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NATUREZA MORTA Inspirado no quadro “Natureza Morta (A Assassina)”, de Edvard Munch
de Mário Viana
Av. 9 de Julho, 2.021/84 01313-001 São Paulo, SP Tel.: (011)3141-9656, 9698-6397 e-mail: mario_viana@uol.com.br
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Cenário: um pequeno quarto de hotel. Vê-se à esquerda uma cama encostada à parede. No canto direito, uma mesa redonda, coberta por uma toalha florida. Sobre a mesa, um bolo e um prato com frutas envelhecidas.
Luz acende repentinamente, mostrando uma mulher de aproximadamente 40 anos, aspecto cansado, cabelos soltos. Blusa numa cor rosada, saia preta. Ela está exatamente no fim de uma faxina, limpando o chão com um esfregão. Termina, guarda o esfregão num canto do palco. Vai até a cama, onde está estendido o corpo de um homem ferido na altura do peito, com a roupa manchada de sangue. Ela apanha um punhal, que está ao lado do morto e vai lavá-lo numa pia. Vai para a frente do palco, perto da mesa, e olha para a platéia. Fala como se houvesse um interlocutor à sua frente. MULHER (calma) Assim está bem, senhor pintor? Eu devia passar um pente nos cabelos, eles estão tão desalinhados... (Procura um pente e um espelho, dá duas escovadelas no cabelo e pára; percebe-se que, pelo reflexo no espelho, ela viu o morto; respira, tentando se conter) Estou calma... O senhor pode continuar, senhor pintor. (fica de frente para a platéia) Minha mão sobre a mesa? Esta mão? (levanta a mão direita, logo abaixa) Claro, a outra... (levanta o braço esquerdo e o apóia à mesa) Assim? (fica algum tempo na posição, olhando sempre à frente. De repente, olha em torno, em direção à cama) Seria melhor dar uma arrumadinha no quarto, está tão... (Vai até o morto, procura um jeito de cobri-lo; usa um lençol e volta à posição anterior) Eu não deveria estar aqui... O senhor me pegou de surpresa! (volta à cama do morto, onde corrige algum detalhe no lençol) Na verdade, quem não deveria estar aqui é o senhor, senhor pintor, me perdoe a opinião um tanto rude. Tudo aqui está certo, tudo, a mesa, o bolo, as frutas, a porta fechada, a cama em desalinho... Talvez ele não devesse estar ali, morto, mas... Ele não esperava... Pobre-coitado. É tão triste falar assim de um homem por quem você rastejaria toda a terra no passado. (presta atenção ao pintor) Como? Abaixar a mão? As duas estendidas ao longo do corpo, o senhor acha que... (pausa impaciente) O senhor me disse que não demoraria tanto. Tenho de apanhar um trem e o senhor sabe como os trens são pontuais. No minuto exato colocam em funcionamento aquelas toneladas de ferro e madeira, correndo sobre trilhos, levando jovens gestantes, mulheres abandonadas, homens assustados diante da falência que se avizinha, velhos envergonhados que sonham com prostíbulos, mas acabam por se matar numa praça, sem que ninguém tente impedir... Sempre que entro numa plataforma de estação de trens, fico tomada por aquela agitação, invadida por todos os sentimentos que possam estar circulando no ar, me apaixono, choro de abandono, sinto um bebê chutar-me o ventre, dá-me vontade de acender um charuto e dizer olá às moças bonitas que passam... (põe a mão no rosto, assustada) Eu não estou suja de sangue, estou? Por favor, olhe bem, olhe direito, eu não
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quero sair por aí correndo toda empapada de sangue, despertando a atenção das pessoas, quem sabe alguém alerte a polícia, “olhe, vi uma mulher correndo, o rosto avermelhado de sangue, parecia sangue e não era o dela”.... (alisa a face) Não mesmo? Ainda bem. O senhor conhece Paris, senhor pintor? É mesmo tão bela quanto dizem? Não, nunca saí daqui. Paris! Estou tão ansiosa, chego a ficar com febre só de pensar que o trem demora tantas horas para cruzar a Europa e chegar a Paris... Imagine, uma cidade imensa, inteira, cheia de desconhecidos a quem terei de dizer “muito prazer” a todo instante... É como nascer de novo, não é? É como a ressurreição ao terceiro dia, que Deus me perdoe. (Fica alguns instantes em silêncio) Essa viagem, essa que vou fazer daqui a pouco, já estava marcada há muito tempo. Fuga? Não, não estou fugindo, era isso o que o senhor pensava? (sorri) Não... Sempre tive vontade de sair daqui, de conhecer outros lugares, outros povos, outras línguas. O que faltou foi dinheiro. Mas desde o dia em que decidi, “desta vez eu vou”, comecei a economizar aqui e ali, guardar os trocados, fiz meu pé de meia... Ele não queria. Ele! (faz um gesto em direção ao morto, sem olhá-lo) “Para que tanto trabalho?”, ele me dizia. “O mundo todo é igual, os homens têm bigodes, as mulheres usam seus chapéus, as crianças gritam, isso em qualquer idioma”. Nós discutimos muito isso, abandonar seu país, seu povo... Ele mal queria conhecer outra cidade, odiava trens, barcos, movimentar-se. Durante muito tempo, eu acatei sua opinião sem discutir, sem duvidar... Era o homem com quem eu vivia, com quem eu queria viver... Posso tomar um pouco de água? (sai da posição, toma um copo d’água; na volta, senta-se ao lado do morto, descobrelhe o rosto; olha-o por instantes) Quando eu o conheci, eu era muito, muito jovem... Nós dois éramos jovens. Foi olhá-lo e saber que.... Talvez tenha sido ao final do primeiro beijo. “É ele”, eu dizia para comigo mesma, sem euforia, sem exagero, sem escândalo. Calma como uma mãe que dá de mamar pela primeira vez ao primeiro filho... Tudo novo, ao mesmo tempo tão natural... A vida me estendeu seus seios e eu suguei deles o que podia haver de amor... O senhor já viu uma criança pequena descobrindo seus próprios movimentos? É tão lindo ver em seus olhos o espanto, a surpresa por descobrir até onde chega seu bracinho! O que é possível fazer com aqueles dedos, as mãos, as pernas.... Era assim o amor entre nós, eu e... ele (faz um carinho no rosto do morto) Cada dia, cada movimento... Eu nunca imaginaria que amar significava descobrir tantas coisas dentro de si mesma, dentro do outro, os corpos, tudo aquilo... Os beijos, as carícias, o modo de se ajeitar na cama para dormir... Era tudo uma descoberta maravilhosa, nós dois ficávamos encantados. As infinitas possibilidades. Elas pareciam infinitas, então. (fica em silêncio por alguns instantes; parece escutar o pintor; sorri tristemente e volta à posição do quadro) Nas noites de verão, quando a brisa agita as árvores floridas, elas parecem se alegrar tanto que desprendem um perfume doce, muito doce... O senhor já notou isso? Esse homem era a minha brisa de uma noite quente. Em qualquer ambiente em que eu estivesse e ele entrasse, era como se uma luz especial escapasse de mim, tornasse tudo mais claro, meus olhos adquiriam outros brilhos... Eu vivia. Amava-o com tal força que nem notava mais. Era parte de mim amá-lo, era como ter o coração batendo e o sangue circulando nas veias. Como sentir fome, sede, frio, calor... Não era uma exceção...
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(recordando) Afastei-me de todos, claro. Aquele canto em que nós vivíamos bastava. Supria. Nosso amor descobria seus próprios passos, girava em torno de si mesmo, crescia como se fosse uma árvore numa floresta, sem precisar de adubo. Era bom sentir o sol das carícias de suas mãos, enfrentar as chuvas e os raios das discussões, as tempestades das brigas... Não cuidávamos, não nos vigíavamos. A população de todo o planeta tinha se reduzido a nós dois. (escuta uma pergunta) Não, não tivemos, nunca calhou. Foi melhor. Um filho ocuparia espaço demais naquela casa, na nossa vida... Mas também não tenho certeza, digo isso porque a coisa foi assim, aconteceu sem filhos. Se tivesse nascido algum, talvez minha opinião fosse outra. Talvez eu passasse a ver o mundo... Talvez ele estivesse vivo... (olha para o chão em volta meio assustada) Acho que não ficou marca de sangue... (acalma-se) Paris continuaria um sonho distante, inatingível... (sorrindo nostálgica) Foi uma fotografia de Paris. As casas à beira do Rio Sena, uma ponte ao longe... Quando vi aquela imagem, não me lembro de quem me mostrou, não consigo lembrar... Quando vi a imagem foi como se algo quebrasse... Não notei na hora, não percebi... Foi uma fresta minúscula, quase invisível, que se formou no aquário que eu era... A água começou a escapar lentamente, não me dei conta. Não nos demos conta, eu e ele. Aparentemente, tudo era igual, continuávamos nos bastando. Mas aquela imagem de Paris e suas pontes, seu rio, aquela imagem pairava sobre nossos beijos, nossa cama. (impaciente, fala para o morto) Como foi possível não perceber? A cegueira é a pior das deformações, a cegueira do espírito, a escuridão da ingenuidade, o breu dos tolos... Dos que acham que tudo está igual, que nada muda, que o tempo passa e deixa, no máximo, duas rugas e alguns fios brancos... (tentando se explicar) Porque, se notássemos o que ocorria, talvez desse tempo de... não sei, é claro, é uma hipótese, uma idéia de salvação depois do dilúvio, mas... Talvez houvesse tempo para consertar a fresta, tapá-la, vedar a saída da água... Não deixar que se tornasse um deserto... (olhando o pintor) Ele? Muito menos. Acho que até o final, até quase o final, não se deu conta. Não é fácil, senhor pintor. Há poucos momentos tão difíceis na vida... Reconhecer que o amor acabou. Admitir que a criança de passinhos trôpegos era agora um velho entrevado, à espera do último suspiro... A agonia do amor, a decomposição desse sentimento que antes nos iluminava... (escuta o pintor, recompõe-se) Quem não duvida, por um instante que seja, do diagnóstico do médico que nos dá a notícia de uma doença fatal? É assim quando, um dia qualquer, notamos que o amor se foi. Que ele está por instantes. Duvidamos, nem mesmo formulamos, em silêncio, conosco, a simples frase: “Acabou”. É só um arrepio de frio num dia quente de verão. É como se fosse um bilhete que chegou a nossas mãos por engano. Sem remetente. Rasgamos o papel, jogamos no fogo para que mal sobrem as cinzas... “Acabou”. A palavra continua ali, escondida, um rato faminto e de olhar assustado, a nos vigiar de sua toca... Usamos de todos os meios conhecidos para evitar o final. Que estupidez... Recuperar o amor agonizante, trazê-lo à tona depois de haver engolido tanta água, inchado e pesado... Se houvesse aulas para alguém tornar-se demônio, essa com certeza seria a lição mais cara do inferno... A ressurreição da paixão... O que antes era tão fácil como abrir e fechar os olhos agora se torna uma desesperada luta contra o tempo... Um ferido que tenta subir contra a corrente por um rio caudaloso... Esforço inútil.
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Feitas quase sem se dar conta, as pequenas feridas gangrenam... A navalha do amor moribundo é enferrujada, infecciona, devora a carne da alma... Tremia à noite, em minha cama, de tanto medo. Medo de saltar de uma margem à outra do rio sem passar pela ponte, de cruzar a fronteira e não cumprir a formalidade burocrática da passagem... Saber que todo aquele amor poderia, num piscar de olhos, traduzir-se em ódio, em rancor, em fúria... Um moribundo que se prende a um fiapo de vida por temer as torturas do inferno... Posso tomar um copo de água? O senhor também quer? (sai da posição, toma água; em vez de voltar à posição, ajoelha-se ao lado do morto, tomalhe a mão, beija-a, acaricia o próprio rosto com ela) Quando o mesmo sentimento que prendia os dois amantes acaba por igual... às vezes, acontece... talvez doa menos, talvez seja uma morte mais suave, durante o sono... Mas quando é uma amputação feita só num dos lados... Eu não sei o que é pior. Sentir que seu amor pelo outro está se desfazendo? Saber que a pessoa por quem você ainda seria capaz de rasgar o próprio peito já não o ama mais? Não sei, não sei, foram meses e meses de repetição dessa pergunta sem obter uma resposta ao menos que satisfizesse e esclarecesse... Sentir-se desamado é um castigo... Mas é igualmente daninho saber que o outro sofre porque você não o ama mais... Busquei orações, rezas, feitiços, sortilégios... Nada! Nada nos livra desse malestar... (tenta se acalmar, respira e volta à posição do quadro) Decidi que morar em Paris seria a única solução. Ele não quis. Eu já sabia desde o início que ele não iria querer, sabia de sua resistência a sair daqui... Ele queria a todo custo salvar o que ainda chamava de nosso amor... Iludia-se... (fala mais alto, como se fosse para o morto, com certa raiva) Ele nunca teve coragem de chegar à beira do leito onde agonizava o quase cadáver do que nos uniu... E eu sabia que ele não pagaria o preço de sair de seu país, de seu povo, de sua origem. Era alto demais pra ele. Torturei-o com isso. “Se me amasse mesmo, iria comigo a Paris”. “Eu não posso, eu não posso”, ele murmurava, quase chorando. E eu ria...(Senta-se repentinamente, como se tivesse perdido as forças) Ria tanto de seu desespero... Eu queria forçá-lo a dizer “Vá, não me aborreça mais, vá de uma vez e esqueça que um dia...” Minha covardia me impedia de confessar o fim de tudo. Queria que ele tomasse consciência, tomasse a decisão, tirasse das minhas costas o peso daquela morte... Ao mesmo tempo sabia que, depois, nunca mais eu poderia amar outro homem. Não com a mesma força, não com a mesma loucura. Estava dizendo adeus a um sentimento que nunca mais tornaria a experimentar...Eu sabia que, se ele me mandasse embora, eu choraria pelos cantos, pelas ruas e praças, exporia a minha dor de mulher rejeitada, para que todos dissessem “vejam o que aquele canalha fez dessa mulher”. Não suportaria arcar com o peso de mandá-lo eu embora, de arrastar a fama de desnaturada, de cruel... (ainda sentada, volta-se para o morto, com raiva) E, no entanto, o exercício de crueldade a que nos forçávamos era o pior de todos! (Levanta-se, vai para a porta como se fosse embora. Põe a mão na tranca, mas pára) Hoje quando cheguei aqui ele... acho que já me aguardava. Adivinhou pela maneira que bati à porta que eu já havia me decidido. Mas o covarde retardava a frase. Fiz de tudo, só faltei ajoelhar-me e implorar: me mande embora, me tire de sua vida, me escorrace, para que eu possa ir sem o peso desse remorso... Está aqui o bilhete do trem, eu dizia, olhe, há um lugar marcado para mim nele, mas não há como levar essa parte de nossa vida... Fique
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com ela, guarde-a consigo, eu quero renascer no caminho de ferro, cruzar a fronteira como uma alma ainda não batizada, solte de uma vez essa amarra que me prende! (como que chorando) Eu disse tudo isso a ele aqui, não faz muito tempo, talvez os gritos ainda estejam se debatendo de encontro às vidraças... “Pode ir”, ele disse. “Vá”. Falou baixo, com sua voz grave, a mesma entonação com que dizia antes “Ah, eu te amo, mulher, eu amo esse teu corpo, esse teu cheiro, esse teu jeito de se mover...” e quando ele dizia isso, antes, eu sentia algo se desprender de mim, eu mordia os lábios e me sentia... (descobre o morto de vez; olha-o) Foi estranho, aquela voz que antes me amava estar me mandando embora... Por um instante, tive medo da solidão, do abandono. Um instante. E ele dizia: “Vá, mas me mate antes”. Eu não compreendia. E ele repetia: “Me mate, faça esse último favor, mate-me logo, antes que perca o trem, não hesite”. Não! “Eu ainda te amo muito”, ele dizia, “todo o amor que havia entre nós concentrou-se em mim, duplicou-se e tornou-se um fardo impossível de carregar sozinho. Não precisa levá-lo consigo, vá com Deus, vá em paz, mas me alivie desse peso. Mate-me, é mais fácil”. Mate-se você, eu disse, e ele: “Não tenho coragem. Não tenho força para quebrar o vaso onde guardei o amor de duas pessoas”. Eu não queria entender. “Tome esse punhal, para você será fácil manejá-lo, você está liberta desse amor, suas mãos estão livres dessa corrente, você pode empunhar essa arma e enterrá-la no meu peito...” (Ela apanha novamente o punhal, fica ao lado do morto, exaltada) Eu não queria, não era assim que eu queria... Balançava a cabeça, nem falar eu conseguia. E ele mandando, ordenando, “me mate, me mate logo”... Não tive outra saída a não ser obedecê-lo. Eu sempre o obedeci. Ele prendeu o punhal em minha mão, acariciou-a como quem vai beijar e guiou-a até o peito, até o coração. Enterrei o punhal de uma só vez, um golpe único, sem hesitar. Matei-o. Tinha de obedecê-lo, tinha o trem, os trens nunca nos esperam. Ele ainda teve tempo de murmurar “Eu fui feliz com você”... e morreu. “Eu também”, eu respondi e fechei-lhe os olhos. Não, não era assim que eu pensava acontecer. Mas precisou ser feito de alguma maneira e ele teve a gentileza derradeira de me tirar o peso da despedida. Eu posso partir agora. Eu sei que em Paris a vida será outra. Mais leve, porque não haverá ninguém arrastando uma dor pela minha ausência. Não haverá quem sinta minha falta por aqui. Não haverá por um só segundo alguém que pare e pense: “Aquela mulher, o que estará fazendo?” (faz uma pequena pausa, com os braços estendidos ao longo do corpo, o olhar fixo para o pintor) Terminou? Não há mesmo nenhuma mancha de sangue que possa me denunciar? Posso partir agora? Os trens, o senhor sabe, não esperam ninguém. Então, adeus. (fica parada na mesma posição do quadro. Luz se apaga) FIM
Mário Viana Março de 1997