu problema. Brighella e Arlecchino já estão sabendo do arrombamento! CAPITANO

Oh, lamento...

MIRNA

E, para papai saber, não demora! (Empurra-o.) Segura essa, porque é

brasa, mora? (Sai, orgulhosa e ferida.)

CENA 16 (Capitano e Pantaleão.)

CAPITANO

Se compreendo, não entendo, se entendo...

(Chega Pantaleão, à caça do ladrão de sua arca.)

PANTALEÃO

Eu te arrebento! E pego o culpado pelo arrombamento!

CAPITANO

(À parte.) Já sabe! (A Pantaleão.) Não se atreva a pensar em me

tocar... Sou o capitão Rambo Rimbaud, o poeta lutador!

39


PANTALEÃO

Lutador ou ordinário galanteador? O que estava fazendo a sós com a

minha filha? CAPITANO

(Sem graça e eloqüente.) Nenhum homem é uma ilha!

PANTALEÃO

Está zombando com a minha cara? Olhe, que lhe entorto a vara!

CAPITANO

Se assim o pretende, lutarei até perder meu penúltimo dente!

PANTALEÃO

Está valente, magricela? Pois loguinho ficará banguela!

CAPITANO

(Luta.) Cuidado com a espetada!

PANTALEÃO

(Em discurso movediço, bem autoritário.) Sou seu patrão, capitão...

Se sobreviver, como vai se livrar dessa enrascada? CAPITANO

(Achando que Pantaleão já sabe de suas relações obscuras com

Mirna.) Só fiz o que sugeriu aquela sua filha avacalhada! PANTALEÃO

(Enerva-se.) Não estou entendendo o que se passa, mas não tenho

mais controle do que quer que eu faça! Querem que eu bata a canela? Pois chega de chorumela! (Parte para o ataque.) CAPITANO

(Amedrontado, após perder sua espada.) Foi tudo por culpa dela! Por

mim, não o faria. PANTALEÃO

Chega de falácia. Que audácia! Não sei... (Torce-lhe as orelhas.)

CAPITANO

(Desesperado.) Eu confesso! Fui eu que arrombei! (Foge.) Decida

você com quem está a lei! (Sai, em correria descontrolada.)

CENA 17 (Pantaleão e Brighella.)

(Brighella entra assustado com a gritaria.)

BRIGHELLA

Que acontece com o capitão?

PANTALEÃO

Eu pego aquele fujão! Confessou, o espertalhão!

BRIGHELLA

É o culpado?

40


PANTALEÃO

Desgraçado! Fez o que quis com a minha arca arrombada! Eu o pego

e darei tanta lambada... Trarei amordaçado, depois que estiver capado! Devolverá tutu por tutu que roubou do meu baú... (Sai atrás do capitão.) BRIGHELLA

(Incrédulo.) Rambo Rimbaud roubou...? Não é possível! (Pausa.) E

agora? Não tem mais sentido o meu plano infalível... É, Brighella... Não contava com essa ramela no olho do piolho... Podia jurar que a ladra era Virna...

CENA 18 (Brighella e Virna.)

(Virna entra irritada após ouvir comentário de Brighella a seu respeito.)

VIRNA

Tudo eu! Até disso, agora, tenho culpa?

BRIGHELLA

Não foi bem o que eu quis dizer, me desculpa...

VIRNA

Não me irrite que eu fico possessa! Basta-me meu pai com essa nova

promessa! Ai, São Jeremias, cada mania! (Fala para o céu.) Santa Berenice, veja se não falha, porque eu não me caso com esse tal de Tar... Tar... Tar...taglia! BRIGHELLA

Eu posso te ajudar, se algumas coisinhas você me contar...

VIRNA

Não tenho satisfações para te dar!

BRIGHELLA

Arlecchino disse que você faria o que eu quisesse...

VIRNA

Só se antes disso, eu morresse.

BRIGHELLA

Não cumpre o que promete?

VIRNA

Por que sempre se intromete?

BRIGHELLA

Você não mexeu na arca arrombada?

VIRNA

Brighella, você não vale nada!

BRIGHELLA

Quando a encontrei, antes da confusão, querendo abrir o bauzão...

VIRNA

Precisava do dinheiro pra fugir da cidade. Você sabe que não suporto

mais meu pai impondo autoridade. Vê que não deu certo? Caso contrário, eu não estaria por perto!

41


BRIGHELLA

Pantaleão não vê a hora de casá-la para dar o bote.

VIRNA

Eu sei... Ele só pensa no dote!

BRIGHELLA

Você despreza a minha astúcia... Posso ajudá-la a se livrar das

núpcias com Tartaglia. VIRNA

(Fria, ao perceber que Brighella tem um plano.) Você é mesmo um

canalha! BRIGHELLA

Poderia desposar o Capitano...

VIRNA

Não sei quais são os seus planos, mas sei que não são os meus!

Ninguém me verá casada... (Olha para o céu, ameaçadora.) ...ou não sou mais fiel a Santa Esmeralda! Eu cuido da minha vida, não precisa se preocupar. Não uso mais fralda, não é minha Santa Mafalda? (Para a santa.) Concorde, senão apelo a Santa Geralda! (Desfazendo um tanto da santa.) Em último caso, há a Santa Reginalda! (Sai, petulante.) BRIGHELLA

Essa lagartixa não perde a cauda! Mas nós veremos quem dança

melhor essa salsa! A bonita vai casar, porque o papai Brighella é de lascar! Se o dinheiro está com o capitão, é com ele que a maldita fará a comunhão! Aí, eu e o poeta acertaremos... (dando socos na palma da mão) ...de leve, o que ele me deve! Ladrão de patrão! Jurou que não tinha um tostão! E eu, bestão, que queria casá-lo para pegar a grana que estava com o Virnão?

CENA 19 (Brighella, Arlecchino e Tartaglia.)

(Arlecchino entra trazendo Tartaglia.)

BRIGHELLA

É muito bom que os dois tenham vindo... (Grita com Arlecchino.)

Que lindo! ARLECCHINO

(Apanhando.) Achou?

BRIGHELLA

Não falou com Virna.

Acabei de saber... Por quê?

Pra ficar

dormindo?

42


ARLECCHINO

Como não falei?

BRIGHELLA

Só se foi no sonho.

ARLECCHINO

Deixe de ser bisonho!

BRIGHELLA

Cale a boca senão te ponho...

TARTAGLIA

Não fale as...sim com meu amigo!

BRIGHELLA

Amigo que vai perder o umbigo!

TARTAGLIA

O pobre...zinho não merece castigo... Estava ocu...ocu...ocupado

en...saiando comigo! Se cocô... cocô...co...meçarem com briga, eu proíbo o es...petáculo. Eu inter...dito. Tenho dito! ARLECCHINO

Voltou a gaguejar, depois de tanto esforço?

TARTAGLIA

Pode ficar tranqüilo... É que eu estava nervoso.

BRIGHELLA

(Para Arlecchino.) Ensaiou-o direito?

ARLECCHINO

Não ficou nenhum defeito!

BRIGHELLA

Estou vendo... Arlecchino, torça para que dê tudo certo... Você é o

único culpado por eu estar neste aperto. O espetáculo está quase começando e é preciso explicar-lhes uma coisa... (Assovia.) Reunião! (Fazem pequena reunião.) Vou chamar a todos para o início do espetáculo, ali veremos quem manda nesse poleiro, quem fica com o dinheiro! E a mocreiúda, ah, ela se casa! E para isso terá a minha “ajuda”!

CENA 20 (Os mesmos, mais Pantaleão, Mirna e Capitano.)

MIRNA

(Entrando, desanimada e épica.) Como poderei ter ânimo ainda para

interpretar, se estou proibida de amar? BRIGHELLA

(Animado.) Coloque-se no seu canto, que posso pensar loguinho em

estancar seu pranto! MIRNA

Isso me causaria espanto! Cansei de esperar milagre desse tipo de

santo...

43


TARTAGLIA

A pombinha quer acalanto...

ARLECCHINO

(Malicioso.) Coitadinha... Passa ela pra mim, que eu janto!

TARTAGLIA

Mas não eram duas? Cadê a minha cunhada?

ARLECCHINO

Vixe, aquela não entra na peça nem amarrada!

(Pantaleão entra enfurecido.)

PANTALEÃO

Já estão prontos para começar, ou vou ter que começar eu mesmo a

chacina! BRIGHELLA

Ops! Chega de carnificina! Falta chegar apenas o capitão.

CAPITANO

(Aparece, temeroso, de alguma parte do cenário.) Não fale isso, não!

(A Pantaleão.) Venho em missão de paz, Pantaleão. PANTELEÃO

(Furioso.) Pois o que eu quero é lhe dar um pescoção! (Vai para

cima de Capitano, que se esconde. Brighella segura-o.) BRIGHELLA

Olha o prejuízo! (Mostrando a platéia.) A platéia quer ver o

espetáculo... Perdeu o juízo! PANTALEÃO

(Constrangido.) Então vamos fazer logo a porcaria de pecinha! Mas

eu aviso, quando eu pegar o safado, esfolo o desgraçado! BRIGHELLA

(Aliviado.) Vamos, que era pro espetáculo já ter começado...

(Com um assovio de Brighella, todos se posicionam. Cantam música para início do espetáculo, que se chama “O Rombo”.)

“O Rombo”

44


Prólogo de “O Rombo” “Do rei, arrombaram o cofre, Da princesa, outra coisa. A coitada agora sofre: O amado safado não a quer por esposa!

O monarca está fulo. _Por causa da princesa? _Não, pelo furo! Então terá uma surpresa...”

CENA 21 (Os mesmos.)

(Após reorganizarem os objetos de cena e construírem uma espécie de palácio, Pantaleão, travestido de rei, senta-se no trono improvisado. Mirna, interpreta uma princesa; Arlecchino, um bobo.)

PANTALEÃO

Estamos aqui, meus amigos, reunidos para destroçar os ossos dos

nossos inimigos! Instalo uma TPI, Tribuna Pantaleônica de Inquisição, para punir o culpado pelo rombo do baú de Pantaleão...

(Mirna lhe dá um beliscão.)

PANTALEÃO

(Inadvertidamente, aponta para Mirna.) Quero dizer, do tesouro real!

MIRNA

(Assentindo, para ele, com a cabeça. Sussurra.) Nada mal!

PANTALEÃO

Tragam o acusado!

MIRNA

Isso, papai, castigue aquele malvado!

45


(Capitano é trazido amordaçado para confessar o crime.)

CAPITANO

(Cabisbaixo, mas épico.) O inocente terá, um dia, os pés lavados por

aqueles que o acusam de tal crime. MIRNA

Vejo que não se redime!

PANTALEÃO

Mostrem-se as testemunhas de defesa e de acusação!

(Mirna se coloca do lado da acusação. Arlecchino, percebendo que não não há ninguém do lado do Capitano, vai para o lado de sua defesa. É deliberadamente transferido, por ordem silenciosa de Pantaleão, para o outro lado.)

PANTALEÃO

Que fale a primeira testemunha!

(Mirna apenas chora.)

PANTALEÃO

Fale, princesa!

MIRNA

(Assustada.) Tenho certeza de que de que o culpado pelo

arrombamento foi esse jumento! ARLECCHINO

Na hora da relinchada, aposto que ela não reclamou do tamanho do

tormento! (Ao Capitano.) E o senhor, hein, dizendo que não tinha dote... Que só sabia glosar o mote... MIRNA

O Conde Rambo Rimbaud, meu rei, é um arrombador, um estuprador

do tesouro real! Ele é um impostor! PANTALEÃO

Como sabe, assim, com tanto ardor?

ARLECCHINO

É, como sabe?

MIRNA

(A Arlecchino.) Intuição feminina, bobo falador!

PANTALEÃO

(Desconfiado.) Só isso, princesinha?

MIRNA

(Confusa e, depois, arrependida.) Bem... Está bem.

ARLECCHINO

Agora sujou pra coitadinha!

46


MIRNA

Eu estava lá papai, mas não pude fazer nada! Juro! (Chora.) Foi ele

quem arrombou, eu não pude resistir! Agora não quer assumir! (Vai saindo de cena.) E tudo por causa daquela maldita daquela esquisita horrorosa... Que é a minha cara! PANTALEÃO

Não entendo mais nada!

(Mirna vai saindo de cena amaldiçoando a irmã. É trazida de volta por Tartaglia, que irrompe pela cena e saca, de dentro de seu figurino, um papel.)

TARTAGLIA

A senhorita não pode sair desse modo daqui. Tem que assinar o

depoimento que fez! Que insensatez!

(Brighella se desespera.)

BRIGHELLA

Acho que não precisa de assinatura... Vamos pular esta parte... Vocês

sabem, o público gosta de aventura! TARTAGLIA

Discordo, tem que assinar! Se não, vão chamar a moça de perjura...

ARLECCHINO

Já não basta o apelido de tanajura?

MIRNA

Dê-me o papel, que eu rabisco! (Sai.)

TARTAGLIA

Nossa... Foi por um trisco!

PANTALEÃO

Triz, filhote de meretriz! Triz! Está querendo acabar com a minha

pecinha! Além de entrar no elenco sem permissão, fala tudo errado e faz o que não estava combinado, charlatão! BRIGHELLA

(Tentando consertar a situação. Cínico.) Pantaleão, veja que sorte

temos neste momento, em que a divina providência providencia um juiz para este julgamento. PANTALEÃO

Juiz que não sabe falar triz! É desse que você diz? Eu mesmo posso

julgar o que quiser. O espetáculo é meu e eu faço do jeito que me der... BRIGHELLA

(Aponta para o público.) Só que vai pegar mal...

47


PANTALEÃO

(Envergonhado. Visivelmente contrariado.) Nada mal... Bem que eu

estava pensando em colocar um juiz. Mas é que eu queria um que enxergasse pelo menos um palmo à frente do nariz... TARTAGLIA

(Ofendido.) Já me curei a gagueira, poxa! Agora só falta a cegueira...

PANTALEÃO

E eu que nem tinha percebido! Assim, não atrasaremos as falas,

bandido! TARTAGLIA

Pois saiba, ó rei, que estou aqui para defender o acusado de suas

garras! Não se envergonha de trazer o pobrezinho preso nestas amarras? PANTALEÃO

Não.

TARTAGLIA

Deveria. (Para Pantaleão, acusador.) Ladrão que rouba ladrão tem

direito de montão! BRIGHELLA

(Achando estranhas as falas de Tartaglia.) Não era diferente?

ARLECCHINO

(Fazendo-se sabido.) Cala a boca, ô, inteligente!

PANTALEÃO

(Sobre o que Tartaglia falou.) Ele está me difamando!

TARTAGLIA

Apenas elucidando coisas que só eu sei sobre o seu passado.

BRIGHELLA

(Vê que essa discussão não lhe ajuda em seus planos.) Senhor

Tartaglia, isso não vem ao caso, deixe o passado abafado. TARTAGLIA

(Aponta Capitano.) E permitir que se culpe este pobre ser

aprisionado. (Aponta Pantaleão.) O histórico deste pilantra demonstra: só pode ser ele o responsável por este ato impensável que é o roubo de si mesmo... Eu o obrigo a assinar uma confissão! PANTALEÃO

Sai de mim, chupetão! Não fui eu que arrombei!

TARTAGLIA

Aposto que foi. Eu sei.

PANTALEÃO

Não.

TARTAGLIA

Pra cima de mim, não, Pantaleão!

(Brigam. Grande confusão se instaura. Brighella vê seus planos irem por terra.)

CAPITANO

(Grita.) Chega!

48


(Todos olham para ele assustados.)

CAPITANO

Eu confesso! Quem arrombou foi eu.

BRIGHELLA

Fodeu!

(Silêncio geral.)

TARTAGLIA

(Decepcionado.) Assim, diante de evidência de tal contundência, sou

obrigado a aceitar os fatos como são. Como não? Mas exijo: o amarradão tem que assinar uma confissão! PANTALEÃO

(Muito contente.) E pagar a quantia roubada de Pantaleão! Quero

dizer, do rei... Vamos, é a lei! Repare o dano cometido! Moeda por moeda! CAPITANO

(Ele assina o papel que estava nas mãos de Tartaglia.) Sou o

culpado, mas não sei nada de moeda... PANTALEÃO

Hipócrita! Trapaceiro!

TARTAGLIA

Rapineiro.

CAPITANO

O que eu arrombei foi...

(Não consegue terminar sua fala, pois no fundo da cena, irrompe uma gritaria de duas mulheres se pegando a tapa. Por detrás de uma tapadeira ou de um baú, aparecem, uma de cada vez, as irmãs gêmeas. Apenas parte do corpo deve aparecer, pois as duas personagens devem ser interpretadas pela mesma atriz. O figurino, agora, deverá ter metade do corpo de Mirna, e metade de Virna.)

MIRNA

Você é um estorvo!

VIRNA

Me solta, filhote de corvo!

MIRNA

Sai de mim, jaburu!

VIRNA

Ah, vá tomar no...

MIRNA

Besteirenta!

VIRNA

Já está pedindo arrego? Tão cedo?

49


MIRNA

Mimada!

VIRNA

Lesada!

MIRNA

Ladra de irmã! O que ele viu em você? Cadela! Mas pra cima dos

meus homens, a partir de hoje, você não ladra! VIRNA

Cão que late, não morde...

MIRNA

Ah, morde!

VIRNA

Aaaaiiii!

(Todos estão boquiabertos com o vexame preparado pelas duas na frente da platéia.)

PANTALEÃO

Mas... O que é isso?

ARLECCHINO

Pelo menos a briga manteve o povo acordado. (Para o público.) Se

alguém quiser mais um pouco, eu atiço...

(Elas continuam.)

VIRNA

Louca, estou escondida! Papai vai saber que eu estou aqui e vai

querer me casar com aquele juiz... MIRNA

Isso é tudo o que eu sempre quis.

VIRNA

Eu não vou me casar. Pronto! Acabou!

MIRNA

Nem mesmo com o homem que me engravidou?

(Todos ficam chocados com esse último comentário. Paralisia geral.)

BRIGHELLA

Encrenca!

ARLECCHINO

Eu sabia! Lembra como ela falava do tamanho da benga?

(Pantaleão simula um ataque cardíaco.)

CAPITANO

Era deste arrombamento que eu estava falando: o da monstrenga!

50


(Pantaleão desmaia de desgosto. Nova grande confusão.)

TARTAGLIA

(À parte.) Como continua o espetáculo, Arlecchino?

BRIGHELLA

Por que não faz como lhe ensinei, caprino?

TARTAGLIA

Tartaglia, quando entra em cena, entra para brilhar! Não se contenta

em coadjuvar! Especialmente Pantaleão. Se ele desmaiou, vou lhe dar um sossega-leão! Mostrarei quem é o maior canastrão. ARLECCHINO

Faz o que eu te falei... É sucesso. Certeza!

TARTAGLIA

Beleza.

(Pega Pantaleão pelas roupas e, em teatralidade fulgurante, dá-lhe uns tabefes e, posteriormente, coloca-o em posição acrobática esdrúxula, de frente para a platéia. Pantaleão acorda.)

TARTAGLIA

É agora que eu me vingo! Gosta de uns tapões, gosta? Bingo! Agora

tem que ficar em posição digna, como um primeiro ator. Vejam! Um primor... PANTALEÃO

(Ao acordar.) Que horror! Solta a minha cueca, senão te arrebento a

muqueca...

(Pantaleão percebe que coisas estranhas acontecem. Interrompe a fala. Tarde demais. Moedas de ouro escorregam de sua roupa, de seus bolsos.)

TODOS

Moedas de ouro!

BRIGHELLA

É de ponta-cabeça que se vê o chifre do touro.

ARLECCHINO

E eu é que ia entrar no couro?

CAPITANO

(Deslavado.) É... O que eu arrombei foi outro tesouro.

TARTAGLIA

Eu sabia! Quando era pequeno, não perdoava nem o cofrinho da tia.

Mas até depois de velho? BRIGHELLA

E alguém reconhece idade de escaravelho?

51


TARTAGLIA

Furo bem feito não tem remendo.

ARLECCHINO

Mas eu não entendo. Pra que queria um culpado?

TARTAGLIA

Para ficar com os dividendos. Fingiu-se de rogado para ter em dobro

o tal do dinheiro roubado. PANTALEÃO

(Cara-de-pau.) Juro que não sou o culpado.

TODOS

Ah, não, mambembe safado?

PANTALEÃO

Não me lembro de nada. Esqueci tudinho.

TARTAGLIA

Ninguém acredita na sua mentirada e trate de confessar o seu golpe

do colarinho! PANTALEÃO

Ninguém me obriga a dizer nada por aqui!

BRIGHELLA

(Apontando para a platéia.) Nem o seu público? Nós estamos numa

TPI... Vai pegar mal esse ti-ti-ti. PANTALEÃO

(Constrangido, tentando agradar ao seu público.) Bem... Se é assim,

confesso. Mas esperem acabar a pecinha, que a minha fúria eu não meço! TARTAGLIA

É preciso assinar a sua confissão, bode fanfarrão.

PANTALEÃO

Arre! Ninguém levanta a voz para Pantaleão. Quer confissão, já fiz.

Mas não venha com essa de mandão, que eu não estou bom, não! TARTAGLIA

Assine aqui ou não terá validade esta TPI.

BRIGHELLA

(Tentando evitar a assinatura de Pantaleão, pois isso fere,

centralmente, o seu plano.) Ora, juiz Tartaglia, o rei já confessou que roubou o próprio baú. Vamos acabar logo com esse sururu. TARTAGLIA

É por isso que exijo a assinatura, para que não haja conseqüencias

futuras. PANTALEÃO

Eu arranco a sua dentadura.

TARTAGLIA

Assine. O público vai começar a vaiar.

BRIGHELLA

Sei, não... Acho que não vai precisar.

TARTAGLIA

(A Brighella.) É o meu tour-de-fource, quer parar de me sabotar!

PANTALEÃO

(Assinando, enquanto justifica-se, trágico, ao seu público.) Se é para

o bem do bolso e felicidade geral do povão, digo a todos que... (Humilhado.) Assino.

52


(Brighella senta-se, derrotado e mal-humorado, e prepara então a apoteose do espetáculo.)

BRIGHELLA

Bom, se é pra terminar de vez com essa pinguela, é melhor chamar a

Mirna, que eu desisto do caldo dessa panela. PANTALEÃO

Que história é essa agora? Só assinei pra pecinha acabar na hora!

BRIGHELLA

É, mas tem sempre um filho-da-mãe metendo a mão na cumbuca.

Não podem ver a coisa indo bem que vem um e futuca! (Chama-a, na coxia.) Mirna!

(Ninguém responde.)

BRIGHELLA

(Grita mais.) Mirna! Deve estar comendo, a pançuda! Ou se

recuperando do deus nos acuda! (Novo grito.) Mirna! Chega de briga! Mirna, depois você come! MIRNA

(Desgrenhada, gordíssima, entra com uma coxa de frango na boca.)

Alguém chamou o meu nome?

(Brighella abre, para todos verem, o documento que foi assinado no espetáculo por Mirna, Capitano e Pantaleão. É uma certidão de casamento.)

BRIGHELLA

(Irritado.) Gostaram do resultado?

(Pantaleão cai ereto, de costas.)

CAPITANO

Tinha que sobrar aqui pro desgraçado!

MIRNA

Oh, meu amado!

CAPITANO

Não vale. Não tem asssinatura do juiz...

TARTAGLIA

Chegou o momento que eu sempre quis. É a minha glória! (Pega o

documento e fica todo empostado. Dá um grito assustador.) Peeeeeeeego o papel! E assino o papel!

53


(Mirna agarra ao capitão. Ele está visivelmente descontente.)

TARTAGLIA

(Percebendo

que

realizou

o

casamento

de

sua

amada.)

Defi...niti...vamente, não dou sor...te no tea...tro. ARLECCHINO

Voltou a gaguejar?

TARTAGLIA

É a so...lidão.

CAPITANO

Lerei agora um poema sobre a infelicidade que, cá nesta cidade,

desabou sobre o pobre Rambo Rimbaud, o poeta perdedor... “Doce, doce amor”... MIRNA

Cale-se, capitão! Agora que tenho direito, você não me escapa,

gostosão! (Pula sobre ele e taca-lhe um beijo na boca. Ele não agüenta o peso e cai.) Ufa, mesmo sem me agüentar, vai ter que aprender a me amar... CAPITANO

(Grita.) Viiiiiirna!

MIRNA

A cada gritinho de Virna, a partir de agora, ouvirei Mirna! (Taca-lhe

outro beijo sufocante.)

(Ela o pega no colo e saem, para a lua-de-mel. Todos, menos Pantaleão, cantam a canção do final do espetáculo.) “O rei arrombou o cofre, Roubaram da princesa, outra coisa. A princesa não mais sofre: O capitão agora tem esposa!

O monarca ficou fulo. _Por causa da princesa? _Não, pelo furo! Então, teve uma surpresa!”

54


FIM DE “O ROMBO”

Cena 22 (Os mesmos, menos Mirna e Rambo Rimbaud. Depois, Virna.)

PANTALEÃO

Eu lhe pego, Tartaglia! Vai parar de jogar mosca na minha sopa!

TARTAGLIA

Opa!

PANTALEÃO

Por que fez aquilo? Eu te arranco o mamilo!

TARTAGLIA

Só fa...ço o que acho que de...vo! Aliás, não de...vo nada a

nin...guém. PANTALEÃO

E a promessa de se casar com Virna? Está de pé?

(Virna entra, descabelada, e ouve o que foi dito.)

VIRNA

Ai meu São José...

PANTALEÃO

Ali está ela, desgrenhada como uma cadela.

TARTAGLIA

Mas é igualzinha à outra! Me segura senão eu morro!

(Vai, pegajoso, atrás de Virna para lhe beijar.)

VIRNA

Socorro!

(Os dois saem.)

BRIGHELLA

Droga! Ficamos sem a bufunfa.

ARLECCHINO

E eu sem a sua buzanfa! Mas as minhas mudanças no tiozinho

tornaram tudo mais divertido...

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BRIGHELLA

Quer dizer que o gaguinho não pirou, você meteu o bedelho?

ARLECCHINO

Ué, eu dei uns conselhos...

BRIGHELLA

Eu te esfolo, Arlecchino!

(Enquanto Brighella se prepara para golpear Arlecchino, Pantaleão apita para que todos arrumem as coisas para nova viagem.)

ARLECCHINO

Salvo pelo gongo!

EPÍLOGO

(Todos cantam a música do fim do espetáculo. Juntam as malas e brigam ainda por conta do que foi feito.) “Todavia, o que de bonito e triste havia No canto da cotovia Vira confusão e solução Nos escombros restantes da ficção.

E mais uma vez, como não?

Carregar as malas é uma missão Se você não é Pantaleão!”

FIM

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