TRANSIÇÕES Iná Camargo Costa*
Desde que Ibsen fez a dramaturgia do século XIX começar a narrar, instaurou-se uma espécie de guerra civil não declarada na cena e na crítica. Na cena, além da censura oficial que proibia uma infindável coleção de assuntos, os próprios empresários e elencos rejeitavam com vários graus de resistência os novos experimentos dramatúrgicos. E, quando não o faziam e se dispunham a correr os riscos, seus próprios hábitos e técnicas pautados pela sedimentação dos pressupostos dramáticos inviabilizavam os experimentos. Os resultados deixavam todos os envolvidos infelizes: os dramaturgos, porque viam seus textos literalmente destruídos; os elencos, porque se frustravam com os desastres; e os produtores, por causa dos prejuízos com a bilheteria. Quanto aos críticos, ainda mais empenhados na preservação de seus saberes e, como dizia Antoine, com uma disposição quase instintiva para preservar os interesses estéticos de seus clientes burgueses, estes travaram uma luta sem quartel contra aquilo que identificavam como o risco de “destruição do teatro” e de seus valores eternos. A consequência disso foi a produção de quantidades industriais de incompreensão do que se passava na cena e, sobretudo, na dramaturgia. Foi preciso esperar o aparecimento de um pesquisador, como Peter Szondi, já na segunda metade do século XX, para que fosse lançada alguma luz sobre o que ele chamou de “crise do drama moderno”. O texto que segue se pauta basicamente em suas reflexões, mas se desenvolve numa perspectiva mais específica, pois aqui o horizonte é a dramaturgia brechtiana.
1. Ibsen, Tchekhov e a crise do drama moderno Ibsen Durante o século XIX, o drama alcançou um grau de hegemonia de tal ordem que passou a ser sinônimo de teatro. Sua expressão degradada, transformada em receita na França por volta de 1820, é a chamada peça-bem-feita, que depois serviu de modelo para os estúdios de Hollywood na primeira década do século XX e até hoje é ensinada em manuais de roteiros. De acordo com Peter Szondi1, um dos primeiros abalos impostos à forma foi obra de Ibsen, dramaturgo norueguês que durante uns bons 20 anos esforçou-se para escrever segundo a receita. Ele já era um dramaturgo consagrado, encenado em toda a Europa, quando produziu a primeira obra que, além de se transformar em escândalo e sofrer censura em mais de um país, punha em questão a idéia de universalidade do indivíduo livre, o mais importante dos pressupostos do drama, ainda que de maneira pouco perceptível para a época, por se restringir ao âmbito temático. A peça em questão, Casa de Boneca, encenada *
Professora APOSENTADA da FFLCH-USP, Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada.
1
. SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.