I Antologia de contos

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Antologia de Contos Escritor da Depress達o

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Sacrifício Nathália Nobre

halian era linda. Mesmo que não pudesse vêla claramente na penumbra do quarto, seus traços eram o tipo de coisa que um homem mortal ou não - dificilmente esqueceria. O cabelo negro caiu sobre os ombros nus quando montou sobre ele, emoldurando o

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rosto delicado. A pele sedosa brilhava sob a luz bruxuleante das velas, dando-lhe aspecto de uma deusa do fogo. Os olhos - duas esmeraldas de um verde vibrante - o encaravam famintos, como se seu corpo fosse uma apetitosa especiaria. O corpo esguio se curvou sobre o dele, roçando os seios rosados sobre a pele morna de seu peito. Os lábios cheios se chocaram contra a linha dura de sua boca, convidativos, como uma fruta vermelha que acaba de ser colhida. Aquela ideia combinava à perfeição com tudo que era relacionado a ela. Desde o sugestivo papel de parede escarlate, aos detalhes em dourado que se estendiam por todo o cômodo, sobre as mobílias suntuosas, que poderiam ter pertencido a alguma rainha cortesã. A alusão à algo tão profano, o fez sorrir. A feiticeira deslizou uma unha longa sobre os contornos definidos de seu pescoço, forte o suficiente para que uma fina linha vermelha se formasse. — Eu adoro seu sangue mestiço... Corrompido desde que foi gerado. As comissuras dos lábios de Adam se moveram, mas o sorriso não alcançou seus olhos. Dhalian havia dito o mesmo, anos antes, quando estiveram juntos pela primeira vez. Naquela época, era apenas um rapaz das estribarias que não sabia muito a respeito de si mesmo, e não poderia dizer que estivesse corrompido de alguma forma até então. Havia crescido em Aisland, um reino onde a magia era proibida, e sua pratica era paga com a vida. Após a morte de sua mãe, decidiu deixar o lugar onde sua existência deveria ser um segredo, e foi quando se tornou um pupilo de Dhalian. Poderia ter colocado a mão no fogo em nome da bela mulher, e o certo é que teria se queimado. Ela era tão bonita quanto perigosa, e essa fora a primeira lição aprendida. A segunda, foi que apenas os homens fortes de coração sairiam vivos dali e os crânios que decoravam o salão principal, eram um lembrete de muito mau gosto. Durante muito tempo havia temido a feiticeira, tornandose além de pupilo, seu escravo e amante, até ser forte o bastante para ganhar sua liberdade. Na ocasião, prometera a si mesmo que nunca mais voltaria a pôr os pés ali, mas o destino havia encontrado uma maneira de contraria-lo e ali estava ele. Suas mãos percorreram as pernas longas, agarrando-se aos quadris

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que se moviam sobre o seus próprios, lançando uma onda de calor por todo o seu corpo. — Você é linda — sussurrou ele, reconhecendo o fato que fazia de seu corpo um traidor, mas que não mudava seu descontentamento nem minimamente. Ela sorriu, e o imobilizou sobre os lençóis de seda, prendendo seus pulsos acima de sua cabeça. — É por isso que está aqui? — quis saber, com uma nota do que poderia ser arrogância ou ironia, no tom de voz. — Estou aqui porque precisava vê-la — respondeu, selecionando cuidadosamente suas palavras. Ela hesitou, encarando-o longamente — Apenas veja se estou mentindo, não confia mais em seus poderes? — Não me subestime. Se havia algo que a irritava, era o questionamento de suas habilidades. Ele tentou se mover, apesar do brilho de advertência em seu olhar, mas as mãos em seus pulsos se apertaram como garras. — Acaso pareço tolo? — Você nunca foi tolo, o que faz de você um homem perigoso — assinalou, erguendo uma sobrancelha bem delineada. — Não foi você quem disse que meu coração está manchado pela bondade? — provocou ele, libertando-se do aperto que o prendia, para rolar sobre ela. Um sorriso de cruel satisfação surgiu nos lábios masculinos quando se abaixou para beijar os traços delicados de sua clavícula, eriçando os pelos da região sensível. — O que não significa que não haja maldade o bastante em você... — Ela se arqueou, cerrando momentaneamente os olhos para absorver as sensações que a inundavam. — Há algo que quero saber, Dhalian... — A voz de Adam se transformou em um sussurro, como se temesse despertá-la de seu torpor. Dhalian ronronou um assentimento, e ele prosseguiu. – Você não sabia que eu viria, não é mesmo? Suas visões não a alertaram sobre minha presença. Quando a feiticeira abriu os olhos, surpresa, já era tarde demais. Uma dor dilacerante atingiu seu peito, como se uma grande lâmina lhe rasgasse a pele, indo de encontro ao seu

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coração. Na verdade, era a mão de Adam. Com um pouco de magia e um golpe preciso abaixo do esterno, o mestiço a deixou completamente rendida. Dhalian resfolegou em busca de ar, com os olhos vidrados no semblante divertido de Adam. — Você não pôde prever, porque sou aquele que lhe trouxe a morte. Adam podia recordar vividamente as palavras de Dhalian a respeito de suas visões. Nenhum feiticeiro poderia prever o próprio futuro, nem mesmo daqueles que interferissem em seu destino. Do contrário não teriam o livre arbítrio de suas ações. Dessa forma, seus planos de assassiná-la puderam passar despercebidos – uma vez que não teria chances em uma luta corporal, aquela fora a única maneira de chegar até ela. — Acaso o nome “Khalyn” te traz alguma recordação? — Provocou, apertando o órgão escorregadio com a mão. O líquido quente e pegajoso banhava-o até o punho, escorrendo livremente pelo ferimento. Dhalian tossiu, na tentativa de falar, e suas mãos se fecharam inutilmente ao redor do braço de Adam. — Sim, é claro que sim — respondeu a si mesmo. Seu tom passou bruscamente da diversão à fúria, deixando o cinismo de lado ao pensar em Khalyn — Você prometeu que me alertaria caso algo acontecesse a ela. Esse foi o nosso trato! — as últimas palavras foram ditas em um grito — Quando me tornei seu pupilo... E o quebrou! — Seu... P-ponto f-fra-co... — as palavras saíram arrastadas, sendo mal articuladas, mas ela sorriu ao pronunciálas — Vo-c-cê... P-pagar... Com-a-vi-d-da... — Pagarei pelos motivos certos — Cuspiu em resposta, sentindo a adrenalina percorrer-lhe as veias como se tivesse sido injetada — Nos veremos no inferno, Dhalian. Com um puxão, Adam a silenciou para frente, e o fez com uma enorme satisfação. •••

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Ao sair de Aisland, Adam havia deixado seu coração com a corajosa jovem que fora sua única amiga em toda aa vida. Khalyn havia se aproximado furtivamente, sem fazer perguntas indesejadas a seu respeito ou ao modo como vivia; sempre isolado dos demais garotos. Ela costumava observar seu trabalho pelas tardes, enquanto lhe contava histórias que havia lido às escondidas, nos livros de seu pai, um artesão da vila em que viviam. Ele havia apreciado sua companhia, ansiando ao fim de cada dia, por ver a garota de sardas novamente. Não percebera o quanto ela havia crescido, até o momento em que se despediu dela, na estrada dos desertores, o único caminho para entrar ou sair de Aisland. Podia vê-la ainda, com o vestido cor de rosa manchado pelo barro, e os cabelos ruivos como o fogo vivo, emoldurando-lhe o rosto, que em breve seria o de uma mulher. Os olhos azuis, quase sempre astutos e sorridentes, ficaram marejados naquele momento, quebrando-o de mais formas que supunha ser possível. Todas as perguntas que havia desejado fazer pareciam, de repente, querer saltar por sua garganta. Além disso, a ideia de que ela poderia esquecê-lo, quase fez com que desse meia volta em direção às muralhas fortificadas do reino. — Eu vou cuidar de você, onde estiver. — Ela disse completamente convicta, ainda que aquilo soasse absurdo para ele.

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Anos depois, havia comprovado que ela estava certa. Quando era submetido às humilhações de Dhalian, era a lembrança de Khalyn que o mantinha racional, e foi o desejo de voltar a vê-la que o fez forte o bastante para conquistar sua liberdade. No entanto, não pensara duas vezes antes de arriscar-se novamente, ao descobrir que a vida de Khalyn dependeria disso. Como o filho de um feiticeiro com uma mulher, seus poderes não alcançavam o tipo de magia necessária para curar o mal que a acometia. Assim, fora em busca de Hadash, um feiticeiro que vivia nos limites do cemitério, que fora palco da grande guerra entre os homens e as bestas da noite, cem anos antes. O preço pela cura fora o coração de uma feiticeira; um poderoso sacrifício resultava em maiores poderes para quem os exerciam. Escolhera Dhalian por havê-lo traído, ao manter em segredo o verdadeiro estado de saúde de Khalyn, e não se arrependera. Na verdade, pouco reconhecia de si mesmo, quando deslizou sobre a mesa de madeira, a trouxa de couro onde estava o coração extirpado. Depois disso, havia levado a metade de um dia para chegar até Hadash, mas as sensações que sentira no momento, ainda estavam presentes. Adam não queria pensar nisso, assim, concentrou sua atenção no idoso encurvado, que verificava o conteúdo com um sorriso de fria satisfação. — Onde está a cura? - Perguntou, ignorando qualquer premissa. Havia levado a metade de um dia para retornar à velha cabana do feiticeiro, e o tempo não estava a seu favor. Hadash voltou a fechar o pequeno volume com as mãos nodosas, voltando-se para uma estante que ocupava a metade de uma parede. - Não tenha pressa, rapaz. A resposta, dada com casualidade, fez com que o corpo de Adam se tencionasse pela raiva. — Ela está morrendo! Como pode dizer que não devo ter pressa?! — seu punho se chocou contra a mesa com um golpe seco, fazendo com que os objetos sobre ela -um cinzeiro e um castiçal de alumínio- titubeassem. O barulho atraiu ao rapaz que se encontrava no cômodo ao lado. O Jovem, que não devia ter mais que quinze anos, apareceu na sala através de uma cortina artesanal, que dividia

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um cômodo e outro. Adam poderia ter reconhecido os traços familiares a quilômetros de distância. As mexas de cabelo ruivo reluziam com a luz que se infiltrava pelas paredes, entre uma tábua e outra. - Adam! Finalmente chegou! — O irmão de Khalyn se aproximou. — Khiu? O que faz aqui? A cabana de Hadash ficava em meio à mata densa, onde a era havia crescido livremente, tornando-se o esconderijo perfeito. Não era tão simples assim localizá-la, e o acesso só era possível a pé. — O feiticeiro nos trouxe — disse o rapaz, com um tom ligeiramente reverente. — Espere, você disse que ele trouxe você e... — a frase morreu no ar, e Khiu assentiu. — Trouxemos Khalyn, para que pudesse curá-la. Só você pode salvá-la... Mas ele não estava mais prestando atenção. Ignorando Hadash e ao próprio Khiu, Adam avançou para o vão adiante, com o coração martelando firmemente em seu peito. Khalyn estava deitada sobre uma cama de palha, no outro extremo da cabana. Estava ainda mais pálida que da última vez em que a vira, e até seu cabelo parecia desbotado, como se a doença tivesse roubado seu brilho natural. «Estava lhe roubando a vida» uma voz interior fez questão de recordar. Ele se aproximou da cama, tentando não fazer ruído, mas os olhos azuis se entreabriram como se pressentisse sua presença. — Adam... — ele se agachou imediatamente ao seu lado, temendo que o menor esforço pudesse ser demais para ela. — Eu estou aqui, Khalyn. Eu consegui — isso a fez sorrir, ainda que muito pouco. Sua mão procurou pela dele, encontrando-a no meio do caminho. — Eu tive tanto medo, de não poder vê-lo outra vez... — sua voz estava fraca e pausada, de forma que precisou se concentrar para poder entendê-la. — Eu disse que viria. Acaso já lhe disse alguma mentira? — ela sorriu novamente. — Na verdade, sim.

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Sem poder conter o calor que parecia romper o gelo em seu peito, Adam se curvou sobre ela, para beijar-lhe os lábios pequenos. — Sempre desejei fazer isso, e estou sendo sincero quanto a isso — murmurou, tentando empregar humor em sua voz, para que ela não percebesse a emoção que o embargava no momento. — Sempre desejei que o fizesse — seus olhos se fecharam por um momento, e tornaram para encarar o rosto que conhecia tão bem, mas que havia mudado tanto — Quando o perseguia, pelos estábulos... — Shhh... Não que Khiu a escute, seria uma péssima influência para ele. — Você era tão bobo... — ela continuou, piscando levemente. — Eu não sou mais aquele garoto, Khalyn. Havia sentido uma prazerosa sensação ao ter o coração de Dhalian em suas mãos, como se o poder preenchesse cada célula de seu corpo, na medida em que a feiticeira estava a sua mercê. Não podia dizer que se importava com os julgamentos de qualquer pessoa, mas Khalyn... Khalyn o importava além de quaisquer medidas. Dedos finos, com unhas curtas e bem cuidadas, tocaram-lhe o rosto áspero pela barba que crescia, e acariciaram sua pele bronzeada. — Não? — seu olhar encontrou o dele — Então porque está chorando? — Porque eu a amo... — ele disse, sem poder conter as lágrimas que marejavam seus olhos. — Prometa que não vai mais embora... Ele passou os braços ao redor do corpo delgado, atraindo-a para si. Precisava abraçá-la, pelo menos uma vez. Uma garra parecia esmagar-lhe o coração, mas ele sabia que havia tomado a decisão correta. — Sou eu quem vai cuidar de você, de agora em diante. – Uma mão afagou suas costas com extrema delicadeza; a ternura era algo que Adam não conhecia muito bem, mas parecia-lhe natural afagá-la, mesmo que isso o derretesse por dentro. Naquele momento, Hadash apareceu. Em uma mão, havia um pequeno pote de vidro, com um líquido branco. Na

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outra, uma faca com o cabo de prata. Em um acordo tácito, Adam assentiu, deitando Khalyn novamente sobre a cama. Ele se levantou, erguendo a mão para que um corte lhe fosse deferido. O pote foi posicionado abaixo do ferimento, para que o sangue fosse absorvido, até que o liquido ficasse vermelho. Adam não sentiu a dor em sua mão, nem hesitou quando o feiticeiro levou o vidro aos lábios de Khalyn. Khalyn segurava sua mão, quando os efeitos da poção a fizeram adormecer. Adam planejava partir em seguida, para que seu corpo caísse longe o bastante de onde ela pudesse ver; mas no último momento, não foi capaz de se mover. Desejava morrer ao seu lado, e que seu rosto fosse a última coisa que seus olhos mortais vissem. Aos poucos, a cor retornou às bochechas de Khalyn, e aos lábios pequenos, sombreados por um nariz reto. Os cílios longos eram da cor do cobre, assim como as sobrancelhas arqueadas, e o cabelo, ligeiramente cacheado em suas extremidades. Para ele, sempre seria a mais bela das mulheres; a mancha de luz que profanava o negro de seu coração. Com alguma sorte, ela nunca saberia a verdade a seu respeito, nem descobriria que havia se tornado o monstro que Dhalian tanto desejara criar. Talvez, as coisas fossem melhores assim, porque nunca seria realmente digno dela. Havia partido em busca de conhecimento, apenas para descobrir que tudo o que precisava, havia estado ao seu lado o tempo inteiro. Em um mundo no qual um mestiço não tinha lugar, Khalyn havia se tornado seu lar, e graças a ela, havia conhecido o real sentido de estar vivo. Sem ela, nada disso seria possível.

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— Eu não podia... Perdê-la novamente... Uma vida pela outra, era assim que as coisas funcionavam na natureza, em seu ciclo de eterna harmonia. Parecia-lhe justo. Um grito cruzou o aposento, no momento em que Adam perdeu o equilíbrio, tombando para o lado. Ele fechou os olhos, sendo amparado pelo jovem Khiu. Quando uma gota salgada caiu sobre o rosto de Adam, ele sorriu, e adormeceu em seguida.

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