Uma Bela Tarde de Abril

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UMA BELA TARDE DE ABRIL

No palco vêem-se duas escadas. Numa está o Velho, na outra, a Velha. Eles estão vendo o rio passar.

Personagens: O Velho – A Velha – O Homem O Homem aparece travestido de Leão, Lobo e Cordeiro.

VELHO – Sempre o mesmo... sempre o mesmo rio. Só que antigamente as águas eram mais limpas... mais claras. VELHA – E os peixes saltavam à flor d’água. A gente podia ver o leito do rio... até as pedras do fundo. VELHO – Comemos muito peixe desse rio... Tudo era melhor antes de construírem a usina. VELHA – Mas é o mesmo... sempre o mesmo. No entanto ele não pára de mudar. Você já notou? VELHO – Já. Ele muda a cada instante, e a gente nem pode dizer em quê. VELHA – É isso que me faz ficar tanto tempo aqui. VELHO – Antes, quase não vínhamos... Você não tinha uma folga. VELHA – Pudera! Com tantos filhos. Minha vida era uma roda-viva. VELHO – Enquanto os filhos não crescem, mal temos tempo de pensar em nós. VELHA – Graças a Deus, todos se foram.. VELHO - Foi duro... Nem sei como conseguimos criá-los. Com tão pouca terra e nunca pudemos ter mais de um empregado. VELHA – Mas era terra boa... a melhor de toda essa região.

(Surge um homem travestido de leão com uma juba de fantasia.)

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VELHO – Foi o que nos salvou... (Percebendo o leão) Você está vendo o que eu estou? VELHA – Onde? VELHO – (Apontando) Ali. VELHA – Não é um leão? VELHO – É. Mas o que estará fazendo por aqui? VELHA - Será que ele vai nos atacar? VELHO – Vem em nossa direção... Não dá tempo para descer! VELHA – (Assustada) Eu não pretendo de maneira nenhuma descer daqui! VELHO – E se ele derrubar as escadas? VELHA – Calma, velho, calma! Repare nas pernas do leão! VELHO – Que têm as pernas? VELHA – Você está cego? São pernas de homem! VELHO – Será?... (Observando melhor) Ah, é mesmo! E a juba também não é muito convincente. VELHA – No primeiro momento pensei que tivesse escapado de um circo.

(O leão urra.)

VELHO – Ele está urrando. VELHA – Finja que não ouviu. VELHO – Adianta?

(O leão urra.)

VELHO – Você acha que devemos ser amáveis?

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VELHA – Não. VELHO – Não gosto de fingir. É preferível conversar com ele.

(O leão urra.)

VELHA – Olhe para o rio e não dê atenção! VELHO – Ele para o nosso lado!

(O leão está junto às escadas: fareja o ar e urra.)

VELHO – Vou perguntar o que ele quer. VELHA – Nada disso. É melhor não conversar com desconhecidos. VELHO – Mas ele não há de estar urrando à toa! VELHA – Conversemos como se não houvesse nada.

(O leão, furioso, vai de uma escada à outra, ameaçador. Urrando.)

VELHO – Sabe o que eu penso? Ele está querendo que a gente fique com medo! Tenho certeza. VELHA – E você acha que devemos: VELHO – Talvez ele se acalme. VELHA – Seria ridículo! VELHO – Vamos experimentar. Não custa nada! VELHA – (Ameaçando o Velho) Se não der certo, você vai ver!...

(A Velha começa a fingir medo gritando: “Socorro! Socorro! Acudam, tem um leão!” O Velho também entra no jogo e grita: “Socorro, gente! Socorro, um leão!” O leão, 3


por sua vez, urra mais forte, satisfeito com a vitória conseguida e, triunfante, começa a sair. Dá uns passos, volta-se em direção ao casal, urra novamente e procedendo assim, sai por onde entrou... O casal de velhos continua a simular medo até o leão desaparecer.)

VELHO – Viu? Eu não disse? Ele só queria impressionar a gente. VELHA – Foi uma boa idéia. VELHO – Que pena que ele não quisesse conversar! VELHA – Sabe o que me ocorreu? Talvez não o tenhamos compreendido bem. VELHO – Culpa sua! Eu bem que queria falar com ele. VELHA – Quem sabe se ele não estava fazendo propaganda de algum produto novo? ... algum sabão em pó, alguma gelatina ... um dentifrício ... VELHO – Poderíamos ter ganho uma amostra grátis. VELHA – Agora é tarde e não adiante se lamentar. Olhe o rio... esta é a hora em que ele fica mais bonito, embora um pouco triste. Ah, se não tivéssemos esse rio, nossa vida seria muito mais monótona! Essa é que é a verdade. VELHO – Teríamos descoberto outra coisa. VELHA – O quê, por exemplo? VELHO – Uma criação de abelhas, talvez. VELHA – Não me entusiasma muito.

(Surge o homem travestido de lobo no mesmo local onde aparecera antes.)

VELHO - Mesmo que não te agrade, qualquer dia eu vou começar uma criação de ... Não! Não é possível! (Apontando) Olhe lá! Veja o que apareceu agora1 VELHA – Um lobo! Gostaria de saber o que significa isso. VELHO – Ele está se aproximando. VELHA – Será que é o mesmo? VELHO – É sim! Olhe as calças!

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VELHA – Estou começando a ficar aflita. VELHO – Desta vez eu vou conversar. Afinal precisamos saber. VELHA – Tem razão. VELHO – Boa tarde! LOBO – Boa tarde para os dois. Parece que vocês gostam de apreciar o rio. VELHO – É verdade. Principalmente ela. LOBO – Nos bons tempos eu também gostava ... Passava horas ... até me esquecia da vida. VELHA – É bom. A gente fica calma. VELHO – E dorme-se bem à noite. VELHA – E aprende-se a não levar a vida muito a sério. LOBO – Vejo que sabem viver ... Não devem morar muito longe, certamente? VELHO – Moramos ali na encosta. O senhor deve ter passado por lá. LOBO - Uma casa de janelas verdes com uma trepadeira na varanda? VELHO – Essa mesmo. Aliás é a única que há por essas redondezas. LOBO – E não têm medo de morar sozinhos? VELHA – De maneira nenhuma. Meu marido, apesar de velho, atira muito bem. E além disso temos um caseiro. LOBO – Fico feliz, muito feliz. Hoje em dia há muita maldade, parece que o mundo está de cabeça para baixo. VELHO – Agradecemos o seu interesse. E o senhor, de onde é? Nunca o vimos por aqui e nem na vila. LOBO – Na vila? Seria uma temeridade! ... Vai que um engraçadinho queira usar minha pele como tapete. É preciso sempre estar atento com os homens. VELHA – É a pura verdade. Há muita gente maldosa. LOBO – E de vocês eu só me aproximei porque algo em mim me disse que são bondosos, pessoas pacíficas ... enfim, pessoas que já não querem fazer mal a ninguém.

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VELHO – Está dizendo que somos velhos, não é? LOBO – Peço que me perdoem. VELHA – Ora, não pense que ficamos aborrecidos. Somos velhos, mesmo. LOBO – E vejo que foi uma vida bem vivida. VELHA – Com muito trabalho. VELHO – Muita canseira. VELHA – Muitos filhos. LOBO – Quantos, meus amigos? VELHA – Sete. LOBO – Admirável. VELHO – E o senhor? LOBO – Na última ninhada nasceram cinco. Mas já faz muito tempo. VELHA – O senhor é viúvo? LOBO – Posso dizer que sim. VELHA – Sinceramente, eu lastimo. VELHO – Lastimamos muito. LOBO – Agradeço. Embora entre nós o casamento seja um pouco diferente ... talvez menos convencional do que entre vocês. VELHO – Compreendo. VELHA – Espero que não se ofenda com o que eu vou dizer ... mas eu o acho um pouco melancólico. Ou eu me engano, ou as coisas não estão correndo muito bem para o senhor. LOBO – Infelizmente, essa é a verdade. Não há que negar. VELHA – Se quiser desabafar ... se isso não o aborrece de maneira nenhuma, pode estar certo de que somos ouvintes atentos e interessados. LOBO – Não, não me aborrece ... O fato é que os homens depois que começaram a devastar as florestas, a caça que antigamente era tão abundante, tão farta, hoje está 6


raríssima, e um lobo para sobreviver tem que se pôr na estrada. Mas não pensem que é fácil – é uma barra – com se diz. Os currais estão mais vigiados do que nunca e já encontrei, vejam bem, mais de um redil com as cercas eletrificadas. Não é de desanimar um mortal? VELHA – Meu Deus, aonde chegamos! VELHO – Estou mortificado. LOBO – É isso aí ... Às vezes até me desespero. VELHA – (Para o velho) Será que a gente não pode fazer alguma coisa por ele? (Para o lobo) Não se acanhe de dizer ... se estiver ao nosso alcance ... LOBO – Muito obrigado. Felizmente, eu acabei de arranjar um emprego. VELHO – Um emprego? VELHA – Que emprego lhe poderiam dar? LOBO – Fico até com vergonha ... mas arranjei emprego como cachorro. VELHO – Como cachorro? Que humilhação! LOBO – Foi o único que encontrei ... Um velhinho muito bom, que tem uma fazendola a umas três léguas daqui, é que me prometeu. Quero ver se chego lá antes do anoitecer. VELHA – Do jeito que o mundo vai, nem sei se vale a pena continuar vivendo. VELHO – Ainda bem que nos falta pouco. LOBO – A conversa foi muito boa ... vocês me reconfortaram, mas eu tenho que ir. Imaginem se ele dá o meu emprego para outro? VELHO – Então se vá, meu amigo. Mas se houver algum problema, pode voltar que aqui o senhor não morre de fome. LOBO – Eu não me enganei com vocês. São almas compassivas ... gente boa. Adeus, meus amigos!

(O Lobo começa a se retirar.)

VELHA – Tenha fé que tudo vai dar certo! VELHO – Adeus! Pode contar conosco! LOBO – (Já de longe) Adeus! São pessoas como vocês que me fazem acreditar na vida. 7


(Os velhos e o lobo vão se dando adeuses. O lobo sai por onde entrou.)

VELHA – Por essa eu não esperava. Estou deprimida. VELHO – A gente até duvida da Providência. VELHA – Por isso é que não me importo de morrer. Já vi desgraças demais. Nem sei o que a gente ainda está fazendo aqui. VELHO – Enquanto não chega o dia, o melhor é ficar olhando o rio. Ele sempre está dizendo alguma coisa. VELHA – Ele diz que tudo se repete ... e que, no entanto, tudo é diferente. VELHO – Não será coisa de nossa cabeça? VELHA – Pode ser ... mas ele é tranqüilo ... doce. Nunca me cansarei. VELHO – Comparando com os outros, hoje foi um dia movimentadíssimo. Não podemos nos queixar. VELHA – É VELHO – Faz tempo que não aparece ninguém por aqui. VELHA – O último foi o oleiro. VELHO – Hum ... Chato como ele só! VELHA – O que você quer de um homem que só mexe com barro? VELHO – Se pelo menos tivesse alguma sabedoria ... ou então contasse histórias engraçadas! Mas não! Chega, tira o chapéu, cumprimenta, pergunta se você está melhor do reumatismo, diz que a vida está difícil, nos deseja uma boa-tarde e se vai. É pouco. VELHA – Foi muito estranho. Por que será que os homens estão se vestindo de animais? Por quê? VELHO - Os homens, não! Era o mesmo homem. VELHA – Não será um foragido da polícia? Um louco? VELHO – Não dava essa impressão. Talvez haja um circo na vila.

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VELHA – Bem lembrado ... mas pensando bem, se ele fosse do circo, teria falado do homem que engole fogo, do homem que põe a cabeça na boca do leão, do homem que atira facas, da moça que se equilibra no arame, do palhaço, do globo da morte, do elefante que dança sobre a bola, do ... VELHO – De certo ele achou que nós temos cara de quem não vai ao circo. Essa deve ser a nossa cara. VELHA – Ainda assim ele deveria ter tentado. Pelo menos é minha opinião.

(Surge no mesmo local, o homem travestido de cordeiro, o qual está balindo.)

VELHA – Você está ouvindo? VELHO – Ouvindo e vendo. Agora lhe deu na cabeça de se vestir de cordeiro ... Hoje não é um dia comum, minha velha. VELHA – As mesmas calças ... VELHO – Vamos ver o que ele vai inventar agora. VELHA – Está ficando divertido ... embora um pouco inquietante. CORDEIRO – (Parando de balir) Boa-tarde, bons velhinhos! Que belo rio, não? VELHO – Precisava ver antes. Antes que a usina o emporcalhasse com toda essa sujeira ... Era uma coisa que valia a pena de se ver. VELHA – Olhamos para ele porque não temos outro. CORDEIRO – Quem sabe se não voltará a ser como era? Tudo muda. VELHA – Até lá estaremos mortos. VELHO – A não ser que se apressem. CORDEIRO – É preciso ter esperança. VELHO – Isso é bom para os jovens ... na nossa idade ... CORDEIRO – Não falem assim ... Esperança é bom para todos ... mas ... Será que vocês podiam me dar uma informação? VELHO – Com todo o prazer.

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CORDEIRO – Por acaso passou por aqui um lobo? VELHO – Passou. Passou, sim, e não faz muito tempo. Aliás, ele estava com vontade de fixar-se na região. VELHA- Procurava um emprego. Qualquer coisa lhe servia. CORDEIRO – Ele pediu emprego para vocês? VELHO – (Para a velha) Você acha que convém contar? VELHA – Não vejo inconveniente. VELHO – Ele estava bastante desanimado. Imagine o senhor que ele queria empregar-se como cachorro. CORDEIRO – Não digam! Coitado! VELHO – Um lobo quando chega a esse ponto, não sei, não! CORDEIRO – Aceitar emprego como cachorro! ... mas é revoltante, é de doer o coração! VELHA – Disse que comia o mínimo. Que quase não dava despesas: um pouco de arroz com feijão e um osso, de vez em quando, era tudo o que ele exigia. CORDEIRO – Nossa Senhora! Os tempos estão difíceis até para os lobos! VELHO – É verdade. CORDEIRO – Preciso encontrá-lo o mais depressa possível. Por favor, me digam por onde ele foi. VELHA – Espere, não estou entendendo bem! ... O senhor vai atrás do lobo? CORDEIRO – Vou e estou até um pouco apressado. VELHO – Não brinque. VELHA – Não será perigoso? CORDEIRO – Perigoso? ... Somos grandes amigos! VELHO – Não acredito! VELHA – Amigos! ... Lobo e cordeiro?! ... Por favor, meu senhor!

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VELHO – Merecemos respeito. VELHA – E saiba que ele, apesar de lobo, foi muito educado. VELHO – Não tentou nos impingir fábulas. CORDEIRO – Me desculpem. Eu compreendo o espanto de vocês ... Eu devia ter explicado logo de início. VELHA – Veja lá, senhor Cordeiro, diga o que tem a dizer, embora para mim sejam patranhas. CORDEIRO – Não, não! Se me ouvirem, verão que estou sendo verdadeiro. VELHO - Será? CORDEIRO – Escutem, então: Lobo e cordeiro eram inimigos figadais, e isso todo o mundo sabe, não só por experiência como também pelos livros. No entanto, essa inimizade milenar provinha deles, porque nós, cordeiros, sempre fomos herbívoros. Mas o curioso é que algo ocorreu na alma dos lobos ... algo completamente inusitado. Talvez seja o caso até de se falar em psicologia. Enfim, uma transformação interior, ou então – e há quem pense assim – uma espécie de mudança fisiológica ... talvez eles se tenham enfastiado de devorar cordeiros ... tomado verdadeiro horror de devorar nossa carne, muito branca, insípida, insossa ... Quem sabe, lá? A verdade é que eles nos passaram a desprezar enquanto alimento e começaram a se interessar por nós enquanto criaturas. E ninguém pode negar que temos grandes qualidades como criaturas. Daí, meus amigos, foi um passo para estabelecermos relações. De início, um pouco cautelosas de nossa parte, depois francamente amigáveis, e posso até dizer, fraternas. Eis aí o que aconteceu. VELHO – É incrível! (Para a Velha) É o que dá não sairmos nunca de casa. O mundo muda e a gente não percebe. VELHA – Precisamos assinar algum jornal. VELHO – Ou comprar uma televisão. VELHA – Senhor Cordeiro, e nunca um lobo fica tentado a ... sabe como é ... um costume tão antigo ... uma coisa até instintiva? CORDEIRO – Jamais. Eles se têm mostrado perfeitos cavalheiros. E ainda mais, todos os anos eles escolhem um dia para se penitenciarem das maldades de outrora. É o dia da Grande Penitência. VELHA – (Com lágrimas) Meu Deus! Como tudo isso é comovente! ... me dá esperanças. Vou comprar um vestido novo ... Vou visitar minhas primas que moram em Belos Montes!

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VELHO – Sabe que isso pode mudar a nossa vida? É como um ramo verde ... um raminho que brotasse numa terra seca! Ah, se tivéssemos sempre notícias tão boas! Tudo seria diferente ... se seria ! ... CORDEIRO – Vocês não podem imaginar como eu fico feliz! ... Na verdade, gostaria de ficar o dia inteiro para contar-lhes coisas ainda mais belas ... mas como tenho de procurar o meu amigo lobo, fica para outra vez. VELHO – Claro, corra atrás dele! Não se demore por nós. CORDEIRO – E que caminho ele tomou? VELHA – Foi por ali, exatamente por onde o senhor veio. VELHO – Não faz nem uma hora. Se andar depressa, poderá alcançá-lo antes da baixada. CORDEIRO – Boa-tarde, então, e que tudo lhes corra bem! VELHO – Desejamos o mesmo. VELHA – Volte algum dia. VELHO – Trazendo notícias tão lindas. CORDEIRO – Adeus! Voltarei, voltarei ...

(O Cordeiro começa a sair.)

VELHA – Que simpatia, que criatura mais tenra! VELHO – (Acenando) Que Deus o abençoe, meu filho!

(Os dois começam a rir baixinho, depois num crescendo.)

VELHA – Há quantos, há quantos anos eu não me divirto tanto! Como ele representa bem! ... Deve, realmente, haver um circo pelas redondezas ... Você viu a cara que ele fazia? É um artista, e dos bons! VELHO – Tomara que de vez em quando apareça alguém assim. Afinal precisamos de um pouco de diversão!...

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VELHA – Me desopilou o fígado.

(Riem)

VELHO – Por hoje, basta! Já nem tenho vontade de olhar o rio. VELHA – Eu também estou satisfeita. VELHO – Vamos para a casa, velha. Acho que vou dormir como uma pedra. VELHA – Mas vou descer devagar porque meu reumatismo ...

(Começam a descer das escadas. Surge novamente o Homem, agora sem nenhum travestimento.)

VELHO – Você está vendo? VELHA – Estou. VELHO – Ele, de novo!

(Correm a se empoleirar nos degraus em que estavam antes.)

VELHA – Vamos ver que histórias tem para contar. VELHO – Espero que sejam divertidas. VELHA – Nunca se sabe. HOMEM – Olá! VELHO – Olá! HOMEM – (Dando uns passos) Uma bela tarde, hem! VELHO – (Fazendo o gesto que indica surdez) Aproxime-se mais, porque já não ouvimos bem. O que o senhor disse? HOMEM – (Aproximando-se) Disse que a tarde estava muito bonita. VELHO – É porque estamos em abril. VELHA – Nunca o céu fica tão azul. 13


HOMEM – É verdade. VELHO – Abril é sempre assim. HOMEM – Espero não estar aborrecendo vocês. VELHO – Para ser sincero é até um prazer. Vivemos muito isolados ... quase não temos com quem conversar. O senhor está na vila? HOMEM – Estou e não foi fácil arranjar alojamento. O pessoal é um pouco desconfiado, não? VELHA – Com os desconhecidos. VELHO – E tem suas razões. VELHA – E de onde o senhor veio? HOMEM – Eu vim da capital. Conhecem? VELHA – Nunca saímos daqui. Para falar a verdade só conhecemos Belos Montes. VELHO – O senhor veio trabalhar na usina? HOMEM – Não. Eu vim por outros motivos, motivos que ... (Mudando de opinião) ... Eu me chamo Leonardo. VELHO – Eu, José. HOMEM – E a senhora? VELHA – Há tanto que ninguém quer saber o meu nome ... que sua pergunta me parece até estranha. HOMEM – Não precisa dizer. Eu vou adivinhar. VELHA – O senhor é mágico? HOMEM – Bem ... às vezes. Quer que eu diga o seu nome? VELHA – Vamos ver se adivinha ... HOMEM – (Simulando concentrar-se) A senhora se chama ... se chama ... Ana! VELHA – Muito bem, acertou. Mas que outras mágicas sabe fazer? HOMEM – Só essa. 14


VELHA – Não quero ofendê-lo, mas já vi coisas mais interessantes num circo. VELHO – É pena que não saiba outras. Poderia ser tão divertido. VELHA – É pouco para um mágico. VELHO – Se pelo menos soubesse tirar coelhos da cartola ... HOMEM – Já que vocês não ficaram satisfeitos, eu vou me esforçar ... Vou tentar outra ... A senhora tinha um filho que se foi daqui. VELHA – Tive sete e todos se foram. HOMEM – Um se chamava Leonardo. VELHA – Como o senhor. HOMEM – Exatamente como eu. (Mostrando) E ele tinha uma marca no polegar esquerdo ... uma cicatriz. VELHA – Acertou de novo. O senhor é um bom mágico. HOMEM – Ele se foi sem dizer nada ... sem despedir-se de ninguém. VELHA – Correto. E como ele demorasse para sair do quarto, eu fui acordá-lo ... HOMEM – E ele já estava longe. VELHA – E nunca mais soubemos notícias dele. O senhor é realmente um bom mágico. VELHO – Chegamos até ir à polícia ... até avisos nos jornais. HOMEM – E nada disso adiantou. VELHA – O senhor acerta sempre. Estimo que faça uma bela carreira nessa profissão tão fascinante. HOMEM – Mas hoje ele voltou e pede perdão desse ato irrefletido. VELHA – (Para o Velho) Você tem alguma coisa para perdoar? VELHO – Não. VELHA – Nem eu. HOMEM – Mas ele não foi feliz! Sentiu-se culpado o tempo todo.

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VELHA – É algo pelo qual não podemos fazer nada. Nada, meu senhor. HOMEM – Ele quer reparar a sua falta! VELHA – Falta? Em relação a quem? A nós? HOMEM – Sim, por todos esses anos de abandono ... Mas saibam de uma coisa ... nunca houve, realmente, indiferença ... Mesmo nos momentos em que ele se julgava feliz, a lembrança de vocês o perturbava ... Era um chamado, podem estar certos! ... VELHA – É lamentável que nossa lembrança tenha estragado seus melhores momentos. HOMEM – E não é só ... não é só isso. O que vou dizer é difícil ... as palavras me pregam na garganta ... mas sempre houve ... acreditem-me ... sempre houve amor. Amor, entenderam? VELHA – (Para o Velho) Ele diz coisas banais. VELHO – E quase não fazem sentido. HOMEM – É isso o que vocês pensam? ... O que sentem? VELHA – Não sentimos nada. Essa palavra que o senhor disse – amor – já não tem para nós nenhuma importância. Há certas palavras que usamos por algum tempo ... depois elas somem das nossas bocas e de nossos corações. HOMEM – Mas uma vez eu li num livro ... foi num velho livro: “O pai ordenou a seus servidores:Trazei depressa a melhor roupa e revesti-o, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei também o novilho gordo, matai-o, comamos e façamos uma festa, porque meu filho estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi encontrado”. Ouviram? Houve uma grande festa ... uma grande alegria! VELHA – Não é o nosso caso. E depois nunca tivemos livros em casa. E agora, mesmo que quiséssemos, seria uma inutilidade. Já quase não enxergamos ... a idade, sabe? HOMEM – Devo voltar, então? ... Ir assim, sem nenhuma palavra ... sem nenhuma palavra de ... VELHO – De quê? Palavra de quê? HOMEM – De ternura. VELHA – Volte, meu senhor, volte pelo mesmo caminho por onde veio. Já está ficando tarde. HOMEM – É difícil acreditar ...

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VELHA – Adeus! VELHO – Adeus!

(Os dois velhos voltam a contemplar o rio.)

VELHA – (Para o Velho) Raramente encontramos alguém na margem do rio. VELHO – Às vezes algum estranho. Se estamos de bom humor não negamos um cumprimento.

(O Homem se retira lentamente, voltando-se, às vezes.)

VELHA – Mas isso é tudo. VELHO – Ele passa e esquecemos o seu rosto. VELHA – Foram muitas histórias, preferia a do lobo. Tinha qualquer coisa de muito amargo, mas tinha também um lado comovente. VELHO – Eu achei o cordeiro mais engraçado ... e até mais simpático. VELHA – Ele era ingênuo. Você quer saber? ... Tenho medo que ele se meta numa enrascada. VELHO – Você acha que o lobo ...? VELHA – Se eu fosse cordeiro jamais procuraria uma tal amizade. VELHO – Mas em todo o caso nos divertimos um bocado. VELHA – Mas a última ... francamente! Que história mais desagradável! VELHO – Mal contada. VELHA – Ele queria nos comover. Tenho certeza de que era isso que ele pretendia. VELHO – E não conseguiu. VELHA – Talvez lhe faltasse imaginação. VELHO – Talvez.

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VELHA – Olhe o rio. Agora ele está uma maravilha. VELHO – Daqui a pouco será noite. VELHA – E não o veremos mais. VELHO – Só o seu murmúrio. VELHA – Só o seu mumúrio.

(Nas últimas falas da peça a luz vai diminuindo.)

Aqui fenece o ato.

São Paulo – 1984 – Abril

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