Catalao-Macaubal peça Antonio Rogério Toscano

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Catalão-Macaubal De Antônio Rogério Toscano

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Ato 1 Meu Primeiro Amor

(João e Brinco estão na beira de uma estrada de terra. Olham para o horizonte. Vêem, ao longe, a chuva. A estrada vai até muito longe, até onde se pode ver, dali, o mundo. Falam sobre todas as coisas sem nenhuma pressa, para que o descampado e o vento possam ecoar cada idéia. Lirismo nascido da contemplação.)

João

Ói, cum’chóvi bunitu n’istrada...

Brinco

(Em calmaria e com certa melancolia, que o acompanha.)

Tempo tá terríve lá pras banda da ingrejinha. João

Núvi arrevuada... Vai du Cascavé té lá prus lad’a Santa

Barba! Brinco

Maisi chegu’inté qui.

João

Vixe, si chêgui! (Contente, mas contido.) Será qui chêgui?

Chêgui... Lumen’um fica trísti, módi coã cantá... Uia u chero da terra moiada!

(Silêncio.)

Brinco

Argodão vai estalá nu botão da flor.

João

Tumare só qui num estragui a quermessi di São Gonçalo...

(Silêncio.)

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Brinco

(Triste.) Cê vai?

João

I boi manso di pasto insquece us rumo da cochera?

(Ansioso, mas condicionado pela calmaria.) Tem qui vê Jandira... Brinco

É... (Despercebido, fala para si mesmo com uma ponta de

inveja, de João ou de Jandira. Ambíguo.) Iela vai disfilá di anja na prucissão... João

Cê tá insperano vê u’a moça na reza, é? (Esperto.) Intão só

pódi sê Tereza, Mélia, Dirce ô a Lurdinha lá du povo du Tõe d'Olvina! (Tempo, um tanto brincalhão.) Jandira qui num há di sê!

(Silêncio.)

Brinco

I isso é di seu prazê sabê?

João

Ih, marimbondo-cavalo! Quantas veiz num falei di Jandira,

só pur falá! (Idílico.) Ieu fico nu’a felicidade quando ié pra falá dela! Basta ieu vê! Na novena iela falô qui vai fazê prumessa di nunca maisi cortá us cabelo! Um dia inda aliso anquela cabelera di ispiga dela... Enrolo tudo nus dedo... Brinco

(Enciumado.) Brincadera mai’sem graça! Num vejo um

pingo! Niúma gota! (Tempo.) I farta respeito ficá falano nesses modo! (Pausa pequena.) Gosmência... João

Agrada.

Brinco

(Solta, sem perceber.) Ti agrada é sabê di mim... (Pausa,

ambíguo, quase sorridente.) Curinhoso!

(Silêncio brusco. Acauã canta, longínqua.)

João

Uai, si iela vai disfilá di anja... Inté sei quem é... Pódi falá... 3


(Silêncio. Acauã canta.)

Brinco

Num conto! (Olha-o nos olhos.) Ôio gordo disanda u qu’ieu

mordo!

(João escapa do olhar de Brinco.)

João

Jandira, pra mim, é qui nem a terra, Brinco... Tem di oiá

pr’ela i intendê as vontade qui iela qué. Dispoi é ará, dexá discansá... I prantá... Quem sábi num cóie? Brinco

(Com alguma mágoa.) Si num fizé bestera, cóie.

João

(Dá continuidade ao bom devaneio. Com leveza.) I hora

qu’iela fech’us óio, pairéci qui intardece, quereno memo discansá... Dá aquel’iscuiricida nu mundo pra amanhecê di novo nas hora qu’iela ábri... Um ôio preto di anu... Brinco

(Como se falasse em código para João.) Oiá a terra...

(Tempo. Olha fundo nos olhos do amigo.) U qui angente gosta... Isso ieu óio. (Tempo.) Maisi oiá num fala... Meu oiá é queto. Calado com’a secura da fôia d’arve, qui niguém iscuita secá. (Tempo. Triste.) Mai cê qui pairéci qui num óia direito pra nada, João. João

(Escuta-o, mas não o compreende.) I não? Num canso di

oiá pru vento quando arrevoa us cabelo dela... É igualzim ventania im arve, Brinco. Brinco

Ventania é cois’qui si vê... Mai i a baruiera du fundo du

corgo? É muda... 4


(Silêncio.)

João

Cê tamém num fala nada... Pairéci vaca moxa nu pasto!

Mai’calado qui sombra! (Refere-se à suposta paixão de Brinco.) I a moça? Iela sábi? Brinco

Sabê! Sabê lá é coisa qu’importa? (Quer mudar o rumo da

conversa.) Importanti é u argodão, João, cum botão im flor arrebentano as casca du peito dangente...

(Silêncio.)

João

(Termina o assunto.) É... Argodão vai vingá!

(Silêncio.)

Brinco

(Quieto, pensativo, dúbio.) Vinga...

(Acauã canta novamente, no silêncio. Os rapazes arrumam as trouxas de roça e andam. Conforme caminham, um coro de violeiros toma a cena, para o canto do “Meu Primeiro Amor”. A cena dos violeiros, então, dissolve-se após a canção e meninas-moças enfeitam o espaço para a festa.)

Amélia

Ih, Jandira, Dirce mi falô qui si num fô hoje, é pur caus’di

quê João num toma maisi corage...

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Dirce

Ói, qui João é corajoso, Mélia! (Para Jandira.) Si disisti,

vai vê é purque num tem gosto nada d’ocê... Jandira

Magine, tonta! Im festa santa é inté pecado pensá nessas

coisa... Mardiçoa! Dirce

Pecado inté pra quem vai fazê prumessa di nunca mai’cortá

cabelo?

(Elas olham com fascínio para os cabelos de Jandira, líricas.)

Maurícia

(Pensa em seus cabelos curtos, desenxabidos.) Acho tão

lindo cabelo di prumessa. Amélia

Pairéci qui mud’di cor. Ó! Só um tiquim...

Jandira

Purque tem di lavá cum flor-de-maio... Branca...

Dirce

Diz qui alisa demais...

Amélia

(Fascinada.) Flor-de-maio branca...

Maurícia

Vó Nerstina falô qui num pódi mais dexá sorto. Tem qui

prendê ao meno cum trança.

(Dirce interrompe o fascínio.)

Dirce

Muita saracutice cum cabelo prumitido...

Jandira

Num tem nada prumitido! Inda... Só gos’di João di longe,

igual iele di mim... Na distância do oiá... Num tem nada prumitido!

(Silêncio.)

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Dirce

(Soltinha.) Bem qu’ieu quiria ganhá pidido...

Amélia

Sussega, Dirce! I vê si num distrai pra num pregá torta a

bandera do santo! São Gonçalo é amigo ansim di Santo Antonho! I Santo Antonho é trísti quando pega réiva di moça nuviada! Num nóiva mai’nem cum reza! Dirce

Ih, qui Santo Antonho num é besta di virá as cara pra mim!

Vó Nerstina mi insinô um tanto di simpatia... Ieu viro iele di riba pra baxo na bacia d’água benta, qu’iele só sai di lá dispoi qui fizé um dijuntório pra mod’ieu mi arranjá! Afogo memo! Sem dó nem piedadi! Jandira

(Lembra que Maurícia, a mais nova, está por perto.) Queta

o faxo, Dirce! Cê acha qui Muriça pódi ficá ouvino essas bobage qui cê fala? Num tem indade, não! (Vó Nerstina chega, muito bonachona, com um violão nas mãos – sorridente e liberal, com um vestido arredondado – curto, pouco acima do joelho. Mostra o saiote.)

Vó Nerstina

Indade num tem controle, isminina! Muriça é disabrocho!

Dexa disabrochá! Ieu, nas indade dela, já tava era fugida c’o finado Emiliano. Nessa indadi, tigamênti, minina... (Ri, maliciosa.) Finad’Emiliano mi levô imbora... Mi arrancô di casa in noiti di lua nova! Nói foi. Dirce

(Seca.) Lua nova caba minguano, Vó Nerstina!

Vó Nerstina

Té minguá tem crescimento... I, dispoi, véia vira violera!

Vai virano! Vai virano... Nunca pára. Dirce

Pai óia torto pr’issu! Véia violera num custuma.

Vó Nerstina

Custume é tontice. 7


Amélia

Dirce, cê anda teno prendizado c’as moça du Tõe d’Olvina?

Bocuda! I num presta as duas falá ansim di disavença. Disingonça us pensamento di Muriça! Maurícia

Dexa falá, Mélia, qui meu ovido num é pinico! Ieu escoio

mió qui penera u que é di iscuitá i u qui num é! Amélia

Caruncho i joio é u qui acaba ficano, viu, Muriça! Qu’ieu

sei bem da boca sem tramela qui cê dexa aberta quando num dévi! Jandira

Sórta cada uma!

Vó Nerstina

Falá verdadi nunca prijudicô.

Dirce

I nunca qui vi Muriça falano mintira! (Endiabrada.) Num

sei nem como num falô per’du pai dus óio grande qui u Brinco mandava prus norte da Jandira na novena, turdia! (Terrível.) Pairicia inté ódio, maisi é amor...

(Silêncio curto.)

Maurícia

(Irritadiça, quase demonstrando seu ciúme.) Nome dêli

num é Brinco, Dirce, é Divino. Divino! Mania di chamá pur pilido! Dirce

Quarqué manera, num sei como cê num falô... Caus’di

pilido qui num foi... Jandira

Num falô pur caus’qui num teve oiá nium, Dirce!

Maurícia

(Discreta, quase mentirosa, mas honesta.) Tamém num vi!

(Despista suas intenções em relação a Brinco.) Ô, cabocla bandida é essa tal di Dirce! Amélia

(Bronca de mais velha.) Inventa coisa nada, sô!

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Vó Nerstina

Ieu tem é saudadi dus meu tempo di fusquinha, dessas qui

cêis faiz agora, caus’di macho! As moça antiga tudo vivia quereno garrá us garrote; saía umas réiva dus fund’u coração delas! I coração é rio qui córri corgo... Quem pega? Amélia

Ói, Muriça. Já falei pra botá argodão nas venta! Mió coisa é

fazê qui nem difunto. Maurícia

(Fingindo que nada disso lhe interessa.) Oreia-di-pau num

cresce im táuba boa, Mélia. (Diverte-se.) Nas hora qui quero, mi finjo di surda... Vó Nerstina

I surdo, pur acauso, num iscuita? Té cego vê!

Dirce

Tem cego, memo, qui vê dimais... Vê inté u mod’i como

Brinco fustiga ess’atração di João pur Jandira... Maurícia

Coitad’o Brinco! (Engasga.) Divino... Moço tão certo!

Dirce qué é fazê arrelia! Vai vê, anda di gosto pur João... Dirce

Bem qui João quisesse dançá comigo, ieu ia... Jandira fica

di sonsice, cois’qui num desintreva da cadeira. Jandira

Respeito desejo di pai. Dispoi du pidido, é indiferenti...

Dicerto sô rapariga di dança sem compromisso! Dicerto...

(Amélia interrompe a conversa, objetiva.)

Amélia

Vam’pregá bandera! Vam’pregá bandera!

Jandira

(Está linda. Perde-se em sua beleza.) É, vam’pregá! Já tá

quasi di noite i ieu nem impetequei! Só u tempo qui demora pra dismarrá u lenço i forgá as ramona!

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Dirce

(Maldosa.) Tanta invenção pra dia santo... Nem pairéci

prumessa! I cum Brinco nas ronda... Oiano d’isgueia... Amélia

(Um pouco mais sábia.) Cada um tem sua toca, Dirce!

Jandira é a terra di João. Donde iele vai incontrá sussego, discubri seu lugá. (Vê Seu Valquírio, que se aproxima.) I vão falá baxo qui tá vino u pai! Vó Nerstina

Maisi é um med’i home qui cêis tem! Sonsera! U

finad’Emiliano qui mi ingasgasse u qui ieu falasse, qu’ieli sufria c’o temporali armado!

(Seu Valquírio, o pai, surge, mas permanece longe. Olha-as. Seu silêncio é muito eloqüente para elas, que terminam rapidamente o que faziam e saem. Vó Nerstina fica. Depois sai, atrás delas. Seu Valquírio passa, solene, pelo espaço. No caminho, encontra Tereza, que vem dos lados da porteira. Morta de medo, Tereza vai logo falando.)

Tereza

Num é priguiça das minha, não, viu, Seu Valquírio! É qui

pel’amor da Virge! Já arregacei as manga qu’ieu tinha, mai num sô birgato nem lacraia pra tê tanta mão! Num vence u sirviço! I as minina... Num é qu’ieu quiria ajuda... Mai niúma presta pra nada! Fica tudo nas anrumação, di cois’di fazê bandera... I sóbri tudo qui prus lombo da coitada! Té doido! I tem mai...

(Seu Valquírio move-se, dando a impressão de que vai bronquear - ao que Tereza cala-se imediatamente, tamanho o medo que sente de sua autoridade. Seu Valquírio tira o chapéu e, bonachão, coloca-o na cabeça dela. Seu Valquírio sai.)

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Tereza

(Surpresa, sem saber o que fazer, medrosa.) Ié pra guardá?

(Bocuda.) I pricisa quasi matá angente di susto?

(Jozimo, cego, está sentado na porteira. Usa um óculos grande, muito escuro. Esteve todo o tempo fazendo isso, à distância. Mexe num baralho, reconhecendo com o tato cada carta.)

Tereza

Num larga as carta, Jozimo?

Jozimo

Preparano pru truco.

Tereza

Cois’di vício! Num sei como seu Valquírio ind’exa isso...

Jozimo

Mai’truquero qui anquela peste? Ô homi bão di gritá seis!

Vai prus nóvi i prus doze i nem pensa. Isso qui ié bão di sê rico, né? Posta tudo. Té leitoa. Tereza

Dianta nada... Cêis é tudo pilantra! Cachorro-du-mato qui

só atac’iscundido... Num tem justeza, isso, di ganhá ni jogo dus jeito d’ocêis, não, Jozimo! Jozimo

(Passa os dedos pelas cartas. Embaralha-as.) Mai’quem

num faiz maço? Si num fizé, tá pirdido... É custume, já. Tereza

(Tenta filosofar.) Custume qui num muda só é bão quando

num trapaia!

(Tereza afasta-se.)

Jozimo

Ó quem fala... Uh, égua coicenta!

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(Jandira, que volta ao terreiro para buscar algo que esquecera, encontra-se com Tereza.)

Tereza

(Inverte a situação, livra-se do encargo de guardar o

chapéu de Seu Valquírio.) Ó, Jandira, teu pai acabô di mandá ocê guardá u chapéu dêli! I num dinsobedéci, qu’iele falô gorinha pra mim... (metida) ...pessoarmênti... Qu’iele anda pur anqui di cêis num mi ajudá, di ficá tudo ness’ansanhamento di moça pirdida, qui já tá iscorreno das cara d’ocêis tudo! Gastô um dedão di prosa, qui memo, gorinha, cumigo. Jandira

(Curiosa.) Cê tá vino lá dus lad’a portera, Tereza? Num sai

mai’di lá? Tereza

(Mentirosa.) I tem tempo pr’isso? Bem qu’ieu quiria!

Jandira

Muriça falô qui viu... Qui cê ficô lá sentada, per'da arve...

Isperano Zorato passá... (Tempo.) Viu si João vortava du prantio? Tereza

I si tivesse vido, num falava. I si tivesse tado, era cois’qui

seu ninguém tinha qui sabê! Sô lá ieu gente disocupada? (Indica Jozimo, sentado na porteira.) Pó pirguntá pra Jozimo, si iele mi viu pur lá... (Elas olham. Jozimo entende o que deve responder; conhece as safadezas de Tereza. Fala que não, que ela não estivera lá, com sua cara de caboclo pilantra.) I João i Brinco nunca pass’anli inhantes da noitinha... (Disfarçando.) Ieu nunca bisservo, não... Povo qui fala, né? Jozimo, memo, já falô umas par di veiz... Todo mundo sábi qu’ieles gosta di nadá... Jandira

(Idílica. Pensa consigo.) Pra tirá u suor... Cois’di rapai.

(Fica séria.) Ieles nada? Dévi sê pra tirá us suó. (Tempo.) Qui chero será qui tem u João?

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Tereza

(Horrorizada.) I ieu lá cherei? Num sô cachorro pra ficá

cherano! (Tempo. Maldosa.) Brinco é qui num dévi gostá di suas intenção, né, Jandira... Jandira

Tem med’i perdê u amigo...

Tereza

(Tempo. Ousada.) Ô tem med’i ti perdê?

Jandira

João é qui é pra mim, Tereza. Só João... Brinco, não. Só

João. (Confusa.) João i Brinco é... Só João!

(Chega Maurícia.)

Maurícia

Pódi si sabê u qui tanto si cuchicha? Quem cuchicha u rabo

ispicha... Jandira

(Não sabe o que responder. Nervosa, vê o chapéu de Seu

Valquírio em suas mãos.) Pai mandô cê carregá u chapéu dêli pra drento! I num dinsobedéci pai! Falô qui era prucê guardá! Tereza

Falô memo... (Engaja-se.) I pruveita qui cê num tá fazeno

nadinha di nada, pra vê qui hora qui u João mai u Brinco passa di vorta du prantio, viu, Muriça! (Mentirosa.) Jandira pidiu pr’eu í! Mai’num posso, muita cupação... Como iela num si angüenta di vontade di sabê... (Tempo.) Muierada ansanhada! Maurícia

Ieu prucuro... (Com uma ponta de felicidade.) Qué sabê di

João, Jandira? (Tempo.) Mai’u qui qui é pra pirguntá? Jandira

Num tem qui pirguntá nada! (Numa ameaça estéril. Jandira

tem uma tensão que a embeleza.) Fica ino nus rumo qui essa disnorteada ti mostra qui cê vai vê aonde é qui cê chêgui, viu, Muriça!

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(Tereza e Jandira saem por um lado, Maurícia para outro. Jandira é que vai para o rumo de Tereza. Noutro lugar, à beira do Rio, João e Brinco descansam, vendo a tarde.)

João

(Molhado, não compreende o humor de Brinco.) Cê num

quis pulá n’água hoje? Brinco

(Seco.) Sem vontadi.

João

Acorda, sô! (Tempo. Tentando animá-lo, propõe.) Vão

postá currida inté a cruizinha... Brinco

(Tempo.) Córri suzim...

João

Mai si tudos dia nói córri...

Brinco

(Tira uma faca e, após um tempo em que se olham, afia-a

na pedra.) Hoje num quero. (Tempo.) Vô discascá fruita!

(Quando Brinco começa a descascar a fruta, João tira a faca dele e sai correndo, em direção à cruz que tinha mostrado.)

João

(Brincalhão.) Ih, sô! Si quisé discascá, vai tê qui vim buscá

a faca!

(Brinco, aparentando um tanto de raiva, sai correndo atrás de João, que dá boas risadas. Quando consegue alcançá-lo, derruba-o. Sensualidade e alegria momentâneas, de moleques que brincam. Descascam a fruta e se banqueteiam, num hedonismo de sumos e bagaços. São muito íntimos, ao ponto de colocar gomos da fruta um na boca do outro. Estão rosto a rosto, sorridentes, quando Brinco entristece, pega a sua faca e se afasta, triste.) 14


Brinco

(Com a faca. Tempo.) Falei qui num quiria corrê!

(Brinco sai. João fica. Acauã canta. Casa de seu Valquírio. A mesa está posta. Ele está à cabeceira e as meninas sentadas, em ordem de idade. Do lado dele, Vó Nerstina já está sentada. A última cadeira está vazia. Maurícia não está. Tereza está de pé, ao lado. Silêncio duradouro i tenso.)

Seu Valquírio

(Aparenta muita autoridade rústica.) Senta, Tereza!

Tereza

Pelos perdão da misericórdia, Seu Valquírio! Num tem

lugá, não, sinhô... Dexe... Seu Valquírio

(Com mais intensidade, mas com todas as pausas que lhe

garantem a autoridade e a sabedoria.) Senta, Tereza! Tereza

(Ré confessa, mente no tribunal.) Ói, si acunteceu quarqué

coisa c’anquela pirilampa, curpa minha qui num foi! (Arranja desculpas para a ausência de Maurícia.) A minina isqueceu dos relógio, dicerto! I hora qu’ieu tava trazeno, tirô us chapéu du sinhô das minha mão... Quem curria atrái? (Um assunto sobre o outro.) Mai’num fui ieu qui mandei iela falá c’o João, pra mód’i Jandira... (Cala-se, quando percebe que se enrola mais com suas mentiras. Jura.) Quer’qui um relampo mi parta nu meím!

(Jandira a observa, tremendo de raiva das mentiras de Tereza. Silencia, porém. Nenhuma delas fala. Todas estão cabisbaixas.)

Seu Valquírio

Senta, Tereza!

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(Tereza, bastante desbaratinada, vai sentar-se, muito nervosa, na cadeira de Maurícia. Assusta-se com a voz econômica de seu Valquírio.)

Seu Valquírio

(Solene.) Pégui sua cadera! Dex’a di Maurícia vazia.

(Tereza, como se falasse consigo no silêncio, vai pegar a sua cadeira com visível descontentamento. Aperta as meninas para entrar na mesa. Até para isso Tereza arranja um jeito de ser inconveniente.)

Seu Valquírio

Nossa mesa é lugá di sagração, aonde compartilhamo a

fartura, quando a comida sobra. I dividimo a fome, se um dia - qui num cunteça - a fartura farta. Vó Nerstina

Cê é muito organizado, Valquírio! Bagunça um poco, sô!

Seu Valquírio

Num m’imprica, mãe.

Vó Nerstina

As minina tudo sentada queta, im ordi di tamanho. Num

usa! Seu Valquírio

Já pidi pra num m’impricá, mãe. Cum elas é du meu jeito.

Vó Nerstina

Manera di criá fio como si fôssi bicho! Sorta tudo...

Seu Valquírio

Tá tudo sôrta, mãe. É qu’ieu sô só. Ielas ancora ni mim.

Vó Nerstina

Pur isso memo qu’ieu nunca falo é nada! (Sorri, maternal,

pra ele.) Os rumo sôrto leva nói pra casa, Valquírio. Prisão é distança! (Tempo.) Mai’fala, pódi falá!

(Valquírio sorri para a mãe. Volta ao assunto de antes.)

Seu Valquírio

Senta, Tereza! 16


Tereza

(Sem costume com os hábitos da família, interrompe-o,

inconveniente.) Ma’ieu num mi incomod’i sentá lá na ária, não, sinhô... Ieu inté pego umas laranjinha fresca nu pé... Seu Valquírio

(Continua, muito calmo, pausado.) É pur caus’di qui tem

memo laranja é qui nói tá anqui. I pur caus’di nói tá anqui é qui hoje tem a festa du santo. Desde moço qui sô devoto di São Gonçalo... Intão, ni hoje nossa refeição num será feita nessa nossa mesa, aonde cumemo tud’os dia. Nói vai qui nem Tereza, lá pras fora. Nói vamo recebê as pessoa pra cum elas dividi u qui fô nosso. Nossa comida, nosso respeito, nossa festivindade. Si a mãe d'ocêis tivesse inda viva... Tereza

(Emotiva.) A minha ieu num sei, viu, Seu Valquírio... Diz

qui virô andarilha dispoi qui mi ambandonô... Si morreu, num mi contaro... Seu Valquírio

(Grifa, com a fala, o “tivesse”.) Se as mãe d’ocêis tivesse

anqui, ieu ia fazê gosto qu'iela dissesse u qu’ieu tem a dizê, hoje. Dirce

(Inspirada por Tereza, Dirce tenta falar.) Mai’memo sem

Muriça, u sinhô vai falá?

(As meninas na mesa levantam o rosto para Dirce, como se pedissem silêncio.)

Seu Valquírio

(Severo.) Ranheta dimais, Dirce! (Calmo.) Silêncio é

cois’qui nunca sobra, na mesa. (Acalma-se.) Maurícia inda é meninota, inda tem molera! I u qu’ieu tem pra falá é cois’pra moça graúda. Num mi incomoda nada a demora di Maurícia. Nunca m’incomodô. É corruíra livre qui pódi cantá aonde qué, num tem gaiola. Leva semente pra brotá aonde nói nem discunfia...

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Longe... (Volta ao assunto.) Mai’cês é moça. I des’qui a finada mãe d’ocêis partiu... Tereza

(Quase chora, emocionada.) Num fala ansim qui u sinhô

num tem certeza d’eu sê órfi, Seu Valquírio... Seu Valquírio

(Grifa o “partiu”.) Des’qui a mãe d’ocêis partiu, ieu tem

sido pai i’eu tem sido mãe nessa casa. Fui ieu quem controlô a limpeza da casa, us tratamento das franga i du chiquero, u aprendizado du tear i a bordação, quem ensinô as maneira di asseamento, quem comprô us perfume i quem falô té das coisa íntima, di qui num si dévi falá na mesa. Ieu tomei u lugá da mãe inté nas hora ni qu’ieu nem sabia fazê isso. Nus conselho i nas bronca. Nas reza i nas surra. I, hoje, qui é u’a festa di prumessa pra Jandira, ieu preciso tamém tê u’as palavrinha cum cada u’a... Vó Nerstina

(Orgulhosa de Seu Valquírio.) Ieu falo: quando é fio bem

criado, a pessoa fica inté boa! (Começa a sair da mesa.) Maisi, ô, mania di organização... Um gosto pur prisão! Seu Valquírio

I palavrinha é prisão, mãe? Tantos qu’ieu iscuitei...

Vó Nerstina

Di mim? Ieu nunca qui falo é nada... (Sorri.) Dex’a viola

falá!

(A cena continua, mas o foco transporta-se para a porteira, em que Maurícia chega para falar com Jozimo. Ela está com o chapéu de Seu Valquírio.)

Maurícia

Tudos dia cê cumpanha a vorta dus moço, né, Jozimo?

Jozimo

Ofício di tirá leite i partá bezerro caba cedo... Aí, nói

discansa di tardinha, né?

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Maurícia

(Continua seu canto de sereia, leva Jozimo pra onde quer.)

Tardinha l’em casa é hora di fazê janta. Mai’só dispoi di cabá as quitanda. Dirce qui sábi... Tem u’a mão, qui é mai’boa qui a ruindadi dela! Jozimo

Ieu tem forno, tamém. Mai’morá suzim num dianta forno...

(Bem humorado com a sua cegueira.) Ieu qui num mi poim di besta di chegá per’di forno... Ceguera num vê! Só aparto vaca, memo... No casebre di mamãe é qui tinha quitanda... Forno di barro, danqueles cupinzão, sábi? Us minino barria, bem barridim, tirava as cinza tudo i vinha c’as penera. Biscoito, bolo, broa... Assava tudo ni uma veiz. Dispoi guardava nus balaio i nas lata... Dava pra semana intera... Maurícia

Igualzim im casa... (Pensa numa possível negociação com

Jozimo.) Ieu pudia robá umas lata di rosquinha di pinga l'em casa si cê mi contasse u’as cois’qui cê vê anqui da portera... Jozimo

Ieu num vejo é nada, Muriça...

Maurícia

Num vê... Dexe di lorota! Qui di cego cê num tem é nada!

Jozimo

Si fô coisa errada, num conto! Qui sô contra! Num sô

ranha-ranha... Maurícia

É di Brinco. Qui hor’qui iele pass’qui na portera?

Jozimo

(Abri um sorrisão.) I cê num sábi?

(Continuam o assunto, mas o foco transporta-se para Servino e Zorato que, enquanto vêem de longe a mesa posta com as meninas e seu Valquírio sentados, carregam umas sacadas de milho de pipoca.)

Zorato

Tudas sentada na mesa... Inté Tereza... Vixe!

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Servino

Falaro qui João vai pidi as mão da Jandira nu dia da festa di

hoje... Zorato

Tudo mundo fala. Maisi será?

Servino

Diz qui pédi. Esperô pra num tê disfeita a seu Valquírio.

Hoje iele pruveita qui tem novena i pédi. Santifica! Zorato

Santifica...

(Silêncio. Contemplação. Canto da acauã.)

Servino

Será qui santifica?

Zorato

É... (Tempo.) Será?

Servino

(Conclusivo.) Dévi santificá...

(Contemplação. Novo canto da acauã.)

Zorato

Tô é farejano disgraça, num sei... Ói, a virada du tempo...

Só núvi. Das pesada... Desce inté u rêgo da Santa Barba... Céu cinza ansim num presta pra festivindade... Servino

Só si us relampo fô pra alumiá... (Tempo.) Fica bunitu, num

fica? Fica... Zorato

(Preocupado.) Festança di novena, us homi traiz pinga...

Servino

Querméssi santa, Zorato! Benzida! I São Gonçalo si arruma

cum São Pedro pra num tê disanvença di chuva... Si bem qui era bom moiá, dispoi da seca qui tá! Só si ouve coã cantano...

(Canta a acauã.) 20


Zorato

Coã agoira. Chama seca. Chama tristeza...

Servino

U’a tristeza qui é inté bão memo qui tem sanfona, pra

incubri aqueles gemido... Zorato

Ó! Cada ganido.

(Ouve-se, de longe, a voz de Tõe d’Olvina.) Tõe d’Olvina

Leitoso! Ô, Leitoso!

Servino

Ieu falo di ganido du ruim... Di cois’qui num presta! Num é

a parição du Tõe d’Olvina? Zorato

Disgrama! Eh, povim ruim, sô! É tanta cunfusão incarriada,

qui pairéci viage di trem! Tõe d’Olvina

(Grita.) Leitoso! Ô, Leitoso!

Servino

Qué vê qu’ieli tá tráis di porca?

Tõe d’Olvina

Cês num viro anqui um leitãozim rajado fungitivo?

Servino

(Bronqueia.) Pessoa qui só paréci ni dia di festa, né, Tõe?

Cê é muito amargo! Vai falá qui robaro leitoa? Di novo? Zorato

Tudas porca du teu chiquero tá morreno di tremedera, Tõe,

quem qui qué issu? Num róba! Servino

É... Num róba. Só si fôssi mód’i jogo. (Zorato pisa-lhe no

pé.) Mai’quem qui joga? Zorato

I si porco iscapa, é purque as lavage dévi di tá iscassa! Cês

é muquirana demai, Tõe! Tõe d’Olvina

(Triste.) Leitoso sumiu.

Servino

Capão? 21


Tõe d’Olvina

Tava inté n’ingorda, separado dus outro, u piau. Nói sevano

u cachaço i ieli disanpairéci di seqüestro? Ieu cato u bandido! Zorato

Robaro?

Tõe d’Olvina

Nada. U bandido du porco. Fujão! Ieli dévi di tá debaxo

d’arve, discansano as pelanca du sabão! Porco liso! (Continua a procura por Leitoso. Sai.) Leitoso! Ô, Leitoso! Servino

É coã cantano, é povo d’Olvina qui si achega... Só cois’qui

num presta. Zorato

Lembr’di quando a vaca chifruda prensô a mãe du Tõe na

cerca? Coã cantava... Servino

Ai, qui rupio, sô. Tamém... Visti vremeio ni pasto! A véia

Olvina já era ruiva... Cabô chifrada, prendida nu arame farpado. Vaca braba tem med’i cerca i muié ruiva? Zorato

Tem nada!

Servino

Num tem... Pur issu qu’ieu prifiru vaca mocha...

Zorato

Intão... Diz qui coã cantava, na horinha qui a véia ruiva ficô

presa... Servino

I tudas veiz qui ieu passo ni frênti da ingrejinha qui fizero

na homenage dela, tem coã sentada na cruizi... Cada rupio qui gela a ispinhela! Zorato

Di noite, n’istrada, anrupia inté a ossada du sujeito us

gemido di coã... Inda maisi qu’iela agora deu di cantá memo cum relampo... (Tempo.) Cois’di Catalão-Macaubal...

(Silêncio. Acauã canta. Gelam.)

22


Servino

Isquisitismo... Mai’num córri pirigo: na hora di alevantá u

mastro du santo, tem bença. Zorato

Padre qui num chêgui’nté qui pra benzê! Diz qui tem medo.

Dona Nerstina caba benzeno... Dévi valê igual. Padre Nicanor num vem... Servino

É pur caus’di pinga! Pinguço num farta ni festa, mai’nem ni

fes’di santo. I c’a dona Nerstina perto... Padre sómi! Principalmênti padre Nicanor... Zorato

Seu Valquírio num dexa entrá cum pinga. Ispursa pra fora,

Servino. I ieli tem uma paúra di padre... Ispursa, qui nem faz cum pinguço. Servino

Dianta? Traiz tudo mundo u bornal chei, iscundido ni moita

du pomal. Bisservei tanto qui sei us camim certim... Eu memo sai à cata quando dá sede... Tomo as pinga i’eles nem disconcorda... Zorato

(Concorda, sorridente.) Mai’fáci qui robá ovo di galinha ni

granja! Servino

Muito mai fáci!

Zorato

Fáci memo... I us homi tem alambique im casa pra quê?

Cada um faz sua pinguinha... Servino

Rapaziada nova é qui tem di controlá, principalmênti João,

qui vai virá noivo... Zorato

Ieu falo... Pinga nunca ispantô padre...

Servino

(Tempo.) É. Padre Nicanor só num chêgui pur caus’di dona

Nerstina, memo. A véia tem mágica! Zorato

(Tempo.) Mai’João pudia quetá us faxo na festa, pra pidi

Jandira... Bebê meno...

(Chega Brinco, meio tristonho, sério.) 23


Brinco

Só si fala ni isso, hoje? Nem pairéci dia du santo!

Servino

Acarma, Brinco, qui dia di festa num tem otro jeito... Tem

di falá! Brinco

(Olha ao longe, para o horizonte, com uma ponta de

esperança.) Si São Pedro num arresorvê trapaiá tudo... Zorato

É u’a cois’qui pódi memo acontecê... Tava falano gorinha

disso cum Servino. Servino

Tava falano disso? Cê mênti qui nem sênti maisi a mintira,

Zorato! Dexe di invencionismo! Zorato

I num tava?

Servino

É... Tava... (Metendo a mão em cumbuca.) Tava falano

disso, mai’tava falano di maisi cois’junto. Brinco

(Muito bravo.) Falava ni quê, Zorato? Qui tanto si fala?

(Silêncio.)

Zorato

Falava di nada. (Tempo.) Falava di tristeza... (Tempo.) Qui

canto di coã chama disgraça... (Matando o assunto a pau. Cômico.) Mai’dévi di sê seca! Servino

(Ajudando o amigo.) Minhas tia qui fala du casamento da

mai’véia, a Genuíta. U noivo si imbrenhô di ciúme pru caus’dela i, bebido como tava – mai’qui mula manca -, sangrô u rapaz qui si ingraçô da Genuíta. Acabô prendido i minhas tia nunca mai’casô, niúma das trêis...

24


Zorato

Acabaro tudo forrozera, c’anqueles vestidim di xita

culorido. U’as véia disarrumada, qui pairéci qui a indade num chegô, c’as cara tudo inrugada... Mai’c’uma pintura! Uh, trem feio! Servino

É... Bunita ielas num são memo, não...

(Silêncio.)

Zorato

Maisi isso só cuntece quando é trêis fia... Mai’uma, meno

u’a, num tem pobrema. Casa tudo! É u’a quantidade! I nu seu Valquírio passô di trêis minina. Servino

Da famia du seu Valquírio, Muriça qui é mai jeitosa, nu

meu gosto...

(Maurícia, escondida, aparece no espaço para espiar.)

Brinco

É meninota, inda, Servino! Nem pra tecê inda num serve...

Servino

Maisi tem um jeitim certo, já. (Embebido de pensamentos.)

Ia ficá u’a santa vistida di anja... (Um tanto triste.) Mai’nda num tem indade... Brinco

(Com o pensamento distante. Tira a faca pra limpar as

unhas.) Jandira é qui vai fazê prumessa... Zorato

Pairéci inté prumessa di Santo Antonho... Pra João...

(Servino lhe dá um beliscão. Cômico.) Mai’dicerto num dá certo, né? Tantas prumessa qui fica ansim sem resurtado... Servino

(Tentando consertar.) Prumessa mal feita dá nisso!

Zorato

Lembra du Antônho-Morto? Intão...

25


(Silêncio. Servino e Zorato se olham, com um tanto de medo e mal-estar.)

Brinco

Arguma coisa indiferente vai acontecê hoje... Tô cuns

calafrio esquisito, Servino... Cois’qui num é di tudo dia. Zorato

Dévi sê u vurto du Antônho-Morto!

Servino

Calafrio é negócio azedo, memo. Quando vem, num tem

rupio qu’ispanta! Brinco

Num é calafrio di vurto... É u’a secura, como si pricisasse

chuvê na garganta... Servino

(Num diagnóstico simplista.) Garganta seca! Isquenta u’a

fusão di colonhão im carderão piqueno... Brinco

(Com uma dor latejante, mas calmo.) Garganta seca,

rachada como u fundo da lagoinha na estiage... Servino

Intão fusão di colonhão num dá remédio, não, Brinco...

Purque u qui tem di colonhão nas bera da lagoinha i iela seca danquele jeito... Zorato

(Sábio e provocador.) Cura, nesses caso, é cum otro tipo di

fusão... Servino

Perfume di moça, leite-di-rosa, salmorinha... Muriça inda

num usa... (Vira o rosto para pensar melhor nela e a vê. Num primeiro momento, embriagado pela visão da menina.) Muriça... (Cai em si.) Ói, ela lá! (Bravo.) Eita minina impinadinha! Curinhosa...

(Maurícia se revela a todos, muito empinadinha.)

Maurícia

Di curinhosa, foi a morte da bezerra! Tô anqui pur pricisão!

26


Servino

Pricisão di levá u’a baita duma sova, sô! Minina nova

iscuitano assunto dus moço... Zorato

Num iscuitô, Servino, tava longe...

Brinco

(Seco.) Tem recado, Muriça?

Maurícia

Recado memo num é... É pregunta.

Brinco

Fala.

Maurícia

(Como se não falasse de ninguém.) Só dispoi duns tonto saí

pra banda, qui per’di ovo di maritaca, siriema num canta! Servino

Dêssi tamanh’i já servino di cadiado, é?

Zorato

Cois’mai’feia é leva-e-traiz...

Servino

Coisa feia qui só veno... Mai’como num tem curinhosidadi

di seus assunto, Muriça, póssu vará di vorta pru sirviço... Vam’Zorato, qui tem muita paia di pipoca pra nói discascá inda... (Comenta, para si, bravo.) Ovo di maritaca...

(Servino e Zorato saem, contrariados.)

Brinco

Fala, Muriça.

Maurícia

(Mente.) Vim’qui pur man’di Jandira...

Brinco

Ué, mandô falá comigo? Nunca deu trela...

Maurícia

(Com uma ponta de felicidade.) Nunca?

Brinco

Nunca preocupô... Toda-toda prus lad’i João.

Maurícia

É u certo. Ieu acho. (Tempo.) Jandira i João. É u qui diz u

pai. I ieu concordo... Acho bunito Jandira i João... Tudo cum jota... Dá certo. Cumbina. Brinco

Fala. Num inrola. 27


(Silêncio.)

Brinco

Disintala!

Maurícia

(Solta, aflita.) É qui João num pudia sabê...

Brinco

Us assunto entre João i ieu nói trata nói dois. Suzim.

Maurícia

Cêis vão cuntinuá di amizadi?

Brinco

(Com a garganta seca.) Tem mutivo di afastá?

Maurícia

Nunca si viu dois amigo ansim. Maisi, agora, João cum

Jandira... Num cábi dois im terreno di um... (Tempo.) Afasta. Caba fastano... Brinco

I Jandira tá incasquetada? Cois’di quê?

Maurícia

Iela guarda simpatia pr’ocê. Vai noivá...

Brinco

Cois’mai’natural é namoro nascido di reza.

Maurícia

Mai’Jandira reparô tuas oiada na novena... Quiria sabê,

purque num intendeu. Brinco

Num sei di oiada niúma!

Maurícia

Ieu vi, Divino... (Silêncio, como se tivesse dito uma palavra

proibida.) Brinco! Ai, Brinco, Jandira nem qué sabê muito memo, não... Mai’é ieu... Iela nem priguntô nada... Ieu qui quero sabê, pra matá mi’as lumbriga... Brinco

Num tem oiá, Muriça... Quando distranco a cabeça i abro a

portera du pensamento, óio pra nada. Sorto a boiada pra lugá nium. Maurícia

Veno di longe, num pairéci.

Brinco

(Conclusivo.) Cada um tem é que arrumá u seu lugá nu

mundo... Sua terra... Maurícia

(Tempo.) Era di ódio... Ô di amor?

28


(Silêncio. Maurícia cerra os olhos com medo da resposta.)

Brinco

(Sem responder, solta a palavra no ar, reflexivo.) Amor...

(Maurícia sofre, calada.) Qui amor? (Tempo.) Amor é maldadi qui fazem cum angente!

(Maurícia, sem entender muito a resposta, vira o rosto e sai, rápida. Corre, como se fosse levar o recado a Jandira. Muitos violeiros entram na cena e cantam “Meu Primeiro Amor”. Maurícia caminha, lírica, não sem certa tristeza. Cruza com Tiana-louca, que passa afastando mosquitos e carregando sua mala. A música vira-se em festa coletiva. Dança.)

29


Ato 2 Caninha Verde

(Festa no terreiro enfeitado pelas meninas. Violeiros, comandados por Vó Nerstina, cantam e dançam a “Caninha Verde”. Os convidados estão presentes, menos as filhas de seu Valquírio, que se preparam para trazer a bandeira do santo. As três tias de Servino, Genuíta, Elódia e Olinda, solteironas muito feias e maquiadas, esperam – dançam sozinhas num canto.)

Elódia

Ufa, qui mi’as canela já tava bateno quase suzinha di

vontadi di dançá! Num vejo a hora du cateretê! Ónti, memo, já tava barreno u terrero requebrano c’a bassora... Genuíta

(A mais velha.) Ieu, si num fôssi cardíaca, caía no forró

suzinha... Notros tempo... Olinda

(Reivindicativa.)

Ieu qui sô mai’nova é qui tem

prinhoridade, si achegá ô moço di casamento ô viúvo pra retirá as moça pra remexê nus dance! Genuíta

(Rancorosa.) Cê é mai’moça, só qui num é a mai’bunita,

viu, Olinda! Olinda

(Feíssima.) Não? Meu nome inté fala: Olinda! Pensa qui é à

toa? Distino! Genuíta

Distino trísti, esse!

Olinda

(Faz fusquinha, zombando das doenças do coração da

outra.) Distino trísti é morrê di susto!

30


(Genuíta, assustada, faz o sinal da cruz e põe a mão no coração. Olinda preocupada, mas não muito, bate na boca três vezes.)

Genuíta

Num fala ansim, qui cê sábi qu’ieu sô cardíaca!

Elódia

Num inventa moda, Genuíta! I Olinda tá bem certa... Qui si

num fôssi pur caus’da disgraça du teu casório c’o Bândi, nói num tava anqui, tudo sorterona, querendo batê canela pra dançá, mai’quase bateno canela pra morrê! Genuíta

Nome dêli num é Bândi... É Azarias!

Olinda

Azarias di dá azar i Bândi pur caus’di bandidage! I cuntecê

tanta coisa ruim pur caus’di furdúncio di seu biscatismo! Qui vida pirdida im biscatismo di irmã! (Vê o Bândi, de longe, que não pára de espirrar. O Bândi segura um maço de flor do campo, envelhecido.) Ó, lá! U teu gripadim qui istragô tudo us nosso casamento! Elódia

U Bândi! Deus mi livre!

Genuíta

Azarias! Ieu nem óio pr’eli... Nem morta i arreganhada!

Num pára di ispirrá! Credo! Anquilo num beja, passa gripe! (Muda de assunto e indica Servino, que está solto pela festa.) I u Servino, ói, mórri di vergonha di nói... Chei’di num chêgui perto... Olinda

(Mira, rancorosa, a direção de Servino.) Nem vem falá

co'nóis, pra apresentá uns moço! Si fôssi otra veiz, ieu num pegava anquele bicho pra criá di novo... Ma’nem! Dexava morrê seco! Mal gradicido! Elódia

Dispoi qui galinha choca pato, num disfai du fiote! Anda nu

terrero c'o patim i insina iele ciscá... (Repressora.) Num insinô! Patim qué nadá... (Para Olinda.) I miora essa cara, Olinda! Tem é qui dá risada pra mostrá simpatia. Si não? É sorterismo na certa! 31


Genuíta

Ih, Lódia, essa daí pra miorá as cara tem é qui vê passarim

azul! Olinda

Passarim azul ieu vejo é tudos dia, qui tá ansim di azulão lá

na baxada da Santa Barba! (Ambígua. Olha na direção do Bândi.) Agora, otras cor di passarim, nói sabemo muito bem quem foi qui viu!

(O Bândi passa por elas, sorridente. Espirra. Elas, recatadíssimas, olham para outro lado.)

Genuíta

Cê si anrepende di falá ansim, viu, Olinda! Cê num tem

argumento si ieu quisé botá as boca nas trombeta pur sua causa... Elódia

As duas qué aquetá, qu’ieu já tô mortinha di vergonha! I si

Servino iscuita uma coisa dessa? Tantos ano pr’iscondê dêli as sem-vergonhice d’ocêis! (Brava, quetionadora.) Resorve, isso? Genuíta

Maisi, Elódia, si foi ela qui começô as disavença!

Elódia

Vamo abri u piano da boca qui seu Valquírio tá vino

pressas banda! Num era viúvo qui cêis quiria? Taí!

(Seu Valquírio passa pelas tias de Servino e as cumprimenta, silencioso. Elas se ajeitam, rapidamente e ficam prontas para a dança.)

Tereza

Mai’como é sem-vergonha essas tia du Servino, credo-im-

cruiz! Inté prus lad’u seu Valquírio ielas ábri as asa, Antônho-Morto... (Falava com Antônio-Morto sem perceber a sua presença. Assusta-se.) AntônhoMorto? Ai, qui susto! Cê num tem remédio, hómi! Chêgui pelas costa dangente como si alevantasse du caxão, sem mai’nem meno! 32


Antônio-Morto

(Fúnebre, um tanto sensual para os lados de Tereza.) Alma

pirdida chega pur tráis, Tereza. Cê nem sênti... Tereza

Ieu posso num sinti, mai’cê vai sinti loguinho as dor nas

cadera du isqueleto si ieu chamá u Zorato pra mi adefendê dus seu mal modo! Sai di reto, capetão! Antônio-Morto

(Chantagista.) Ieu inté pudia contá a Zorato qui cê anda di

ciúmes di seu Valquírio... (Conclusivo.) Ni fantasma, todo mundo querdita. Tereza

Num apronta forfé, heim, Antônho-Morto? Cê sábi qui

sombração morta-viva num mi pavora nem im bera d’istrada! I pr’ieu ti ponhá nu caxão, di vorta, é dois palito! Só qui dessa veiz ieu tranco, pr’ocê nunca maisi arresorvê di mardiçoá us pensamento bão das pessoa! Vai ficá lá trancadim, qui inté deus ia tê trabaio pra ti tirá lá di drento pra levá prus purgatório! Antônio-Morto

(Funéreo.) Quando cê enerva, cê pairéci qui anjeita maisi,

Tereza. (Indecente.) Ieu num falava nada a Zorato si ocê fôssi lá per’da ingrejinha quarqué dia... Meia-noite... Tereza

(Horrorizada.)

Qui

anjeita-disajeita

di

safadeza

ni

ingrejinha à meia-noite, u quê! I si meu jeito si anjeita, dévi sê purque ti injeita, sujeitim...

(Tereza sai. No caminho, fala no ouvido de Zorato, aponta o lugar em que estava. Zorato fica tomando coragem para chegar até Antônio-Morto. Brinco e João estão juntos na festa, como sempre.)

Brinco

Às veiz, quando vejo tanta festa... Chego a pensá qui essa

terra num é pra mim. Minha alegria pairéci qui num cábi pur anqui, João. 33


João

(Simples.) Terra dangente é aonde tá as cois’qui a gente

gosta... Brinco

Será? (Acauã canta.) Quando iscuito coã cantano, pairéci

qui tá mi mandano embora da terra, dizeno qu’essa terra num é minha. Qui qué vê ieu longe, bem longe di Catalão-Macaubal... João

Bébi u’as qui cê isquece di tudo, Brinco... (Tempo.) Num

intendo tanta tristeza. Brinco

Vê ocê: passa a gostá di Jandira... Pédi pra São Gonçalo...

Dá certo. (Tempo.) Ieu divia era buscá otros lugá pra mim. U’a terra aonde u qu’ieu prantasse nascia, floria, ficava bunitu. João

Num inventa! (Quer animá-lo.) I a moça qui cê falô qui ia

disfilá di anja? Brinco

Num falei di moça niúma, João. (Tempo.) Falei da terra. Di

num cabê anqui... Du argodão, da saudade dum lugá isquisito, qui num sei bem donde é qui é. (Tempo, conclusivo.) Dévi sê longe... João

Dévi sê anqui. Cê qui inda num achô iele.

Brinco

(Mais uma vez, olha-o firmemente.) Será qui não, João?

(Zorato toma coragem e chega até Antônio-Morto.)

Zorato

(Desconfiado.) Tem mutivo di Tereza saí qui nem cachorra-

loca di per’di sua presença, Antônho-Morto? Antônio-Morto

As língua dus povo fala qu’eu assusto... Dévi sê isso.

Zorato

(Engole seco, medroso. Faz-se de corajoso.) Só qui tem us

qui num tem medo, não... (Repensa. Dá um discreto passo para trás. Cômico.) Qui só mantém as devida distância... 34


Antônio-Morto

(Aproveita-se do medo de Zorato para resolver o impasse.)

Cê sabia, Zorato, qui im dia di festa as alma du cimitério alevanta tudo pra dançá? Tem u’as qui disgarra... (Tempo.) Qui nem ieu... (Tempo.) Acaba achano otras festa... (Ameaçador.) Nus camim, caba cruzano c’os medroso na vorta pra casa. Zorato

(Branco.) Já cruzô arguma c’o’cê?

Antônio-Morto

Já... Té tomei mizadi cum várias... Tem u’as qu’ieu trago

presa drento da garrafa di pinga qui fica iscundida lá nus pomal... (Misterioso.) Facilita chegá na festa... Ielas indica us camim, cunhece pur tudo... Zorato

(Engole seco. Parece que vai vomitar. Fica mais branco.

Passa uma mão pelo peito e pela barriga.) I’elas iscapa quando ábri a rôia da garrafa di pinga, ô inda independe? Antônio-Morto

Ué... Tem di tudo. Vai intendê espirto... Tem u’as qui fica

lá drento, bebeno... (Tempo.) Otras sai. Acaba na goela di pinguço!

(Zorato, muito impressionado, faz o sinal da cruz e sai dali, com o rabo entre as pernas. Fica sozinho num canto, pensativo, olhando para o próprio corpo, conferindo as mãos, pra ver se alguma coisa mudou em seu corpo. As tias de Servino siricuticam. Genuíta já carrega um dos sapatos na mão, por não suportar os calos.)

Elódia

Cê pare di lançá charminho pr’Antonho-Morto, qu’isso

chama disgraça, Olinda! Genuíta

Nem prununcie! Qui mi lembro danquele dia qui num

prestô, na minha vida!

35


(O Bândi passa por elas, sorridente. Espirra.)

Olinda

(Conclui.) Na nossa vida, Genuíta! Na nossa! I num acho

Antônho-Morto hómi di si jogá fora ansim... Cumigo sempre foi simpático... Elódia

Deus mi abençoe!

Genuíta

Só fartava essa! (Querendo trucidar a irmã.) Olinda, cê qui

num mi traga ansombração nus camim lá di casa! Ieu sô cardíaca! Olinda

Quando nói passa lá pelas Trêis Encruzilhada, sempre

lembro dêli... Elódia

(Após uma cotovelada nas irmãs.) Ói, seu Valquírio! Ói,

seu Valquírio! Ni partido bão, ninguém presta atenção! (Bronqueia com as outras velhas.) Ô, isminina tonta!

(Seu Valquírio passa, cumprimenta. Elas quase morrem de falta de ar.)

Maurícia

Pai...

Seu Valquírio

Cabelo dispentiado, Maurícia!

Maurícia

Num deu tempo... Quiria vê u povo chegano pra festa...

Seu Valquírio

Vem cá, qu’ieu arrumo isso! (Tira um pente do bolso e

penteia Maurícia.) Vão falá qu’ieu num sei arrumá minhas minina. Tem que tá tudas bonita, pru santo gostá da festa... Maurícia

(Íntima do pai, pergunta.) Pai, quando vai chegá as hora di

ieu saí nu disfile das minina? Seu Valquírio

Um dia chêgui. Num pricisa apressá. Um dia chêgui... U

tempo é dono das vontadi dêli. Iele sábi mostrá quando é hora di coiê a goiaba, nu pé. 36


Maurícia

(Tempo. Um tanto medrosa, mas nada ingênua.) Mai’i

quando a gente tem vontadi di comê goiaba di veiz? Ansim... Nhantes da hora? Seu Valquírio

(Entre muito sério e bem humorado.) Tem qui tomá

cuidado pra num tê caganera! (Olha-a nos olhos.) Mai’si tivé cuidado, põe um salzim i come, num disarranja...

(Seu Valquírio sorri para ela, termina de pentear-lhe os cabelos e sai. Maurícia fica pensativa. Jozimo prepara o truco.)

Jozimo

Ieu só jogo si fô postá leitoa!

Servino

I cê tem chiquero pra querê apostá isso, bandido?

Jozimo

Mi viro. Sempre mi virei...

João

Dévi sê disso u sumiço das leitoa lá dus povo du Cascavel!

Jozimo

Ieu num passo ninguém pra traiz, sô... (Tempo.) Só nu jogo!

Servino

Ieu teim uma réiva di gente ladrona!

Brinco

(Pensa sobre o que Servino disse e responde.) Ieu, si

subesse fazê as coisa dus meu modo, ansim como Jozimo, num atrasava di fazê. Nisso ieu ti invejo, Jozimo. (Tempo.) Agora, robá leitoa ieu tamém num quiria, não... (Tempo.) Mai’meu caso pairéci qui num dá jeito... Jozimo

Tudo dá jeito, Brinco... (Dúbio.) Faizi qui nem ieu... Óia

pr’otos lado, qui dévi tê otas solução... Inté ganhá di seu Valquírio ni truco, ieu ganho! I ói qu’iele sábi gritá! (Tempo. Olha, cego, exatamente para onde está Maurícia.) Si cê ispertasse, ia tê boas carta nas mão... Brinco

(Olha para onde Jozimo indicava e não o compreende.) Só

cunsigo oiá pra muito perto... Ô, sinão, pra muito longe. Jozimo

Tem cois’qu’iscapa du oiá... Iscapa! 37


(Entra Tõe d’Olvina, procurando.) Tõe d’Olvina

Leitoso! Ô, Leitoso! Iscapô! Ô, porco iscundidim!

Jozimo

Uh, si iscapa!

(Maurícia chega até Antônio-Morto.)

Antônio-Morto

(Brincalhão com a menina.) Fica mai’bunita pentiada. Ieu

vi teu pai ti ajeitano as mecha. Maurícia

É? Ieu inté isqueço disso... Lá im casa é u’a pentiação qui

só veno, credo! Antônio-Morto

Logo, logo, cê num isqueci maisi... Pára di isquecê... Dex’o

tempo falá certas coisa nus teu ovido... Cê pára di isquecê... Maurícia

(Tempo. Curiosa.) É verdadi qui quando cê morreu, nhantes

di vortá, cê chegô inté falá cum São Pedro, Antonho-Morto? Antônio-Morto

Se falei? (Tempo.) Sei lá. (Simpático.) Em tudos caso, sô

amigo di tudos us santo, Muriça. Maurícia

Ué, intão pur que u povo caga di med’ocê?

Antônio-Morto

(Desbocado.) Povo é cagão! (Tempo.) Dexa cagá!

(Tempo.)

Maurícia

(Próxima, interesseira. Eles têm afeição um pelo outro.)

Cunhece simpatia di santo pra módi anranjá cois’qui angente qué?

38


Antônio-Morto

Ué! Pédi pra São Gonçalo, qui atendi pidido di festa... São

Gonçalo é festero, num pára nunquinha n’ingreja. É violero... Santo di música... Livre... I quem dança pr’ele fazeno pidido, acaba cunseguino... Só qui nu ano seguinte tem di vortá pra dançá cum iele nu colo... (Explica-se.) Cê vai sigurano ansim a estautinha, qu’iele gosta... Maurícia

Cê fez isso pra curá u veneno quando foi picad’i cobra?

Antônio-Morto

(Não sabe do que ela fala.) Cobra?

Maurícia

Minhas irmã falaro qui nem jararacuçu chegu’in per’d’ocê.

Antônio-Morto

Cada um cont’istória du seu modo. A minha, nem ieu sei.

Angente qui viveu sábi meno qui us falatório qui sai pur aí... Nem sei si teve cobra... Si num teve... Si mi contá qu’eu tava murdido, ieu querdito... Inté mi insinaro qui tem di pensá ansim, só ficá pensano ansim quando tem cobra... (Mais intenso, repentinamente.) Cobrero, u qui é qu’ieu corto? Cobrero brabo, ansim memo ieu corto! Corto cabeça, mei i rabo. Cobrero di largatixa, cobra i bicho-priguiça. Mandruvá, sapo i todo bicho peçonhento, ieu corto! A cabeça, u mei i u rabo, im nome di deus, ieu corto! (Comenta.) Demora, mai’diz qui dá resurtado... Maurícia

Ieu presto tenção tamém quando vó Nerstina fala... Dévi di

tê sabedoria... I, hoje, vô ti iscuitá, viu, Antônho-Morto, dançano meu pidido pru santo... Antônio-Morto

Mai’só pidi num dianta. Santo gosta quando angente

cumeça a si virá, tamém... Maurícia

Po’dexá...

Antônio-Morto

Só qui num pérdi tempo, procurano a esmo...

(Olham para Tõe d’Olvina, que passa gritando.) 39


Tõe d’Olvina

Leitoso! Ô, Leitoso!

Antônio-Morto

(Continua.) Qui num acha...

(Maurícia sai, sorrindo. Brinco e João conversam, sob gritos de truco, ao fundo. Seu Valquírio e Jozimo saltam as veias, aos berros.)

Brinco

Num discontrola na pinga, João.

João

Cê pairéci mi’a mãe quando arresorvia atrapaiá as festa du

pai... Num intendo tanta caraminhola! Pairéci muié! Brinco

Ieu quiria num precisá falá as coisa. Mas’si ocê num intendi

nem as coisa falada, imagine as qui fica muda, trancada na garganta dangente... João

Às veiz é difícil di intendê as coisa qui sai du teu oiá,

Brinco... Tanto silêncio qui chêgui dá medo. Brinco

Só fazê di conta qui num inzisti... Qui num tem oiá!

(Escuta a música, nota que as filhas de seu Valquírio saem, em procissão.) Ó, as moça vão saí pra arribá a bandera. João

(Toma um gole, escondido.) Por úrtimo vem Jandira...

(A procissão das moças sai, com todas elas vestidas de anjas. Passam pelo espaço com a bandeira de São Gonçalo, que é hasteada, com reza e canto. Festa. Danças de São Gonçalo, em duplas. Seu Valquírio dança segurando uma imagem do santo. As tias de Servino brigam para fazer-lhe companhia na dança. Maurícia dança ao lado de Brinco, sempre com os olhos fechados,

40


como se pedisse profundamente. Após a catira, nova “Caninha Verde”, festiva.)

Tereza

Óia a tromba du Brinco, Servino!

Servino

Ué, quem num fica cum cara di tacho quando pérdi um

tisoro di valor, qu’iscorre nu rio sem êra nem bera, pra nunca mais vortá? Tereza

Num sei... Todas veiz qui óio pr’ele, num dá jeito di sê pur

Jandira qu’iele sófri... Pairéci mai’di sê pur João... Servino

Uai! Dois amigo ansim... É ansim...

Tereza

(Dá-lhe um tapa, repressora.) Nunquinha qui cê deu trela

quando Zorato ronda minha janela, di noiti... Servino

Uai... Cê gosta! É pilantra!

Tereza

Ieu morro é di medo, principalmente dispoi qui sortaro u

Antonho-Morto da cadeia! Agora, fica di indecência, falano um monte di intransigência nus ovido dangente! Inda bem qui Zorato foi lá pra dá um basta nessa sintuação! Tirá satisfação! Servino

(Surpreso.) Zorato? Foi lá? Nu Antônho-Morto? Xi, qui

hoje as onça pérdi as pinta! Tereza

Pur caus’di mim, uai! I si cê fôssi amigo di Zorato qui nem

Brinco é di João, qui nem cê fala, cê ia tá lá, pra mi adefendê, du ladim dêli... (Pensa.) Si bem qui Jandira num ganha é nada cum tantas mizadi di Brinco i João... Servino

Tá quereno si compará com Jandira? Pois si assanha meno,

viu, Tereza, qui Jandira é Jandira, cê é ocê, ieu sô eu, Zorato é Zorato, Brinco é Brinco i João é João... Num siricutica, não! Qui cada um é cada um! Sempre foi! (Tempo.) Só Muriça é indiferente... Ieu acho. 41


(Amélia chega.)

Amélia

Cê num vai pará di arrelia, Tereza? Inda tem muito frango

pra desossá lá na bacia! Tereza

Num dá forga nem prangente fazê uns comentário... Festa

ansim? Pra quê?

(Tereza sai, bufando. Dirce chega para falar com Amélia. Jandira está sentada, quieta, em lugar de destaque na festa.)

Dirce

Jandira num levanta danquela cadeira?

Amélia

Tá isperano. Lembra u qui u pai falô?

Dirce

U João já tá bebim... Du mod’qui u pai recusa cachaça... Té

pras visita! Amélia

(Preocupada.) João num pricisava bebê hoje! Esses moço

num tem juízo... Tudo cum vento na cabeça, invéis di miolo! Dirce

Vô lá pras banda dêli... Se iele mi pidi uma dança... Ieu

aceito, qui num perco um ventim dêssi na cabeça, não...

(Dirce sai e vai pra perto de Brinco e João. No caminho, passa por Zorato, que fala com Servino.)

Zorato

(Branco de medo.) Servino, cê campeô pinga iscundida nu

pomal?

42


Servino

Ué! Nem vem falá di mim qui ieu ti vi, qui nem sonso,

saíno di banda pr’aqueles lado! (Defende-se.) Num fui só ieu, não! Zorato

Intão vamo rezá bastante purque tem qui benzê contra

incosto, Servino! Qui nói dévi tê ingulido tudas alma disgarrada du cimitério qui u Antônho-Morto troxe pra cá! (Tem um grande arrepio.) Ó, já dévi sê manifestação!

(Elódia e Genuíta conversam, invejosas. Olinda, ao longe, conversa e dança com Jozimo. Às vezes, manda uns acenos para as irmãs, terrível que é.)

Genuíta

Iela num presta!

Elódia

Um mocim daquela indade, nó cego qui num désci da

portera... Genuíta

I teve u disprante di dizê qui gostô dêli justo pur isso... Qui

pairéci u minino da portera, quêli da música, qui num sei u quê... Elódia

Discarada!

Genuíta

I ieu num posso passá nervoso, qui mi’as varize tudo lateja!

Elódia

Pára di falá ni doença! (Conclusiva.) Pairéci véia!

(Bândi chega, de mansinho, para os lados da Genuíta. Espirra.)

Bândi

Ieu hoje isquici da ispirina i isquici xarópi,

mei’custipadu, mai’num recramava di u’a requebrada co’cê, Genuíta... Genuíta

Dispoi di tudo qui cê mi fez, Azarias, inda qué mi passá

gripe? (Altiva.) Ieu tem u’a antipatia di pessoas fingida, Lódia!

43


Elódia

Passa sebo nas canela, Bândi, qui nói num sumo moça di

alegria pru seu chármi. Num bastô u qui feiz c’o nosso distino? Tamo tudo sortera, té hoje! Genuíta

(Sofrida.) Guardo decepção inté hoje, Azarias!

Bândi

Só arranjemo briga pur caus’di paixão... Du tanto qui ieu ti

quis, Genuíta... (Espirra.) Cê num troxe um frasco di chá di mixiriquinha? Gripe tá vazano... Genuíta

Intão disincosta, qui as minha artéria pula pra fora c’a sua

presença, hómi sem honra! Num mi sangra a jugular! Num mi sangra a jugular! Gripadim!

(Ele continua perto dela, insistente. Passa a Tiana-louca, com sua mala.)

Genuíta

Vai tráis da Tiana-loca, qui é otra qui cê perdeu!

Tiana-louca

(Fala fluida, aguda. Lúcida, em seu devaneio.) Vida

pirdida di miricó é cabelo di minina di trancinha! Pur issu qu’ieu tranço! Ieu tranço! Tranco, tranco, tranco, tranco. Tudas porta! Tudo trancada! Num gos’di pata! Gos’di porca. Tranco as porta pra num entrá pata! Pata mija tudo... I mijo di pata sai junto cum bosta! Daí, tem qui trancá! Fica tudo trancadim, qui nem trancinha... Tracinha trancada pur vida pirdida! Vida pirdida di miricó... Genuíta

Coitad’a Tiana-loca! Diz qui carrega a caverinha du fio du

Bândi drento da mala inté hoje... Elódia

Pur issu qui muleque córri dela. I, ói, a pintura qu’iela usa!

Cois’di muié loca!

44


Genuíta

Mai’é loca mansa. (A maquiagem de Tiana é só um pouco

mais carregada que as das tias do Servino.) É... Esse tan’di ruge carrega dimais u sembrânti da pessoa! Tiana-louca

(Pisca muito, enquanto fala.) Mai’num pérdi tempo di achá

iela. Num pérdi... Angente carrega us distino junto pra num perdê di rumo. Num pérdi... Vida pirdida di miricó, levá distino ni mala pra incontrá, lá nu fim. A musquitera é qui num perdoa! Tudo varejera, qui chêgui di trêis im trêis! Três im trêis! Trêis camim qui incontra nu fim! Pur isso qui tem qui carregá u distino dangente! Carrega, carrega, carrega, carrega... Fica carregadim! Carregadim di porca, trancad’i pata! Carregadim... Pra incontrá mi’a vida pirdida di miricó! (Tereza, ao longe, observa Tiana-louca.) Tereza

Di pensá qui ficá véia acaba ansim...

Vó Nerstina

Tem é qui sabê aceitá us rumo da ruga, Tereza. Tá pensano

qui bunda num cai? Vem u tempo i bunda é pricipício! (Bonachona.) Na queda, tempo é amizadi qui angente faz cum ele! Nói vai ficano boa quando vai intendeno us movimento, dispoi di mai’usada... Tereza

Num cunheço u’a véia qui présti!

Vó Nerstina

(Sorridente e sábia.) Veiecê é nossa peste, num iscapa di

fugi! Tem qui amigá c’as coisa, Tereza. Fortalecê us ânimu i güentá. Caba seno adivirtido us decorrê... Tereza

Mi dá uns rupio na goela seca quando a Tiana-loca passa!

Muito decorrimento dimai... Diz qui prucura uma vida qui foi pirdida, cois’di miricó... Doidage! Essas véia num cansa di pricurá decorrimento!

45


Vó Nerstina

Diz qui a Tiana prucura uma fia, qu’iela bandonô nu

mundo. Mãe disvareia si pérdi fio... É ingual terra qui seca. Si tacasse água i regássi cum semênti, vortava a pirmiti raiz. Maisi, si bandona... Fica pirdida! Pirdida di miricó... Mãe é qui nem terra... Tereza

A siora nunca bateu direito us pino, ô foi distravano as

porca da ingrenage nus decorrê da inzistênça, dona Nerstina? Fala cada mistério! Pur issu é qui cabô ganhano fama di macumbera-bruxa...

(Barulhos de fora. Amélia e Maurícia procuram por Vó Nerstina, afoitas.)

Maurícia

Tá u’a disgrama cunteceno, vó!

Vó Nerstina

Isprica!

Amélia

Cois’di discutimento, lá na portera, qui pairéci qui chegô

padre da cidade! Maurícia

Mandô inté pará c’as música!

Amélia

Num pérdi as istribera, vó!

Vó Nerstina

Mai’padre vai querê falá alto im terra di nossa gente? (Vai

na direção da confusão.) É só u’a andada! Qué vê? (Fala para todos, na festa.) I nosso santo independe di ingreja di padre? (Silêncio. Para as netas.) Tem cois’qui num présti mudá! Sempre foi du jeito qui vai sê! Maurícia

I u padre num anda carmo. Nervô... Vei sem batina, té, sem

nada! Vistido di hómi, memo! Amélia

Padre nunc’qui gos’di nosso custume!

Vó Nerstina

É padre Nicanor? Ieu arresorvo ansunto di padre é c’a viola!

Péra lá!

46


(Vó Nerstina sai. Amélia e Maurícia ficam mais um tempo. Depois, curiosas, saem atrás.)

Maurícia

Gênti di fora num intêndi. Caba istragano us gos’du povo.

Amélia

Tudo acha nóis infiel, disrespeitadô. É as terra i us imposto

u qui ieles qué... Pai num paga! Só purque nói faiz tudo di nossa manera, sem padre, pur nossa conta... Pra que essas ridiqueza di luxo di padre? Isso sempre foi nosso. Ieles qué grilá! Maurícia

Ieu ach’inté mai bunitu sem padre! Reza d’ieles nunca tem

festa boa! Num báti c’o São Gonçalo... Amélia

Ieles qué cabá. Qué tudo grilá!

(Saem. Música parou. Dirce chega até Brinco e João. Brinco está cabisbaixo, com a cara muito amarrada.)

Dirce

Ninguém arrasta pé? U’a pasmacera... Nem pairéci festa

pra São Gonçalo Tocadô... Brinco

Querela di padre tudas veiz tem... Logo, dona Nertina põe

jeito nas trilha! João

Cê ach’qui teu pai anceita meu pidido, Dirce?

Dirce

(Terrível.) Si fôssi pra mim, té pudia... Mai’pra Jandira, u

docim di preferência dele... Uma ciumera... Um conversê na mesa... Brinco

Seu Valquírio nunca fez dinferença di minina, Dirce! É u’a

mãe qui cêis num teve. João

Isso é memo... (Sonhador.) Ó, Jandira...

47


Dirce

(Não o escuta. Muda de assunto.) Ieu acho qui João pirdia

menos tempo si dexasse Jandira di lado... (Provoca.) Cê num acha, Brinco? Brinco

Ieu num acho é nada. Qui quem acha dimais, mal sábi u qui

pérdi! Dirce

(Insinuante, para João.) Tem uns hómi froxo por anqui,

nas vizinhança, qui nem sábi memo u qui tá perdeno... João

É memo, viu, Dirce! Já pirdi tempo di sobra... (Dirce

anima-se. Pensa que João fala dela.) Ieu vô lá falá cum iela... Mi’a Jandira...

(João sai, meio trôpego. Dirce está com a cara no chão. Brinco, num sobressalto, tira uma faca do bolso. Canto vibrante do acauã. Dirce olha pra ele e se assusta. Brinco, então, pega o fumo do bolso e começa a cortá-lo. Cena de tensão, que se esmorece conforme Brinco corta o fumo.)

Brinco

Muito assustadiça, a bezerrinha! (Pausa.) João num qué

sabê di mai’ninguém... Só qué Jandira... Dirce

(Com cara muito feia.) Tomare qui u bicho num trupéci

pelos camim, zé-isponja! I, ocê, qui num engasgue na fumaça!

(Dirce vai sair, Brinco fala para ela, de surpresa, com um sorriso triste no rosto. Fala pesada.)

Brinco

Eu vô imbora, Dirce. Amanhã, tô di partida. Chêgui di

tristeza!

(Dirce sai. Não o compreende muito bem.) 48


Vó Nerstina

Tristeza i istragação, sempre tem! Mai’dicerto num

ponho padre pra corrê di banda? Di otros tempo? Vorta a música! Qui anqui nói festa!

(Brinco abaixa a cabeça. Retorno da música. Ao fundo, vê-se que João pede a Jandira uma dança. A imagem branca de Jandira é belíssima. Brinco está numa tristeza profunda. João cai no meio da dança, provocando comentários de todos. Maurícia, que por todo o tempo andou pelos cantos da cena, aproxima-se de Brinco. Olha-o e sorri para ele. A cena da tristeza de Brinco se altera, progressivamente, em uma paz repentina. Brinco nota que João precisa dele. Maurícia, então, arranca uma rosa que estava em seu cabelo e joga para que Brinco a pegue. Canto forte da acauã.)

Maurícia

Uma rosa para o noivo...

(Brinco pega a rosa e, pela primeira vez, sorri, meio sem jeito. Seu fascínio constrói, numa mistura de imaginação e realidade, a imagem da menina Maurícia festejada com muitas flores. Ao final, João dorme no colo de Servino, que está sentado ao lado de Jandira.)

49


Ato 3 Adeus, Guacyra

(No dia seguinte à festa do santo. Mulheres aparecem com rodas de tear de vários cantos para o mutirão do enxoval de Jandira. Cantam até instalaremse para o trabalho. Maurícia e Dirce descaroçam e cardam o algodão, as mais velhas fiam e tecem. Tereza tinge fios, com corantes naturais. Os homens não estão ali, pois se reuniram para bater pasto, também em mutirão. Menos seu Valquírio, que está entre as mulheres e, muito aplicado, coordena as tecedeiras como ninguém, pois conhece todos os segredos do ofício.)

Amélia

Tem qui tecê cum capricho, pra dá sorte nu enxoval di

Jandira... I, pra comunhão, é bão qui seje di mutirão... Nói aqui, us hómi nus pasto, bateno a terra pru pai! Tudo pra festivindadi! Pra juntá força pr’ieles num distruí nói... Im festa di casório, é bão qui reúne as comunidadi nossa... Seu Valquírio

Si num vem anqueles interessero buscá brigá, miora. Quase

qui istraga nossa fest’di ónti. Maurícia

Si num fôssi a vó Nerstina...

Amélia

Us povo di fora num aprova nosso custume di

independência. Anqui nói trabaia pur nói, nói si ajuda. Ieles di fora num gost’di mutirão. Nem di nosso modo di celebrá. Fala qui tem qui tê padre... Pra seu u quê padre? Mai’bunito nosso jeito di fazê treição... Us hómi trai u dono da casa i trabaia ni ajuda. Im troca, u dono da casa faz festa! I tem u contrário, ni casório... Pra seu u quê padre?

50


Seu Valquírio

Diz qui nói num age certo, qui tem custume misturado. Mãe

ispant’ieles desd’otros tempo. Mofino, quêli padre Nicanor! Amélia

Mai’nossa terra é du jeito qui tem di sê. É boa nessa

manera. E quando tem casório, nói tem qui trabaiá é muito pr’apreservá... Ieu qué du mió dus pano pra Jandira... Seu Valquírio

Pano bão pra sigurá união. Pra uni nói. Desd’qui pai

Emiliano morreu ieles fala qui nói num tem inscritura di terra... Qué grilá pr’ieles. Pur caus’disso qui amigaro c’os povo du Tõe d’Olvina... Quêli povo vigia nói. Amélia

Nói é mai, si tivé junto... I us povo d’Olvina é só é

ingraçado... Tudo uns fanfarrão! (Para os que estão ali.) I vão mandá vê na treição di enxoval di Jandira, sô! Chêgui di tristeza! Genuíta

(Intrometida e maldosa.) Cê tá ficano pra tia, né, Mélia?

Moça bonita dessa... Sortera... Tereza

(Mais intrometida ainda.) Mió ficá pra tia du que ficá pra

tia-vó! (Tempo.) Mélia num casa pruque preocupa c’as irmã. Olinda

Ieu, si fôssi preocupá c’as minha, já tava di cabelo branco...

Elódia

(Dá-lhe uma patada.) I pra quê será qui cê compra anquelas

tinta di caxinha preta japonesa qui u overo vêndi quando passa lá nus terrero di casa? Olinda

Ninguém nota... Jozimo memo falô, ónti, qu’ieu nem

pareço irmã d’ôces... Qui pareço fia... Genuíta

Ah, falô isso, foi? Intão vô saí contano qui nu forró passado

iele falô a meminha coisa pra Zefa do Tõe D’Olvina! Num foi, Lódia? Elódia

Atrividim qui só ele! Fala qui é cego, i dévi di sê... Vê cada

coisa... 51


Seu Valquírio

(Sério.) Muita falação atrasa us sirviço. I tem muito argodão

pra sê cardado ainda, qui nói num faiz ridiqueza pr’essas coisa! Intão, chêgui d’implicância! Dirce

(Enquanto carda.) Coisa ruim é cardá, pai! Ieu já tava na

indade di i pra roda, já! Muriça ia dá conta suzinha di cardá tudo, num ia, Muriça? Maurícia

(Enquanto descaroça o algodão.) Ieu num ligo di cardá...

Dói us dedo... Ma’ieu gosto. Si é pras felicidade di Jandira... (Não compreende a irmã.) Dirce pairéci qui nem dá bola! Dirce

Pur mim...

Amélia

(Reclama com Dirce.) I quem qui ia discaroçá?

Seu Valquírio

Hoje tem muié demais pra roda, Dirce! I cardá u argodão é

trabaio bão. Si fica bem cardadim, us fio iscorre dispoi na roda qui é u’a generosidade! Si tá bem cardado, pódi vê qui fica mió fiado... Dirce

Muita muié... Pelo visto, tá sobrano muié! Num sei qui qui

fico fazeno anqui. (Sempre provocativa.) Inda qui Jandira num pôs as mão ni argodão nium... Olinda

Dá azar, Dirce... I ocê num ia querê sê irmã di sorterona,

viu... Dispoi fica qui nem essa imprestave da Genuíta lá em casa, qui inté pra fazê sabão recrama! Elódia

Ê, fulaninha exagerada é essa tar di Olinda!

Genuíta

(Justifica-se.) Nem pairéci qui sábi qui ieu sô cardíaca...

Elódia

(Horrorizada, como se falasse alto, mas para si mesma.)

Ih, Olinda, nem pres’tenção di tá na casa dos otro, diante di seu Valquírio? Ai, qui vergonha!

52


Seu Valquírio

Isquéci qu’ieu tô anqui, Lódia. (Muito atencioso.) Tá

discaroçano bem, Muriça? Dirce

(Respondona, reclamando do sirviço da irmã mais nova.

Bota defeito em tudo) Mai’ô meno... Qui tá difíce di cardá os argodão qu’iela discaroça! Seu Valquírio

Nhambu bem iscundido num pia, viu, Dirce! Tô veno bem

u seu sirviço sem vontade! I pra Mélia i Olinda fiá com argodão discardado fica triste! (Aponta para as outras duas tias de Servino.) As coitada das minina é qui pena pra tear as colcha dispoi. Tereza

Di mim, ninguém fala... Num si tem u’a gota di dó...

Pruque haja paciência i força pra tingi fio grosso, viu, seu Valquírio! Uns peso! (Lembra-se.) I acabô as fôia pra fervê i fazê tinta! Tem qui rancá maisi! Seu Valquírio

Uai! Num tem ferruge? Cabô?

Tereza

Mai’vai ficá tudo ni cor di ferruge? Tem qui tê cor, seu

Valquírio... (Mandona.) Precisa panhá ramo di quaresminha prus marelo i pegá toco cum casca boa di urucum pruns vremeio. (Soltinha.) Colorido é mai bunito. Ieu gosto maisi. Olinda

(Muito colorida, pega no vestido para limpar o suor da

testa.) Ieu tamém num dispenso uma corzinha! Seu Valquírio

Intão vô buscá!

Tereza

I cada veiz qui ieu vô lá fora, a presença danquela doida da

Tiana-loca mi assombra... Num para di falá nium minuto! Iscuita...

(Ao longe, escuta-se o rugido triste das falas de Tiana-louca.)

53


Tiana-louca

I é pra rondá cimitério, ieu rondo. I é pra rondá disgraça,

ansim memo eu rondo. Ieu rondo, ieu rondo, rondo, rondo! Ieu rondo é terra pirdida di miricó... Tá cabano, ieles vão invadi tudim... Num vai sobrá nada, purque terra pirdida di miricó, é mutivo de invadi. Invádi, invádi, invádi, invádi! Sai, varejera, sai! I é nus rumo di lá qui ieu ti incontro dispoi, terra pirdida di miricó...

(Tereza fica gelada ao escutá-la.)

Tereza

Muié dispinoiada. Ampronta cada berrero! Té assusta!

Pairéci arara-maritaca! I as fala sem sintido dela pairéci qui arremeda certim u’as cois’qui angente intêndi... Credo. (Para seu Valquírio.) Sinhô vai saí lá pra fora, memo cum ela sorta na ixpressão, seu Valquírio? Bênzi, l’umeno! Seu Valquírio

Ieu vô... Povo tem di pará di criditá ni bobage... I vê si

diminói o cunversê, muierada! Se dé cocera nu céu da boca, canta!

(Seu Valquírio sai.)

Elódia

Ai, qui bunitu um hómi ansim qui nem seu Valquírio, né?

Sabe tudos u afazê... Di hómi i di muié... Amélia

Prendeu tudo dispoi qui perdemo a mãe.

Tereza

I iele é bom carpidô, viu? Num foi c’as homarada batê

pasto pruque era ma’importanti ficá... Sinão, ia! Dona Nerstina qui cabô ino. Quela véia é ranheta, vive nu mei’di hómi... Ma’iele quis ficá...

54


Genuíta

E si cê dá u’a meada di fio dessa daí pr’ele, iele sábi tudos

desenho du repássi du tear. I ói qui é difíce! Ieu tem qui ficá oiano nus papelzim tudo pra tecê, ma’iele... Olinda

(Dá asas à imaginação de solteirona.) Sábi us ponto di

balão, princípio, pêia, varanda, tigelinha, ôio di Santa Luzia, tamborete, rosa americana, siringüia, liso di pareia, fiampu, meia-laranja... I é u’a contage, qui tudos iele tem qui sê contado! Contadim! Tereza

I cêis lá sábi contá? Pur isso qui num guarda decorado!

Elódia

Tamém, umas régua quadradinha dessa, desse tamanim...

Iele guarda! (Quase sexual.) Ô, hómi di memória grande... Coloca us fio nu liço i sábi as contage direitinha pra entrá nu pente! Genuíta

E ainda pur cima sábi urdi! Quem será qui insinô?

Maurícia

Vó Nerstina. Criô iele suzinha, sem marido... Iele aprendeu

veno, iela fala... Elódia

Ieu mi perdo tudinha na urdidera! Só teço si iele urdi us fio

primero pra mim. Olinda

(Suspira.) Ai, qui partidão!

Amélia

(Reclama.) Dona Olinda! (Com uma ponta de sorriso.)

Jozimo vai inciumá... Olinda

(Corrigindo-a.) Olinda, só; num princisa pô u dona nas

frente, não! Cê acha memo qui Jozimo enciúma?

(Seu Valquírio volta.)

Seu Valquírio

Mai’como si pérdi us tempo!

Olinda

(Insinuante.) Ué, vortô? 55


Seu Valquírio

Num peguei facão. Ia rancá como?

Elódia

(Vai saindo. Elódia quer mais um pouco da sua presença.)

Seu Valquírio, nói ónti l’em casa ficô pensano i num lembrava... (As irmãs não sabem do que Elódia fala.) Cum’é memo qui u sinhô faizi u porvie? Seu Valquírio

(Silêncio desconfiado. Aos poucos, distrai-se com a sua

própria fala. Dá a receita, com alguma afetação maternal.) Fáci... Primero ocê pega a mandioca i casca a mandioca. Dispoi, ocê rala a mandioca, aí fica anquela massa, né? Essa massa cê coloca nu coadô, qui é feito ansim: cê finca quatro pau di furquia formano um retango, mai’ô meno... Aí, cê marra um pano nas quatro ponta i im cima du pano cê vai estorvano a massa. Só qui tem di dispejá água junto, mai’ô meno vinte litro d´água pra cada pratim di mas’di mandioca massada. Imbaxo cê coloca um tacho. Quel’água qui passô nu pano vira um cardim branco, qui cê dexa discansano u’as doze hora qui é pro pó da massa qui desceu junto assentá nu fundo du tacho, ô di otra vasia... Cê qui iscóie. Dispoi, cê iscorre i fica anquele tamanco, um tijolim di biju, né? Joga u biju nu jirau. Mai tem qui sabê erguê u jirau... U jirau é um jirau feito di táuba qui im cima du jirau cê pôe um pano branco... Aí, im cima du pano, qui tá im cima du jirau, ocê coloca u qui cuô i iscorreu pra secá durante uns doi dia. Mai’pódi chegá inté trêis, quatro, purque aí, independe, né? Nesse tempo, cê pega anqueles tamanco di biju i ismaga, ismaga, ismaga... I dispoi passa na penera fina. Isparrama i dexa secá... Isso várias veiz até ficá anquele pó bem branquim i bem sequim... Fáci... Aí, já tá pronto u porvie...

(Seu Valquírio vai sair. As três tias estão de queixo caído.)

Elódia

Brigado, Seu Valquírio... 56


Olinda

Qui partidão!

Genuíta

(Estraga-prazer.) Qui história foi essa qui cê inventô di

porvie, Lódia? Dicerto cê num sábi? Trividinha! Elódia

Nada, só pr’ele ficá mai’um tiquim falano...

(Cantam, enquanto fiam. Canto de trabalho; uma dança mecânica com muitos fios, rodas de fiação, cardas, teares e meadas marca o tempo do trabalho. Ao fim do canto, chega Jandira.)

Jandira

(Olha pelos cantos.) Ieu vô sinti saudade dessa casa.

Amélia

Mai’anqui vai cuntinuá seno sua casa. Só num vai sê

mai’tua morada... Jandira

Vô sinti farta di pai, d’ocêis...

Amélia

Mai’cê vai tê João. É cum João u teu lugá, Jandira. Du

ladim dele.

(Tempo.)

Jandira

I ocê, Mélia? Num pensa im i embora?

Amélia

(Não sem certa melancolia.) Pra quê? Inda tem Dirce i

Muriça pra cabá di criá... Arranjá namorado, casá... Jandira

I um marido pr'ocê?

Amélia

(Tempo. Doce. Talvez lhe nasça uma lágrima no canto dos

olhos.) Quem é qui vai cuidá di pai?

(Tereza, sempre fazendo uma intervenção descaracterizadora.) 57


Tereza

Isso pódi dexá qui ieu faço, qui num vai sê indiferenti c’ocê

anqui ô longe... A trabaiera vai sê a mema anqui ni riba du lombo da coitada! Dirce

I, quanto à minha parte, Mélia... Nem princisa pensá. Ieu ia

fazê muito gosto di morá cum Jandira i João... (Tempo. Desconfiança de todas.) Pra ajudá nus servicim... Inté comentei cum João. (Tempo perverso.) Pai achô bão pruquê ieu sei cuzinhá mió qui ocê, né, Jandira? Nunca quis aprendê... Deu nisso...

(Tensão.)

Maurícia

Pára di sê pidoncha, Dirce!

Jandira

(Firme. Numa calma esquisita.) Si pai acha mió... Intão,

venha. (Tempo. Obediente.) Vô priguntá pra João, vê u qu’iele acha... Dirce

(Arrematando.) Só num isquéci di falá da parte das

cumida... Ieu sô boa im cada receita!

(Silêncio.)

Tiana-louca

(Ao longe.) Tem di vortá... Vorta, vorta, vorta, vorta!

Camim di casa é terra pirdida di miricó! Num fasta! Fasta! Fasta, fasta, fasta! Dispoi vorta! Tereza

Iscuita: a gritaria qui a Tiana-loca apronta! (Grita pra ela.)

Varrida!

58


(Dirce sai. Jandira fica pensativa. Tempo tenso. Maurícia está sempre de butuca, escutando.)

Elódia

(Compreensiva, mas intrometida.) Quiria morá suzinha

cum João, né, Jandira? Jandira

(Engole seco.) Não... Num ligo.

(Jandira sai. As velhas se sentem à vontade para falar o que lhes der na veneta.)

Genuíta

(Fofoqueira.) Num acho boa cois’esse troço di cunhada

morá cum genro... Lembra dus caso da antiga Aparicidinha? Fiô-se na cunversa da irmã, acabô mai chifrada qui muié vistida di vremeio nu pasto! Elódia

Chifruda, isso sim! Mai chifruda qui anquela vaca-zeitona

du pasto d’ocêis, qui pegô a finad’Olvina... Com’é memo u nomi? Dengosa? Amélia

(Mal humorada.) Num sei nome di vaca!

(Tempo tenso, quebrado por Olinda.)

Olinda

Diz qui u marido gostava inté mai da irmã qui dela... I era u

memo caso... Foi lá pra cuzinhá... (Tempo.) Igualzim. Amélia

(Acabando com as fofocas.) Só qui nessi caso é indiferenti!

João é doido pur Jandira. I num vê um palmo di graça ni Dirce!

(Tempo.)

59


Elódia

Mai qui num é cois’qui Jandira possa confiá, num é. Ieu

memo c’as minhas irmã... Quando ieu casá, num quero niúma nem pra visita! Chega já! Tem quantos ano qui carrego essas cruiz? Tereza

(Mais lenha na fogueira.) I João... Do jeito qui é... Bebeno

du jeito qui u trem bébi... Amélia

(Muito apreensiva.) Onti João passô dos limite! Nem sei

como pai aceitô u pidido! Tereza

Brinco é qui largava umas careta feia pr’ele. Num sei si

pr’ele ô pruqu’iele tava fazeno... Mai dava na mema... (Tempo.) Coitad'o Brinco.

(Dirce entra de novo, com mais algodão para cardar.)

Dirce

Tão falano du Brinco? Nem tem pricisão... Diz qui vai pará

di incomodá... (Rancorosa.) Jandira é qui vai sorri. (Faz algum suspense.) Brinco falô pra mim qui vai imbora. Qui num vorta... Qui essa terra anqui num é a dêli. Tiana-louca

Vorta, vorta, vorta, vorta... Terra pirdida di miricó!

(Maurícia arregala os olhos.)

Amélia

Imbora?

Tereza

(Maldosa para tornar o clima mais tenso.) Ingraçado... Iele

pensa u contrário di Jandira, qui quiria ficá... Qu’ia tê saudadi... Ingraçado... Tudo contrário, u opostim! Ói i vinagre na salada d’arface...

60


(Maurícia, que estava quieta, levanta-se.)

Maurícia

Qui tanta ranhetice, Dirce. Ondi cê vai chegá cum isso?

(Tempo.)

Amélia

(Calma.) Num si mete aonde cê num tem indade pra si

metê, Muriça! Quem ti falô disso, Dirce? Dirce

U próprio Brinco.

Maurícia

(Quase ao desespero.) É mintira qu’iela tá inventano du

Brinco! Tudo mintira...

(Jandira volta.)

Jandira

Qui qui tem u Brinco, Dirce?

Dirce

Vai imbora. (Tempo.) Brinco vai imbora... Pur sua causa,

Jandira. Maurícia

(Desespera-se.) Num vai, é mintira dela... (Quase chora.)

Fala pra iela qui é mentira, Mélia! Fala! Amélia

Pur qui essa choradera, Muriça?

Dirce

Ih, qui tô mió qui Jozimo, veno cois’qui num via...

(Zombaria, como se fosse surpresa.) Muriça! Tanta preocupação cum Brinco... Maurícia

(Parte para cima de Dirce.) É mintira! Qué acabá c’o

casório di Jandira, trazeno tristeza, qué? Num vai, num vai... Num vai! Tiana-louca

(Ao longe.) Vorta, vorta, vorta, vorta...

Dirce

Tão minina, tão preocupada! 61


Maurícia

Tá fazeno isso purque qué João pr’ocê? Coisa feia, Dirce...

Magoá as pessoa ansim... Mai’num fica desse modo... (Descontrola-se.) Ieu ti pego!

(As três tias do Servino, que estavam amuadas diante das discussões entre as irmãs, entram no bate-boca e há uma grande confusão entre as mulheres. Todas falam ao mesmo tempo, agudas. Maurícia pula nos cabelos de Dirce e a balbúrdia é mesmo grande. Tiana-louca grita, desesperada. No auge da confusão e da gritaria, Genuíta vê, repentinamente, a sombra de AntônioMorto, que aparece sem avisar.)

Genuíta

(Muito assustada. Grita.) Óia a sombra do Antônho-Morto!

(Gritaria geral de susto. Muito maior que a discussão anterior. A gritaria chega ao auge da intensidade. Histeria. Tiana-louca berra. Menos de Maurícia, que fica estarrecida, sozinha e triste diante da revelação de Dirce. As outras criam uma grande algazarra, num corre-corre de medo de AntônioMorto. Genuíta desmaia. As irmãs a abanam com os vestidos. Correria para buscar água. Estão levando o corpo desmaiado de Genuíta para uma cama, quando Seu Valquírio chega com os galhos de quaresminha que foi buscar.)

Seu Valquírio

(Severo, como não tinha sido até anqui.) I isso são mod’i

tecê?

(Silêncio.)

62


Seu Valquírio

Qui qui acuntece, Muriça?

Maurícia

(Respondendo como uma autômata.) Elas si assustaro c’o

vurto du Antônho-Morto... (Tempo.) Ieu não.

(Seu Valquírio sai, furioso.)

Maurícia

(Chora, só.) Ieu num tem med’i morto... Num tem... Tem

med’é das atitudi dus vivo. Cê vai ficá, né, Brinco? Vai ficá... Vai ficá! (Tempo.) Fica! Tiana-louca

(Ao longe.) Vorta, vorta, vorta, vorta...

Jandira

(Chega até Maurícia.) Baruiera... (Tempo.) Cê tá cum

medo? Qui nem ieu? Maurícia

Cois’d’i imbora. Num sei intendê.

Jandira

Só sei pensá... Será qui um dia tem felicidadi?

Maurícia

Craro qui tem, Jandira. Pra tudos nói!

Jandira

Mai’chêgui dá medo nangente.

Maurícia

Chêgui... Gela!

Tiana-louca

(Ao longe.) Iela vistia di branco i foi imbora... Tudo pirdido

di terra pirdida di miricó... Branquinha... Ingual porvie! Mai’vorta! Pra terra pirdida di miricó. A minina vorta. Dança, dispoi vorta. Vorta u moço, i vai pra longe... Qué i... Qué i? Pra terra pirdida di miricó...

(Seu Valquírio encontra Antônio-Morto.)

Seu Valquírio

Ieu ia memo ti prucurá, Antônho-Morto.

63


Antônio-Morto

(Boa-gente.) Num princisa. Tô anqui. Vim pra cumida di

dispoi dus mutirão di enxoval i da treição di bateção di pasto. Achei qui já tava na hora. Ô pur caus’di padre Nicanor, di ónti, num vai tê? Seu Valquírio

Poi’chegô cedo dimai... I cumé qui cê si anchega sem avisá

num lugá qui só tá as muié, Antônho-Morto? Antônio-Morto

Ué, u sinhô sempre fica cum elas pra tecê... Num ia

indivinhá, uai... Seu Valquírio

Tá loco, sô! Dexô dona Genuíta carregada!

Antônio-Morto

Num tem curpa qui u povo mórri di medo d’eu.

(Silêncio. Seu Valquírio olha, temeroso, para dentro de sua casa, para onde levaram Genuíta.)

Seu Valquírio

Si tivesse ido na treição junto c’as homarada batê pasto, c’o

custume, num tinha istragado a fiação. Num sábi qui a tia du Servino é cardíaca?

(Tempo.)

Antônio-Morto

Ninguém aceita mi’aproximação, nem im treição...Vim pras

festa... Di dispoi. Qui ninguém pódi mi tocá imbora. I vim nu horário... Si us hómi atrasô, num é ieu qui... (Tempo. Escuta-se um canto, ao longe.) Ó, iscuita...

(Quando ele diz isso, os homens chegam, em coro, da treição. Vó Nerstina vem na frente. Canto de trabalho, com enxadas, enxadões e rastelos apoiados 64


nas costas. Vêm cansados, dispostos à comida que lhes será servida por Seu Valquírio, o dono da terra que foi batida.)

João

Como prometemo, a festa du santo qui u sinhô deu pra nói

tá paga c’o suor du nosso rosto, Seu Valquírio. U pasto tá batido, pur nossa honra. Zorato

(Reclamão.) Deu inté um poco di trabaio pur caus’das

cobra... Servino

Si foi só uma, Zorato! I coral-falsa, ceguinha qui num pica

nem quem pisa. Zorato

Mai’pairicia qui tinha mai... Um matagal desse tamanho qui

parecia mai’era prantação di napiê! Jozimo

Pur isso qui ieu prifiro u truco... Num presto pra mai nada

nesse negóci di batê pasto c'o enxadão... Ieu, lá, sô um pirigo... Cobra-cega gosta di mim, num sei purquê... Mi namora! Acharo iela juntim da minha botina... Mai’como seu Valquírio falô qui só dava a leitoa si ieu isse na treição... Fui. Cabei ino. Seu Valquírio

Como tudo mundo foi, uai. Meno Antônho-Morto!

Zorato

C’a graça du santo qu’iele num foi. Ieu num ficava nas

moita cum sombração, mai’nem... João

Intão... Já tá feito! (Muito animado.) Agora, vão vortá a

festá? Vó Nerstina

I vão logo, nhantes qui us padre vórti pra querê istragá... Tô

di zanguera pur caus’di padre Nicanor! Xiliquenta mai’qui égua! Dispoi da carpição dus hómi, u custume deles é fartá di festa... (Sorridente.) I inté ieu tava pricisano memo d’uma cachacinha, hoje... 65


Seu Valquírio

Tá tudo istragado, mãe. Num tem mai’jeito di tê festa.

Vó Nerstina

Us padre vortaro?

Seu Valquírio

Só si dona Genuíta miorá...

Servino

Minha tia? Infartô?

Seu Valquírio

Ninguém sábi... (Sem paciência.) Num sei pra quê morrê di

susto du Antônho-Morto... (Tempo. Percebe o que falou.) Discurpa falá ansim, Servino... Mai foi u qui acunteceu... Zorato

(Sem paciência por perder a festa.) Ô, véia assustada!

(Servino e Zorato entram correndo para ver Genuíta. Os homens dispersam, desanimados. Quando João vai saindo com os outros, seu Valquírio segura-o pelo braço.)

João

(Num susto.) Argo tá errado, seu Valquírio?

Seu Valquírio

(Árido.) Sobre ónti. (Tempo.) Otra veiz qui ieu ti vê bebido

du jeito qui cê tava ónti, ieu ti capo, João. (Tempo. Aparentemente mais maleável.) I vá si acustumano c’os controle, qui Dirce vai morá junto c’ocê i cum Jandira, qu’ieu num cunfio di intregá fia minha suzinha pra rapaiz pinguço!

(João afasta-se, em silêncio. Encontra Jandira, num canto.)

João

Mai, ô, qu’ieu tava nu’a saudadi...

Jandira

Ieu é qui num via a hora da sua vorta.

Tiana-louca

Vorta, vorta, vorta, vorta...

João

Inté perfumô! Uia, qui vô mi atrevê inté di cherá! 66


Jandira

Pruméti u’a cois’pra mim, João?

João

Tudo u qui cê quisé, minha flor du cafezal!

Jandira

Num dexe nada istragá nossa festa... É cada bagunça!

João

Mai’si vô inté dá chá de acordamento pr’essa dona Genuíta!

Qué vê? Jandira

(Insegura.) Intão, ânti, dá um abraço ni mim.

(João abraça-a.)

Jandira

Ieu ti amo, João! Num sei bem como fala isso... Maisi é

desse jeitim... João

Amor é cois’qui cala, memo, cois’qui discontrola nói. Cê é

cachoera qui diságua minha vida, Jandira. Só num secá... Num seca, não!

(Seu Valquírio nota Brinco num canto, quieto.)

Seu Valquírio

Qui tanto quietismo, Brinco? Disaprendeu di falá?

Brinco

Num sô di festa, seu Valquírio.

Seu Valquírio

Mai’anda queto dimai. Num era ansim.

Brinco

Priciso achá meu lugá, seu Valquírio. Minha terra. Onde ieu

colocasse graça di vê u dia nasceno, di manhãzinha; onde ieu tivesse sono pra matá u cansaço, na tardinha. Ieu priciso di otra terra pra criá raiz, prantá di novo minha vida, tentá sê feliz. Seu Valquírio

I isso num pódi sê anqui?

(Maurícia aparece. Vê Brinco.) 67


Brinco

Otra hora... Quem sábi... N’otra hora.

Seu Valquírio

I qui cê tá pensano em fazê, Brinco? Imprego bão num tem

fáci nas roça por aí tudo. Tudo acabano, povo motorizano tudo... Brinco

Nus camim ieu decido... Iele vai sê comprido...

(Brinco vai sair. Volta-se.)

Brinco

Brigado pur tudo, seu Valquírio.

Seu Valquírio

A mim, cê num pricisa angradecê nada. Vô pagá u qui cê

trabaiô. I u qui cê pricisá, pódi...

(Seu Valquírio é interrompido por Zorato, que grita.)

Zorato

(Tragicômico.) A véia morreu!

Tiana-louca

Vorta, vorta, vorta, vorta...

(Seu Valquírio olha preocupado para Brinco. Continua sua fala.)

Seu Valquírio

(Não se assusta e nem se abala com mais nada.) Intão

ispere só u interro... Lumen’u velório. Pur consideração a Servino. Brinco

(Cabisbaixo, sôfrego.) Ieu ispero...

(Canto do acauã. Maurícia sorri. Seu Valquírio corre para dentro, ver o que fazer com o cadáver de Genuíta.)

68


Maurícia

Pensei qui tinha ido imbora... Du jeito qui Dirce falô...

(Tempo.)

Brinco

Só vô isperá u interro.

Maurícia

Ieu achava qui cê divia ficá... Pur isso qui ti joguei a flor. I,

na hora, cê sorriu... Brinco

Ficá? Pra fazê u quê? Tem lugá qui num é nosso, Muriça.

Iscuita a coã...

(Tempo. Silêncio. Acauã canta.)

Brinco

Ficá pra fazê u quê?

Maurícia

Num sei... Du jeito qui ieu falei... (Tempo.) Coã anunciano

coisa boa... Cê pudia sê u noivo. Brinco

Noivo é João. Num pódi tê dois. Num tem jeito...

Maurícia

(Firme.) Si queresse, pudia.

(Brinco sorri.)

Brinco

Um dia, cê vai intendê qui não. Ô u noivo é João... Ô u

noivo é Brinco. Us dois, não... Maurícia

I um dia cê vai intendê qui pra ficá bem, angente arruma

um jeito di nadá nu corgo, iscorrê u bagaço na boca, dividi us gomo... Tem jeito dimai, Brinco... (Atrevida.) Pur isso ti joguei a rosa.

69


Brinco

Ieu intendi... Na hora da rosa, intendi... Intendi tudo,

Muriça: tinha qui i, pra discubri... Tiana-louca

Terra pirdida di miricó...

Maurícia

Mai’a rosa era procê...

Brinco

(Triste.) I qui qui ieu faço cum ela?

Maurícia

Num sábi?

(Tempo.)

Brinco

Não.

(Tempo.)

Tiana-louca

Vorta, vorta, vorta, vorta...

Maurícia

(Entristece. Enche-sediraiva e responde, mentirosa. Quase

chora. Ríspida.) Joga nu caxão da Genuíta!

(Maurícia sai, rápida. Mas triste. Um cortejo cheio de tristeza prepara o próximo ato, fúnebre. Maurícia passa pelo coro, que joga rosas pelo espaço. Brinco, triste, escuta a música que os outros cantam, de despedida. “Guacyra”.)

70


Ato 4 Tristeza do Jeca

(Cortejo fúnebre. Brinco está com a mala feita para partir. Canto do “Guacyra”. Clima de tristeza. Por vezes, uma tristeza cômica, como se notará. A cena se reverte, após a formação do velório, para o canto do “Romance das Caveiras”, numa cena de cortina. As pessoas colocam-se, sentadas ou de pé, prestando homenagens à falecida. Chegam as irmãs de Genuíta para ver o caixão, acompanhadas de Servino.)

Olinda

(Há uma falsidade verdadeiramente sofrida em seu choro,

muito escandaloso.) U’a pessoa boa, trabaiadera... Era a mió irmâ qui deus pudia tê mi dado... Ai, Genuíta... Elódia

(Tentando contemporizar, embora sofra.) Olinda é muito

emotiva, sábi... Olinda

(Numa melodia impossível.) Ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai...

Elódia

Três irmãs muito unida... A gente sofre...

(Olinda, que já abrira o berreiro, coreograficamente, apóia-se nas pessoas, nas paredes, nas portas e se aproxima do caixão. Lança-se sobre ele, abraçao. Muitos temem que seu choro ponha tudo a perder, com a queda do caixão. Ficam atentos. No entanto, quem cai, desmaiada, é Olinda, que é levada às pressas dali.)

71


Tereza

(Servindo o cafezinho.) Diz qui im tudos velório iela faz

isso... Zorato

Mió ansim qui daquela veiz qui a minininha chegô c’o pai

nu velório i, quando tava nas frente do caxão, começô a cantá... (Empolga-se.) “Parabéns pra você...”

(Todos olham para Zorato.)

Jozimo

Queta, Zorato! Respeita Servino!

Tereza

Ai, qui vergonha!

Zorato

(Defende-se. Alto demais, ainda.) Diz qui, na hora di

enterrá, a minina ainda gritô di medo purque tavam prantano u difunto... Quiria sabê qui arve qui nascia! Essas frescurice d'Olinda ainda qui tá boa demai pr’essa dona Genuíta... Muié mal encarada... Ieu quiria era qui anquela mininha parecesse pá velá iela... Jozimo

Velório só anima maisi tarde, Zorato... (Pensativo.) Será

qui vai tê truco? (Entra o Tõe d’Olvina.) Tõe d’Olvina

Leitoso! Ô, leitoso!

Zorato

Mai é só falá ni animação, qui chêgui us disgramad’o Tõe

d’Olvina! C’esse povo anqui, certeza qui tem truco! Tereza

Nem inventa, qui seu Valquírio num pódi tê disfeita, hoje.

Hómi bão, disse qui si morreu na casa dêli, é na casa dêli qui tem di velá...

72


(Seu Valquírio levanta-se da cadeira em que estava sentado e vai até o caixão. Puxa uma reza. Os outros acompanham, num terço cantado. Brinco está com a sua mala, Maurícia o observa. Brinco segura a rosa que ganhou de Maurícia, não a coloca no caixão de Genuíta. Guarda-a. Ao fim do terço, Jandira chega para falar com as irmãs.)

Jandira

(Preocupa-se com seu noivado.) As coisa trísti, nessas hora,

num traiz bão arguro pru noivad’a gente. Amélia

É acuntecimento, Jandira... Num tem com’iscapá...

Dirce

Mai’coisa boa assombração num traiz... Lembra qui conta

qui numa veiz u cavalo dum homi começô a impacá purque via nu finzim d'istrada um caxão vuano i qui passô du lad’a carroça? Era anunciamento da morte du pai du hómi... Viu u caxão bem na horinha qui u pai tava morreno, memo sem tá perto... Essas coisa prevê u futuro.

(Tiana-louca entra para o velório com a sua mala. Senta-se num canto. Fala sozinha.)

Tiana-louca

Meus peso! Mi’as leveza... Muita leveza, muita! Ieu

intendo. Alma num pesa. Balança... Foi pras terra pirdida di miricó... Terra qui é pra drento, i angente recói. Recói, recói, recói, recói! Guarda! (Segura a mala.) Maisi vorta. Vorta, vorta, vorta, vorta... Nas leveza da movimentação, dus camim pirdido da terra pirdida di miricó...

(João chega para falar com Jandira. Amélia sai. Dirce quer ficar, mas Amélia puxa-a. Dirce se solta e fica.) 73


João

(Triste.) Brinco tá di partida.

Jandira

Dirce contô.

Dirce

Coisa feia preocupá c’essas coisa bem na hora du velório.

Vai vê é medo das premunição qu’isso traiz... João

Tanta coisa ruim aconteceno junto... Bem na hora di nói

festejá, Jandira. Jandira

Tempo vai passá. As coisa muda i, dispoi, miora. É ansim...

Cada dia qui u sol cai tem diferença... Tem época di festejá, tem época di trabaiá... Tem época di sofrê. João

Mai’quando a desgraça vem na hora da festa...

Dirce

(Intrometida.) Notras veiz é u contrário... Na época du

velório du Antônho-Morto u povo num conta qu’iele levantô du caxão i fez u’a banana pra tudo mundo qui tava lá? Foi um carnaval! Di correria, mai’foi.

(Noutro canto do velório, o mesmo assunto se desenvolve.)

Tereza

I u fio da mãe do Antônho-Morto chegô na hora inzatinha!

A muierada se danô num furdúncio qui matô a Genuíta... Zorato

Bem diferente da veiz du interro dêli, qui u furdúncio

cumeçô dispoi qu’iele viveu. Jozimo

Diz qui mostrô as língua ansim só di tapeamento, pra

disforrá du povo... Tereza

Ué, num foi banana c’o braço qu’iele fez?

Jozimo

Nada... Fez micage c’a língua! Ieu vi... (Todos olham para

repreender a lorota de Jozimo.) Uai... Ieu num tava lá? 74


(Tempo. A conversa de enterro continua.)

Zorato

Loguim qui acunteceu essa história du Antônho-Morto, ieu

tava cagano numa moita tranqüilo... Disrepente, oiei pra tráis i fiz qui vi u vurto du Antônho-Morto fazeno careta distrái du calípito! Saí c’as carça arriada, melecano tudas perna iscurrida da bosta... Ô, tristeza pá lavá, dispoi, aqueles pano... Tereza

I isso é coi’di lembrá im velório, Zorato? Pessoa sem

romantismo...

(Segundo a mesma coreografia do início, Olinda volta à sala do velório, para lançar-se mais uma vez sobre o caixão da irmã. Todos já fazem cara de que conhecem a performance do sofrimento de Olinda.)

Olinda

(Chora.) Iela fazia um sabão di tripa! U’a moça tão jóvi,

tanta vida pra vivê... Elódia

Só tinha um mal: u coração!

Olinda

Mió coração qui u dela? Num tinha! Ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai...

Elódia

(Contemporiza.) Era cardíaca...

(Olinda mais uma vez desmaia, repentina, e é levada para outro lugar, carregada por Servino e Elódia, treinadíssimos.)

Seu Valquírio

Si num sábi cuzinhá nada, pricisa dela!

Jandira

Mai’Dirce é trísti, pai. Vai tormentá! I si ieu quisé prendê? 75


Seu Valquírio

Iela ti insina, uai.

Jandira

Num vai insiná direito, pr'eu num fazê mió!

Seu Valquírio

Ué... Vô ti insinano... Aos poquim... Por exemplo, quando

cê quisé fazê môi di repôi nu ái i ói, nem pricisa prendê nada... Jandira

Tem receita pra segui?

Seu Valquírio

Cê pega cinco dênti di ái, casca u ái i sóca u ái cum sá.

Quenta trêis cuié di ói na cassarola, foga u ái socado nu ái quenti. Pica u’a cabeça di repôi bem finim, fóga u repôi nu ói quênti junto c’o ái fogado. Põe u’a cuié di mas'tomati i mexe cum cuié pra fazê u môi. Sérvi cum arroiz i meléti... Num vai mi dizê qui num faiz nem meléti?

(Tereza passa servindo comida e café às pessoas.)

Jozimo

Mai’cumida boa é anqui nu seu Valquírio... Tô c’uma lata

di rosquinha di pinga l’em casa... Tereza

Intão foi u cê qui robô aquela lata intera qui sumiu da

cuzinha, foi? Jozimo

Ôxe, qui num tenho qui contá pra ninguém dus rolo qu’ieu

faço pur aí... Tá doido, sô! Tudas ruindade cai pur curpa d´eu. Inda bem qui num tava anqui nas hora du susto da Genuíta... Já tava preso!

(Chega Servino.)

Servino

Tô sufrido... Num vô nem podê chegá per'da cova da mi’a

tia... Zorato

Pur que, hómi? 76


Servino

Tuda veiz qui chego per'di cova, mi cai a pressão.

Zorato

Dismaia?

Tereza

(Cínica.) Puxô isso da tua tia Olinda, foi?

Servino

Quando era mulequim, lá nas banda da Paixão das Ovelha,

quando entrei pela primera veiz num cimitério, já cumecei a tê tremedera... Dispoi, quase qui mi interro junto, qui caí justim drento du buraco da cova. I era interro di véia. Igualzim... Zorato

Isso pairéci um otro mulequim que morreu di barriga

d'água, nas Junquera, i qui nas hora di interrá saiu um tatu di drento da cova... U povo viu u tatu i indiabrô! Correro pra catá u tatu pra fazê frito i aí, teve dismaio da mãe du mulequim. Foro tudo sicorrê a mãe i catá u bandido du tatu. Cabaro qu’isquecero u caxãozim du muleque lá largado... Só lembraro n'otro dia... Tereza

(Participativa.) Er'u subrim da Lurdi du Tõe d'Olvina, num

era? Zorato

Pairéci qui era... Divia sê... ‘Quele povo gosta dum tatu qui

só veno! Tõe d’Olvina

Leitoso! Cê iscundeu ni buraco, foi?

Servino

(Triste.) Pur caus'dessas história qui num gosto di

cimitério... Tereza

Dexa disso, Sirvino. Cimitério é terra boa. Quando ieu era

minina i num tinha u qui cumê, cimitério era lugá qui mai’dava alegria n’angente. Dava u’a goiaba nas berada dus túmulo... Pricisava di vê! Hoje ieu sei qui isterco qui era... Na época, pudia tê u bicho qui fôssi, nói mandava! Interro di japonês era mió pur caus'di eles tê u custume di colocá inriba da lápi

77


as cumida qui u morto gostava, né... Nói isperava u cortejo saí, ficava u’as hora di bituca... I nheco! Nem pricisava panhá goiaba... Nem lembrava!

(Olinda e Elódia reaparecem, para nova choradeira, segundo mesmíssima coreografia.)

Olinda

I sofreu tanto quando foi largada nu altar... Ainda era

moça... Elódia

Tinha tanta isperança di casá di branco...

Olinda

Agora foi... Morreu sem tirá u retrato c'o padre. Ai, ai, ai,

ai, ai, ai, ai... Elódia

Mai’guardô u vistido inté hoje. Quis sê interrada cum ele.

(Bândi, de luto, muito gripado, chega para o velório. Em sua entrada, o silêncio é absoluto. Apenas se escuta um comentário aqui, outro acolá.)

Jozimo

(Sobre Bândi.) Vai vê qui anrependeu du papelão qui fez nu

altar... Tereza

I hómi arguma veiz prestô?

Vó Nerstina

Tô sintino u’as vibração... Quando u ispirto num qué saí du

corpo, ieli mi manda uns aviso... (Começa com uns tremores.) I si u Bândi bejá as mão dela, u incosto passa pr’ele!

(Bândi vai até o caixão. Vai beijar a mão da Genuíta.)

78


Vó Nerstina

Ói, mi’a nuca. Já tá ardida... I vai, i vem... I vai, i vem...

Tiana-louca vorta...

(Assustadíssima, segura sua mala.) Vorta, vorta, vorta,

(Quando Olinda está chorando sobre o caixão, num berreiro, e Bândi vai beijar a mão de Genuíta, aparece num canto o vulto do Antônio-Morto. Ele está na porta do velório. Bândi espirra.)

Todos

Saúde.

(Olinda vê Antônio-Morto e solta um grito.)

Olinda

Santa Virge da Assombração!

(Todos silenciam e parecem ecoar as passadas de Antônio-Morto até o caixão.)

Elódia

(Para Antônio-Morto.) I dicerto tem pricisão di u sinhô

aparecê? Num percebe? Olinda

O assassino... Ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai...

Seu Valquírio

(Irrompe na cena para acalmar a confusão.) Zela pela

memória di dona Genuíta, Olinda! Chêgui di disrespeito! I u sinhô, seu Antônho-Morto, si quisé oiá u corpo, reza rápido pela alma da coitada da falecida, tome um café si tivé vontade i córri sorto c'as pegada di minha casa! Antônio-Morto

Num vim tomá café. Vim pidi descurpa pelas cois’qui

minha presença causô i qui num quiria causá. Seu Valquírio

Tá discurpado... Agora, faz u qui falei i pica a mula! 79


Antônio-Morto

(Calmíssimo.) Cêis tão mi ispursano? Num pricisa... Vim

prá trazê conforto. Si num dianta... Num dianta! Elódia

Dispoi du qui tá feito, num tem conforto qui dê jeito!

Olinda

Ai, Genuíta... Ai, ai, ai, ai, ai, ai...

(Olinda abraça-se aos pés de Genuíta e berra muito alto. E muito mais forte, por causa da presença de Antônio-Morto. Bândi espirra, muito alto. Num susto, dona Genuíta, ressussitada, levanta-se do caixão, vestida de noiva.)

Genuíta

Que berrero é esse nus meus ovido? I u Bândi vai mi passá

gripe!

(Consecutivamente, com o acúmulo do peso, a base do caixão cede e derruba a ex-defunta estatelada no chão. Um corre-corre de susto e de socorro a Genuíta destrói o tom, nem tão solene assim, do velório. Ninguém mais se entende. Música. Brinco aproveita-se da confusão e caminha, solitário, em direção à porta. Maurícia o vê e vai até ele, acompanha-o com o olhar. A bagunça permanece, quando o padre Nicanor chega.)

Tiana-louca

Vorta, vorta, vorta, vorta...

Padre Nicanor

Isso é velório ou carnaval?

Tereza

Padre Nicanor! Credo im cruz!

Vó Nerstina

Ieu tava sintino as vibração!

Tiana-louca

Vorta, vorta, vorta, vorta... Falei qui vortava! Vorta ispirto,

vorta morto, vorta tudo! Vorta!

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Padre Nicanor

Como notícia tem asa e voa, fiquei sabendo do óbito.

Embora nem uma alma dessa terra de ninguém tenha me mandado avisar pra extrema-unção! Mas vejo que é só bagunça do povo daqui, que o diabo... Vó Nerstina

Diabo, u’a pinóia!

Padre Nicanor

Mas, se não precisam de deus nem pra missa e nem pro

enterro... Terra de demônio... Vó Nerstina

Terra di gente! I qui cês das batina num tira us óio dela! I

num dianta inventá discurso, qui meu poder é dus pesado, padre Nicanor! (Começa a ter uns estremecimentos.) As pena di ganso qui mi protégi é fórti. Mai’qui hóstia! Ieu benzo u mundo i im nossa terra tá a nossa proteção! Num pricisa di padre, qui cábi gente di sua laia nas arredondeza! Padre Nicanor

É o diabo! Ele vocês seguem. Ele alivia? Isso passa! Tem o

juízo... Festa de tronco na terra, desrespeito do culto, vida comunista de treição fora da... Só pode ser o diabo. Tudo fora da... Vó Nerstina

A única pessoa di fora qui tô inxergano aqui ieu sei bem

quem é! Qui as coisa roda i nossa festa tine! (Vai pra perto dele, que teme e afasta-se aos poucos.) Mai’nói, l’umeno, sábi bem qual qui é nossu lugá. Num invádi... Num grila! Num roba! I sai di mi’as frênti, padre Nicanor, qui nói vai dá atenção pras ressurreição da Genuíta! (Grita.) Viva a dona Genuíta Ressussitada! Todos

Viva! Viva! Viva!

Vó Nerstina

I cadê u Valquírio? Qui pricisa organizá festança. I

mai’organizadu qui meu fio inda tá pra nascê u cristo!

81


(O padre Nicanor, diante da festa que se arma, fica cada vez mais boquiaberto. Vai saindo, disfarçadamente. Passa por Brinco, que está sentado, só. O padre sai. Brinco se levanta para segui-lo.)

Maurícia

Vai sem si dispedi, Brinco?

Brinco

Num vô istragá as bagunça doida das tia du Servino...

Maurícia

Isso anqui é só festa, sempre. Memo nas hora triste... Cê

divia pensá im ficá. Tanta gente qui gosta d'ocê. Brinco

Si a terra rejeita us cadáver di Antônho-Morto i Genuíta di

um jeito, m’injeita tamém di otro. Assim qui é Catalão-Macaubal... Maurícia

Cê tá errado, Brinco. Terra num injeitô nium dus dois...

Quis qu’ieles ficasse. Gosta. Pur isso num fôro... Quiria qu’ieles ficasse, qui nem ieu quero qui cê fique. Brinco

As coisa num muda, anqui, Maurícia. Ieu intristeço...

Nunca muda... I é bunito, ansim. Só qui às veiz angente qué diferênti... Essa terra é boa demais pr'eu ficá veno defeito nela. Num sô padre Nicanor! Maurícia

Nas veiz, pairéci...

Brinco

Tem muita beleza pr'eu ficá pono defeito... Mió i embora.

(Tempo.) Si senti saudade, vorto. Maurícia

Ieu vô sinti sua falta... Vô sinti saudade... (Abusada.) Quiria

i contigo. Brinco

Isso num dá jeito, Muriça.

Maurícia

Num é certo qui só ocê pódi sinti saudade i vim. I nóis? I

ieu, quando sinti sua falta? Como faiz? (Pede.) Fica. (Tempo.) Si num dá certo ni um jeito, arranja otro. (Tempo.) Fica.

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Brinco

É u qui vô fazê. Arranjá um jeito pra mim, buscá meu lugá

no mundo, mi’a terra... Tem istrada demai pur aí afora... Ieu num fico contente si num segui. (Tempo.) Cê me perdoa, Muriça. I pede perdão a todos pur mim. Meu rumo vai seguino...

(Brinco beija a testa de Maurícia e vai sair. Quando está bem à porta, João aparece e lhe chama. Brinco volta-se e, silenciosamente. Lentamente, caminham um na direção do outro. Abraçam-se. Cena lírica, que se abre para o canto de "Casa de Caboclo/Tristeza do Jeca". Ao fim da música, Brinco parte.)

83


Ato 5 Flor do Cafezal

(Todos estão reunidos para a grande festa do mutirão - que fora adiada para o funeral de Genuíta. Ocasião do noivado de João com Jandira.)

Olinda

E pricisava pregá anquele susto na gente, Genuíta? Morrê

tudo bem, qui tá véia, entornando u cardo... Mai’ressussitá danquele jeito, derrubano u caxão, qui pairicia u vurto du Antônho-Morto? Genuíta

Passei a intendê anquele moço, sábi... Coitado. Inxutão...

Tanta rejeição pur conta di nada... Povo exagerado! A gente leva um sustim i já qué batê as bota dangente... Ih, inda vão mi güentá pur muito tempo... Elódia

Ieu qui nunca mai’ti óio cum ôio bão, viu, Genuíta... Si cê

num fôssi mi’a irmã, l'em casa qui cê num pisava mai... Olinda

I pra durmi di noite, agora? Vô pô mi’a cama du ladim da

da Lódia... Genuíta

Ieu é qui tinha razão pra gelá di medo... Anquelas rosa

fedorenta qui cêis botaro nu meu caxão... Nessas hora é qui a gente vê como num é bem quista, nem pelas própria irmã! Mai’vam’prepará as canela qu’ieu tô loquinha pra dançá! Cadê u Antônho-Morto?

(Tereza passa, desvia um pouco o caminho e vai até Zorato. Jozimo é quem está mais perto dali.)

Tereza

Mi dá uns rupio di passá per'dessas trêis... Principarmênti

dispoi qui quase cabaro c'o casório da Jandira... 84


Zorato

Tudo caba bem, Tereza... (Malicioso.) Agora, nói tinha qui

pensá im nói, né? Juntá us trapo, tê ma’intimidade... Tereza

Maisi intimidade ainda, seu safado? Num sei como num mi

chamaro di biscate, nessa falação du povo... Anquelas chegada qui cê dá di madrugadinha ni mi’a janela... Ai, deus u livre, si seu Valquírio fica sabeno... Vão falá di mim mai’du qui fala da biscati da Neidona! Zorato

(Propõe, cavalheiro.) Num tava na hora di cunsertá isso?

Tereza

Si cê tivesse proposta di respeito prus meu lado, eu inté ti

levava ni consideração... Mai’saí duma casa tão boa pra mi infiá c'ocê num sapé na bera da roça, nem qui a vaca tussa, Zorato! Zorato

(Aproxima-se, um tanto desrespeitoso, do pescoço de

Tereza.) I si ieu ti dasse uma cherada danquelas nu cangote, qui cê rupia mai’di qui quando passa per'da dona Genuíta-Ressussitada? Tereza

(Toda gemida e fresca, de felicidade.) Aí, ieu ia pará i

pensá mai’um poco... Como cê é bão, disgramado! (Faz-se de séria.) Só qui num faiz essas indecência nas frente dus otro... Ieu tem reputação, Zorato! Zorato

Só Jozimo tá por perto... Jozimo num vê...

(Jozimo abre um sorriso malicioso, enquanto prepara as cartas para o truco.)

Seu Valquírio

Ieu quiria pidi perdão pelas cois’qui ti falei nu velório,

Antônho-Morto. Sô hómi justo, sei notá as bobage qui faço. Antônio-Morto

Ieu aceito. Ieu pudia memo i embora... Mai’tem u’as

cois’qui puxa angente pru lugá qui é pra ficá. Ieu nunca fui imbora, i acho qui nunca vô... Lugá dangente, ninguém ixpursa... Si tivesse di i, já tinha ido...

85


Seu Valquírio

Fico honrado di cê tá na festa du noivado da minha Jandira.

Pra cabá cum tudas as sombração... Tudos medo, tudas tristeza... Antônio-Morto

Sombração, medo e tristeza é cois'qui angente inventa. Num

pricisa di tê... I, si tem, mió é cabá cum elas... Dexá as coisa segui us rumo qui dévi segui... Cada um nu seu modo...

(Chega a vó Nerstina.)

Vó Nerstina

Nu nosso modo... Desse jeitim da nossa terra, fio, qui é

Catalão, qui é Macaubal... Qui é u mundo. Anqui é lugá pra nossa afeição. Como tudos otro tamém são, prus otro. Tudos nói anqui si vê, tudos anqui si inxerga. Num tem iscundirijo Tudos tá junto i é um só. Nas treição, nus mutirão... Tudos tá junto. Só pricisa intendê. Té as coincidência qui cuntece... Seu Valquírio

Mai’num caba? I si um dia cabá? Cum padre Nicanor nas

ronda... Fico ieu pensano nu dispoi... Nas minina. Vó Nerstina

Num tem dispoi, fio... Tudos dispoi é agora... Tem di aceitá

qui as coisa gira. Muda. I nói tem nosso lugá. Seu Valquírio

Tudos lugá é um só, siora fala...

Vó Nerstina

É um só. Mai’é indiferente pra cada um... Drento, qui

drento da cabeça. Anquele moço bunito, u Brinco... Seu Valquírio

Foi imbora.

Vó Nerstina

Benzi iele ânti dêli i... Foi nu rumo. Tem istrada...

Movimenta. I nói tá lá, ma’iele, pr’onde é qu’iele foi. Levô nói junto... Inquanto ieu benzia u bicho, iele falô, baxim... Brigado. Intendeu u qui é di agradecê... I intendeu u qui tem di movimentá... Num pôdi ficá...

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(Passa a Tiana-louca, gritando.)

Seu Valquírio

Mai’tamém, ficá nu mei’dessa gritaria!

(Seu Valquírio vai acudir, vai organizar. A Tiana-louca abraça a mala, forte.)

Tiana-louca

Num vê! Num dex’oiá! Anquele hómi num pára di mi

apersigui, nus rumo da terra pirdida di miricó... Mai’num ábri! Qui ni mi’a terra é cadiado, é corrênti, é proteção! (Abraça forte a mala.) Ninguém bisóia mi’a terra pirdida di miricó... Mi’a minina, iela tá anqui... I tá nu mundo! Distanti...

(Tiana-louca vai sair correndo, para proteger sua mala. Encontra Tereza e tem uma iluminação. Abraça Tereza, enquanto surta. Tiana-louca agarra nas pernas de Tereza, que corre, levando junto a louca arrastada.)

Tiana Louca

Vorta, vorta, vorta, vorta...

Tereza

Ieu falo qui sê órfi só traiz disrespeito nessa vida dangente...

Mi sorta! Larga mi’a joanete, Tiana! (Saem. Entra o Tõe d’Olvina, apressado.) Tõe d’Olvina

Tava bem iscundidim... Ieu falei! Ê, Leitoso! (Procura.)

Cadê iela? Iela iscundeu! Iscutei u ronco qui tava drento da mala dela! Tava roncano drento da mala dela! Prende a Tiana-loca, prende a Tiana-loca! Maurícia

Qui qui tem na mala da Tiana-loca, Tõe? 87


Amélia

Uai, sô! Num é só u isqueleto da fia morta dela?

Tõe d’Olvina

Isqueleto di fia morta! Nada... É Leitoso, qui iela passô a

faca ô a mão nele i agora pelidô u tadim di tar di miricó! Mai’tá gemeno u leitão, ieu iscuitei, nu mei’da canturia dela... Vai vê, u porco inda tem salvamento... Leitoso! Ô, Leitoso! (Tõe d’Olvina sai atrás da Tiana-louca. Amélia e Dirce estão apressadas, arrumando os vestidos.)

Jozimo

Si iela falá qui fui ieu qui mandô iela robâ porca, é doidura

dela! Num tem nada cum isso! (Perde as estribeiras, após um tempo.) I si iela contá ieu mato iela! Genuíta

Eita gente pra arrumá cunfusão é esse povo du Tõe

d’Olvina! Num dex’u’a festa tê paz. É porco, é Tiana-ladrona... (Tempo, pensa.) Será qui Tereza é memo fia da loca? Antônio-Morto

Si fôssi, u povo já tinha comentado... Ô não?

Genuíta

Óio torto. Vai sabê... Tá c’a cara qui tem mão das armação

da Nerstina! Anquela véia sábi iscundê segredo qui ninguém fica sabeno, inda mai’quando é segredo di fio sem mãe... Credo. (Sensual.) Mudano di pato pra ganso, ieu nunca tinha arreparado qui cê tá novão, né, Antônho-Morto? Tá forte, nem pairéci qui morreu...

(Amélia e Dirce estão no corre-corre.)

Amélia

Isquéci di azedume, Dirce... Vão festá! Jandira vai tá tão

linda, mai’branca qui u cafezal im flor... 88


Dirce

É... Iela ornô c'anquele vistido.

Amélia

Ornô. Noiva orna... Mai’cê vai memo junto, nu dia qu’iela

fô? Dirce

(Pela primeira vez, amigável.) Tô pensano... Incafifei cum

a partida di Brinco. Nunca tinha pensado qui tinha jeito pra dá nas coisa... Brinco foi qui mi mostrô isso. Quando iele mi falô qui ia embora, ieu num achava qu'iele ia... Ieu num sabia qui pudia prucurá otros lugá nu mundo pra sê a terra dangente. (Pensativa.) Um dia... Ieu ainda acho a minha... Amélia

I cuzinhano du jeito qui cê cuzinha... Vai chovê di moço

quereno ti levá danqui... Dirce

É... Vô danqui bunita como Jandira, vistida di branco, da

cor da flor du cafezal... Amélia

Ói, lá, iela e João. Branquinha...

(João e Jandira aparecem para o canto de "Flor do Cafezal". Início da festa final do espetáculo. Os casais estão formados para a dança: Olinda e Jozimo, Elódia e seu Valquírio, Tereza e Zorato, Tiana-louca e Tõe d’Olvina etc. Afastados de todos, em extremo romantismo, de um lado Jandira e João, de outro, Genuíta e Antônio-Morto. Vó Nertina segura uma vassoura, sorridente. Jandira está linda de branco. Brinco, com sua mala, observa a tudo, de longe.)

Brinco

(Noutro plano.) Mi’a estrada cumeça anqui. É di camim

qu’ieu vô vivê, qu’ieu vô alimentá. Isso tudo qui guard’i memória é terra pirdida. Di miricó. Fica miricozano a cabeça dangente... Num sai. Das vez, faz sorri. Cois’guardada, terra pirdida, qui u’a hora ieu arranjo di derramá, di tirá 89


fora da mala. (Para si.) Segue nu rumo, Brinco, qui nu final du camim a terra vai tá lá. Pirdida... Im miricó... I, quando cê nem apercebê, hómi, tudo vai tá formado im tua roda, c’a image justinha da tua cara... Vai pra casa, vai... Prus camim, Brinco!

(Novo recorte. De volta, para João e Jandira.)

Jandira

João, memo nas hora mai’triste, ieu sempre achei qui cê ia

cabá du meu lado... Ansim... João

É qu’ieu já era seu, Jandira. Faz tempo qu'eu ti amo... Lugá

nosso é junto. Num bota medo nu nosso camim não, qu'iele é bunito. É tranqüilo... Tô veno, já... Ieu acordano tudos dia i oiano pra hora qui cê abri us óio, cedim... Vai sê esse u meu amanhecê... I na hora di dormi, quando cê fechá us óio, intão ieu vô intendê qui iscureceu... I qui é hora di recoiê, pra amanhã acordá di novo c'os teus óio... Sempre oiano pra mim...

(Beijam-se. Música continua.)

Servino

Minina Muriça tá calada, nem pairéci contenti c'a festa di

Jandira... Maurícia

U sorriso di Jandira é a coisa mai’bunita qui tem, Servino.

Claro qui tô feliz... A tristeza é pur mim... Ma’ieu tô só isperano a hora d'ieu ri qui nem iela... Servino

Uai. Intão vamo começá é agora... Cê vem pra dança

comigo?

90


Maurícia

Hoje ieu num vô dançá. Ieu vô isperá. Inté um dia... Quem

sábi... Servino

(Simpático.) Intão ieu ispero tamém. Mai’num quero

trapaiá... Qui depois cê fica falano ni ovo di maritaca... Maurícia

Ninguém tem poder di trapaiá ninguém, Servino. Pódi sentá

qui comigo... Vamo isperá... Fazê tudo certim prus rumo da vida dangente corrê prus lado qui angente qué qui corra... I si cansá di isperá, intão um dia nói levanta i quebra as canela pra dançá! (Animada.) Ieu acho isso! Servino

Intão, ieu acho tamém!

(Maurícia sorri. Olha para o horizonte, calma.)

Maurícia

Tempo diz u qui tem di acontecê... Tempo é amigo... Quem

sábi u tempo num tráiz presente di surpresa numa hora dessa... É só isperá... (Olha para a natureza.) Ó, a natureza... Si num isperá a hora di coiê, num tem lavoura qui dê fruto... Si u dia num noitecê, num tem discanso pr'esse nosso corpo bruto... Si num tem u que querê, intão é mió vortá pru luto! Mai’nquanto ieu guentá iscoiê... Ieu ispero anquele matuto!

(Servino sorri. Seus olhos têm tristeza, mas guardam esperanças, talvez por pensar que os versinhos de Maurícia lhe sirvam. Grande festa final com fartura de frutas, quitutes, quitandas e música. Celebração da fertilidade do tempo.)

Fim 91


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