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OS QUE VÊM COM A MARÉ
Texto de Sérgio Roveri
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MULHER – em torno de 50 anos HOMEM – em torno de 50 anos VIZINHA – entre 35 e 40 anos JOVEM – 20 anos
Cenário rústico, em que se sobressai muito o uso de madeira. Tanto nas paredes e telhados quanto nos objetos de cena. Algo que pode desabar a qualquer momento. Mulher com binóculos olha pela janela. Jovem deitado e imóvel, de casaco, em uma cama na lateral. Homem, com um rádio na mão, abre e fecha velhas gavetas. Frio e vento.
PRIMEIRAS ONDAS HOMEM Por que a gente não é capaz de encontrar uma coisa que sabe que tem? Uma coisa que você viu ontem, ou em outro dia qualquer. Num dia em que você não precisava dela. E então você disse: ah, é aqui que você está. É bom saber, porque quando eu precisar de você, é aqui que você está. E agora que precisa. MULHER Eu vou me resfriar se ficar mais tempo aqui. Preste um pouco de atenção em mim. Você percebeu como o vento está soprando forte na nossa direção hoje? Ou sempre soprou? A praia está tão vazia. Ninguém se arrisca. Você viu alguém quando foi dar sua caminhada hoje pela manhã? Você já deu sua caminhada de hoje, não deu? Eu o chamei várias vezes, você não ouviu? Você devia estar caminhando quando eu o chamei. Eu precisava muito falar uma coisa com você, uma coisa tão importante. Eu cheguei a pensar em ir atrás de você na praia. Mas então o vento. (Olhando para o jovem) E eu não quis deixá-lo aqui sozinho, você sabe como ele fica nestes dias de vento forte. Eu o agasalhei. Você é incapaz de dizer o quanto ele parece estar bem, assim agasalhado. Você está procurando alguma coisa? HOMEM Esta casa é pequena. As coisas não poderiam sumir como somem aqui. Eu imagino como seria a nossa vida se nós morássemos numa casa grande, numa casa com muitos armários e gavetas. Você precisa me lembrar de consertar o telhado. Quando chegar a primavera. Não agora, na primavera. Você precisa me lembrar disso. MULHER
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Não era isso que eu ia dizer quando você foi dar seu passeio de manhã. Eu penso que era algo que não poderia esperar tanto tempo. HOMEM Eu vou consertar este telhado com madeiras novas. Eu não sei por mais quanto tempo ainda eu poderei subir num telhado, com pregos e martelos. É bom que eu consiga fazer um serviço caprichado. Talvez no outro ano eu já não consiga mais ficar em cima de um telhado, martelando por horas a fio. Você sabe, o meu joelho. Ele não dobra mais. Ele ainda dobra um pouco, para ser sincero. Mas já não dobra mais como dobrava. Quando se é jovem. MULHER Eu gosto de olhar para você com estes binóculos. Você lá longe, e me parece tão grande e tão perto. É diferente da nossa vida aqui, quando você está tão perto e no entanto. HOMEM Quando se é jovem, você é capaz de se dobrar com tanta facilidade. E então um dia o inverno chega e você já não consegue sequer subir em um telhado para dar umas boas marteladas. Quando um homem já não consegue mais consertar seu próprio telhado, talvez tenha chegado a hora de ele, de ele... Diabo, onde é que elas estão? MULHER (Mostra o binóculo) Eu acho que nós não precisávamos ter comprado isto. Não tem nada nesta janela que eu queira ver maior, ou com mais nitidez. Ou mesmo mais perto. Além de você. Mas você agora mesmo está tão perto. Talvez nós devêssemos ter comprado algo que fosse mais útil. Você sabe como seria bom nestes dias de vento ter um...Ao menos para...A gente podia se sentar em torno dele e conversar por horas a fio. E, quando a gente se desse conta, já teria amanhecido. E só então nós iríamos dormir. Nós iríamos dormir nos conhecendo um pouco melhor. HOMEM Eu preciso pensar um pouco. Eu devia estar aqui quando eu as vi. Então eu caminhei para lá e pensei: é ali que elas estão quando eu precisar delas. Eu tenho de registrar isso. Você andou mexendo aqui? Eu precisava saber se a balsa vai fazer a travessia com este vento todo. Só o rádio pode me dizer isso. Você sabe, não havia ninguém na praia pela manhã. Ninguém para quem eu pudesse perguntar. Qualquer um que ficasse por ali seria arrastado. Às vezes é bom ter um joelho que já não dobra mais. Se alguém me visse ia pensar que se tratava de um poste, de um alicerce também, de qualquer coisa que não se verga mais mesmo com este vento. O rádio está mudo. Como eu vou saber se a balsa virá ou não. MULHER
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Elas estão comigo. Aqui, nesta lanterna. (Acende a lanterna e aponta para ele) Eu preciso mais delas do que o seu rádio. Se a balsa chegar, ele vai precisar encontrar a nossa casa. Eu vou fazer alguns sinais. Alguns sinais de luz para ele saber que está tudo bem e então ele vai poder caminhar pela areia encharcada e nos encontrar aqui. O que o seu rádio pode fazer nesta situação? Se a balsa chegar, nós saberemos. Eu vou ficar com elas. HOMEM Mas são minhas estas pilhas. Eu as comprei da última vez em que fui à cidade. Eu as trouxe para o rádio. Você mesma disse: traga pilhas novas porque eu quero ouvir outras vozes nesta casa. MULHER Mas hoje nós só precisamos de uma lanterna, não de um rádio. A balsa vai fazer a travessia, eu sei. Agora ela sempre faz. Você já devia ter se acostumado com isso. Me deixe ler mais uma vez o telegrama. Eu quero ter certeza de que é hoje. HOMEM É hoje. MULHER Eu quero ter certeza disso. Eu já estou há tanto tempo nesta janela. Eu digo que você devia prestar mais atenção em mim aqui. Eu posso cair doente a qualquer momento e você...e você nem sabe onde as coisas estão. Não é por mim que eu digo isso, é por você. Mesmo doente eu vou ter de me levantar e dizer para você: olhe, é aqui que as coisas estão. Por favor, não se esqueça. Mas você vai se esquecer. Vai se esquecer de onde as coisas estão e vai se esquecer de que eu estou doente também. E, no fim de algum tempo, eu mesma já terei me transformado em apenas mais uma coisa que você já não se lembra mais onde está. HOMEM Você devia se arrumar para ele. Para a chegada dele. Você devia usar alguma coisa que você nunca usou. Ou alguma coisa que ao menos ele nunca viu você usando. Imagine como seria bom se ele pudesse olhar para você e, por um instante que fosse, não tivesse certeza de que era você que ele estava vendo. Eu acho que ainda dá tempo. Se você se apressar. É uma sensação tão boa quando alguém olha para você e fica um tempo pensando se você é você mesmo. Não por que você engordou ou envelheceu, não isso. Mas por que você está melhor, mais jovem ou ao menos usando roupas novas. Pena que haja tão pouca gente aqui para nos ver. Mulher caminha até o jovem deitado e vasculha os bolsos do casaco. Encontra um telegrama velho e amassado.
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MULHER “Chego na balsa domingo”. Nosso filho. Ele sempre foi tão bom com as palavras. Você se lembra. Os outros garotos, não. Os outros garotos diziam coisas que você tinha de pensar uma, até duas vezes para tentar compreender. E ainda compreendia errado. O que o nosso filho dizia estava dito. Eis um menino que sabe escolher as palavras. Era isso que diziam dele quando ele passava. “Chego na balsa domingo”. Ninguém, ninguém em toda esta vila pode dizer que não entendeu isso. Você acha que eu preciso ler mais uma vez? Mulher deixa o telegrama sobre a mesa. HOMEM Ele poderia me ajudar a consertar o telhado. Você já pensou nisso? Eu poderia segurar os pregos com a boca e apenas apontaria as madeiras para ele. E ele levaria as madeiras para mim até o alto, até o alto do telhado. E nós não precisaríamos conversar muito, porque eu teria pregos na boca e ele estaria muito cansado, sem fôlego, de tanto levar as madeiras até o telhado. Este é o tipo de silêncio que eu gosto. O silêncio que envolve um homem cansado e um outro que tem pregos na boca. Mesmo que nós tivéssemos um mundo de coisas para contar, ali não seria o momento.Você já pensou no que ele vai dizer quando notar que os meus joelhos não dobram mais? É uma coisa que eu não conseguirei esconder dele. Talvez ele pense que as coisas não estejam indo muito bem por aqui depois que ele foi embora. Talvez ele pense isso. Mulher sai de cena e volta trazendo um vestido de noiva nas mãos. MULHER Há muito tempo que eu preciso perguntar uma coisa para você. Agora eu me lembrei o que é. Eu vou perguntar antes que ele volte. Por que você me trouxe para cá? HOMEM Ora, ora...que pergunta...havia esta casa. Era uma casa com telhado decente. Acho que naquela época não ventava tanto, ventava? E havia eu. MULHER E por que eu vim? Foi só por isso que eu vim? Devia haver algum motivo a mais, algum motivo que se perdeu com o tempo. Você me dizia, agora eu me lembro. Você me dizia que estava me trazendo para cá por causa de uma coisa...de uma coisa que eu gostava de ouvir. O que era mesmo? Com o tempo você parou de dizer. Você não se lembra mesmo? Se você se lembrasse ao menos com que letra começava aquela coisa, o restou eu adivinharia. (PAUSA) Eu posso apostar com você, agora mesmo, que eu ainda caibo neste vestido. Eu não sou daquelas mulheres que crescem com o passar dos anos. Desde que você me conheceu, eu
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tenho sido a mesma, até nas medidas. Se eu o vestisse agora, bem aqui, e você me visse de noiva, você acha que nós teríamos uma vida inteira de azar pela frente? Talvez não seja bom eu vesti-lo na sua frente. Se você puder sair um pouco e voltar em cinco ou dez minutos. Aí eu já estarei pronta. Acho que cinco minutos me bastam. Homem sai. Mulher não veste o vestido; coloca-o sobre uma cadeira. Senta-se na outra e fica a observá-lo. Homem volta com um violino sem as cordas. HOMEM Eu também preparei algo para a chegada dele. MULHER Aquela canção? HOMEM Aquela. Homem posiciona o violino no ombro e passa o arco. Sem cordas, o instrumento não emite som algum. Ele prossegue neste movimento enquanto a mulher o olha com ternura. A sequência silenciosa dura perto de um minuto. Homem termina o movimento e, com ar vitorioso, coloca o violino no colo. MULHER É uma canção tão bonita. E você...continua a tocá-la tão lidamente que eu quase penso que é a primeira vez que eu a ouço. Mas falta alguma coisa. O que falta? HOMEM Eu cortei aquela parte triste. Eu não quero que ele se entristeça ao ouvi-la. Nós combinamos que será um dia feliz, não é? MULHER Na praia, outro dia, quando eu já estava chegando à vila. Uma mulher me perguntou o que eu mais desejava na vida. Uma mulher que veio de lugar algum, saída do nada. Uma mulher que eu nunca havia visto antes e nunca depois voltei a ver. Você sabe que eu gosto de dar atenção a este tipo de gente. Elas nos comprometem tão pouco. O seu maior desejo na vida, ela me perguntou. É bonito quando alguém nos faz pensar em coisas assim. Eu queria ter o cheiro das putas. O cheiro das putas? Isso me parece tão pouco, ela respondeu. Não acredito que seja o maior desejo de uma pessoa. Eu sei. E ainda assim eu não consigo. Filho levanta-se com dificuldade. Apanha o telegrama sobre a mesa e o coloca no bolso. Tenta caminhar para dentro da casa. Desiste. Urina em pé na sala diante dos pais
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MULHER É sua vez de limpar. HOMEM É? MULHER É. HOMEM Um dia, você ainda vai me dizer algo de novo. Algo que eu não saiba e que, com um pouco de sorte, talvez me surpreenda.
SEGUNDAS ONDAS Vizinha entra na casa. Traz um pequeno embrulho nas mãos. Circula com desenvoltura pelo ambiente como quem sabe onde estão as coisas. Olha para o rapaz, que agora está sentado sobre a cama na lateral do palco. Ele também a olha. Coloca o embrulho sobre a mesa. Abre a janela, olha para o rapaz e a fecha logo em seguida. VIZINHA O vento, eu sei. Vocês não gostam. Eu já falei tanto sobre isso com eles, mas... Eu não entendo. É o que mais se tem por aqui, e mesmo assim vocês não gostam. Eu acho isso tão perigoso: não gostar daquilo que se tem em excesso. Um pouco não faria mal a nenhum de nós. Um pouco talvez ajudasse a arejar esta casa. Quem sabe espantar algumas coisas desta casa. (Aponta para o embrulho) – Eu trouxe isso para eles. É um belo embrulho, não é? É uma coisa que eu gosto de fazer quando a ocasião exige. Eu pensei em trazer alguma coisa só para você. Mas, se é deles, é seu também. E o que eu poderia lhe dar, pelo menos por enquanto, que você ainda não conheça? Vizinha se aproxima do rapaz, assopra em seu rosto e desmancha um pouco os seus cabelos. VIZINHA Não é carinhoso isso? É só isso que o vento faria por você, talvez com um pouco mais de força. Talvez com um pouco menos de ternura, mas no final você poderia dizer que sentiu alguma coisa. Vizinha ajeita os cabelos do rapaz e o observa atentamente. VIZINHA
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Se você fosse meu. Meu filho, meu homem, meu irmão até, eu não deixaria você ficar com este cheiro de passado. Eu chego perto de você e isso me deixa feliz. Mas então é como se não fosse mais hoje. Este teu cheiro, ele... Eu gosto mais de mim assim, como eu sou hoje, mesmo que às vezes eu me assuste com o rosto que me responde no espelho. É disto que estou tentando me convencer há tantos anos e seria tão bom se você também acreditasse. Eu gosto mais das coisas do jeito que elas são agora e prefiro esquecer que nem sempre elas foram assim. Nada melhorou por aqui, não é isso que estou dizendo. É que eu já estou tão acostumada. E então este teu cheiro me faz lembrar de quando eu ainda tinha alguma esperança. De quando eu achava que ainda era possível escapar de mim e deste lugar. De quando você mesmo quase conseguiu escapar para voltar tão pouco tempo depois e do jeito que voltou. É isto que me incomoda em você. E você é tão bonito que não devia incomodar ninguém. Rapaz, com dificuldade, coloca a mão direita por debaixo da saia da mulher, e sobe com ela em direção ao seu sexo. Com a mão esquerda segura a mulher pela cintura. Acaricia a intimidade da mulher. Seu rosto se contorce e a expressão se alterna entre dor e prazer. VIZINHA Quantas vezes eu já disse que jamais voltaria aqui? Faça com calma, por favor. Eu ainda sou capaz de sentir alguma coisa. Mesmo antes de você voltar eu já dizia que era a última vez que vinha. Mas então você não estava aqui para ouvir. E agora que está, ainda é como se não estivesse. Por isso eu posso continuar dizendo infinitamente que esta é a última vez que eu venho aqui. Eu sei que estou mentindo, mas talvez não seja uma grande mentira quando não há ninguém por perto para ouvir minha pequena blasfêmia. Você está aí, eu sei. Mas você não é capaz de dizer que eu estou errada. E se não há ninguém por perto capaz de apontar os nossos erros, bom, a isso eu chamo de solidão. Faça alguma coisa diferente, por favor, eu estou pedindo. Rapaz muda os braços de posição e agora leva a mão esquerda ao sexo da mulher.Com a direita, segura a sua cintura. Ele a acaricia por mais alguns segundos. Carinhosamente, ela retira a mão dele do seu sexo e a leva até o nariz do rapaz. Ele aspira profundamente. VIZINHA Não se ofenda quando eu digo certas coisas. Veja: eu também tenho cheiro de passado. Vizinha se afasta dele. VIZINHA Obrigada.
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Vizinha tira alguns pratos do armário e os coloca sobre o colo do rapaz. Apanha um pano e começa a limpar os pratos, um a um, removendo-os do colo do rapaz e colocando-os sobre a mesa. Ele, desajeitadamente, tenta segurar a pilha de pratos que vai diminuindo. VIZINHA Eu queria ter algo de novo para te contar. Mas aqui, quem tem? Então eu não me sinto mal por isso. (Olha a janela) - Eles devem voltar logo. Eu sempre digo que eles não precisam ter pressa. Que eles saem tão pouco. Hoje eu pedi a ele para levá-la até o outro lado da ilha. Não há nada lá, eu sei. Mas é sempre bom ir até um lugar onde não exista nada. Você chega lá e se alegra com a idéia de não ter perdido nada por nunca ter ido até lá antes. É tão bom quando a gente tem esta sensação de que tomou a decisão certa. Mulher retira o último prato do colo do rapaz. VIZINHA Você ainda gosta de se sentir útil. Isto é tão bom. Vizinha arrasta uma cadeira e senta-se bem na frente do rapaz. A dois palmos de distância do seu rosto. VIZINHA Fale um pouco de você. Rapaz contorce o rosto com dificuldade, incapaz de falar. VIZINHA Eu já imaginava que era isso. Mas não se envergonhe. Eu mesma não tenho nada de novo a dizer. (Pausa) – Você é tão bonito. Eu poderia amar você. Mas antes nós temos de jantar. Vizinha levanta-se, coloca a cadeira novamente ao lado da mesa, abre a janela e olha para fora. VIZINHA Eles estão vindo. Você quer vê-los? Eu o trago até aqui. Não é trabalho algum. Você quer? Rapaz continua imóvel VIZINHA Eles são um casal. Isso não é pouco hoje em dia. Não aqui. Digam o que quiserem. Mas não deixa de ser triste ver, assim ao longe, um homem que não dobra mais o joelho. Ele não desiste. Um outro homem no lugar dele já teria desistido de andar assim contra o vento. Talvez já teria desistido de tantas outras coisas também. Quando eu saio...e vejo aquela
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pegada arrastada na praia, aquele passo que parece mais uma cicatriz na areia, eu digo para mim mesma: ele passou por aqui. Ele não desiste. (Para o rapaz) – Você não quer mesmo ver? Eu acho que você sentiria um pouco de orgulho deles. É tão bonito ver duas pessoas que estão juntas há tantos anos voltando de algum lugar. Eles estão muito perto agora. Mesmo se eu tivesse alguma coisa para contar, alguma coisa para contar só para você, eu não poderia mais. Eles iriam chegar e pedir para que eu começasse de novo. E é horrível quando você tem de começar de novo alguma coisa que não precisaria ter começado nem da primeira vez. Quando ele coloca a mão no ombro dela desta maneira... É o jeito que ele encontrou de pedir perdão. (Volta-se para o rapaz) – Está tudo bem. Está mesmo.
TERCEIRAS ONDAS O casal, a vizinha e o jovem estão à mesa. A mulher corta pequenos pedaços de peixe com as mãos e os leva até a boca do rapaz. MULHER (para o jovem) Ela veio. Eu não disse que ela viria? Você fica tão feliz nesses dias. É uma das poucas coisas que você não consegue esconder. HOMEM (para Vizinha) Você precisava ter visto. Da próxima vez, você tem de ir com a gente. Pergunte para ela. Havia tanto... MULHER Não exagere. Não havia tanto assim. Era o de sempre. As pessoas de sempre. HOMEM É. Era o de sempre. Mas mesmo assim, estava bonito, não estava? MULHER Ah, estava. É sempre bonito. VIZINHA Da próxima vez eu irei. MULHER Você promete tanto. HOMEM
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Ah, isso é verdade. VIZINHA Eu irei. Eu irei mesmo. Da próxima vez. HOMEM (para a Vizinha) Você tinha algo de novo para nos contar, não tinha? Foi por isso que você veio? VIZINHA Eu? HOMEM É. Quando nós passamos, você disse: quando vocês voltarem, eu conto. MULHER Não foi isso que ela disse. VIZINHA Não foi isso que eu disse. MULHER Ela disse: quando vocês voltarem, eu mostro. (Para o jovem) – Foi isso que a nossa vizinha disse. HOMEM (exultante) Isso. Foi isso. Às vezes, as pessoas chegam a brigar por causa de uma palavra mal compreendida. Mas não é o nosso caso. MULHER Nunca foi o nosso caso. (Para a vizinha) – Você não deve se sentir triste por não conseguir levar adiante as suas promessas. Nós continuaríamos a gostar muito de você, mesmo que você não fosse a nossa única vizinha. Isso realmente não tem importância. Nós gostamos de você. (Apontando o jovem) – Ele também gosta muito de você. Eu não conheço ninguém que saiba preparar um peixe como você. Se não fosse tão pouco, eu diria que você nasceu para isso. Silêncio VIZINHA
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Então a balsa chegou no horário? Mesmo com este tempo. Eu fico surpresa de ver como as coisas funcionam mesmo quando... HOMEM (brusco) Não há nada de mais nisso. Ela só chegou no horário. É só isso que nós esperamos das balsas, não é? MULHER O que mais se poderia esperar delas? Talvez esperar que elas cheguem no horário já seja muito. VIZINHA Eu acredito que... MULHER Uma vez eu conheci. Nós conhecemos, na verdade. Alguém que também acreditava. (Para o homem) – Eu nunca mais soube dela. Você sabe se ela... HOMEM Às vezes eu sinto falta dela. MULHER Ela foi alguém que deixou saudade. VIZINHA (timidamente) Eu acredito que há quem espere que elas tragam alguém. As balsas. HOMEM Como assim? VIZINHA Que alguém desça delas, eu quero dizer. Quando elas atracam no porto. MULHER Pode haver mesmo alguém assim. Eu não discordo totalmente disso. Existem tantas pessoas no mundo que é muito provável que algumas delas sejam diferentes. HOMEM
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Por este lado, eu concordo com você. Embora eu nunca tenha pensado nisso. Pelo menos até hoje. Jovem se engasga com o peixe. Mulher congela a mão no ar, segurando um pedaço de peixe muito perto da boca dele. Ele começa a tossir. Homem e vizinha observam o jovem tossindo. MULHER (para a vizinha, que está nervosa) Eu sei que não é delicado pedir isso, mas... Poderia ser agora? VIZINHA O quê? MULHER O que você tem para nos mostrar. HOMEM Isso. Agora me parece uma boa hora. O acesso de tosse do rapaz aumenta. Com dificuldade ele leva a mão ao peito. Bate no peito. Está ficando sem ar.Tenta alcançar o copo de água que está na frente da mulher. Mulher percebe, apanha o copo e toma ela própria a água. VIZINHA (nervosa e ameaçando se levantar para ajudar o rapaz. Homem a detém) É uma coisa de nada o que eu trouxe. Ela pode esperar. MULHER Você deve ter escolhido com muito carinho. Eu sempre disse a ele o quanto você é carinhosa, não disse? Jovem continua tossindo. HOMEM Disse. E eu sempre concordei. É muito difícil alguém ser carinhoso quando se tem tão pouco. Mas você consegue. Rapaz cai no chão. Sua dificuldade de respirar é angustiante. Os três continuam sentados. A vizinha é a única aflita. MULHER (infantil) E então? Nos mostre, por favor, nos mostre. Podemos fazer uma brincadeira. Eu fecho os olhos e tento adivinhar o que é. Nós temos tempo para isso, não temos?
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Vizinha, nervosa, entrega o embrulho para o homem. Ele abre. HOMEM (para mulher) Veja, é uma concha. Ela nos trouxe uma concha. MULHER (apanhando a concha) É uma linda concha. Não me parece ser daqui. É daqui? Mulher devolve a concha para o homem, que a deixa sobre a mesa. Homem se levanta e vai no socorro do jovem. Segura o jovem por trás e lhe dá um abraço forte, uma espécie de tranco. Dá um segundo abraço forte, quase um golpe. Rapaz cospe o pedaço de peixe que o engasgara e para de tossir. Respira profundamente, como quem acaba de ser salvo de um afogamento. Homem acomoda o jovem na cadeira e volta-se para o seu lugar. Pega a concha nas mãos e a observa cuidadosamente. HOMEM É de algum lugar por aqui. Eu já vi algumas parecidas. MULHER Mas ela não deixa de ser bonita por causa disso. Mulher leva a concha ao ouvido e faz cara de prazer. MULHER (para o homem) É possível ouvir o mar. Parece um milagre. Eu não entendo como isso sempre dá certo. Mulher entrega a concha para o homem, que também a leva até o ouvido. HOMEM É como se o mar estivesse tão perto. (Pausa) – Eu posso guardar? MULHER Por favor. Coloque junto das outras. Mas num lugar em que todos possam vê-la. HOMEM Nós precisávamos tanto de uma dessas. De uma nova, eu quero dizer. MULHER (para vizinha) Você sempre foi capaz de saber exatamente do que é que cada um de nós aqui nesta casa precisa.
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VIZINHA Como eu disse. É uma coisa tão... HOMEM Não diga isso. Você é uma mulher muito carinhosa. Eu vou guardá-la. Homem se retira com a concha nas mãos. Mulher, vizinha e rapaz ficam em silêncio por alguns segundos. As mulheres olham pelo ambiente, em busca de palavras. VIZINHA (olhando para o Jovem) Será que ele... MULHER Não se preocupe com ele. Ele foi apenas guardar a concha. Daqui a alguns minutos ele estará de volta. VIZINHA É que... Mulher levanta-se para se certificar de que Homem não irá ouvi-la MULHER Você reparou também, não é? Nós tentamos esconder de você, mas eu sempre soube que era questão de dias até você notar. VIZINHA Eu não queria, mas é que é tão...É tão cruel. MULHER Não precisa ficar encabulada. No seu lugar eu também teria reparado. Eu já disse a ele que ia ser muito difícil continuar escondendo isso de você. Você é a única pessoa que ainda vem aqui. Se alguém fosse notar, é claro que teria de ser você. Cruel? Você disse cruel? VIZINHA Eu sei que deve ser difícil... MULHER
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É muito difícil. Principalmente para ele. Para mim também é, mas para ele é uma questão de honra. É isso que você precisa compreender. Mas ele disse que vai dar um jeito. Ele prometeu fazer isso muito em breve. VIZINHA Eu também acho que...me parece muito urgente. Eu sinto que... talvez não seja da minha conta. MULHER Por favor, continue. Claro que é da sua conta. Você acabou de nos trazer um presente. Alguma satisfação você merece. VIZINHA Eu sinto que está ficando pior a cada dia. MULHER Eu entendo. Você tem um pouco de razão, sim. Nós estamos fazendo o possível para conviver com isso. Ao menos para aprender a conviver com isso. Mas então, em alguns dias como hoje, todo nosso esforço parece ter sido inútil. VIZINHA Eu não queria me sentir culpada por ter visto. Eu só...bom, eu estava aqui. Não tinha como não notar. MULHER Eu sei. Ninguém está dizendo que você tem alguma culpa. Além do mais, ele...ele prometeu resolver tudo até o próximo inverno. Ele só precisa de alguém que o ajude com os pregos e a madeira. Mulher levanta-se e pega a vizinho pelo braço. Aponta para o telhado. MULHER Mas veja você mesma. Olhe mais de perto. A situação não é tão ruim assim. Não está tão boa, eu sei. Mas você não acha que podemos resistir até o próximo inverno? VIZINHA Era disso que... MULHER Que o quê?
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VIZINHA Que nós estávamos falando? Do telhado. MULHER Claro, o telhado. O que mais seria? VIZINHA É que eu pensei... MULHER Há dez minutos você disse que acreditava. Agora você diz que pensou. Em que tipo de pessoa você está se transformando? Nós a conhecemos há tantos anos e você é tão bem vinda aqui. Por favor, não mude sem nos avisar. VIZINHA Obrigada. MULHER Você não gostaria de um chá? Nós não devemos ter, mas isso não me impede de tentar ser um pouco elegante com você. VIZINHA Eu preciso ir. MULHER (para Jovem) Ela está indo. Diga adeus para ela. Jovem observa Vizinha. Mulher faz cara de contentamento. MULHER É claro que ela vai voltar. Do jeito que você pede, qualquer um voltaria. Vizinha sai da casa. QUARTAS ONDAS Jovem na porta da casa. Bem vestido e com uma mala aos seus pés. Homem e Mulher à sua frente, observando-o com um misto de orgulho e carinho. JOVEM
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É só um emprego. MULHER Só um emprego! Olhe só como ele fala. Só um emprego! HOMEM Só um emprego! Pense em quantas pessoas daqui podem dizer isso. Eu não conheço mais ninguém. MULHER Eu também não. Entre todas as pessoas daqui, você é a única que pode dizer isso. E no entanto... HOMEM E no entanto ele está indo embora. MULHER Quando chegasse este dia, nós combinamos de dizer que... (Olhando para o homem) – Será que eu devo continuar? JOVEM Continua. MULHER Nós combinamos de dizer, eu e ele, que quando este dia chegasse, nós combinamos de dizer que criamos você para isso. JOVEM Para um emprego? HOMEM Para ir embora. JOVEM Então é o que me cabe? Ir embora. MULHER (nervosa) Não. Não foi isso que combinamos. Nós combinamos que... O que foi mesmo que nós combinamos?
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HOMEM Que um dia ele teria um emprego, iria embora e que também seria diferente de nós. MULHER Foi tudo isso? Eu pensava que era uma coisa só. É que faz tanto tempo. É possível que tenha sido isso mesmo. HOMEM Eu nunca achei que fosse tão importante você ser diferente de nós. Mas para ela... você sabe. MULHER Você prometeu que não iria dizer isso quando chegasse a hora. Você fala de um jeito que parece que eu tenho alguma culpa. Ou que a culpa fosse só minha. HOMEM Ele está indo embora. Eu precisava dizer alguma coisa. MULHER Você podia falar de tantas outras coisas. Você podia olhar pela janela e falar que o tempo está bom. Você podia falar que o mar está calmo e que a balsa vai fazer uma travessia suave. Você... você podia dizer que... que se algum dia o gato dele reaparecer, aquele gato que sumiu há tantos anos, que ele pode ficar tranquilo porque nós cuidaremos bem dele. Ou falar de como a mala dele ficou bonita e de como tudo que ele tem coube dentro dela. JOVEM Sim. Ficou ótima a minha mala. Tudo o que eu tenho coube dentro dela. Você fez um pequeno milagre. HOMEM Ela é muito boa com malas. Ela tem experiência nisso. MULHER Eu tenho. Esta já foi a segunda vez que eu arrumei uma mala. Quando ele me convidou para viver aqui, e eu aceitei, você precisa depois, não agora na frente dele, me lembrar por que foi mesmo que eu aceitei vir para cá, então foi a primeira vez que eu arrumei uma mala. E depois agora. HOMEM Você não perdeu a mão. Algumas pessoas, com o tempo, se esquecem de suas habilidades.
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MULHER Eu me esqueci de outras coisas. Às vezes, é isso que eu acho. Homem e Mulher se afastam e observam o Jovem mais à distância. MULHER (para Homem) Você é capaz de dizer quando foi que ele ficou assim? HOMEM Deve ter sido nos últimos tempos. Você se lembra de antes, como ele era? MULHER (aponta) Ele conseguia se esconder aqui. HOMEM (aponta) E ali. MULHER E até lá em cima uma vez. E nós tínhamos tanto medo de não achá-lo mais. Medo de que chegasse a noite... HOMEM (nervoso) Pare com isso. Você vai chateá-lo com tantas lembranças. Uma hora dessas ele vai se cansar de tudo isso e vai embora. MULHER (dócil) Não fale assim. HOMEM As pessoas se cansam e vão embora. Sempre foi assim. MULHER Não é verdade. HOMEM Sempre foi assim. MULHER Eu estou cansada.
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HOMEM Você não pode se emocionar. Há anos que eu lhe peço isso. MULHER Eu vou tentar me controlar. De agora em diante. HOMEM É só o que eu lhe peço. Homem e Mulher voltam a se aproximar do Jovem. MULHER (segurando as mãos do rapaz) Você me promete uma coisa? Rapaz assente com a cabeça. MULHER Se você conhecer alguém neste lugar para onde você está indo... HOMEM (resoluto) Ele VAI conhecer alguém. MULHER Eu não sei. HOMEM É claro que vai. Você mesma disse. Olhe só para ele. Você acha que alguém assim não iria conhecer alguém? Ou eu posso perguntar de outra maneira, se você preferir: você acha que alguém não gostaria de conhecer alguém assim? MULHER Eu gostaria. HOMEM Eu também gostaria. Olhe só para ele. Há tão poucos assim que é um prazer poder conhecer. MULHER (olhando fixamente para o rapaz) E então, quando você conhecer este alguém, você tem de me prometer que jamais irá dizer que tudo que você tem cabe nesta mala.
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HOMEM Não. Jamais. Mesmo que te obriguem. Você pode dizer que...O que ele pode dizer? MULHER Você pode dizer que deixou muitas coisas para trás, no lugar de onde você veio. Muitas coisas que não couberam aí e que agora ocupam muito espaço no lugar de onde você veio. Qualquer pessoa vai gostar de você se você conseguir dizer isso. Mesmo que não passe de uma mentira. JOVEM Então é só isso? HOMEM Como assim? JOVEM É só isso que eu preciso dizer? Homem olha para Mulher decepcionado. HOMEM Ele não está pronto. MULHER Eu desconfiava disso. Eu tentei alertar você, mas...Mas você gosta de dizer que eu me antecipo. HOMEM Agora é tarde. MULHER Ainda temos uma chance. HOMEM É tarde. Ele está indo embora e acha que é só isso que ele precisa dizer. MULHER (para jovem) Saia um pouco e entre de novo.
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Jovem fica parado. HOMEM Vamos! Faça o que ela está pedindo. (Baixo, para Mulher) – O que você está pedindo? MULHER (para Jovem) Saia um pouco e só entre quando eu mandar. Jovem obedece. MULHER (para Homem) Venha. Senta-se aqui. Ele já vai chegar. Homem obedece e senta-se à mesa ao lado da Mulher. Mulher assume uma postura displicente, coloca os pés sobre a mesa e olha para fora, onde está o Jovem. MULHER Hei, forasteiro. HOMEM Onde você aprendeu a falar assim? MULHER Cale esta boca. (Olhando para o Jovem fora da cena) - Você é novo por aqui, não é? É com você mesmo que eu estou falando. (Sussurrando para o Homem) – Por favor, me ajude. É isso que espera por ele. HOMEM Ah... claro. (Para o Jovem, no mesmo tom da Mulher) – Quem o mandou aqui, meu jovem? Não foi o velho Jaime, foi? É bom você ter cuidado com ele. Há muito tempo que o velho Jaime já não bate muito bem. MULHER (surpresa) Jaime? HOMEM Quieta. Nestas horas é bom recorrer a algum Jaime. (Para o Jovem) – Você está querendo o quê, meu rapaz? Congelar aí fora? MULHER (baixo para Homem)
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Mas nós estamos perto do mar... Jovem volta para a cena e fica parado em frente à mesa. JOVEM (animado) É como nos velhos tempos? HOMEM (para Mulher) Velhos tempos? Do que ele está falando? Nós nunca vimos você por aqui, meu rapaz. JOVEM (gaguejando) Mas eu...eu nunca saí daqui. MULHER Nós é que nunca saímos daqui. Você não passa de mais um forasteiro que a balsa vomitou naquele cais imundo. Mais um dos que vêm com a maré. Eram muitos? JOVEM Só eu. MULHER Então sente-se aqui. Você precisa de um pouco de companhia. Jovem senta-se, mas longe da mesa. HOMEM Você não me parece completamente sozinho. Eu garanto que você chegou com algumas esperanças. MULHER Mas isso dura pouco, meu rapaz. No mês que vem, você vai estar aqui, como todos os outros. Você vai ser apenas mais um de nós. Aposto que nós vamos encontrá-lo caído de bêbado numa noite de sexta-feira, amaldiçoando a mulher que lhe deu um pontapé na bunda. HOMEM É triste quando uma história de amor termina assim, mas é o que as mulheres daqui mais sabem fazer, meu jovem. A menos que... MULHER É, a menos que...Como é mesmo o nome do homem que o mandou aqui?
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HOMEM Jairo. JOVEM (corrigindo) Jaime MULHER Qual dos dois foi? HOMEM (sem jeito) Jaime... O Jairo abandonou os negócios. Eu cheguei a comentar isso com você no mês passado. MULHER Comentou, claro. Jaime. Isso. E o que esse Jaime prometeu a você? HOMEM Alguma coisa ele prometeu. Ninguém vem até aqui à toa. JOVEM Eu tenho um emprego. MULHER Um emprego! Veja só. Pense em quantas pessoas daqui podem dizer isso. Eu não conheço mais ninguém. HOMEM (baixo para Mulher) Você já disse isso. MULHER (corrigindo-se) Sei...sei... E o que é exatamente que você vai fazer? Jovem, orgulhoso, retira um papel do bolso e entrega para Mulher. MULHER (lendo empolgada) Mas isso não é qualquer coisa. Passa o papel para Homem. HOMEM
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Não mesmo. Você vai poder dar ordens. As pessoas vão respeitar você. Quando você chegar, elas vão fingir que estão trabalhando, caso estivessem paradas. E vão dizer: bom dia, senhor, como está? JOVEM Não é bem assim. É só um emprego. HOMEM Não é mesmo. Aqui está dizendo. (Devolve o papel para Jovem) – Veja você mesmo. Encarregado. MULHER (orgulhosa) Encarregado. JOVEM Todos lá são encarregados. Todos começam como encarregados. Depois, com o tempo... MULHER Eles dizem isso para você não ficar tão cheio de si. Quem chega aonde você chegou assim tão jovem, pode se perder pelo caminho. Eu não conheço nenhum encarregado. (Para Homem) – Você conhece? HOMEM Por aqui, nunca passou nenhum encarregado. Silêncio. Os três se entreolham. MULHER Você deve conhecer alguém muito importante. HOMEM Alguém muito influente. MULHER Para conseguir um emprego desses... de encarregado. Alguém deve ter apresentado você. Devem ter falado bem de você. Alguém deve ter escrito uma carta mais ou menos assim: Tenho a honra de apresentar a você este jovem que daria um ótimo encarregado. Cuide bem dele porque por ele eu coloco minha mão no fogo. HOMEM
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Eu já disse. Foi o velho Jaime. Ele consegue o que quer por esses lados.(Para Jovem) – Você sabia que ele casou a filha mais velha dele com um homem rico? MULHER E ela não era nenhuma mulher que um homem rico gostaria de ter como esposa. Mas quem seria capaz de recusar um pedido do Jaime? JOVEM Não foi tão difícil. Eu soube que eles precisavam de alguém, então eu telefonei. Há um posto do correio perto de onde eu moro. Um posto com telefone. Eu telefonei de lá e disse que não sabia fazer quase nada. Mas que mesmo assim eu estava disposto a vir. Então eles me perguntaram se eu aceitaria ser encarregado. Foi só isso. Parece que eles estavam precisando de muitos encarregados. Homem e Mulher se olham entristecidos. MULHER Você disse que não sabia fazer quase nada? Alguma coisa você deve saber fazer. HOMEM Alguém deve ter ensinado você a fazer alguma coisa. Olhe só para você. Um jovem tão bonito. MULHER Você não pode ter chegado aonde chegou sozinho. Eu sei que um encarregado não deve mais satisfações a ninguém. Mas deve ter havido alguém... HOMEM Mesmo um encarregado precisa ter um pouco de gratidão. JOVEM Eu sei algumas coisas, mas nada de muito interessante. Mas eles garantiram que como encarregado eu vou aprender muito. Eu posso ter um futuro. HOMEM Eles disseram que você pode ter um futuro? JOVEM Disseram.
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MULHER Esta é a coisa mais linda que eu já ouvi na minha vida. Eu gostaria de ter ouvido isso na sua idade. Talvez as coisas tivessem sido diferentes para mim. HOMEM (para Mulher) Mas quando você tinha a idade dele, as coisas eram diferentes. Ninguém costumava prometer um futuro para uma outra pessoa. Isso é uma coisa que começaram a fazer só nos últimos anos. JOVEM Se eu me esforçar muito eu posso ter um futuro. Foi assim que eles falaram. HOMEM Mas isso merece um brinde. Vamos fazer um brinde ao seu futuro. Deixe esta mala aí. Sentese mais perto e vamos brindar. Jovem deixa a mala de lado e arrasta a cadeira para mais perto da mesa MULHER Nós não temos bebida. HOMEM Não sobrou nada de ontem? MULHER Nada. Nós bebemos tudo com aquele outro rapaz que chegou, você não lembra? HOMEM Mas ele não era ninguém. Não merecia que a gente gastasse toda a nossa bebida com ele. MULHER Ele não era um encarregado, mas tinha uma boa conversa também. JOVEM E...e como são as coisas por aqui? O que se tem para fazer? HOMEM Por aqui?
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JOVEM É. MULHER Você não vai ter muito tempo para fazer outras coisas. Como encarregado você vai ter tanto trabalho que, quando o dia terminar, você vai querer apenas uma boa cama. HOMEM E isso nós podemos oferecer...uma boa cama. JOVEM Eu achava que fosse encontrar um pouco de diversão. MULHER O que você quer dizer com isso? JOVEM Ah, vocês sabem. É um lugar novo. Eu não conheço quase ninguém ainda...Pensei que aqui eu pudesse ter uma vida diferente daquela que eu levava antes. HOMEM O que havia de errado com a vida que você levava antes? JOVEM De errado, nada. Ela só era um pouco vazia. MULHER (irritada) Mas do que é que você está atrás exatamente? Você já chegou até aqui, não chegou? Já conseguiu um emprego de encarregado. Eu não sei do que é que vocês tanto reclamam. O rapaz de ontem, por exemplo... HOMEM Ele tinha uma ótima conversa, é verdade. Mas depois do terceiro trago, ele já estava falando assim como você. Vizinha chega e fica parada à porta à espera de ser convidada. Mulher, Homem e Jovem olham para ela. VIZINHA
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Que bom que ele ainda não foi. Homem e Mulher se olham. Não respondem. VIZINHA Ele. Eu queria me despedir e desejar boa sorte. Vai ficar um pouco quieto por aqui sem ele... Desde pequeno que ele nunca... MULHER (para Jovem) Quem é ela? HOMEM Quem mais poderia ser? Deve ser uma garota que ele acabou de conhecer por aqui. Ele não disse que queria um pouco de diversão? MULHER Não diga tolices. Ela é velha demais para ele. Ela podia ser uma boa garota para você, mas não para ele. Agora ele é um encarregado. Ele pode escolher. Todas as mulheres daqui, quando souberem que ele chegou... ah, eu não quero nem ver. Não é todo dia que chega alguém assim. HOMEM Por outro lado...se ela for uma garota que veio com ele... MULHER Uma garota que ele trouxe, você quer dizer? HOMEM Isso. Se for isso, você começou muito mal, meu jovem. Porque você não pode vir até aqui atrás de diversão se existe uma garota que está à sua espera. MULHER Mas olhe para ela. Se realmente ela está à espera dele... Eu não quero ser indelicada, mas ela deve estar à espera dele há muitos anos. O tempo passou para ela. VIZINHA Eu vim apenas me despedir. A balsa vai sair daqui a pouco. É nela que ele vai, não é? Eu não gostaria de ir até o cais... se eu pudesse evitar. Talvez vocês queiram dizer algumas coisas para ele e eu não precisaria estar por perto. É só por isso que eu vim. Eu vim me despedir.
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JOVEM (constrangido para Vizinha) Entre um pouco. Nós ainda temos tempo. MULHER Do que ela está falando? HOMEM Acho que ela veio atrás de alguém que está indo embora. MULHER (para Vizinha) Ah, pobrezinha. Entre um pouco. Venha conhecê-lo. Ele acabou de chegar por aqui. (Para Jovem) – Eu posso contar para ela quem você é? Jovem consente. MULHER Ele é o novo encarregado. HOMEM Você não fica orgulhosa? Tão novo e já encarregado. Foi o Jaime quem o indicou. MULHER Embora ele não precisasse da indicação de ninguém. Ele conseguiu tudo praticamente sozinho. Ele foi até o posto e telefonou. VIZINHA Eu sei. HOMEM Como você sabe? Ele acabou de nos contar. E nós ainda não tivemos tempo de espalhar para ninguém. VIZINHA Eu estava com ele no posto. Eu vi quando ele telefonou e ouvi o que ele disse. HOMEM Eu não disse que ela é uma garota que veio com ele? MULHER (para Jovem)
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Você devia se livrar dela. Você está começando uma vida nova como encarregado. É nisso que você tem de se concentrar. Uma mulher nestas horas... HOMEM (rápido) Eu penso que uma mulher nestas horas pode ajudar. Enquanto ele trabalha como encarregado, ela pode pensar em outras coisas. Eu gostei um pouco dela. Será que ela também vai ficar por aqui? VIZINHA (aproximando-se do Jovem) Tudo vai dar certo. MULHER Claro que vai. HOMEM E por que não daria? Ele mal chegou e já fez dois amigos. Agora três, contando você. MULHER Ele acabou de dizer que sabe fazer poucas coisas. Você diria isso olhando para ele? HOMEM Ele disse que nada do que ele sabe fazer é importante. Você já ouviu uma asneira maior? VIZINHA Eu acho que ele sabe fazer muitas coisas. HOMEM Claro que sabe. Nós íamos fazer um brinde um pouco antes de você chegar. Por acaso você não teria uma bebida aí com você? JOVEM (para Vizinha) Sente-se um pouco. Ainda temos alguns minutinhos. Você não gostaria mesmo de ir até o cais? Nós poderíamos ir conversando até lá. Daria tempo até de você apanhar uma concha, se quisesse. MULHER (baixo para Homem) Ele sabe como partir o coração de uma mulher. HOMEM
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Sabe mesmo. Com quem ele teria aprendido? MULHER (triste, encarando Homem) Não me obrigue a dizer. HOMEM É um talento que ele tem. Aposto que nasceu com ele. VIZINHA (para Jovem) Ele vai ser o jovem mais lindo da balsa. MULHER A balsa costuma partir tão vazia... Mas ele vai, sim. Vai ser o mais bonito da balsa. HOMEM Olhe só para o colete dele. VIZINHA E mesmo a mala. Olhando daqui, me parece uma mala tão bem-feita. JOVEM Não é mesmo? É uma ótima mala. Tudo o que eu tenho na vida coube dentro dela. Mulher e homem se encaram. Silêncio. Jovem se dá conta do que disse. Vizinha permanece alienada. MULHER Às vezes, uma coisa tão pequena. HOMEM Uma coisinha de nada. MULHER E tudo que você fez na vida desmorona. Mulher começa a sair de cena. HOMEM Espere. Eu vou com você. (Para o Jovem e Vizinha) – Eu vou com ela. Não é sempre que, para ser sincero, é muito raro ela precisar de mim. Eu penso que hoje é um desses dias.
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Jovem e Vizinha se levantam à saída do Homem. Quando ele desaparece, os dois voltam a se sentar. VIZINHA (cautelosa) Então é... é assim que vocês preferem encarar? JOVEM Dentro das possibilidades... VIZINHA Um emprego de encarregado? JOVEM Eu não vejo problemas. É algo que eu poderia fazer, se fosse o caso. E o que importa é que... é que eles ficaram felizes. VIZINHA Isso então é a felicidade? JOVEM É o que eles podem ter no momento. Por um tempo eles ficaram felizes. Se você pudesse... isso não é um pedido, é mais uma sugestão... se você pudesse não ficar tão longe deles. Ao menos às vezes, uma visita. Você sabe o quanto ela gosta de falar. VIZINHA Eu sei o quanto ela gosta de falar com você. Um pouco com ele, também. Mas com você muito mais. JOVEM Eu sei, mas... se for possível. Não precisa ser todo dia, é claro. Quando você também sentir vontade de falar. VIZINHA Mas amanhã você não estará mais aqui, e então... JOVEM E então eles vão falar sobre outra coisa. Se não for amanhã, no dia seguinte. Ou muito em breve. Eles vão aprender a falar sobre outras coisas se eles tiverem alguém para ouvir. Eu penso que é assim.
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VIZINHA E eu? Eu terei de falar sobre outras coisas também? Quando na verdade talvez eu só queira ficar quieta. Se eles vierem me procurar, e você sabe que eles virão, sobre o que eu vou ter de falar? Quem sabe inventar uma promoção para você... Dizer também que eu estou muito feliz de saber que agora você já é chefe dos encarregados. JOVEM Não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã trará as suas preocupações. Basta a cada dia a própria dificuldade. VIZINHA Não faça isso. JOVEM Mateus, capítulo 6... VIZINHA Se eles preferem assim, mas não você. JOVEM Versículo 34... Jovem dá um caloroso e prolongado abraço na Vizinha. Ele chora. Ela, de forma maternal, desliza as mãos sobre suas costas e depois bate de leve em seu ombro. Mulher e Homem retornam com roupas um pouco mais elegantes e observam a cena com curiosidade. Vizinha e Jovem não os veem. VIZINHA Quando você nasceu, eu já era mulher. Jovem dá um riso curto e enxuga as lágrimas. VIZINHA E vou continuar a ser mulher agora que você vai embora. E eu sempre achei que, em alguns momentos da vida, deveria haver um intervalo na nossa humanidade. Eu poderia acordar sendo um peixe amanhã, uma gaivota, ou mesmo uma cadela com as tetas inchadas. E só voltar a ser mulher daqui a alguns meses, daqui a alguns anos, quando eu já tivesse me esquecido de tantas coisas. Quando eu não tivesse mais vontade de morder os meus próprios braços. Mas amanhã eu vou acordar mulher – e não existe nada mais triste na vida de uma pessoa.
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MULHER Eu já estou pronta. HOMEM Eu também. Vizinha e Jovem se recompõem e se afastam um do outro. JOVEM (para Vizinha) Você não vem mesmo com a gente...até a balsa? Vizinha acena negativamente com a cabeça. HOMEM Nós já somos três. É um bom número para ir embora. MULHER É bom que ela fique. Ela fala coisas estranhas. Eu não sei o que passa pela cabeça dela. VIZINHA (segurando o braço do Jovem) Se você precisar de alguma coisa, se em algum momento você sentir que... MULHER A balsa não vai esperar. Os três começam a sair de cena. Mulher e Homem excitados. Jovem com passos deprimidos. Quando eles saem, Vizinha senta-se à mesa, esconde o rosto entre as mãos e solta um grito desesperado. ÚLTIMAS ONDAS Trilha sonora e iluminação ajudam nesta passagem de tempo. Vizinha, sentada na mesma posição da cena anterior, prende o cabelo, retira uma possível maquiagem do rosto e assume uma postura mais entristecida, que a envelhece um pouco. Homem e Mulher voltam, usando a mesma roupa da primeira cena. Um facho de luz, a critério da direção, pode servir para indicar o buraco no teto da casa, sugerido logo no início. Os três estão sentados ao redor da mesa. VIZINHA (voz cansada) Todo mundo recebeu um igual. Isso não significa nada.
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MULHER Claro que significa. O nosso é diferente. O nosso foi entregue aqui, nesta mesma porta. HOMEM E foi ele quem enviou. Ele era o único que estava fora. Quem mais se daria ao trabalho de nos avisar? VIZINHA Nem um telegrama é. Eu nem sei como chamar aquilo. MULHER É um telegrama. Está escrito nas costas: te-le-gra-ma. VIZINHA É um anúncio, uma propaganda, não sei. Todo mundo recebeu. HOMEM (indo para o interior da casa) Eu vou lá dentro buscar. Eu vou mostrar para você o quanto você está errada. VIZINHA (autoritária) Chego na balsa domingo. Homem para e olha para Vizinha e depois para Mulher. MULHER (surpresa) Quem mostrou para você? (Para Homem) – Foi você, não foi? Por que você precisa dividir com ela tudo que acontece aqui? Nós já temos tão pouco. Todos os dias eu lhe peço: por favor, não divida o que não é suficiente nem para nós dois. O telegrama era para nós. Se ele quisesse contar para ela que estava voltando, teria escrito para ela também. Mas foi para nós. Só para nós. VIZINHA (indo até a janela) Quando a balsa começou a circular também aos domingos, todos aqui recebemos um igual. Foi ideia dos funcionários do cais. É um jeito novo de avisar, eles disseram. Um jeito diferente. Todos leram, amassaram e jogaram fora. Talvez tenham achado graça, quem vai saber. Mas vocês guardaram. MULHER
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Claro que guardamos. Era um telegrama. Eu nunca tinha recebido um telegrama antes. Não é uma coisa que você leia e jogue fora. E muito menos ache graça. Nós não achamos graça nenhuma. HOMEM Nós ficamos felizes, isso sim. MULHER Ninguém precisa ser muito inteligente para saber quem tinha mandado. HOMEM Foi o que eu disse a ela. É como somar dois e dois. Ele estava fora. MULHER E então chega um telegrama. HOMEM Um telegrama que diz: chego na balsa domingo. Ora essa. Queria ver se você teria coragem de amassar e jogar fora. MULHER Ela fala assim porque não tem ninguém distante. Ninguém que escreve para dizer que está para chegar. Vizinha volta para a mesa. Senta e encara Homem e Mulher com expressão derrotada. VIZINHA Vocês precisam fazer alguma coisa. Pausa. MULHER Esperar já é alguma coisa, não é? HOMEM No nosso caso tem sido. VIZINHA Alguma coisa de verdade. Vocês precisam ir buscá-lo.
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HOMEM Mas se ele disse que viria. MULHER Ele sabe muito bem como se virar sozinho. VIZINHA Já não sabe mais. Isso foi antes. MULHER Você não pode vir até aqui e dizer o que nós temos de fazer. HOMEM Nós nunca dissemos o que você tinha de fazer. MULHER Nunca. Embora nós nunca gostamos das coisas que você faz, nós nunca dissemos para você fazer as coisas de outro modo. HOMEM E agora você senta-se nesta mesa e acha que pode nos dar ordens. VIZINHA Eles telefonaram novamente hoje. A situação piorou ainda mais. HOMEM (para Vizinha, mudando o rumo da conversa) Você sabe que ela tem um diário? MULHER Eu não disse? Por que você quer compartilhar tudo com ela? HOMEM Ora, mas se você tem um diário, é para compartilhar. Quem seria louco de escrever um diário sem a esperança de que ele fosse compartilhado algum dia? VIZINHA Eu não sabia. HOMEM
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Desde que ele foi embora para trabalhar de encarregado... VIZINHA (murmurando) Ele foi embora para se tratar. MULHER O que foi que você disse? HOMEM Não me interrompa. Desde que ele foi embora, ela começou a escrever um diário. Até onde eu sei, ela não deixou de escrever um único dia. Ou deixou? Porque às vezes eu saio e então não sei o que ela faz aqui. MULHER Eu escrevi todos os dias. Na verdade, eu deixei de escrever um único dia... HOMEM Não diga isso. MULHER Foi um dia só, uma única vez em que eu não estava bem. Mas no dia seguinte eu recuperei. Eu me lembrei de tudo o que aconteceu no dia anterior e então foi como se aquele dia ainda fosse ontem. Porque ficou perfeito. Todos os dias estão ali, registrados. HOMEM Leia para nós. VIZINHA Não. Não precisa. Não é uma coisa que a gente possa pedir. MULHER Mas ele me pede tão pouco. Eu não me incomodo se de vez em quando ele me pede algumas coisas. Assim eu me lembro de que ainda somos dois. HOMEM Então leia para nós. Mulher sai para buscar o diário. VIZINHA
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Eu preferia que ela não fizesse isso. É muito íntimo, é melhor eu ir embora. HOMEM Mas eu quero saber o que ela tanto escreve. Sabe? Foi bom ela ter feito isso. Ter levado tão a sério um diário. Ajudou a passar o tempo. Ela quase não sai Mulher volta segurando o diário com as duas mãos contra o peito. Age como se carregasse um tesouro, tão valioso quanto frágil. VIZINHA Eu estava dizendo para ele que você não precisa mesmo fazer isso. É uma coisa tão delicada de se fazer. MULHER Mas eu posso fazer isso. Eu quase faço questão. Mulher começa a abrir o diário com muito carinho. Olha orgulhosa para Vizinha e Homem sentados à mesa. MULHER Eu comecei no dia em que ele foi embora. E escrevi uma página para cada dia que ele esteve distante. Posso começar? (Pigarreia e lê cerimoniosa) – Primeiro dia. (Vira a página e olha para eles) – Mais um dia. (Vira a página e olha para eles) – Mais um dia. (Vira a página e olha para eles) – Mais um dia... (Vira a página e olha para eles) – Um outro dia... Homem olha para ela com carinho e ternura. HOMEM Há quase um ano que ela faz isso. Eu não sei como ela é capaz de se lembrar de tantas coisas, de tantos detalhes que qualquer um... MULHER Eu só observo, guardo comigo e depois anoto aqui tudo que aconteceu. (Pausa) - Às vezes, eu acho que preciso descansar um pouco. VIZINHA Eles não podem mais ficar com ele lá. Mulher fecha o diário e senta-se à mesa, contrariada. MULHER
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Você voltou àquele assunto? Depois de eu ter me exposto tanto. VIZINHA Eles precisam... eles exigem que alguém vá buscá-lo. HOMEM Eles não devem ter tantos encarregados assim para dispensá-lo sem mais nem menos. VIZINHA Não tem mais nada que eles possam fazer por ele. Eles querem que vocês vão buscá-lo para que ele possa...para que ele possa ficar aqui. Com vocês. Eles dizem que é cruel mantê-lo lá. Que ele seria mais feliz aqui. HOMEM Sei... talvez eles estejam fechando a fábrica. MULHER É uma pena, porque parecia ser um negócio tão bom. Vizinha levanta-se para sair da casa. Ao chegar a porta, volta-se para eles. VIZINHA Seria bom se vocês fossem o mais rápido possível. Amanhã mesmo, talvez. Eles pediram para que eu fosse muito clara com vocês. Não há mais nada a se fazer. Isso vocês entendem, não entendem? Homem e Mulher se olham. VIZINHA Ele não tem mais ninguém. Na verdade, vocês sabem que nunca teve. Vizinha sai. Homem e Mulher se olham por alguns momentos. MULHER Que roupa a gente deve usar numa ocasião como esta? Quando vai buscar alguém? HOMEM Nós vamos? Você já decidiu? É melhor pensar um pouco. Você sempre disse que nós nunca fomos bons em decisões rápidas. MULHER
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Ah, eu acharia bom. Ela pediu com tanto jeito. Eu não tenho como negar. Se nós não formos, com que cara eu vou olhar para ela quando a encontrar no...ou naquele outro lugar em que ela gosta tanto de ir? HOMEM Você está certa, claro. Eu confesso que fiquei com um pouco de pena quando ela disse que ele não tem mais ninguém. MULHER É uma coisa tão horrível de se dizer sobre uma pessoa. Se eu conhecesse alguém assim, alguém que não tivesse mais ninguém, eu acho que guardaria segredo. HOMEM Nós poderemos ir amanhã mesmo, se você quiser. MULHER Amanhã me parece ótimo. Nós poderemos ir assim que eu terminar de escrever no diário. Que dia cheio nós teremos. HOMEM Nós podemos ir cedo então, logo cedo. A tempo de voltarmos amanhã mesmo. Eu não gosto de deixar esta casa vazia. MULHER Talvez eu faça um café. É uma viagem, afinal. HOMEM E depois... e depois quando nós voltarmos, você sabe, nós não temos nenhum outro compromisso. Não que eu me lembre. Mas é você que é boa nisso... MULHER Você vai precisar ir até a cidade. Nós estamos sem pilhas. HOMEM É verdade. E eu gostaria tanto de consertar o telhado também... MULHER Mas isso nós podemos fazer depois.
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HOMEM Claro. O telhado pode ficar para depois. MULHER E seria tão bom se você me trouxesse uma lanterna da cidade. Não é um luxo meu. Os dias estão ficando escuros mais cedo este ano. HOMEM Você me arranjou tantas coisas para fazer. Eu pensei que já estivesse livre. MULHER Mas é só isso. Depois estaremos livres. HOMEM E então ... e então nós poderemos enfim esperar o nosso menino? MULHER O nosso menino. Ele nos escreveu. Com tanta coisa para fazer e ele ainda encontrou tempo para nos escrever. HOMEM Chego na balsa domingo. MULHER Outro dia mesmo ele foi, e já está voltando. HOMEM Olha... MULHER Diga. HOMEM Por um momento, por um momento apenas, eu pensei que nós não fôssemos agüentar. Que... MULHER Não pare agora. HOMEM
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...que nós fôssemos enlouquecer. Mas foi um momento apenas. MULHER Nós fomos fortes. HOMEM Ah, se fomos. Homem e Mulher caminham vagarosamente até a janela e olham para fora por algum tempo. MULHER Só me diga uma coisa. É por ali que ele virá, não é? Homem passa a mão pela cintura da Mulher e encosta a cabeça em seus ombros enquanto a escuridão avança pela casa. MAIO DE 2011
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