Paredes Brancas

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Paredes Brancas

Dramaturgia de Sérgio Pires

Personagens: Letícia Cassandra Menina

O texto recebeu sua primeira leitura dramática, no ano de 2003, dentro do projeto Devassos na Dramaturgia, realizado no Teatro Tusp. . A leitura foi realizada pelas atrizes Eloisa Elena, Mônica Guimarães e Daniele Ferreira. A direção foi de Rodolfo David.


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Durante todo o tempo, o espetáculo transitará entre presente e passado. Chão e paredes brancas. Há uma porta em cada lateral. Menina entra; apressadamente, pelo lado esquerdo. Traja um vestido rosa claro, de certa transparência. Sentase. Cochicha algo no ouvido de sua boneca. Olha para o lado em que entrou. Levanta-se. Olha, novamente. Sai de cena, rindo. Entra Letícia. Usa um vestido preto; provocante, mascando um chiclete. Passa um batom. Vai até a parede e, com o batom, desenha a base para o jogo da velha. Volta-se. Para o público.

Letícia

Tentei fazer do meu casamento um estádio fechado; sem torcedores, sem partidas de futebol... Desejei beijos, abraços, afeto... duas entradas para o teatro no sábado à noite... O bate-papo durante as compras no supermercado... até brigas! Meu sonho: que estas paredes fossem testemunhas de um ciclo vicioso que durasse para sempre. Hoje, durante o tempo em que arrumei minhas malas fiquei me perguntando: e se ela me pedir um abraço? Fazer o quê? Sempre ouvi dizer, desde pequena, que a vida é um grande jogo. Aliás, quem é que nunca ouviu isso? O que torna inevitável que, no fim de uma partida, a gente não analise, não comente os erros e acertos, as oportunidades perdidas. E se ela me pedir um abraço? Não que minha relação tenha sido sempre um jogo, mas... (Noutro tom) Por que, um dia, a gente permite que o nosso peito se encha com um coração que não é o nosso? Bosta! Sempre ouvi dizer, também desde pequena, que a noite é uma criança! Eu morria de medo destas pessoas que tomam uma lata de cerveja e saem a procura de príncipes e princesas. Tinha medo destas pessoas que nunca tinham lido, ou que já tinham se esquecido do famoso jogo do contente de Pollyana! Receio das cantadas, das paqueras... dos bilhetinhos obscenos em guardanapo de papel entregues pelo barman - que são bem mais sedutores que os bilhetes deixados para não esquecer de pagar a conta de água, luz, telefone...


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Hoje, na minha modesta opinião, digo que a noite é um anjo demoníaco, de asas enormes, que um dia acabou me despertando o mais alto grau de sedução... A noite é, mesmo, uma grande buceta sempre rodeada por adolescentes dispostos a saltarem no mais profundo abismo: o da descoberta! Qualquer beijo, qualquer nova carícia... qualquer novo frescor de uma nova foda é um passo, um desenrolar para... (engole) Este é o fascínio: um desenrolar para lugar algum! Uma tontura inconseqüente que não diz para que lado vamos cair. Sem bilhetes, sem muros, sem paredes... (Rindo) À noite, após as vinte e três horas, qualquer um pode pegar o seu carro e atravessar o farol vermelho sem correr o risco de pegar multa... Tomar um litro de café, fumar um maço de cigarros e passar horas no “chat” da Internet, pagando menos pelos impulsos da linha telefônica. Depois de duas doses de uísque e um giro na pista de dança, todo mundo tem o direito de seduzir como quer e fazer o que eu vou fazer nesta noite: mandar tudo pra puta que pariu! E foda-se o dia do dia seguinte! Porque eu não sou obrigada a passar a minha vida inteira reclamando o medo de terminar sozinha. Se ela tiver coragem, a cara de pau, de me pedir um abraço, vai descobrir que meu peito é duro e vazio feito estas paredes. Sem imagens, sem recordações... Eu gosto de me arrumar, invadir a pista de dança... Se não fosse para ser assim, que não tivessem me dado a oportunidade de descobrir que sou dona do próprio nariz. Agora, de preferência, eu quero ser a própria noite! Por mais que eu envelheça, que me curve, que me seque... Quando eu me cansar... Quando inevitavelmente eu for uma mulher madura, se eu tiver medo de terminar sozinha, vou ter os meus filhos. E por que não, os meus netos? O que me interessa é ser rodeada por uma variedade de progesterona e testosterona! Por enquanto, preciso me esforçar para viver apenas o meu presente. Sem nenhum compromisso com o amanhã. Porque, na minha opinião, muito pelo contrário, o jovem de hoje não é obrigado a ser a esperança do futuro. Cada um que se vire com seu próprio fracasso, com a sua própria solidão.


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(Letícia sai. Entra Cassandra. Veste-se formalmente, com bastante discrição. Olha para o espaço vazio, para as paredes brancas. Solta os dois primeiros botões de sua blusa. Está cansada, tensa. Abana-se com as próprias mãos. Abre a bolsa e apanha um cigarro. Letícia volta, trazendo duas malas. Elas se olham; surpresas. Cassandra, dando uma tragada, olha atônita para as duas malas. Letícia pousa as malas sobre o chão e senta-se em uma delas). Cassandra

(Ríspida) Poderia ter limpado as paredes. (Menina entra. Em alguns momentos, Letícia e Menina falarão ao mesmo tempo. Letícia de forma rancorosa, pesada. Menina sempre faceira, sensual. Com um batom, Menina vai até a parede e passa a desenhar várias bases para o jogo da velha.)

Letícia

(Para o público) A primeira vez que nos encontramos... Lembro-me, como se tivesse sido ontem! Era uma destas tardes de inverno, durante as férias escolares, que não justifica uma garota passar horas e horas na rua... Só conseguia suportar a idéia de ficar trancada dentro de casa se fosse para... Eu queria ser uma mulher e conquistar o mundo que, para mim, era ser a dona da minha própria casa, ter os meus quadros, o meu banheiro... a nossa cama! É, a nossa cama! Porque conquistar o mundo, significava conquistar alguém e criar uma história que não acabasse nunca, que fosse sempre começo. (Menina e Letícia, olhando para Cassandra.)

AS DUAS

E se ela me pedir um abraço?

Letícia

Cruzava ruas, avenidas e vielas, que eu conhecia como a palma da mão. Procurava alguém que pudesse ser o meu mundo. Não era um príncipe encantado que eu estava buscando, porque eu tinha o telefone de todos os garotos da escola. Minhas amigas, não! Elas pulavam o muro do colégio, junto dos garotos, e ficavam na quadra assistindo partidas de futebol. E elas odiavam futebol. (Certo sorriso) Foi de frente ao muro que rodeava a quadra da escola. Não sei, não lembro o motivo, mas eu estava abaixada quase chorando. Não tenho certeza de quem se dirigiu a quem primeiro... A única coisa que sei é que foi um encontro sem palavras... Não sei se foram os meus olhos que se dirigiram a ela, pedindo para parar, ou se foram os delas perguntando se podia se aproximar... Sei que, de repente, nos encontrávamos todas as tardes...


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Cassandra

Poderia ter limpado as paredes! (Menina pára de desenhar e encosta-se na parede. Abaixa-se e mantém a cabeça entre as pernas. Letícia olha para Cassandra; na intenção de quem vai dizer alguma coisa. Desiste. Levanta-se e apanha as duas malas. Dá alguns passos.)

Letícia

Pensei em escrever um bilhete.

Cassandra

Não vai limpar as paredes?

Letícia

Será melhor se não dissermos nada! (Caminha em direção a saída) Deveria me pedir um abraço! (Cassandra dá uma última tragada e, em seguida, joga a bituca de cigarro no chão e pisa) Amanhã o corretor vem avaliar o apartamento. (Pausa) Tchau! Pensei em escrever um bilhete, dizendo que...

Cassandra

Não faça este papel, Letícia! (Incisiva) Eu não vou fazer o papel que você quer que eu faça! Tchau (Transição para tempo passado. Cassandra é uma mulher de trinta e oito anos).

Menina

(Num rompante) Já vai embora?

Cassandra

(Amável) Sim!

Menina

Ah!

Cassandra

Hummmm! Amanhã eu volto!

Menina

Fica mais um pouco!

Cassandra

Não, não... não! Já é tarde, minha querida.

Menina

(Mostrando um giz) Só mais uma partida! joguinho.

Cassandra

Você não é mais criança! Estou tão atrasada... (Resiste) Está bem, senhorita. Você venceu!

Prometo! Só mais um

(Cassandra e Menina aproximam-se da parede e começam a brincar de jogo da velha.) Menina

Iiiii!! Ganhei! Por que será que você sempre deixa eu ganhar? (Pausa) Bem, já está tarde. Tchau! (Vai sair, volta-se) Ah! No dia em que você vencer, teremos que comemorar!


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(Cassandra sorri. Menina lhe dá um beijo na testa. Corre; saindo de cena. Cassandra acompanha Menina com o olhar e, em seguida, também deixa a cena. Letícia dirige-se ao público. Menção de que vai dizer alguma coisa. Desiste. Nova menção. Desiste. Cassandra entra, trazendo duas malas. Transição para tempo presente. Letícia olha para as malas nas mãos de Cassandra, trêmula; decepcionada.) Letícia

Amanhã o corretor vem avaliar o apartamento.

Cassandra

(Após olhar para as malas de Letícia e as suas próprias. Para o público) Sei que eu deveria estar apenas triste, mas... Pra quê desejar mais cumplicidade, que isso? O fim que acontece por si próprio deve ser motivo de felicidade. Se o fim aconteceu naturalmente... (Pausa) Ela deve estar com pena, achando que eu não sei o que é viver um fim. Achando que a natureza não me permite mais começar...

Letícia

A-ma-nhã o cor-re-tor vem a-va-li-ar o a-par-ta-men-to! (Pausa) Caso você precise, é só me procurar. (Pausa) Durante todos estes anos, nunca percebi que era surda. (Pausa) Não sei! Se você...

Cassandra

Será melhor se não dissermos nada!

Letícia

Sabe onde vai morar? O meu receio é que...

Cassandra

Acha que eu deveria fazer este papel?

Letícia

Cassandra...

Cassandra

Sou uma mulher, Letícia! Não sou amante, não sou lésbica, não sou sapata... Sou uma mulher! Uma mulher que é lésbica, amante... mas uma mulher! Quem sou eu, pra dizer o que é melhor pra você?

Letícia

Não lhe escondi o fato de que este apartamento estava se tornando pequeno, temporário...

Cassandra

(Explodindo) Todos estes anos sob o mesmo teto me parece um prazo nada temporário.

Letícia

Sempre disse quando não seria pra sempre. O que significam todos estes anos, tendo uma vida inteira pela frente?

Cassandra

Só acho que você poderia ter limpado as paredes.

Letícia

Você estava saindo sem, ao menos, me deixar um bilhete. Ainda acho que deveria me pedir um abraço. (Pausa) Se eu nunca tivesse


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conhecido uma noite após a outra, o nosso relacionamento não teria se tornado essa mesmice... Cassandra

A questão é que para você, viver uma noite após a outra, significa ter uma mulher após a outra...

Letícia

Você não se aceita e... Você quem anda fazendo papel de criança! Quem vê a noite como o próprio poço da sacanagem!

Cassandra

Você sim tem me parecido um poço de sacanagem.

Letícia

Suma daqui, Cassandra!

Cassandra

Você quem estava de saída, primeiro.

(Transição para tempo passado)

Menina

(Entrando) Por que é que você está falando assim, comigo?

Cassandra

Eu estou com dor de cabeça, minha linda!

Menina

Sei que é mentira! Você estava sorrindo até agora. nunca mais vou lhe pedir nada.

Cassandra

Sabe o que eu acho? Que você não deveria mais ficar andando pelas ruas! Vá embora, vai!

Menina

Nunca mais vou lhe pedir para...

Cassandra

Eu sei! É que está ficando tarde. Vá embora! chorar) O que é que foi?

Menina

Nada. Quero dizer, não sei! de morrer!

Cassandra

(Com certo sorriso)

Menina

Nem tem motivo! (Rindo) Eu sou uma boba, tonta, mesmo! Tenho medo de perder a sua amizade.

Cassandra

Isso não faz sentido porque...

Menina

Esta noite nem consegui dormir. (Pausa) Posso lhe dar um abraço?

Cassandra

Eu acho que...

Pode deixar,

(Menina começa a

Sei, lá! Às vezes, me dá uma vontade

O que é isso?


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(Antes que Cassandra conclua o que vai dizer, Menina aproximase e lhe dá um beijo no rosto, próximo aos lábios. Sai. Transição. Letícia caminha até Cassandra, que se afasta.)

Letícia

Antigamente, jamais me negaria um...

Cassandra

Antigamente!!! Pára de analisar a nossa relação como se fosse uma peça de museu. Antigamente!!! Eu sei muito bem o que sou e o que fui durante todos estes anos!

Letícia

Vai me dizer que não está analisando tudo o que vivemos juntas?

Cassandra

Não, não estou, Letícia!

(Cassandra acende um cigarro e, em seguida, oferece a carteira para Letícia, que aceita.)

Letícia

Você vai sair?

Cassandra

Lhe interessa?

Letícia

(Para o público) Sei que eu deveria chorar mas... Nunca pude imaginar que a minha história fosse ter o final: “e elas engasgaram-se pra sempre!”. Que culpa eu tenho se as lágrimas não saem? fazer?

O que mais eu posso

Adotar uma criança, inventar uma nova viagem... Aposto que se eu chorar, agora, ela vai dizer que estou sendo fingida, hipócrita. Mas o fato é que, assim que eu quiser voltar, ela vai abrir as portas e vai me receber. Eu mereço isso! Por que é que eu vou ficar, aqui, inventando novas frases para anexar aos bilhetes domésticos... Por que é que eu vou ficar inventado novas posições nos momentos de intimidade? Por que tentar seduzi-la, se nos beijamos sempre da mesma maneira? Depois de tantos anos, tudo o que ela me escreve nos bilhetinhos anexados à conta de luz, me dá a sensação de ser tudo tão repetitivo, mecânico, fingido... Lá fora tem uma noite inteira que inventa e reinventa tudo isso por mim.


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Não vou dizer que tudo o que eu sentia... Aliás, posso dizer até que estou louca para... (Engole) O melhor da pesca é ficar sentada diante do rio.

(Transição para tempo passado. Menina entra, segurando uma boneca.)

Cassandra

Que boneca linda! É parecida com a mãe. Não acha que já passou da idade de brincar com boneca? (Menina ri, dilaceradamente) Do que é que você está rindo?

Menina

Você disse duas grandes besteiras em menos de meio minuto! Me desculpe! Primeiro: ela não pode se parecer comigo, porque é apenas uma boneca! Segundo: se eu quiser, posso brincar com boneca até o dia da minha morte. (Certa sensualidade) Ainda que seja uma boneca nada parecida comigo. Ainda que seja uma boneca de verdade.

Cassandra

Deveria saber que não existem bonecas de verdade!

Menina

É, eu sei!

Cassandra

Vai aprender que ninguém tolera um jogo até a morte!

Menina

Duvido.

Cassandra

E por quê?

Menina

Vamos jogar!

Cassandra

Humm, hummm...

Menina

Mas com uma condição: quem ganhar tem pedido... ou de dar um castigo.

Cassandra

Pedido ou castigo!!!

Menina

Aceita?

o direito de fazer um

Amanheceu com uma imaginação fértil!!

(Vão até a parede e estabelecem uma nova partida de Jogo da Velha. Menina joga, com certa ansiedade. Cassandra não tira os olhos de Menina. Hesita ao assinalar cada quadrado do jogo.)


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Menina

Vai! É a sua vez!

Cassandra

(Para o público) Cada quadrado era uma oportunidade! Quando nos encostávamos, era ingenuidade ou malícia que me deixava trêmula e fazia-me sentir um calor que... Não era possível... Tanta malícia nas palavras, em um olhar tão...

Menina

Joga!

Cassandra

(Após assinalar o jogo. Para o público) Não conseguia saber se ela estava, ou não, querendo, desejando, me seduzir... porque eu já estava seduzida.

Menina

Você, de novo! Iiiiii! Joga!

Cassandra

(Para o público) Tentei não verificar o jogo que estava traçado. Como eu queria que ela me pedisse um beijo, um abraço... Não, atrás de um muro. Era a minha chance de ganhar o jogo e pedir para que passássemos uma noite inteirinha juntas...

Menina

Anda, logo!

Cassandra

(Jogando) Ganhei!

Menina

Ah! Justo hoje que eu queria fazer um pedido.

Cassandra

Eu também!

(Cassandra passa o dedo na ponta do nariz de Menina. Esta se encosta na parede e abaixa o olhar. Segundos depois, já estão olhando uma nos olhos da outra. Seus lábios se tocam, levemente. Menina foge, chorando.)

Menina

Pode dizer, Cassandra!

Cassandra

Dizer o quê?

Menina

(Chorando) Tudo bem, pode falar.

Cassandra

Você já sabe! É difícil falar, assim.

Menina

Tenho vontade de morrer. Não queria perder a sua amizade.

Cassandra

Vamos esquecer este assunto.

Menina

Sei o que você quer me dizer. Pode falar.


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Cassandra

Eu não pensei que... Droga!

Menina

Fala, Cassandra!

Cassandra

É... Eu só quero que você... . Quero que você me escreva uma mensagem. Pronto! Está dado o castigo. Mas não pode ser uma mensagenzinha qualquer, não. Tem que ser uma poesia bem bonita.

Menina

Tá bom! Então fecha os olhos!

(Cassandra mantém os olhos fechados.)

Cassandra

Posso abrir?

Menina

Não!

Cassandra

Anda, logo!

Menina

Só mais um minuto. Já estou terminando. Pronto!

Cassandra

Mas... Você não escreveu nada.

Menina

É que... é que...

Uma poesia?

(Cassandra tenta se aproximar de Menina. Esta corre e abandona a cena. Transição para tempo presente.)

Letícia

Você é uma mulher muito especial!

Cassandra

Especial é quem tem síndrome de down. Meu retardamento tem outro nome.

Letícia

Não quero ouvir!

Cassandra

Tudo bem! Também não quero falar!

Letícia

Eu vou limpar as paredes.

Cassandra

Não, não tem. As paredes não estão engorduradas. (Antes que Letícia saia) Qual é o nome do corretor que virá avaliar o apartamento?

Letícia

Não sei!

Cassandra

Não foi você quem falou com ele?

Sabe se ainda tem detergente?


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Letícia

Sim, foi!

Cassandra

É assim que pretende administrar os seus dias, depois das longas noitadas?

Letícia

Ele me disse, mas eu não me lembro do nome dele.

Cassandra

Se fosse uma corretora, com certeza, você não esqueceria.

Letícia

Está com ciúmes?

Cassandra

Estou!

Letícia

Do corretor ou da idéia de que poderia ser uma corretora?

Cassandra

Vindo de você, fico desconfiada até de um cachorro!

Letícia

(Apanhando as malas de Cassandra e levando-as para fora.) Vá embora, Cassandra!

Suma daqui!

Vou limpar as paredes e, depois, deixo a chave na portaria. Por onde, eu não me arrependo de ter passado. Por onde, eu deveria ter saído faz tempo... Bosta! Se existe alguma cadela, aqui, é você. Uma cadela velha, gasta, que não serve nem para ficar no cio. Porra! Você é linda, maravilhosa... Com quem eu viveria a minha vida inteira! Com quem eu sairia todas as minhas noites, porque eu não estou na concorrência. Medo do quê, você tem? De que papel? De ser piegas? Foda-se, porque eu não tenho medo deste papel. Agora, por favor, suma daqui! Vá embora, Cassandra! (Cassandra abre a bolsa e apanha um comprimido. Engole. Em seguida, acende um cigarro.) Eu gosto de ser desejada, badalada, a noite inteira! Mas eu nunca me coloquei na concorrência com você. Eu queria lhe beijar porque queria, e pronto! Eu queria lhe chupar porque queria, e pronto! Você quem me ensinou a olhar para o calendário e ficar contando os dias que faltavam para as noites dos finais de semana.


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Eu desejando viver uma coisa só como se fosse para sempre e você me dizendo que um casamento não se bastava por si próprio. Poderia ao menos ter apostado, não é? Agora, nesta altura do campeonato, você vem querer desmentir tudo. Só falta você me dizer, que quer ter uma ninhada de filhos. Sabe Deus, com quem! Sabe Deus, como! Não dá, Cassandra! Nesta idade, não dá para fazer de conta que a sua vida foi apenas um rascunho. Fala, Cassandra! Já reparou que as crianças só aprendem quando é o horário da janta, ou do almoço, depois que aprendem a ler as horas no relógio. Héin, Cassandra? Antes, não! Sentem fome e sede porque sentem, e pronto! Depois, tem a hora de comer, de jantar, de trepar, de... Aprendem a jantar sem ter fome e a trepar sem ter vontade... É a porra da maldita organização! Cassandra

(Quase num sussurro) Vá embora, Letícia! Por favor!

Letícia

Não, não vou! Antes, eu vou limpar as paredes!

(Letícia sai. Após um tempo, Menina entra. Traz um embrulho em papel presente. Transição para tempo passado.)

Cassandra

Vem! Pode entrar! Estamos em casa.

(Menina analisa o espaço, com certa decepção)

Menina

Cadê o sofá... a tevê?

(Ri) Você mora no vazio?

Cassandra

Não! Ainda, não moro aqui. Mas eu me mudo na semana que vem.

Menina

Assim, não vale.

Cassandra

Por que, não?

Menina

Você disse que eu iria conhecer a sua casa.

Cassandra

Mas de verdade, verdadeira, esta que é a minha casa. Só não estou morando nela.


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Menina

Não tem graça! Queria conhecer seus móveis, seu banheiro... sua cama! Quem vai morar, aqui, com você?

Cassandra

Quando eu me casar, o meu marido!

Menina

Marido!? Não sabia que você tinha namorado.

Cassandra

Não, não tenho! dia.

Menina

Ah!

Cassandra

O que é? (Abre e retira uma espécie de calendário; do tamanho de um quadro) Um calendário!?

Menina

Já que pra você tudo tem uma hora, um momento.

Cassandra

(Apanha sua bolsa e retira uma caixa de bombons) Eu também lhe trouxe um presente.

Menina

Vai ter filhos?

Cassandra

Não sei. Acho que sim.

Menina

Vai estragar os teus seios, se der de mamar. São tão bonitos!

Cassandra

(Pendurando o calendário na parede) Que é isso? Ainda nem tenho um namorado e... Deixa pra lá! Vou buscar um copo d’água!

Menina

São de verdade?

Cassandra

O quê? Os namorados?

Menina

Não. Os teus seios?

Cassandra

Mas é claro!

Menina

Será que os meus vão ficar do mesmo tamanho que os seus? (Tocando os seios, com as mãos lambuzadas de chocolate) O que você acha?

Cassandra

Se isso não acontecer, um pouco de silicone resolve!

Menina

Posso tocá-los!

Cassandra

Pára com isso!

Menina

O que é que tem? Só um pouquinho!

Não é o momento, ainda.

Mas eu vou ter um, um

(Entregando o embrulho) Um presente!


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Cassandra

Garota, eu tenho mais que dobro da sua idade.

Menina

E daí?

(Cassandra, não se contendo, ri. Menina, com a ponta dos dedos, aproveita para tocar os seios de Cassandra.)

Menina

Seu coração sempre bate deste jeito?

Cassandra

Eu vou buscar um copo d’ água!

(Menina tira as sandálias. Senta-se. Apanha um livro e inicia a leitura) Menina

“(...) desmaio da realidade para o sonho e vejo no traço vivo do vermelho o sangue da vida que se extingue. O que seria que me estimulava tantos desejos bárbaros? Eu não podia recuar de nenhum modo para atingir a almejada sensação. Tinha vontade de fazer gestos e dizer palavras terrivelmente obscenas. Sentir o calor dela, ainda úmido; enrolada na toalha (...). Inesperadamente a melancolia passou por um sentimento mais forte que latejava no meu corpo (...)” 1

Cassandra

(Traz um copo d’ água) O que está lendo?

Menina

Um romance!

Cassandra

É. Já é tarde!

Menina

É... Já é tarde!

(Bebe a água)

Vou embora!

(Olham-se, por alguns instantes. Menina apanha um batom e dirige-se até o calendário. Faz um círculo em volta do mês de janeiro)

Menina

O mês que nos conhecemos!

(Cassandra ri. Apanha o batom. Vai até o calendário)

Cassandra

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MARCELLA.

Fevereiro! O mês que já éramos amigas!

Rios, Cassandra. Editora Record


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Menina

(Assinalando o mês de outubro) O mês do seu aniversário!

Cassandra

(Assinalando um outro mês) O mês do seu aniversário.

Menina

Vinte de dezembro. O dia e o mês em que você tentou me beijar!

Cassandra

Chega!

Menina

(Assinalando) O dia e o mês, de hoje, que pela primeira vez eu lhe fiz uma visita. Que pela primeira vez eu lhe dei um presente e que pela primeira vez, nós vamos nos beijar.

(Menina permanece próxima ao calendário. Cassandra hesita, mas acaba se aproximando. Beijam-se.)

Menina

Ficou chateada, comigo?

Cassandra

Lógico que não!

Menina

Tchau!!

Cassandra

Tchau! Espera. Você volta?

Menina

(Sorrindo) Hã, hã...

(Entra Letícia. Traz um pano e um balde com água. Passa a limpar as paredes. Os desenhos feitos com batom vão transformando-se em manchas vermelhas. Cassandra caminha de um lado para outro; tensa. Olha para o relógio. Vai até a porta, olha e volta a caminhar. Letícia, numa raiva crescente, continua limpando as paredes.)

Letícia

Ainda, aqui! (Imitando Cassandra) “Esta é Letícia, minha namorada.” Só isso o que você sabia dizer. A noite inteira, todos os finais de semana. “Vai dançar, Letícia!”. Gostava mesmo era de me exibir de longe. Mostrar que não estava mais sozinha. “Ao lado de uma mulher desta, vou morrer feliz!”

(Menina entra. Está maquiada. Veste-se de forma sensual, com um vestido parecido ao de Letícia.)


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Menina

Então, estou bonita?

Cassandra

Linda!

Menina

Como é esse bar?

Cassandra

Surpresa!

Menina

Ah, Cassandra, não podemos ficar em casa?

Cassandra

Não, não...

Menina

Que saco! Como são as pessoas que freqüentam, lá?

Cassandra

Mulheres! Mulheres que gostam de mulheres! (Beijam-se) Pára! Não faz assim...

Menina . Cassandra

Bem que a gente poderia não ir. Vamos ficar aqui.

Menina

E eu, estou bem?

Pára, Letícia. Nem pensar. Eu combinei com as minhas amigas e, além do mais, eu estou menstruada! Sua pele fica tão quente quando você está menstruada.

(Novos beijos)

Cassandra

Nem vem, mocinha! Pára, Letícia. Nós temos um compromisso. (Assinalando um mês e um determinado dia) A primeira noite de sábado que vamos sair para dançar... Mostrar para o mundo que estamos juntas, felizes! Quer coisa melhor?

Menina

Preferiria ficar aqui, com você.

Cassandra

Como sempre, não é?

Menina

Nunca!

Cassandra

Por que durante estes anos nunca quis que saíssemos juntas?

Menina

Se eu pudesse trancar você dentro destas paredes e...

Cassandra

Eu gostaria de lhe beijar em todos os lugares... nos restaurantes, no cinema, nas ruas... pra todo mundo ver! Senão... Fica parecendo que o nosso casamento é carente, proibido... Sei lá!

Menina

Está bem, Cassandra! Já sei tudo o que vai dizer! (Forçando um sorriso) Vamos!

Você tem vergonha do nosso casamento?


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(Menina abandona a cena. Letícia deixa de esfregar as paredes. Abaixa-se; certo pesar.) Cassandra

(Para o publico) Ela era como um pássaro solto com medo de sair voando... Não dava para vivermos trancadas. Uma casa que não recebe cartões de natal, cartas, visitas para o almoço de domingo, é uma casa falida. Invadimos a noite e, pela primeira vez, Letícia soube o que são os bares situados abaixo das calçadas... corpos molhados de suor, que transpiram perfume na pista de dança! Os olhares, a malícia, que corre avenidas e ruas depois que as janelas estão fechadas. Pessoas que procuram alguma espécie de família. Sim, uma família! De bar em bar, de uísque em uísque... Estava sendo a noite mais feliz da minha vida. Eu tinha alguém com quem sair por esta porta e seria, com certeza, a mesma pessoa com quem eu voltaria...

Letícia

Você era a minha família!

Cassandra

Por que é que você tem tanto medo, agora?

Letícia

Já limpei as paredes.

Cassandra

Você é a minha família, Letícia!

Letícia

Me seduza, Cassandra.

Cassandra

Posso lhe pedir o mesmo.

Letícia

Onde estão os teus segredos?

Cassandra

Perdidos junto com os teus.

Letícia

Isto é ter uma família?

Cassandra

Conhecer e não conhecer a pessoa que vive com a gente?

Letícia

É?

Cassandra

Acho que sim.

Letícia

Nunca pensei que...

Cassandra

Quando nos seduzíamos...

Letícia

Sei lá! De alguma forma, a sedução era compartilhada aos olhos de todos.

Cassandra

Não sabe com quem compartilhar a falência da nossa relação!

Quando nos conhecemos...


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Letícia

Onde estão suas amigas?

Cassandra

Casadas com mulheres que, como eu, também se cansaram de procurar sabe Deus o quê!

Letícia

Fala como se estivesse morrendo.

Cassandra

Por que é que não podemos ficar aqui, em casa?

Letícia

Não podemos viver isoladas do mundo. Você não entende?

Cassandra

Vai se cansar destas pessoas que procuram um romance sem saber o que querem.

Letícia

Não fale como se fosse minha mãe.

(Menina entra. Tempo passado)

Menina

Você me enche com esta história de querer um bando de gente ao seu lado.

Cassandra

O quê?

Menina

Vê se eu tenho cara de palhaça, pra ficar fazendo showzinho, ouvindo piadas das suas amigas...

Cassandra

Quem se importa?

Menina

Eu me importo!

Cassandra

Elas estavam com inveja, isso sim!

Menina

Por que é que não podemos ficar aqui? Por que é que não podemos viver juntas, só eu e você?

Cassandra

Porque esse apartamento não é uma ilha e nós não vivemos isoladas do mundo!

Menina

Pensa que eu não vi, elas quase se esfregando no seu nariz?

Cassandra

Você está com ciúme?

Menina

Sim, estou com ciúme!

Letícia

(Incisiva) Sem medo de parecer burra, porque eu não estava imaginando coisas.


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Menina

Olha! Sei muito bem o que eu quero da minha vida. E eu não quero ficar freqüentando bares de sapatas enrugadas... dinossauros! Que passam a noite inteira bebendo uísque e sonhando sabe Deus com o quê.

Cassandra

Não fale das minhas amigas desta forma! Posso lhe garantir que elas nunca foram tão vulgares feito você.

Menina

Não sou vulgar, sou objetiva! O que é muito diferente.

Cassandra

Objetiva!

Menina

Puta que pariu! Eu não admito que a nossa relação seja exposta, como um prêmio que a vida nos deu de consolação!

Cassandra

Ah, Letícia! O equívoco é que você ficou se achando a mais gostosona da noite.

Menina

Eu não estou morando com você pra viver este tipo de vida!

Cassandra

Quer o quê?

Menina

Você ficou me exibindo, sim! Como quem diz: vamos ver quem consegue nos separar! Pra quê? Pra ver quem tinha coragem de mexer com a sua namorada? Pra você sair na porrada, como aquelas duas que estavam lá, atirando as bolas de sinuca uma na cara da outra! Por que é que nós não podemos ser um casal normal?

Cassandra

(Histérica) Normal!?

Menina

Por que é que nós não podemos ficar aqui, vendo televisão... ir ao cinema? Sei lá! Foda-se, se tem gente que cospe na porta da nossa casa. (Pausa) Vou dizer pela última vez, Cassandra! Não me interessam estas pessoas que passam a noite inteira fazendo... Sonhando com uma paixão e um corpo que elas só encontram no corredor escuro... Bosta! Puta que pariu! (Desafiando) Quer saber? Tenho medo, sim, destas mulheres que não sabem o que buscam. Receio de gostar de ser desejada mais do que eu gosto de você.

Cassandra

É um risco!

Menina

É tudo o que tem pra me dizer?


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Paredes Brancas

Cassandra

Olha aqui, Letícia! Existe um mundo, aí fora! Meu trabalho, minhas amigas... A família que fui juntando de bar em bar, de boate em boate... depois de cada gole de uísque. Sei o quanto custa ficar cega, sem saber que direção tomar! Não vou ficar trancada dentro deste apartamento, olhando para a sua cara, como se eu fosse uma cabra parada diante do mar!

Menina

Você está querendo dizer...

Cassandra

Que a porta da rua em qualquer lugar do mundo, é, e sempre foi, a serventia da casa.

(Menina dá um tapa no rosto de Cassandra. Esta não reage. Menina sai.)

Cassandra

Vamos descer juntas, Letícia! Ainda no quarteirão, vai chegar a esquina em que cada uma seguirá o seu destino?

Letícia

(Fazendo um círculo ao redor do mês de agosto) O mês em que, pela primeira vez, minha menstruação coincidiu com a sua.

Cassandra

(Assinalando um outro mês) O mês em que viajamos juntas, pela primeira vez. (Risos. EVITAM olhar uma para outra) Tem certeza de que é isso, o que você quer?

Letícia

(Assinalando o dia e um mês) separar pela primeira vez...

Cassandra

Tem certeza de que é isso, o que você quer?

Letícia

(Assinalando) Estranho! O mês em que eu vim morar com você é o mês em que vamos nos separar... pela primeira e última vez!

O mês e o dia em que tentamos nos

(Cassandra faz um carinho, passando o dedo na ponta do nariz de Letícia. Menina entra; vestindo uma camisola. Traz duas malas. Cassandra aproxima-se de Menina.)

Menina

Demorei?

Cassandra

Acho que estou ansiosa...

Menina

Acha?

Cassandra

Tem certeza de que é isso, o que você quer?


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Paredes Brancas

Menina

(Quase chorando) Aconteceu uma coisa.

Cassandra

O que, meu bem?

Menina

É bobagem! Já sabia que iria acontecer. Justo hoje! O dia de hoje foi tão esperado, tão sonhado... Colocaram sangue no meu sonho.

Cassandra

Vem! Me dá um abraço!

(Menina levanta-se e corre para os braços de Cassandra. Beijamse, compulsivamente. )

Cassandra

É isso o que você quer, Letícia?

(Menina começa a chorar. Cassandra percebe que sua camisola está manchada de sangue.)

Menina

Foi durante o caminho, vindo pra cá... hoje.

Cassandra

Tudo bem! Também estou menstruada. (Beijam-se, novamente) Não me respondeu. É isso, o que você quer?

Menina

Não queria que tivesse sido

Como se não houvesse o mundo!

(Durante as falas que seguem, Letícia e Menina acabam trocando de roupa)

LET. / MEN.

Como se não houvesse distinção entre o dia e a noite, o claro e o escuro... Promete que será só nós duas?

Cassandra

Prometo!

Menina

Um único rastro de sangue, de paixão... percorrendo o mundo?

Cassandra

Prometo!

Menina

Promete, mesmo?

(Menina corre pelo espaço. Tira as sandálias, desabotoa o vestido. O chão, aos poucos, fica marcado por alguns rastros de sangue.


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Paredes Brancas

Cassandra tenta apanhar Menina. Elas saem e voltam de cena; sempre no jogo de perguntas e respostas)

Cassandra

Prometo!

Menina

Um único rastro de paixão...

Cassandra

Sim...

Letícia

de saliva...

Cassandra

Prometo!

MEN / LET.

Até que o mundo se esgote?

Cassandra

Para sempre!

Menina

Só nós.

Letícia

Um único rastro de sangue...

Cassandra

Prometo.

Menina

Mesmo que o mundo tenha um fim?

Cassandra

Para sempre!!

Letícia

(Para o público) Tentei fazer do meu casamento um estádio fechado. Sem torcedores, sem partidas de futebol... Só queria que minha vida... Aliás, que o meu casamento não fosse um livro aberto. Até porque, eu não estou no banco dos réus, e o único livro, que possui unanimidade de conceito, é aquele que nunca, nem ao menos, foi folheado. Desejei beijos, abraços, afeto... até brigas! Hoje, durante o tempo em que arrumei minhas malas fiquei me perguntando: e se ela me pedir um abraço?

(Cassandra senta-se em uma das malas. Para o público.)

Cassandra

Eu tinha verdadeiro fascínio por estas pessoas que tomam uma lata de cerveja e saem à procura de príncipes e princesas. Adorava as cantadas, as paqueras, os bilhetinhos obscenos em guardanapo de


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Paredes Brancas

papel, entregues pelo barman... principalmente, quando as paqueras eram comprometidas. Eu tinha verdadeiro tesão! Era como se a noite fosse a minha única família. Mas como eu nunca desejei ser mãe, acabei me cansando destes jovens que vão em busca de um sonho sem saber o que é. Quando percebi lá estava eu, ensinando como se bebe, como se paquera, o que escrever no guardanapo de papel... Um livro aberto que as pessoas cansaram de ler e reler... Me cansando das baladinhas, que eram sempre iguais, e...

(Menina interrompe a cena. Está com o mesmo vestido que Letícia usava no início do espetáculo. Masca um chiclete. Passa um batom.)

Menina

Já que você não quer ir, eu vou sair por esta porta e vou me divertir mais uma noite. Estou levando as chaves. Por favor, Cassandra, não passe o trinco do lado de dentro.

Cassandra

Deveria me pedir um abraço!

(Menina se aproxima e elas tocam os lábios; num curto beijo.)

Menina

Durante a madrugada eu estarei de volta!

(Menina sai. Letícia levanta-se, acende um cigarro, abre uma das malas e apanha um novo calendário. Coloca-o sobre o outro)

Cassandra

Depois da primeira vez, que me deixou passar a noite sozinha, é como se nunca mais tivesse voltado. Eu sei que você tem...

Letícia

Troque de roupa e vamos dormir. Amanhã teremos que procurar um outro apartamento.

(Letícia sai de cena. Cassandra olha para o novo calendário.)

Sérgio Pires / MAIO de 2003


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