Phantasticus
I Antologia de contos — Escritor da Depressão
Organizadores: Rebeca Polizel e Nathalia L. Nobre Diagramador: João Marcos Oliveira Ilustradora: Rebeca Polizel Capa: João Marcos Oliveira Revisores: Sabrina Rolim, Nathalia L. Nobre e Geraldo Gomes
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução no todo ou em parte através de quaisquer meios.
2014
Sumário Açúcar da Vida — Pág. x Ar — Pág. x A Fada e o Fugitivo — Pág. x O Causo da Estrada de Cabrobó — Pág. x O Sussurro Negro — Pág. x Sanatório Reyes Albuquerque — Pág. x O Andarilho da Noite — Pág. x Cicatrizada à Fogo — Pág. x Súbita Ilusão — Pág. x A História das Fadas Doceiras — Pág. x Coletor de Almas — Pág. x O Livro do Dragão — Pág. x Atrás de Você — Pág. x Um Eterno Sonho de Morte — Pág. x Prometida — Pág. x A Maldição da Lua — Pág. x Relacionamentos — Pág. x O Amante Secreto de Eva — Pág. x Mefistófeles — Pág. x A Luz da Noite Majestosa — Pág. x Encantada — Pág. x Córrego de Lembranças — Pág. x O Legado de Élÿn — Pág. x Onde Estou? — Pág. x A Vingança das Lendas — Pág. x Imaginação — Pág. x Como Havia Prometido — Pág. x Fantasias e Ilusões — Pág. x Sonhos — Pág. x Sombras Felinas — Pág. x Fé — Pág. x Crônicas de Dragonia: O Conto Arrematado — Pág. x Sacrifício — Pág. x Olho do Tigre — Pág. x
A Lenda de Skelver — Pág. x A Breve História de um Príncipe... — Pág. x Como se Livrar de um Bloqueio Criativo — Pág. x O Chamado — Pág. x Te Peguei — Pág. x O Quinto Medalhão — Pág. x A Trilha — Pág. x Memórias — Pág. x
Introdução Muito antes de surgir a ideia de que fizéssemos uma antologia voltada para o grupo “Escritor da Depressão”, e de que ela tomasse alguma forma, não era incomum que alguém dissesse “eu quero ter todos vocês na minha estante!”. Foi com esse pensamento que, em meio a uma de nossas tantas conversas malucas, decidimos que seria incrível poder reunir um pouco do trabalho de cada em um só lugar, e melhor; poder ter nossas próprias palavras impressas em um livro que pertenceria e representaria a todos nós. Abrimos o projeto para nossos colegas escritores, e recebemos cada resposta com a expectativa e a ansiedade natural das pessoas que sonham em criar algo digno de ser admirado. O fato de que nenhum de nós organizadores tivesse muita experiência foi deixado em segundo plano e entramos com a mente e com o coração para fazer o que fazemos de melhor: sonhar entre linhas. Esta antologia nasceu, no fim das contas, como um pretexto para unir um grupo por laços que nem todo o café do mundo pode comprar. Queremos que nestes singelos contos, aprecie e se enterre em cada pedacinho de mundo que encontrar, vasculhe cada toca e toque em cada objeto magico, que faça amizade com todas as criaturas inimagináveis e fique bem esperto para as surpresas e desventuras ocultas pelo caminho. Afinal, não desejamos nada além daquilo que queremos para nós, bons amigos e uma boa leitura. Organizadoras Nathalia L. Nobre e Rebeca Polizel.
Phantasticus
Açúcar da Vida Esther Martins
Prefiro meus olhos vendados, minhas mãos atadas, meu mundo imaginário. Minhas fadas, duendes, vampiros e lobisomens, me encantam mais do que seres humanos. Prefiro viver em um mundo onde pecado carnal e espiritual é perdoado e guerras não existem. Prefiro a montanha russa à realidade maçante em que vivemos. O mundo é como um carrossel, sem graça, sem movimento. O mundo é cético, é sério. É chato. E é por isso que eu prefiro viver em meu mundo; mundo em que eu vou conquistar tudo o que almejo, mundo do qual só tem felicidade, onde o Príncipe Encantado carrega-me no colo e o feliz para sempre existe. Esse mundo é um mundo digno. Em suma, a fé é uma coisa tão engraçada... Você percebe que um dia qualquer é aquele dia que você tanto sonhou. Que o castelo pode ser aquela casinha localizada em um local tranquilo. Que também não é tão importante esse final dramático de histórias infantis. O que importa, agora e para sempre, para mim, é aquele café doce e quente de manhã. É aquela preguiça matinal de seguir em frente. São os poucos momentos felizes que a gente vive. São os poucos sorrisos sinceros que damos para aquele estranho vizinho que sempre nos cumprimentou. No fim, nós vemos que a fantasia é algo que adoça a vida e que lhe dá estímulo. Nós percebemos que seria querer demais o inatingível; que seria querer demais a vida perfeita. Sentido é fazer a vida perfeita.
Phantasticus
Ar
Hannah Lara Schröer do Nascimento
om um suspiro que veio do profundo de seus pulmões, o caçador guardou a flecha na aljava novamente, sentindo as voltas em seu estômago como um aviso do que o aguardava para a noite: fome. Nada que não estivesse acostumado. Caminhou lentamente até a casa de trocas, sentindo as folhas debaixo de seus pés e o vento frio da noite em seu rosto; os
C
cabelos louros sendo jogados para trás, as mãos tremendo, não por fraqueza, mas pela mais pura dor que o assolava. Na primeira vez que havia matado uma pessoa, não dormiu por três noites. É claro que não deveria permitir esse tipo de atitude – afetaria em seu desempenho para alcançar seu destino – mas não pôde evitar. Os olhos arregalados, a boca entreaberta, o cheiro de sangue e as gotas deste espirradas em seu próprio rosto. Três noites. Na segunda vez, dormiu. Porém teve pesadelos. Dos mais vívidos e terríveis possíveis. Urubus e corvos e animais rastejantes lhe arrancavam os membros, lhe mordiam a face e bebiam de seu sangue. E, após a terceira vez, ele quis matar de novo. Sacudiu a cabeça para livrar-se das memórias e abriu a porta da casa de trocas. O cheiro do lugar, terrível no começo, invadiu suas narinas e ele não pôde evitar cerrar o cenho. Tabaco, cerveja, suor, urina e algo mais, talvez o perfume das prostitutas. Suspirou pesado e aproximou-se do balcão, tirando de sua sacola um cachimbo, como se o cheiro não fosse o suficiente e ele precisasse contribuir. A velha mulher detrás do balcão lhe sorriu; os dentes amarelados e as olheiras debaixo dos olhos bastante pronunciadas. Ela também emitia um cheiro, cheiro de pessoa velha, se não for rude dizer algo assim. — Como vai, caçador? — ela lhe perguntou. É claro que ninguém sabia seu nome. Por que se importaria em conceder tal informação se logo partiria e deixaria para trás essa estúpida floresta? Ele não respondeu. — Não trouxe nada para mim hoje? — Você vê algo em minhas mãos? — sua voz rouca saiu confusa e ele pigarreou. A mulher soltou uma risada e passou a limpar alguns copos com um pano engordurado. Nenhuma presa, nada que o pudesse ajudar a ganhar um pedaço de pão ou um copo de água, ou quem sabe até um quarto para dormir. Achegando-se de um homem encostado sobre o balcão, a cabeça descansando nos braços – provavelmente desmaiado após muitas bebidas – o caçador acendeu seu cachimbo com o do homem, aproveitando o fogo. O cheiro da erva aliviou a mistura de odores do lugar e
ele quase sorriu. Como um bom negociante, ergueu as sobrancelhas à velha, apontando para um pedaço de carne seca pendurada em um gancho na parede. Pigarreou novamente para fazer sua voz sair mais entendível. — Vai ter uma tempestade hoje à noite, — ele disse. — Oh, é mesmo?— ela respondeu, não muito interessada. — Isso significa que os animais estão escondidos. Não sairão hoje, nem que morram de fome, — ele continuou. — E no que isso se assemelha a você? — ela riu. O caçador bufou e deu mais uma tragada no cachimbo antes de continuar. — Prefere cobras? Ou quem sabe sapos? Dê-me um pedaço da carne e amanhã lhe trago um coelho gordo, quem sabe dois. — ele disse, e interrompeu-a quando ela já começava a negar. —Tudo bem. Posso ir para a outra casa de trocas no lado oeste da floresta. Com um humor muito melhor, o caçador saiu do lugar, sentindo o ar frio da noite. O estômago cheio, os pulmões aliviados, a cabeça leve. Ele olhou para cima e suspirou. Teria de encontrar um lugar para dormir. Era esse o destino dos caçadores, dos desabrigados, dos sem família. Passar as noites frias de tempestade sozinhos, debaixo de uma árvore ou dentro de uma toca, como pequenos e assustados coelhos, exceto pelo azedume de seus corações. Pisando silenciosamente, como um pequeno gato, o caçador caminhou por entre as árvores, seguindo rumo nenhum, as pernas se movendo automaticamente. — Olvin, — chamou uma voz conhecida, suave e doce contra o vento frio da noite. O caçador virou sua cabeça, olhando para trás e encontrando os azuis olhos de Ar. Aqueles olhos que denunciavam uma pequena e inocente menina, mesmo que ela também mantivesse sua feição sob uma máscara de frieza. Ela era a única na floresta que lhe sabia o nome, é claro. — Achei que estivesse em sua árvore, — ele respondeu; a voz rouca fazendo cócegas em sua garganta. Pigarreou mais uma vez, esquecendo que isso nunca adiantava.
— Vai ter tempestade, — ela explicou-se. — Não me diga, — respondeu ele, soando mais sarcástico do que realmente pretendia. Ela riu. — Estava tentando achar uma caverna, mas encontrei você ao invés, — ela disse, baixando os olhos, a pouca luz denunciando uma cor um tanto mais escura em suas bochechas. Olvin sorriu um pouco, as curvas de seus lábios movendo-se para cima, o típico sorriso de quem passou anos evitando sorrir. — Vem, — ele chamou, começando a caminhar, direcionando-se à caverna onde já havia passado algumas noites. Ar caminhava silenciosamente ao lado dele, o calor de seu corpo, perto do dele, lhe trazendo mais alguns sorrisos. O arco e a aljava em suas costas fazia peso com as novas flechas, e com o canto do olho, Olvin percebeu que talvez Ardajö fosse precisar de algumas. Enquanto dormisse ele poderia esconder um pouco em sua aljava. E ali estava, a prova de que, o que tanto odiava e evitava, estava acontecendo. Um caçador frio e sem coração, especialmente um como ele, buscando alcançar seu destino, não deveria se importar com ninguém. Não deveria sorrir. Não deveria ter companhia durante a noite. O enfraquecia, o tornava vulnerável. Amor não era algo para pessoas como ele. — Como está sua mão? — ela interrompeu seus pensamentos. Olvin apertou o passo enquanto lembrava-se de algumas semanas atrás, quando em uma manhã, socou uma árvore até que sua mão direita, e um tanto da esquerda, ficou em carne viva; o sangue escorrendo e a dor lhe tirando os sentidos. Socara a árvore para evitar sentir, Ardajö cuidou de suas mãos, sentiu ainda mais. Soluções trágicas para problemas temporários – ou quem sabe não. — Está bem. Usei as bandagens por alguns dias, juro, — ele sorriu e a risada de Ar lhe fez cócegas no ouvido, esquentando sua frieza, derretendo seu gelo. Tão estranho chamar-lhe “Ar”. Era como se o próprio nome da moça admitisse que ela era a sua vida. Significava “brasa”, ela lhe dissera. Para Olvin, não havia nome melhor.
Ela caminhava um tanto atrás, em diagonal à ele e respirava tão silenciosamente que ele mal podia ouvi-la. É claro, ela também estava acostumada com a floresta. O silêncio, normalmente bem-vindo, era estranho para ele, o fazia pensar, refletir. Já pensava demais quando sozinho, com Ardajö ao lado queria apenas… descansar. Por mais estranho que parecesse, ouvir sua voz lhe trazia paz, esperança. Ela lhe trazia esperança. Esperança de que existia solução para ele. Para o humano tão frio como escamas de dragão. Ironicamente. — Você está com fome? — ele perguntou, quando a caverna estava mais perto e ele já podia ver suas sombras escuras na noite também escura. — Um pouco, — ela admitiu, e Olvin pensou se ela estava mentindo, diminuindo a intensidade da fome para que não soasse desesperada, mas não perguntou mais nada. Tirou um pedaço da metade de carne seca que guardara e lhe entregou, calorosamente recebendo seu sorriso de gratidão. Suspirou. Um trovão retumbou nas alturas, lembrando aos dois que não se pode controlar a natureza, e, fugindo realmente de seu controle, algumas gotas geladas de chuva passaram a cair, molhando os cabelos louros de Olvin, ao que ele puxou o capuz de seu sobretudo, mencionando à Ardajö que corressem. A caverna era receptiva, o calor e a sua amplitude lhes davam segurança da chuva que já caía em torrentes, lavando a floresta. Ar passou a trabalhar na entrada, construindo um certo tipo de porta, protegendo-os do vento e de predadores que fossem mais corajosos para sair debaixo da tempestade. O caçador pegou de dentro de sua sacola duas pedras bruscas e alguns galhos que, por precaução, sempre mantinha consigo. Se a porta de Ardajö funcionasse, fogo seria bem-vindo. Ela sorriu e sentou perto da fogueira, as luzes fazendo sombras em seu rosto. Olvin olhou-a por alguns minutos, desviando os olhos quando ela o encarou de volta. Tirando uma faca de dentro de um bolso de seu casaco, ele passou a rabiscar no chão da caverna, a cabeça um tanto longe. O silêncio era sufocante, embora a garota não parecesse se importar com ele.
Ela soltou seu cabelo, sempre amarrado em uma trança, e passou a penteá-los com os dedos; algumas gotas de água caindo deles, marcando o chão com pequenos pontos escuros, logo secando-se graças ao calor do fogo. — Aquele dia em que nos despedimos, — ela começou, mas ele levantou a mão, pedindo que parasse. — Ar, não. Não precisamos falar sobre aquilo, — ele disse. Ela sorriu tristemente. — Eu só quero entender. Você disse que nunca voltaria. Eram as suas intenções. Abandonar a garota que o fizera sentir, a garota que o fizera ter esperança. Rir, chorar, a garota que o trouxera um desejo de estar perto, de abraçar, de… Suspirando, ele acenou com a cabeça por um momento, lembrando daquelas semanas que passara na Ilha, o desejo de voltar que se instalou em seu coração e o tanto que lutou para ignorá-lo. — Eu não ia voltar, — ele lhe disse. Ar parecia querer chorar novamente. As memórias de sua despedida eram frescas em sua mente, o desejo de consolála, de abraçá-la até que toda a dor passasse. Odiava vê-la chorando. — Então por que voltou? — ela perguntou-lhe, dizendo exatamente o que Olvin ansiava que ela não dissesse. Ele passou os dedos entre seus cabelos, puxando com força alguns fios para trás, e utilizando, como sempre, a dor para acordar a si mesmo. Ele poderia dizer tantas palavras. Contar-lhe que não encontrara nenhum dragão e sua ida à Ilha fora inútil. Que todas as pessoas lhe pareceram frias e sem emoção, assim como ele; tão diferentes dela, de seu calor. Que a floresta era como sua casa, que queria estar perto dela. Eram palavras demais para alguém que preferia o silêncio. Ao menos o dele. — Eu senti sua falta, — ele lhe respondeu, juntamente com um trovão ressoando no céu, apagando sua voz. — O que? — ela perguntou, confusa. Olvin sorriu um pouco, virando as costas para a garota do riso caloroso, dos olhos oceânicos, contrastando com todo
seu fogo, da esperança, da voz doce. Deitando sua cabeça em uma pedra e abraçando seu próprio corpo, ele fechou os olhos. — Boa noite, Ar. — ele disse. — Boa noite, Olvin. — ela respondeu, deitando ao seu lado, suas costas encostando nas dele. Abrindo um pouco os olhos, o caçador puxou de dentro de suas roupas um colar, uma face gelada e a outra quente, devido ao toque com a pele. O pingente de dragão refletia a luz avermelhada do fogo quase extinguido e o ressonar de Ardajö era o único som além da chuva caindo. Não conseguindo evitar, deixou uma única lágrima cair de seus olhos verdes, frios como uma geleira inteira, escondendo a dor da solidão por detrás das pupilas. Ele era um Caçador de Dragões. Mas nunca havia matado um. Mataria a si mesmo se possuísse escamas para provar-lhe de sua frieza, de sua dor. Que esperanças haviam para ele? Estava perdido. — Eu amo você, — sussurrou em uma voz inaudível, ao que Ar nem ao menos se mexeu durante seu sono. Ela provavelmente sabia que ele iria embora pela manhã, que a deixaria novamente. Não era isso que ele fazia? Fugir? Ou talvez pudesse dormir um pouco mais… a noite era longa. E certas decisões podem esperar pela manhã.
A Fada e o Fugitivo Eduarda Valle
uma viela escura, em um bairro pobre no reino de Uffern, um garoto de dezessete anos estava sendo perseguido. Não que ele não tivesse culpa. Ank Gauthier sempre tinha alguma culpa. Naquele dia, roubara o estoque de alimentos de uma gangue e imobilizara o líder com uma de suas flechas precárias. No entanto, não precisava daqueles alimentos.
N
Morava em um bairro rico e tinha tudo o que precisava. Menos atenção. A mãe era uma socialite esnobe, que não se preocupava com nada além da aparência, e o pai trabalhava para o exército de um reino distante, e sua ideia de disciplina era algo rígido e controlador. Se fossem apenas eles, Ank já estaria em algum lugar longe dali, mas também tinha a irmã. Danika Gauthier era uma garota de onze anos que possuía cabelos negros, um sorriso delicado e olhos gentis. As pessoas daquele reino eram extremamente preconceituosas, e a considerariam uma garota bonita, se não fosse a deficiência que lhe tirara o movimento das pernas. Por causa delas, o garoto não podia partir. Deixar Danika seria covardia. Assim como fugir daqueles homens. Ele parou. — O que foi, cansou? — o líder daquela gangue, Nowak, parecia recuperado, porém sangue ainda jorrava de seu braço esquerdo. Era um homem monstruoso — Sabia que não conseguiria correr por muito tempo, covarde. Ank respirou fundo e apertou o arco com mais força. — Vamos lá — outro garoto zombou—Não quer que te deixemos com outra cicatriz, não é? O garoto enrijeceu. Tinha apenas oito anos quando uma cicatriz horrenda fora lhe deixada, deformando as feições que antes eram tão belas. Depois daquele dia, seus cabelos vermelhos perderam o destaque e seus olhos passaram a ser tempestuosos. — Vocês não conseguiriam — disse. Sua voz ganhando um tom grave. Nowak deu um passo à frente. Ank preparou seu arco e atirou. Sonhara com aquilo por anos. A primeira vez em que mataria alguém. Sua mão escorregou. Ele nunca errara um tiro, e agora sofria essa humilhação. Não esperou para ver a reação dos garotos. Quando chegou em casa, foi logo recebido com um tapa. — Onde você estava, moleque? — seu pai berrou. Não se viam há meses, e esse era o tal “tratamento especial”.
— Estava na igreja — mentiu. — Na igreja? — sua mãe apareceu, horrorizada – Olhe para suas roupas! Vá para o seu quarto agora! — Por que eu não posso ter um filho que preste? — ouviu o pai sussurrar. Ank abriu a porta do quarto da irmã e se sentou ao seu lado. Danika estava olhando fixamente para a janela. — Ei, Dan — ele chamou — O que está fazendo? —Ank. Hoje eu vi uma fada. Ele encarou o teto. A visão estava borrada por lágrimas. — E o que a fada disse? — Ela disse que iria ficar tudo bem. Ficaram assim, imersos em pensamentos, até que alguém bateu na porta. Era o pai. —Ank, você vai para o exército comigo. Partimos amanhã. — Papai — Danika gritou — Você não pode levá-lo! — Cale a boca. Se você fosse útil, também iria. Danika se calou. Ank tentou protestar, mas já estavam a sós no quarto novamente. — Eu não vou — murmurou. A garota o abraçou, e escondeu a cabeça na jaqueta imunda. Estava chorando. — Você tem que ir – soluçou. Repentinamente, ele tomou uma decisão. —Danika, você tem roupas de emergência na mochila, não é? Ela assentiu. — Por quê? — Espere aqui. Vamos embora desse inferno. Já escurecia quando saíram da casa. As ruas estavam escuras, e Ank pôde facilmente carregar Danika e duas mochilas. O arco estava preso em suas costas. Uffern era um reino oculto na Terra do Século 21, e como tal, se inspirara em algumas tradições. Câmeras de vigilância estavam por toda a parte, mesmo que o transporte fosse por carruagens. Os irmãos chegaram em um lago. A fada estava lá. — Khalifa! —Danika chamou.
—Danika! Ank observou a cena com evidente espanto. Khalifa era uma garota de aproximadamente 15 anos, com cabelos prateados e olhos vermelhos. E asas. — Prazer em conhecê-lo — ela murmurou —Danika me falou sobre você. O garoto deitou a irmã em um lençol na areia e se voltou para a fada. — Ela também me falou sobre você... Acho. —Ank —Danika o encarou com olhos cansados — Eu vou dormir. — Tudo bem. Está confortável, Dan? Ela assentiu quase imperceptivelmente e fechou os olhos. — E então... —Khalifa chamou — O que acha de dar uma volta? Caminharam por toda a extensão do lago, e descobriram que tinham muitas coisas em comum. Ambos sentiam que não pertenciam a lugar nenhum. — Gostei de você, Ank. Ele corou. — Gostou como? — Eu não sei. Você parece ser um cara legal, e é lindo. — Você só pode estar brincando. — O que foi? — havia surpresa em sua voz. Ele gesticulou para o rosto. — Você tem certeza? Khalifa riu. — Essa cicatriz te dá uma identidade, Ank. Defeitos são defeitos, mas fazem parte de nós, não é? — E qual é o seu defeito? Ela ficou em silêncio por um tempo. — Eu acho — suspirou — que não tenho tempo suficiente. Ank encarou o lago. Khalifa olhou para ele com um olhar que beirava a culpa. — Você não tem tempo para que? — ele disse, por fim. — Para viver. Para encontrar um amor. Para ter humanidade suficiente.
— Khalifa, você deseja isso, não é? Eu não me importo com o que você é, ou com o lugar de onde você vem, mas você sente. Você é humana o bastante para isso. —Ank... Ele a calou com um beijo. Não sabia por que estava fazendo aquilo por alguém que acabara de conhecer, mas Khalifa parecia desesperada o bastante. Assim como ele. — O que está fazendo? — ela murmurou. — Posso não ser o seu amor, mas isso não impede que você sinta como é. Ela o puxou para mais perto. Estavam longe o bastante para que Danika não escutasse os ruídos que emitiam entre um beijo e outro. Ank deslizou a mão pelas costas da garota, e ela retribuiu abraçando-o com mais força. Estavam cada vez mais sem fôlego, e a cada minuto se sentiam mais próximos. — Você não precisa fazer isso se quiser — ele murmurou — acabamos de nos conhecer, Khalifa. — E você foi o único homem que não me tratou como uma aberração. Naquela noite, tornaram-se um só. Ank acordou mais cedo que o normal, e logo se lembrou do motivo. Fugira de casa. Danika. Khalifa. Depois do momento que compartilharam, voltaram para perto de Danika e adormeceram. Ambos sorrindo. E não poderia ter sido de outra maneira. Não era amor, mas não era indiferença. Uma atração que ia além dos mundos. — Bom dia — ele disse, se espreguiçando. — Bom dia —Danika respondeu. — Onde está Khalifa? Danika moveu a cabeça em direção ao lago. Khalifa olhava para lugar nenhum, e ao nascer do sol, suas asas pareciam brilhantes. —Khalifa! Ank está procurando por você! A fada se virou e andou até eles. — Danika — murmurou, abraçando-a — Você é a minha melhor amiga, sabia?
— E você também é minha melhor amiga — respondeu — Na verdade, é minha única amiga, Kha. Khalifa respirou fundo antes de continuar. — Me desculpe. — Pelo quê? Ela não respondeu. Se levantou e abraçou Ank. O garoto percebeu que ela estava com o rosto marcado por lágrimas. — Khalifa... O que foi? — Eu disse que não tinha tempo suficiente. — Então você estava aqui, Ank? — alguém chamou. Pela voz, era Nowak. Como ele os encontrara? – E tem uma aberração com você. O que é ela? Ank cerrou os punhos e fez menção de pegar o arco, mas Khalifa o interrompeu. —Khalifa? — Me deixe retribuir, Ank. Por tudo. Ela deu um passo à frente e fechou os olhos. Quando os abriu novamente, estavam totalmente prateados. E Nowak desapareceu, assim como os garotos que o acompanhavam. Deixaram para trás apenas pó. Danika gritou. Ank ficou parado por algum tempo, sem esboçar qualquer reação. — Desculpem —Khalifa sussurrou — Acho que exagerei. — Por que você está pedindo desculpas? — Danika sorria com entusiasmo — Isso foi incrível! Por isso você é minha melhor amiga. Khalifa a encarou, incrédula. — Não está com medo? — É claro que não! O que mais você pode fazer? Pode voar? Ela assentiu. Suas asas se agitaram freneticamente e ela se ergueu no ar. Depois, caiu no chão, berrando. Ank se aproximou correndo. Khalifa se contorcia de dor, e seus olhos estavam fechados com força. — Khalifa? — ele chamou — O que está acontecendo? — Eu disse... — ela gemeu — Que não tinha tempo. Ele a segurou pelos ombros para contê-la. — Se acalme. Nós vamos te levar a um médico.
E depois percebeu o quão estúpido aquilo soava. Khalifa era uma fada. Não deveria estar na Terra, muito menos em Uffern. Ele se amaldiçoou em silêncio. A garota abriu os olhos com esforço, e o encarou. — Muito obrigada. Seu corpo se explodiu, deixando apenas marcas de sangue que penetravam no solo com facilidade. Danika, cujos cabelos foram marcados pelo sangue, começou a chorar. Ank encarou a poça sob suas mãos, que outrora fora a garota que fizera tantos sentimentos despertarem. Uivou. O som de choros e lamentações se manteve por horas, até que, exaustos, Ank e Danika perceberam que não podiam ficar sofrendo. Khalifa partira, mas fizera muito por eles. O máximo que podiam fazer era seguir em frente. Ank foi até a irmã e a segurou em suas costas. Ela ainda soluçava, mas conseguiu sorrir um pouco. — Sabe, Ank — ela murmurou — A fada estava errada. Ele olhou para o horizonte. — O quê? — Eu acho que não vai ficar tudo bem. E caminharam, famintos, rumo a um lugar desconhecido, carregando lembranças dolorosas e a esperança de que as palavras da fada estivessem certas. Talvez em algum momento mais tarde, se deram conta de que ainda tinham um ao outro.
O Causo da Estrada de Cabrobó Clodoaldo Turcato
o causo foi o seguinte: no dia de Natal Januário saiu de casa, destinado a comprar uns presentes para os meninos, modo de presenteá-los pelas festas. Tinha pouco dinheiro, mas dava pra um tiquinho de nada, algum bonequinho de madeira pro caçula e uma boneca, dessas baratas de um e noventa e nove, pra moleca, que já dava ares de moça. Até Cabrobó era bem duas léguas e meia por uma estrada carregada de poeira e traços daquele confim sem chuva pra mais de mês, e sertanejo só não morria de fome graças ao São Francisco abençoado. E quantas vezes ele pensou em deixar aquele canto de fim de terra e partir algum outro canto desse mundo donde pudesse tocar a vida com alguma
E
dignidade. Mas qual?! Cadê a coragem pra tanto? Ia ficando e ficando, igual ao seu Juvenal da Tarrafa que todo ano planejava ir embora com despedida e tudo, sem nunca arredar o pé daquele canto, cada dia mais entrevado, sem forças e na mesma toada com ano entrando e ano saindo e ficando, ficando... E sua covardia condenava sua bela Mariazinha, que de certa forma tinha enterrado sua formosura naquele sertão despeitado de querer maltratar. “Quando sair o casório a gente parte pra São Paulo, Januário. Não nasci pra ficar nesse fim de mundo. Promete?” E como não prometer? A moça mais linda do lugar, um pitéu, cheirosa, de fazer dor nos olhos... Como não? E foi todo ano a mesma promessa e a mesma ficada. E a coisa ia, ia, que até Mariazinha parecia conformada. O tempo conforma tudo. E também o que um cabra criado sem letra nenhuma iria fazer num cidadão como São Paulo? Mendigar? Isso ele não ia. Oxente, preferia a dureza daquele sertão do bom Deus que a rua de uma cidade. Tinha tenência. Com a desgraça que estava comia todo dia e tinha um barraco pra cobrir da chuva. E mesmo com tanto sol bastava andar algumas léguas pra pegar algum peixe no São Francisco e mais um tiquinho de boa vontade plantar um quadro de macaxeira e milho. Pronto! Era bom ou não? E nesse pensar não pensar andava Januário em passos ligeiros pra tornar cedo e fazer o presépio ao Nosso Senhor Jesus Cristo. Tinha tudo arrumadinho: a árvore era de outros natais – nem lembrava quantos – as bolinhas coloridas e os bichinhos de pau que fizera com restos de juazeiro. Com algumas ramas de palmeira e galhos de macambira ele completaria e mais os presentes, pronto, Natal e alegria. E a noite teria o forró bem tocado e cachaça pros esquecimentos. É! E não é que doutro lado, em sentido contrário um andarilho surgiu no meio da poeira. Algum viajante perdido naquelas brenhas, por certo, imaginou. Januário era um homem prevenido: ajeitou o facão. “E esperar tempo ruim?” Mas não foi surpresa maior ao ver que não era um homem, mas uma mulher que vinha de lá. “Danou-se!” E o que uma mulher estaria fazendo sozinha naquele fim de mundo? Seria alguma
perdida? Uma dessas bandoleiras sem destino? Uma assombração? E tantas foram as perguntas até que a dita se aproximou e dum rosto descoberto saiu um “ bons dias!”, que Januário respondeu num gesto simples de cabeça. “O moço é daqui?”, perguntou um rosto de dois olhos grandes e negros, feito noite sem lua. “Sim, sou...” Foi o que conseguiu balbuciar diante da estranha que abriu um sorriso enganador, feito de dentes equilibrados e distribuídos por uma natureza tão diferente da sua que escondia apenas alguns cacos surrados de nunca ter visto um dentista sequer. “Tá certo!” Balançou a cabeça prevenida, confiante e altaneira, aprumando de cima a baixo. “Então o moço tá indo pra que lado?” E agora o rosto todo aparecia, desconcertando o caboclo tão dado a uma mulher só e de nem se lembrar que tanta beleza podia existir num lugar tão desgraçado. “Pra Cabrobó... to indo fazer umas compras”. “Compras! Hum! Olha! Comprar é bom!” E nisso o sorriso recobrou de beleza, os cabelos alumiara a tarde já coberta de sol, tininha na terra seca, cegando os olhos de Januário. “Sou Joana. Venho de São Luis e ando a muitos dias. O moço há de ter um trocadinho pra ajudar minha viajem.” E agora? Oxi! Seria uma pedinte? Mais daquele pedido que não se pode negar, sem ficar com a sensação de desfeita. “E o moço não vai se arrepender. Por certo que não.” E tal da mulher tem o Diabo no couro. Num segundo já estava a um passo do beijo, carícia nova de uma novidade antiga de vinte e poucos anos. “ Então, por que o moço bonito não se achega pra um reservado e a gente faz melhor?” E de um único talo as roupas sumiram, deixando a mostra um corpo branco como a nata de leite, quente como dia de verão e num andar que não podia ser coisa senão do Inferno. Eta! Que nessa hora o cabra perde a tenência! E viu não viu;deu, não deu; coisa pra cá, coisa pra lá; Januário se viu fungando feito bode nuns peitos grandes e firmes, em meio a pernas que pareciam prisões de cobra jiboia sugando tudo que era força. E Januário se ouviu rindo, coisa rara pra um caboclo criado com as duras penas do agreste onde o homem murmurava e não ria. E aquilo encontrou alegria donde ele
nunca pensou que tivesse. E tal foi que adormeceu pronto pra morrer, de tanta faceirice. E lá pelas tantas sentiu frio. Era noite, o vento carregado de areia enchia seus olhos. Teria acabado o sonho? E tantas horas se passaram que o dia fora embora. Levantou-se devagar, tateou os bolsos, tonto, sem entender e recordou de que tinha saído de manhã e por aquela hora deveria estar de volta com as encomendas de Mariazinha. Nada mais tinha além da roupa do corpo. A algibeira tinha sumido, escafedido. “A mulher!”. A diaba o tinha encantado. Um homem desses criados às avessas das facilidades, das frescuras, dos folguedos. Um homem de uma mulher só, com bigode na cara, com responsabilidades e tal. Ora! E o que diria em casa? Como explicar tal feito? E pras crianças? Zonzo Januário tomou rumo de casa. E não deu uma hora chegou na casa, pronta pro festejo. “Oxente, Januário! Pensei que tinha perdido o rumo” disse-lhe Mariazinha. “Cadê o maculão?” E melhor que uma mentira é o silêncio. De boca certa não sai estória à toa. “Fale homem!” E falar o que? Nem mesmo ele sabia. “O que sucedeu, homem?” Não tinha o que dizer. Era inocente! “ Oxi, Januário. Tu tá com cara de quem viu o Diabo”. “Sim! Foi ele. Tá aí. O Diabo, ele! Ela, eu vi”. E por muitos anos ninguém entendeu nada, até mesmo Januário que jurava ter dormido e acordado, nada mais. Tem coisa que não precisa de mais detalhes e fica por isso mesmo.
O Sussurro Negro Júlio Cezar
“E depois que eu for e preparar um lugar para vocês, voltarei e os levarei comigo para que onde eu estiver vocês estejam também”. — João 15-3
A
ironia era que, de todos os lugares possíveis no mundo, o Vaticano fora o primeiro a se tornar um inferno. “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém”, repetia o Padre, enclausurado na Capela Sistina, aos prantos. Seus cabelos negros desciam até os ombros, onde sua bata negra estava suja. Seus olhos estavam vermelhos de tantas lágrimas. Seu peito doía demais pela perca de tudo aquilo que lhe era querido. “Por que fizestes isto conosco?”, indagou ele em pensamento, olhando para Jesus Crucificado à sua frente. “Pai, por que me abandonaste?”. Depois de tudo o que ele fizera, de tudo o que rejeitara para que pudesse seguir o Caminho da Luz… E agora estava tudo caindo aos pedaços. Após a morte do Papa, o caos se instalara em todo o Vaticano. “E a situação acontecera da pior forma possível”, lembrou o Padre. Era uma manhã clara na Praça de São Pedro e centenas de fiéis tinham se movido de suas respectivas casas para observar o Santo Papa sair da Basílica para o aeroporto, onde pegaria um jatinho privado para visitar o mundo todo, levando a palavra de Deus. O veículo papal era luxuoso, assim como as vestimentas do mesmo. Em suas mãos, anéis visualmente arrebatadores serviam de ornamentos, assim como o anel papal, o Anel do Pescador — o símbolo oficial do papa. As maiores redes televisivas cobriam o evento e estavam em cima do Papa como moscas varejeiras. Qualquer oportunidade de uma foto muito boa de Sua Santidade era motivo de glorificação, ainda mais pelo o que a Igreja vinha passando: abuso sexual infantil, a renúncia do antigo Papa… O Padre estava ao lado do carmelengo, que dava acenos gentis para o povo. — Vossa Santidade está esplêndido hoje — comentou o Padre enquanto a procissão caminhava. Eles entoavam cânticos que o Padre não compreendia por completo.
— Sim — disse o carmelengo de volta. Ele devia ter cerca de vinte e cinco anos. — A Vossa Santidade acordou muito feliz esta manhã, senhor. Disse que vai ser um dia para se relembrar. “E fora”, pensou o Padre depois de ver o acontecido. Em um momento, o Santo Papa acenava para todos e no outro se curvou para frente. — Senhor? — indagou o carmelengo, segurando o braço do Mestre. O Papa não levantou. O carmelengo o puxou mais duas vezes, mas este não se ergueu. — Por Deus! — exclamou o padre. A população entrou em crise assim que o carmelengo ergueu a cabeça do Santo Papa e ele estava de olhos abertos, morto. Alguns começaram a chorar, a gritar… — Santa Maria, Mãe de Deus — piou o carmelengo, deixando a cabeça do Papa cair novamente no veículo. — Voltem pra Basílica — gritou o cardeal que estava próximo ao Padre. O motorista do veículo papal olhou assustado. — Para a Basílica! Eles voltaram, em meio a multidão desesperada, mas fora tarde demais. A mídia capturara a queda do Papa e repetia isto dezenas de vezes. — Isto vai ser uma destruição — grunhiu o carmelengo para o Padre, aos pés do corpo Santo Papa. — Uma destruição, ouviu? A Igreja já estava em queda pela proliferação dos boatos de abuso sexual infantil e agora o Santo Papa morre nas frentes das câmeras… — O que vamos fazer? — indagou o Padre. — Eles já viram o que aconteceu. Os canais só passam isto. O mundo já sabe de tudo, carmelengo, agora só nos resta fazer uma cerimônia digna para o Papa. Ele mereceu isto, afinal de contas. — Pelo amor de Deus… Está tudo caindo aos pedaços. E ele não sabia de nada. Nada havia começado ainda. “Por que fizeste isto conosco, Pai?”, indagou o Padre, ajoelhado na Capela Sistina. Não havia mais ninguém do lado de fora. Ninguém.
— O que houve com o Papa? — indagou a repórter, apontando o microfone diretamente para a boca do Padre. O carmelengo estava… horrível para a apresentação. Como camareiro do Papa, ele passou todas as últimas doze horas com a Sua Santidade e aquilo fora suficiente para… para acontecer o que havia acontecido. — Ele tinha problemas do coração — mentiu o Padre, pedindo, nos entreatos de sua fala, perdão a Deus pela mentira. — O Santo Papa morreu por um ataque cardíaco súbito. Pelo menos, foi isto o que deduzimos. — O resultado da exumação do corpo… — A Sua Santidade Papal não pode ser exumada — interrompeu o Padre, suando frio. “Me perdoe pelas mentiras que eu conto, meu Senhor. É para o bem de Tua Igreja”. — Queriamos falar com o carmelengo — disse o repórter, no tom inquisidor que os repórteres tinham mania de usar. — Ele acompanhou o Papa durante todo este tempo… “Se vocês conseguem falar com os mortos, podem tentar”, pensou o Padre, amargo. Ele não vira o corpo, mas ouvira que ele fora achado morto em sua cama na mesma noite em que o Santo Papa morreu subitamente na Praça. — Ele não se sente bem — mentiu o Padre novamente. — Ele não vai dar entrevista até segunda ordem. — Mas… — Até segunda ordem — reafirmou o Padre, virando-se e fechando a porta da Capela Sistina. As pessoas se amontoaram ao redor do Papa assim que o corpo foi depositado no meio da Basílica. Alguns choravam, outros tiravam fotos e a televisão filmava tudo, anunciando o Papa Que Morreu. A Santidade estava trajando branco e estava em um caixão incrustado de joias e diamantes. Parecia um retrato de algum pintor de mau gosto, definiu o Padre, que passou apenas uma vez para ver o corpo. Depois disto, se trancou na Capela Sistina, temeroso com que aquilo se espalhasse para ele também. O cântico chegou ao Padre como um sussurro de uma amante e depois aumentou até que sua altura ficasse como um grito de um desesperado.
“Mais perto eu quero estar De Deus, de Ti! Inda que seja a dor Que me una a Ti Sempre hei de suplicar Mais perto quero estar Mais perto quero estar Meu Deus, de Ti”. O Padre sentiu um arrepio na espinha e olhou pela janela. A Praça da Basílica de São Pedro ecoava a música, tristemente. O Padre engoliu em seco, ajoelhando perto da janela. — Pai, nos abençoe — pediu ele. — Que dê-nos luz. Então os gritos começaram a ecoar por todo o local. Desespero. Outros ainda cantavam o hino, mas a maioria gritava. O Padre ergueu-se assustado, mas não conseguia ver o que estava acontecendo. As pessoas corriam para longe da Basílica. Parecia que o próprio demônio havia surgido no seu interior. O Padre não sabia, mas o que acontecera no interior da Basílica fora demoníaco. ••• Uma mulher lavava os pés sujos de sangue na fonte no meio da praça. Ela começara o cântico e as pessoas ao seu redor começaram a acompanhá-la. Ao lado dela, panos ensanguentados estavam postos, pronto para serem lavados.Em todos os lados, as pessoas choravam pela morte do Papa e cantavam junto da mulher idosa. Na Basílica, o Papa jazia cercado por doze policiais. Eles não cantavam junto do povo, apenas olhavam. A Praça rugia com o cântico sagrado com tanta força que arrepiava os policiais cercando o Papa. Então um homem, que permanecera todo o momento em silêncio, caminhou de encontro ao caixão do Papa. Os sentinelas não fizeram nada para evitá-lo. O homem tocou o manto sagrado e sussurrou algo no ouvido do morto. Os guardas caíram no chão, mortos. As pessoas mais próximas correram até
o caixão, após os policiais caírem. Elas agarravam o manto sagrado, os braços do Papa… puxaram até o caixão, que caiu inaudível por causa do cântico. Por um momento, o homem que sussurrara no ouvido do Papa olhou para cima e, em meio à multidão desesperada, ele fez o sinal da cruz em seu peito e apontou para cima o dedo médio. As pessoas caíram mortas ao seu redor, subitamente. As outras começaram a correr, desesperadas, para longe do homem. Ele caminhou, pisando nas cabeças dos mortos, com um sorriso debochado. As pessoas gritavam e cantavam, deixando o lugar um perfeito caos. O homem, então, levantou o dedo indicador para a abobada da Basílica e o curvou.O teto ruiu, rugindo mais alto que o povo. Caiu por completo e de uma vez só, como um efeito cinematográfico ruim de desenho infantil. As pessoas soterradas pela magnífica abóbada da Basílica de São Pedro não sentiram nada: elas morreram antes mesmo da estrutura cair por elas. A câmera focava a repórter de cabelos negros. Ela tinha como fundo a Praça caótica. Ela estava com o microfone em mãos, tremendo. — Como vocês já sabem — disse ela, desesperada. —, o Papa morreu de um vírus que foi nos apresentado como Sono de Julieta, pela morte quieta e repentina, mas agora… As pessoas começaram a cantar… Por Cristo, as imagens que temos são amedrontadoras… Pessoas estão caindo mortas! É o dia do arrebatamento, Jesus! Só pode ser isto. Pessoas estão… Ai, Cristo! Uma nuvem de poeira subiu quando a Basílica rugiu como um trovão e caiu. — É o acontecimento mais trágico desde as Torres Gêmeas dois anos atrás! O operador de câmera caiu, e o objeto focou os pés da repórter, que gritava desesperada. — Jesus, me salve! As pessoas alcançaram onde ela estava. Ela foi varrida pela multidão em prantos. Então, de repente, só houve silêncio. Ninguém se mexia. A câmera mostrava apenas um mar de
pessoas caídas no chão. Mortas. Por toda a Praça de São Pedro, apenas uma voz se ouvia: a calma e suave da mulher lavando os panos ensanguentados na fonte. ••• O Padre não fora amaldiçoado pela praga. Ele não sabia se podia agradecer pelo o que acontecera. Era doloroso demais para compreender. Como fizeste isto com seus filhos, Pai?,ele se indagava na Capela Sistina, ajoelhado. As janelas estavam trancadas. As portas tinham barras de ferro da espessura de uma pilastra. Alguém batera a porta. Seria minha salvação?,indagou-se o Padre, sem coragem de dizer em voz alta. Seria meu messias? — Padre? — Sim? O Padre se ergueu, sentindo seus joelhos doerem. Ele havia passado toda a madrugada ajoelhado, rezando para Jesus lhe salvar daquela destruição. Rezando pelas almas perdidas no caos da noite passada. — Precisamos falar com o senhor — era uma voz masculina. — Viemos lhe buscar. O Padre sentiu o seu peito encher de alegria e alívio. — Glória a Deus — disse ele, puxando o mecanismo que removia as barras de ferro. O homem que lhe chamava era um loiro. Ao lado dele estava um ruivo. Ambos vestiam terno preto. — Glória a Deus por terem mandado vocês para me salvar! — disse o Padre, ajoelhando aos pés do homem loiro. — Ha! Primeira vez que dizem isto para mim. O ruivo permaneceu sério. — O que aconteceu com as pessoas? — indagou o Padre aos prantos. O homem loiro entrou na Capela, olhando para a imagem ao longe. Ele fez o sinal da cruz no ar. — Nós dois — o camarada ali na frente e eu — fizemos um acordo: de ano em ano, fazemos uma aposta. Se ele ganha, é só um susto. Se eu ganho, eu mato uma cidade. Um país. — O
homem loiro deu-se o luxo de uma risadinha abafada. — Ou uma cidade-país como esta. Fiz um bom trabalho, não é? — indagou ele para o homem ruivo. — Pode-se dizer que foi original. O homem loiro caminhou em direção ao altar. O homem ruivo o seguiu e o Padre apenas os observou. — Bom, eu estava cansado de ser sempre a mesma palhaçada, sabe? Ano passado, aquele tsunami barato… no outro ano, o ataque de aviões… Está me incomodando serem tão poucas. Saudade de Hitler — disse o loiro em tom pesaroso. — Ele era legal. — Foi bom que ele tenha ido — grunhiu o ruivo, obscuro. — Melhor ter sido assim. — Ha! — exclamou o loiro. — Mas teremos mais daqui a alguns anos e esta — ele apontou o dedo indicador para o homem ruivo e para Jesus na cruz — vocês dois não vão poder impedir. O Padre se ergueu e caminhou, parando ao lado do homem ruivo. — O que está acontecendo? — Eu já disse — cuspiu o loiro. — Estávamos entediados e fizemos este evento para ficarmos mais felizes. Pelo amor de Deus, pensou o Padre, percebendo a verdade. — Por que fizeste isto, Senhor? O homem ruivo se virou para o Padre. — Vocês querem sempre saber a resposta, não é? — intrometeu-se o loiro. — As mesmas perguntas… Em Sodoma, nas Cruzadas, no meio do atlântico… A pergunta é sempre a mesma. A resposta é simples, meu filho: não há resposta. É a vida. Não foi criada para ter sentido. E agora, como sempre fazemos, viemos buscar o último — disse o loiro, sorrindo de orelha a orelha. — Vamos? O Padre se ajoelhou na frente do ruivo. — Eu gostaria de ir Contigo. O ruivo estendeu a mão e segurou a do Padre. — Então venha. O Padre se levantou e, de mãos dadas com o ruivo, saiu. O loiro seguiu-os, ranzinza.
Ao chegarem do lado de fora, os corpos já haviam desaparecido. — O que…? — Eu mandei retirar todo mundo — disse o loiro. — Dá muito trabalho assistir vocês fazerem a limpeza. Olhe como somos mais eficientes, rapaz. O Padre percebeu o que ele falara. Uma grande carroça estava posta próxima à Capela Sistina e havia um ser estranho com um chapéu cônico com abas tão grandes que cobriam seu rosto. Os cavalos eram vermelhos e ferozes. Nos fundos, corpos estavam empilhados. — Agora é a sua vez, meu filho — disse o ruivo, levando o Padre para os fundos da carroça e o ajudando a subir. — Até a próxima, Padre — disse o loiro, acenando um adeus. O ser com um chapéu cônico se virou e disse: — Pronto, filho? O Padre arregalou os olhos. — Papa? O ser do chapéu cônico sorriu. — Um dia eu fui um Papa. No outro, fui um mendigo. As coisas da vida são um mistério, filho. Mas, de todas as formas, eu sei o que eu fui: um guia para os sofredores. Uma ajuda para os necessitados. E agora eu vou guiá-lo. O Padre olhou para os corpos empilhados embaixo de si. — Para onde? — Para o barqueiro. Para a paz. O Padre sorriu. Paz… Era tudo o que ele precisava. A carroça começou a se mover, passando pelo meio da Praça, que estaria deserta se não fosse uma senhora de idade com panos brancos em seu lado. Ela cantava um hino calmamente, erguendo os panos e os dobrando. Sua voz ecoou por toda a Praça de São Pedro, enquanto a carroça sumia no horizonte. Ninguém mais andou pelo Vaticano. Nunca mais.
Sanatório Reyes Albuquerque Miriã Veloso
B
em afastado da cidade de São Paulo na fronteira com o estado do Paraná, o Sanatório Reyes Albuquerque, foi construído em 18OO, pelos irmãos portugueses criados no Brasil, Aluísio e Alberto Reyes Albuquerque. Dois psicanalíticos que usavam hipnose para desenvolver doenças psicológicas e assim
poderem fazer suas “experiências” legais. O sanatório foi fechado em 1915, por um senador. Reyes Albuquerque, é considerado o lugar mais bizarro e assombrado da América do Sul, também sendo considerado um dos lugares mais assustadores do mundo. É ainda possível encontrar em uma das salas, objetos que, hoje, podem ser considerados objetos de tortura. O grupo de estudantes mexicanos e estadunidenses havia acabado de descer do avião lotado de turistas de vários lugares do mundo, no aeroporto internacional de Guarulhos. Eram ao todo, dezesseis jovens estudantes, que haviam se conhecido após o término de um intercâmbio universitário. O intuito desse grupo era investigar o tão temido Sanatório Reyes Albuquerque, situado na Rodovia Régis Bittencourt, que liga São Paulo ao estado do Paraná. Isso não fazia parte de nenhuma pesquisa da faculdade, mas era um assunto que os interessava muito e estavam dispostos a se arriscarem. A líder do grupo era Charlotte Rivera, uma mexicana estudante de Psicologia, responsável pela organização do “evento”. O relógio marcava cinco e dez da manhã e o restante dos jovens dorminhocos, acordaram num só pulo de susto. A maioria parecia um zumbi por conta da noite mal dormida, já que os corujas que estavam na cozinha falavam alto demais. Todos pegaram suas enormes mochilas que são usadas em acampamentos e colocaram primeiramente, coisas que não podiam faltar, como: lanternas, óculos de visão noturna, agasalho, comida e muita água, celulares, computadores, filmadoras, câmeras digitais e detectores de ruídos, que segundo eles, seria muito útil, pois provavelmente encontrariam almas vagando pelo sanatório, ou melhor, apenas ouviriam e sentiriam. Em vinte minutos todos estavam de prontidão e Samuel – um ex-funcionário público que conhecia muito bem o lugar – já havia chegado em sua van, para levá-los á beira da Rodovia Régis Bittencourt, já que era impossível chegar de carro até o enorme portão do sanatório por causa do mato alto. A van foi deixada à alguns quilômetros do portão principal ficando entre ele e a estrada, depois todos seguiram á pé. Héctor não tirava os
olhos do tablet, onde havia encontrado um mapa simples do sanatório pelo querido e salvador da pátria Google maps. Como o lugar era imenso e provavelmente cheio de passagens secretas, ele não entendia bulhufas o que estava vendo. Deixou que Samuel, um homem já velho, ex-funcionário público que conhecia muito bem a história daquele sanatório, os guiasse. Todos se aproximaram do portão que parecia precisar de dez homens para abri-lo. Samuel colocou uma dinamite fraca sob os cadeados e correntes apodrecidos e acendeu, para que pudessem abrir o portão e prosseguir. — Afastem-se. — falou ele num tom seco e rouco, se afastando enquanto via o pavio ser queimado. — Quê? — perguntou Kimberly sem entender, era tarde demais. Um estouro alto quase deixou-a surda. — Porra, cuidado aí! — berrou, dando um pulo para trás e o velho a encarou torto. — Certo... Vamos empurrar agora. — disse Michael para os outros rapazes. Os cinco rapazes mais fortes do grupo tiveram de levantar um lado do portão e empurrar ao mesmo tempo. — Caralho! — resmungou Jack, esfregando as mãos sujas de ferrugem e um pouco machucadas. — Isso dá calafrios! — disse Megan caminhando de braços cruzados ainda com frio. — Olha esses muros... Essas marcas de mãos... — disse Kimberly sentindo calafrios — era praticamente impossível fugir daqui! — Ninguém nunca conseguiu fugir. — falou Samuel com a sua voz rouca e seca. — Ninguém sobreviveu?! — perguntou Charlotte. — Existe uma regra clara aqui: — Samuel fez uma pausa olhando para todos — Depois que você pisa aqui, não há como sair. Estejam cientes. — Samuel deu as costas e continuou a andar em direção a grande mansão. — Ah, mas isso é lenda. Isso foi fechado há mais de 100 anos provavelmente... — falou Héctor conferindo no Wikipédia. — Só porque foi fechado não quer dizer nada. — falou o velho.
— Mas o senhor já entrou e saiu daqui várias vezes, então... — falou Charlotte, mas foi interrompida. — Sim, porque não sou como vocês, medrosos. — retrucou ele, agora com um riso irônico. — O quê?! — perguntou Michael indignado. — Cê nem conhece a gente cara! — disse rindo ironicamente. Samuel virou-se novamente para todos, encarou todos fixamente e deu um risinho para provocá-los. Aí todos já haviam subido uma pequena escadaria que dava para a porta principal. — Os espíritos se alimentam dos medos de quem pisa aqui. — disse Samuel ainda encarando-os. — Por esse motivo, ninguém NUNCA, escapou. — ele deu ênfase no nunca erguendo as sobrancelhas. Ao ouvirem isso, Michael e os demais tiveram a sensação de que haviam caído numa geleira. O cômodo principal parecia ser o maior da mansão. Em suas paredes valiosas obras de artes eram penduradas, algumas em um estado aceitável, outras com manchas de sangue. Haviam sofás, poltronas e cadeiras estofadas pelo cômodo com uma mistura de alegria e tristeza em seu ambiente. Parecia a casa de uma grande família rica e feliz, que fora brutalmente torturada e depois assassinada. No chão, Megan havia notado algo que chamara sua atenção: uma boneca de pano que tinha cabelos negros, a boca costurada e os olhos eram grandes, quase humanos. Segundo Samuel, a dona da boneca era uma menina de 12 anos, que tinha esquizofrenia, tal motivo que levou a menina costurar a boca da boneca, como reflexo da própria vida que tinha ali, quando era amordaçada, por morder e arrancar pedaços dos outros pacientes. — Credo! — disse Megan ao ouvir o final da história, arrepiando-se. — Não vou dizer-lhes “fiquem á vontade”, porque eles não gostam de visitas, então, boa sorte. — disse Samuel saindo da sala principal em silêncio, caminhando tranquilamente até o grande portão. — Vamos confessar, esse cara é sinistro! — disse Kimberly se entreolhando com os demais. — Certo. — Charlotte suspirou — Por onde vamos começar?!
— Venha aqui, Héctor. Tire uma foto dessa boneca sinistra... — falou Megan, abaixando-se para pegar a boneca que franziu o cenho para ela. — Ela... — Megan soluçou. — Ela fez cara feia pra mim! — disse com os olhos arregalados e largou a boneca, que ao tocar no chão, disse “ai!”. — Eu também vi! — Héctor ficou arrepiado. — Não vou tirar foto dessa boneca não cara... — disse ele afastando-se. Logo, ele teve a sensação de que alguém estivera passando por trás dele, fazendo o olhar para ver o que era e quando voltou a olhar para a boneca, ela estava sentada em uma das cadeiras estofadas, dessa vez sorrindo. — Mas que porra é essa?! — gritou ao vê-la sentada na cadeira. — Vocês ouviram o que Samuel disse, ninguém sai daqui depois que entram e creio que já notei o porque. — disse Charlotte aproximando-se da cadeira para pegar a boneca. — Respeite-os. Esse é o segredo. Se você respeitar os moradores e sua casa, eles respeitarão vocês. — disse ela, olhando fixamente para a boneca de uma forma diferente, como se quisesse vê-la sorrir ou piscar. — Não viaja, Char! — disse Kimberly querendo zoá-la. — Não viaje você, Kimberly. Tome cuidado em onde você pisa e o que você imagina quando toca em alguma coisa nesse lugar... — Charlotte encarou-a fixamente. Agora, ela estava agindo como Samuel, como se fosse uma pessoa sábia que já tivesse passado por isso. O silêncio tomou conta daquele lugar frio e sombrio depois do que Charlotte tinha dito. Eles entreolharam-se, olharam para o chão, paredes, teto e objetos, tentaram ouvir alguma coisa, mas nada aconteceu. Megan ficou de costas para a boneca o tempo todo, Kimberly olhava só para o chão e Héctor olhava as fotos anteriores que havia tirado. Na câmera, ele encontrou fotos da boneca, que ele tinha certeza absoluta de que não havia tirado foto alguma dela, muito menos, quando viu que havia uma foto dele com a boneca. Seu coração nesse momento gelou de novo, sua mão começou a suar e em sua mente, se perguntava o que aquilo significava. Então, ele se virou para a boneca novamente, ficou encarando-a tentando vencer o medo e a vontade de sair correndo ou atear fogo nela.
Aos poucos o medo parecia estar sendo vencido, tanto que ele estava se aproximando cada vez mais da cadeira onde estava a boneca. Quando se deu conta de que estava próximo demais, olhou para trás e viu que estava sozinho, conseguia ouvir as vozes dos amigos mas não fazia ideia de onde estavam. Depois, virou-se novamente para a cadeira e a boneca já não estava mais lá. Aí o medo de Héctor voltou. E então, quando tornou a olhar para trás, Diana, a boneca esquizofrênica, o pegou. O vidro da janela onde a cadeira estivera próxima, foi quebrado em estilhaços, fazendo os demais ouvirem um pequeno estrondo e o tinir dos vidros caindo no chão. Quando o grupo voltou para a sala principal, viram a boneca intacta na cadeira, sorrindo, porém ensanguentada e com a câmera de Héctor, mostrando a foto em que ele a segurava próxima ao rosto, enquanto a boneca olhava para a região do pescoço do rapaz. Rapidamente correram para a janela e viram Héctor no chão, ensanguentado, com o pescoço dilacerado. Agora, juntamente com a pobre Diana, Héctor viveria para sempre naquele lugar. A boneca continua lá, encantando e assustando curiosos, sempre limpa para receber seus “clientes”. Charlotte conta que todas as vezes em que vai visitar o Sanatório, quando se aproxima daquela janela, encostando na mancha de sangue de Héctor, ela o ouve sussurrar em seu ouvido, dizendo: “Pule e junte-se á mim!”.
O Andarilho da Noite Geraldo Gomes
A
ura não conseguia dormir. A noite escura e fria que entrava pela janela a fazia sentir-se estranhamente assustada. Tão assustada, que quando a brisa lúgubre soprava janela adentro e sacudia as cortinas brancotransparentes, ela imaginava que estas eram fantasmas que subiam até seu quarto para
assombrá-la. O céu não tinha estrelas nem lua — somente pesadas nuvens cinza que faziam daquela noite uma das mais sombrias que Aura já vira. Quando novamente o vento soprou e gemeu, Aura, que já não se sentia protegida pelo cobertor na altura do nariz, fez o que qualquer criança com medo faria: encheu os pulmões e, ao ponto de quase chorar, gritou por sua mãe. Esta, uma mulher muito alta e magra, de pescoço e dedos longos, trajada com um vestido negro, logo chegou ao quarto. — O que houve, querida? — disse ela muito calma, passando os dedos pelos cabelos de Aura. Os enormes e expressivos olhos de Aura se acalmaram ao ver a figura materna, e rapidamente, ela se sentou para abraçar o corpo estreito de sua mãe. — Tem fantasmas na janela — disse Aura — Eu fiquei com medo. — Não são fantasmas — confortou a mãe, e levantou-se, juntando o xale preto ao corpo enquanto fechava a janela, mostrando a Aura que os fantasmas que vira não passavam de inocentes cortinas — Vê? Agora vá dormir. Aura já havia deitado quando sua mãe a beijou na testa, desejando bons sonhos. — Agora não consigo dormir — Aura choramingou. A mãe, muito pálida, parecia ainda mais pálida à luz amarelada da vela que iluminava o quarto. Ela suspirou, curvando-se ao sentar na cama ao lado de Aura. Ela olhou através do vidro da janela, pela parte onde a cortina rasgada não cobria e depois olhou para Aura, descansando a vela sobre um surrado criado-mudo. Aconchegou a filha no cobertor e, afagando a sua feição, começou a contar em um tom muito misterioso: — Era uma noite exatamente como esta: no céu, nada brilhava, era somente um pesado teto negro e obscuro. Qualquer um teria medo de sair de casa numa noite como essa, pois é quando coisas terríveis acontecem... — Que tipo de coisas? — Aura interrompeu. — Querida, oh! Muitos monstros costumam sair de suas tocas nessas noites... Dos pequeninos aos gigantescos; dos feios
até os mais horripilantes... — e a senhora magérrima percebeu que Aura não estava gostando do rumo da história, então parou. — Numa dessas noites, um homem vagava em uma estrada onde não havia ninguém. O vento soprava frio e, atrás dos arbustos e das árvores que ladeavam os lugares por onde passou, parecia que coisas o vigiavam. Ele não tinha medo, pois já havia andado por muito tempo em muitos lugares; ele nunca ficava em somente um lugar. Nesta noite, então, o homem que sempre andava teve que parar, pois encontrou uma pequena garotinha chorando sozinha. Quando o homem perguntou por que ela chorava, a garotinha disse que era porque não tinha pai nem mãe, e aquela noite lhe dava medo. Naquele momento, o homem pensou consigo mesmo “eu não conheço essa menina, irei deixá-la aqui!”, no entanto, outro pensamento lhe veio em seguida: “não posso deixá-la só, abandonada” — a mãe suspirou, sem mudar o tom — O homem vivera sua vida inteira sozinho, andando de cidade em cidade, e sabia exatamente como era se sentir abandonado. Não queria que a garotinha pudesse algum dia se sentir como ele, pois não queria que ninguém se sentisse assim. Então, disse seco à menina “venha comigo”. Ela não conseguiu ver seu rosto, porque o homem tinha um grande chapéu sob a cabeça, e a penumbra da noite soturna deixava sua face oculta. Vestia uma longa capa negra e um par de luvas e botas velhas, de modo que, à menina, pareceu tão assustador quanto a noite e seus monstros. — A garotinha tinha medo como eu? — perguntou Aura, aproveitando-se de um momento que sua mãe usou para juntar ar. Seus enormes olhos não pareciam adormecidos. — À princípio, sim — a mãe respondeu — Porém, ao andar com o homem, ela percebeu que ele não lhe faria mal algum, de modo que, mais tarde naquela mesma noite, quando a garotinha estava a alguns passos atrás do homem e ela pensou ter ouvido algum ruído na escuridão, correu rapidamente com seus pezinhos até ele e segurou um dos seus dedos. Ela já estava começando a dar-lhe confiança. E, ainda mais tarde, quando ela ficou com sono e bocejou, o homem a pegou no colo, onde ela dormiu sossegada.
— E o homem não parava de andar enquanto ela dormia? — Aura interrompeu novamente. — De jeito nenhum — disse a mãe, a vela tremeluziu como se houvesse uma corrente de ar entrando no pequeno quarto — Ele era alguém que chamamos de “andarilho”, pois ele vivia sempre andando. Naquela noite, quando a garotinha já havia adormecido em seus braços, o homem finalmente, depois de muito, muito tempo, parou de caminhar. Ele imaginou que se continuasse a viver dessa forma, a menina iria acreditar que não haveria nenhum lugar para ficar, e que todos eles eram passageiros. Sua vida se resumiria a caminhadas longas e nenhuma companhia; queimar sob o sol e adoecer em dias de chuva. Ele não queria que a garotinha tivesse a mesma vida triste e solitária que ele. Ela tinha que encontrar um lar para ficar, onde poderia ter uma família de verdade. O que, lembrou-se melancolicamente, nunca teve. — E por que ele não ficou com a garotinha para ser sua filha? Assim ambos teriam uma família — indagou Aura, calma. — Bem... — a mãe tentou responder — O homem não podia. Uma bruxa uma vez o amaldiçoou, pois ela o amava tanto que o desejava somente para ela, porém descobriu que o homem tinha olhos para outra mulher. Uma mulher muito mais bela que ela, e, ao ver os dois juntos, irritou-se, machucou a mulher, fazendo-a sofrer tanto que ficaram marcas em sua pele e em seu coração, e lançou um feitiço no homem: ele nunca mais poderia amar alguém, ou sentiria a pior das dores, de forma que até respirar seria impossível. Então, o mandou viajar por todo o mundo e nunca mais retornasse. — Não entendi — disse Aura — O que isso tem a ver com o homem fazer da garotinha a sua família? — Ora, querida! — falou a mãe imediatamente — É preciso amor para que haja uma família. Mas o homem não podia amar, na verdade ele tinha medo disso. Amar, para ele, é como se fosse os fantasmas que você pensou ter visto bem ali: — a mãe apontou para a janela — estava perto dele, mas não poderia se aproximar mais, pois isso o assustava. Então o homem continuou sua peregrinação, dessa vez com a
companhia da menininha — no entanto ele evitava conversar com ela. Sempre que ela lhe falava qualquer coisa, ele ignorava prontamente, e só respondia quando ela lhe dizia que estava com fome. Uma ou duas palavras. Assim, passaram-se muitos e muitos dias, até que, em uma outra noite tão sombria como esta, com a menininha já dormindo em seu colo, ele a deixou à porta de uma casa. Aquele era o lugar e o momento certo, pois o homem já começava a sentir certa afeição pela garotinha, e ele sabia que quem morava naquela casa era um alguém tão solitário quanto ele. Ele bateu na porta com a menina deitada no batente — quando atenderam a porta, ele já não estava mais lá. De longe, tudo que ele conseguiu ver foi a silhueta de uma mulher muito alta e muito magra, abatida. Pelos seus trejeitos, percebeu que ficara surpresa e alegre ao ver a menina de grandes olhos que dormia à sua porta. Ele achou que tinha feito a coisa certa, estava feliz por isso. No entanto ele se esquecia do que a bruxa lhe disse uma vez: “Vá, e nunca, nunca mais retorne”. Porém lá estava ele, e antes que conseguisse seguir seu caminho, a figura da bruxa apareceu em sua frente. — A bruxa ainda o amava? — Aura perguntou com um bocejo, quase adormecida. — Ela sentia saudades, é verdade, mas ela estava magoada — respondeu a mãe. — Algumas pessoas, quando feridas pelo amor, não acreditam no perdão, e em seus corações o amor é substituído por algo que nós adultos chamamos de ódio. Não quero que aprenda essa palavra, querida. Aura balançou a cabeça. — Acontece que a bruxa lhe fez uma pergunta assim que o viu, que foi exatamente assim: “Ora, se já não o vejo há muito tempo... Mas lhe digo com todo o pesar que não deveria estar aqui, ou te esqueces do que eu te disse no dia em que partiu?”, mas o homem não respondeu. Continuou andando como se não houvesse ninguém ali, e que ninguém falava consigo. Até que a voz da bruxa retornou, dessa vez mais alta. O frio da noite lhe encobriu e ela ficou densa, melancólica e sinistra; ela havia se transformado no monstro que todos aqueles que carregam o ódio e a impureza no coração se tornam nas noites mais obscuras. “Eu te amei tanto”, ela disse, “mas meu amor foi inútil,
ele não apeteceu ao seu e fui completamente desonrada...”, e aproximou-se do homem. “De que serve amor quando não se ganha nada em troca?”, e pensativa ela admitiu, “Na verdade, tudo o que recebi foi o desprezo do seu coração, pois eu não o merecia...”, e o homem mais uma vez ficou calado. Da terceira vez em que a bruxa lhe falou alguma coisa, um vento áspero surgiu ao redor dos dois e o chapéu que o homem usava voou como uma pena; e ela pode ver, depois de tantos anos, o seu rosto. Os olhos infelizes de alguém que não ama eram enegrecidos por grandes olheiras; destes mesmos infelizes olhos desciam uma trilha negra e grossa de lágrimas que ele não enxugava, de todos esses anos de caminhada. Era impossível imaginar que aqueles lábios ressecados já deram algum sorriso. Ele era um homem feio, pois desconhecia o amor. — Mas ele não era um homem ruim. — observou Aura, coçando os olhos. — Não era, mas a bruxa o fez parecer assim... Um dia entenderá que o amor é belo, até nas mais horríveis criaturas. O homem não era ruim, mas a falta de amor lhe fez feio, desagradável. E por ver aquele homem tão horrendo em sua frente, a bruxa chorou, pois percebeu que transformara o homem. Percebeu que aquele não era o castigo que queria lhe proporcionar, pois até mesmo o homem mais vil não merecia ser privado de amor. Suas lágrimas tombavam no chão como cera de vela, amontoando-se ao seu redor. Por um momento, o homem deu um passo para trás, para apanhar o seu chapéu, e sem falar qualquer coisa, tentou dar continuidade a sua jornada. A bruxa, então, lançou lhe o feitiço da morte para que o homem não sofresse mais daquela forma. Ao desabar no chão, a bruxa viu sair dos olhos taciturnos do homem uma fumaça clara, tênue, benévola, que voou para o céu soturno daquela noite sombria. Por fim, a bruxa caiu em lamentos sobre os joelhos e, largando-se ao chão, deixou que suas lágrimas lhe servissem de jazigo, onde ficou imersa na cera fria. Naquela noite, a bruxa havia se dado conta que viver sem amor era um martírio, e privar alguém de amar seria um ato execrável. Assim, para livrar o homem da sua sina, o matou; e, para que
não cometesse tal abominável atitude novamente, matou a si mesma também. — Esse é fim da história? — Aura indagou; a vela já estava quase no fim. — Sim, querida. — respondeu a mãe prontamente. — Só quero que saiba que o homem andarilho, ao morrer, transformou-se em um fantasma, tais quais aqueles que pensou ter visto nas cortinas, e caso isso te ocorrer novamente, não tema, pois tudo o que ele poderá fazer a você, é dar-lhe o amor que nunca pode dar a ninguém. A mulher, muito alta e magra, de vestido negro, de pescoço e dedos longos e pele pálida, deu um beijo na testa de Aura ao ver que o sono finalmente havia atingido-a; e, cobrindo-a confortavelmente com o cobertor, soprou a vela e saiu do quarto desejando-a bons sonhos. Ela não notou, mas uma luz clara, tênue e benévola observava a beleza de Aura enquanto a menina dormia, ao lado de fora da janela, e, assim como a mãe, desejava bons sonhos à garotinha que um dia lhe acompanhou em suas lamentáveis viagens — e a mulher alta e magra que uma vez verdadeiramente amou.
Cicatrizada à Fogo (Um conto de Greta Volk)
Lucas Moraga , ,
C
ristais de gelo caíam em grandes quantias do céu e colidiam contra meu rosto. O sol desaparecia cada vez mais no horizonte, enquanto eu estava caída, sem conseguir movimentar meus braços e pernas. Imersa em uma densa camada de neve que cobria os finos farrapos que, até então, eram minha única proteção.
Um preço oriundo de um ato. Um ato oriundo de uma tradição. Juro que se conseguisse movimentar-me, eu mesma já teria os matado. Cravado meus punhais nestas gargantas que não param de falar nem sequer um instante sobre mim. Sobre o que eu fiz e o preço do qual terei de pagar incontestavelmente. Quanto mais a neve caía, mais parecia que ela estava contra mim também, distribuindo murros gelados em meu rosto enfraquecido pelas ofensas verbais e físicas das quais havia sofrido há pouco. Criaturas munidas de asas e seios para fora, me conduziam para uma espécie de tábua de pedra maciça. Para aqueles seres, meu corpo se tornou apenas um invólucro vazio e minha alma já havia migrado para outro domínio. Um domínio de escuridão e repúdio pela ousadia que tive de transgredir uma tradição de um reino. Ao passo que pisava sobre as grossas camadas de gelo, meus pés nus acostumavam-se a nova temperatura imposta pelo meu erro. Correntes passavam a prender de forma inconfortável meus pulsos e um ódio pungente corria pelo meu sangue, mas nada podia fazer presa daquele jeito. Precisava arrumar alternativas para fugir dali. Algo muito misterioso estava guardado para mim e eu não queria saber o que era. Não desta vez. Estava em um lugar desconhecido, frio e com criaturas que jamais havia visto fora do reino. Porém o medo não predominava minhas emoções; mantive-me firme durante todo o trajeto para a tábua, encurtando olhares, erguendo minha cabeça o máximo que eu pude e abrindo minhas asas em sinal de defesa, por mais que não pudesse voar, ficando abertas me passavam segurança. Fui posta no centro daquela tábua gigante de pedra cinzenta, e uma das criaturas, a maior delas, urrou para as outras como se eu fosse um tributo para algum tipo de ritual da qual eu não conhecia. Aquilo não era nada bom, e passei a ter certeza disto quando vi aquele ser esquisito portando uma espada afiadíssima. Precisava dar um jeito de sair daquele lugar maldito. Podia me soltar das garras delas e voar, mas lembrei de que elas também possuíam asas, e no estado em que me encontrava, seria facilmente capturada novamente, então
resolvi traçar outro plano. Uma tentativa mais arriscada que a primeira, mas que poderia me conceder a tola salvação que almejava. Confundi os pensamentos dos seres bizarros com uma ilusão proveniente do sangue que possuía. O sangue original de um reino praticamente exilado que possuía seus segredos e ambições próprias, mas jamais entrava em combate com nenhum outro reino em Terdállia. Mantinha-se puro quanto a guerras e isto era uma vantagem enorme para eles, ao menos era isso que se pensava os grandes filósofos do meu antigo reino. Transmiti ondas de reflexos futuros para as mentes confusas das criaturas, e por um período curto consegui fazer com que me soltassem. Não me lembro exatamente de que ilusão consegui criar, o importante foi que a primeira parte do meu plano havia dado certo. Aquelas malditas estavam sob meu domínio agora; eu me sentia no poder e de fato poderia estar se a maior delas não fosse mais esperta e astuta do que eu. Apenas senti um golpe fortíssimo, que foi de encontro à parte de trás do meu joelho, e cai violentamente contra o chão. Rapidamente a ilusão que havia criado desapareceu e com isso meus piores pesadelos voltaram com uma força ainda mais cruel. Daquela hora em diante, meu destino se tornou incerto, minhas convicções estavam crucificadas e minha esperança jazia no mar do esquecimento. Pegaram-me pelos braços e jogaram-me brutalmente contra a tábua de pedra. As criaturas berravam palavras desconexas e tudo ali parecia ficar mais interessante quando esmurravam meu abdômen ou cuspiam em meu rosto. Não era apenas um tipo de ritual, era uma diversão sádica para elas. Infelizes, se ao menos eu pudesse me soltar, elas veriam que não sou uma fada qualquer. Não sou a menininha que minha mãe sempre viu. Nunca fui, e acho que por consequência de ser deste jeito, o preço de agora é o que eu mereço aos olhos de todos. Minhas asas balançavam freneticamente, o que me causou certa insegurança, pois aquilo estava sendo involuntário. Eu tentava camufla-las, dar ordens a elas para que
acalmassem seus ânimos, mas fora tudo em vão. A maior das criaturas ergueu uma espada cintilante que tremeluzia com a luz do sol que sumia acanhadamente no horizonte. Eu estava imóvel. Conformada com o que haveria de acontecer. Uma morte anunciada por mim mesma. Por querer viver sem ditados e sem o rígido poder que as tradições exerciam sobre meu povo. Ao menos naquele momento, eu adquiri a certeza de que fiz o certo. Não passei por cima de nada, além dos costumes de uma raça apodrecida pela ganância enrustida. Eu fui contra os dogmas e preceitos definidos. Fui contra ser dominada por leis. Eu era minha própria lei e estava me condenando a morte. Primeiro ato da espada e vi a asa esquerda sendo arrancada de minhas costas e o sangue escorrendo como um mar de ondas inquietantes sobre meu corpo. O que elas queriam de fato? Torturar-me? Bem, tendo em vista a dor que estava sentindo antes de morrer, poderia se tratar de uma tortura. Era típico e previsível vindo daqueles olhares sádicos sedentos por jogos de sangue. No primeiro ato da espada não conseguia gritar. Uma espécie de nó se delineou em minha garganta e da minha boca não saia som algum. Mas em minha mente eu articulava a morte de cada uma daquelas ordinárias. Uma morte com odor de sangue torturado. Segundo ato da espada e não apenas vi, mas senti minha asa direita ser arrancada com dois golpes subsequentes daquela lâmina afiada. Minhas forças já não eram mais as mesmas e ver meu próprio sangue me deixou com mais raiva do que já estava antes, porém meus movimentos eram impossibilitados tanto pelas criaturas quanto pela dor que estava começando a latejar nas minhas costas. As duas asas estavam jogadas ao meu lado, as únicas coisas que me ligavam ao reino de alguma forma eram elas e agora já não faziam mais parte de mim. Não sei se um peso foi literalmente tirado de minhas costas ou tendo consciência de meu atual estado, teria de me desesperar. Optei por seguir sem medo das consequências como sempre fiz. O terceiro ato da espada, de fato seria minha morte prematura. Não havia escapatória, não havia mais uma faísca de esperança para se acreditar. Porém escutei algo que
agigantou minha força e fez surgir uma fúria incontrolável dentro de mim. Uma esbelta mulher que se intitulava rainha, pronunciou palavras das quais jamais esquecerei. — A covardia do seu pai a levou a isso — ela disse — Um elfo covarde, é um elfo fracassado — gargalhou, lançando um olhar de deboche para mim. Aquilo fez com que eu me desestabilizasse e nem de longe queria controlar a fúria. A partir daquele momento ela me controlaria. Falar de meu pai daquela forma me fez querer matar todos ali com as próprias mãos. Podiam falar de todos, menos de meu pai. Ele jamais foi covarde. Ele deu a sua vida em prol de um reino condenado a desgraça de seu próprio povo. E tudo para quê? Para ser ofendido daquela forma? Eu jamais deixaria isto passar sem ter uma devida punição. E uma punição a minha maneira. Eu me transportei a outro estado mental, era como se algo estivesse me dominando e comandando minhas ações e certamente era muito mais forte do que eu. Meu corpo estava envolvido pelo calor do destino e este calor me guiaria até a glória de minha salvação. Dos meus olhos nascia uma fúria devastadora. Quando senti uma forte pulsação nos olhos e minhas espinhas saíram de dentro do meu corpo, desmaiei. Não sei se aquilo era real, mas a dor provava que não era um sonho. Algum tempo depois uma forte dor fez com que meu corpo quisesse acordar. Levei as mãos à cabeça como forma de aquietar a agonia e percebi que não estava sozinha. Centenas de corpos estavam espalhados ao redor da tábua de pedra. O sangue das criaturas borrava a neve no chão, estavam todas mortas. Todas, menos uma. A rainha havia escapado do massacre. A partir daquele instante sabia que havia algo dentro de mim que estava prestes a explodir. E minha fúria anterior, fez com que ocorresse a primeira explosão. Certamente não seria a última, porém eu precisava estar preparada não apenas para ver do que isto dentro de mim era capaz de fazer, mas para acima de tudo ousar controla-lo. Inflei meus pulmões e obtive a certeza que minha verdadeira jornada teria seu início ali. Minha
nova vida começaria com novos objetivos e curiosamente adquiri um gosto prazeroso pela morte. ••• Chamo-me Agretel Ahamensã, porém como forma de proteção não uso mais meu nome original. A partir de agora, me conhecem como Greta Volk, a fada caída que vaga pelas cadeias montanhosas e vales acidentados de Terdállia em busca do paradeiro da rainha de Gallia, Nefti. Entretanto, minha história apenas teve seu estopim com meu banimento para as terras geladas do norte, antes disso o mar de alegrias eram constantes e para todos eu parecia a princesa mais feliz que todo o reino já havia visto. Tolo engano. Em um firmamento embalado pelo tinir de um pássaro, nasciam os primeiros raios do sol, que percorriam e atravessavam as finas frestas da janela de meu quarto todos os dias. Minhas pálpebras desatavam-se e se podia ver meus olhos renascendo um esverdeado tão claro como o novo dia. No reino o dia não seria qualquer um. Era o maldito dia que conheceria o elfo enfeitado a ouro a quem fui prometida para casamento. Tradições, como as odeio. Sempre impondo, nunca satisfazendo. Todos, em cada sub-reino, aldeia e até nos montes sagrados sabiam que este casamento era um contrato para o equilíbrio de um império prestes a cair e nada além disto. O cumprimento de uma “tradição” aliado à falta de vergonha que meu reino possuía. Um vestido vermelho escarlate com ornamentos prateados do busto ao calcanhar estava estendido em um dos assentos de couro marrom que ficavam em meus aposentos. De longe o vestido mais deslumbrante de todo o império, mas para mim se tratava apenas de um pedaço de pano inútil para se usar em um dia inútil. Depois de um demorado banho o vesti, e em seguida, meus olhos foram de encontro ao espelho que havia perto de minha cama. Eu estava ali parada de frente para meu angustiante reflexo, moldada a caráter de uma tradição ordinária que insistia em querer sobrepor-se até em meu modo de vestir. Eu
me sentia uma prostituta suja com aquele maldito pano cobrindo meu corpo, tapando a vergonha que eu não sentia de minhas curvas acentuadas. Se fosse a meu modo, jamais sairia pelos pátios vestida assim, porém meu esforço era em prol de meu pai, Nicolau, rei do império de Cordonne. Já havia de prever que com os gastos caprichosos de minha madrasta Valquíria, o tesouro do reino logo entraria em extinção e assim sucedeu-se. E a única alternativa seria um casamento bem sucedido com Myron Montês, filho de uma das famílias mais ricas do reino. Era um esbelto elfo de pele clara e fios dourados e neste dia um belo divertimento para mim. Logo, a prostituta aqui já estava pronta e dirigindo-se quase aos tropeços com aqueles sapatos malditos para o salão principal. Eu não sairia daquele salão casada, não mesmo. Assim que as portas enormes foram abertas para mim, todos levantaram-se de seus assentos e passaram a encher o salão dos mais variados comentários. Um reino inútil comentando imbecilidades. Ergui minha cabeça o mais alto que pude e caminhei até onde a realeza estava. Percebia uma aflição, aparentemente maior do que a minha, vinda da expressão de Myron por me ver com aquelas roupas. Será que ele já estava me desejando antes mesmo desse maldito casamento? Evitei continuar direcionando meu olhar para ele, mas eu percebia que havia algo sobre Myron que poderia me libertar de uma vez por todas. — Um momento, por favor! — a voz grave de meu pai predominou no salão e todos calaram-se por alguns instantes — Apresento-lhes a princesa Agretel Ahamensã e seu nobre e futuro esposo, Myron Montês. Que a paz reine sobre o noivado de vocês. Daqui a quinze dias teremos a grande cerimônia, então vocês terão tempo suficiente para se conhecerem melhor. — ele anunciou, brindando e nos dando sua benção. Naquele momento, meus olhos encontraram um olhar triste no fundo do salão, era Doesi, o elfo plebeu por quem sempre fui apaixonada, e não importava o que falassem sobre essas coisas entre nobres e plebeus, eu cuspia nessas tradições, as triturava com meus dentes e desaparecia com elas. Eu tinha exatamente quinze dias para sair daquela confusão. A ajuda de
Doesi seria essencial, precisava provar para ele que tudo que sonhávamos fazer fora de Cordonne seria real e que eu passaria por cima de mil casamentos sem pensar duas vezes. ••• O findar da quinzena havia chegado. Estava nervosa, com um frio que atravessava minha espinha, porém se meu plano desse certo, as pessoas teriam uma enorme distração e me esqueceriam por alguns momentos. Tempo suficiente para minha fuga. Minhas suspeitas tinham de estar certas; eu dependia disso agora. Doesi tinha um irmão um pouco mais jovem que aceitava fazer qualquer favor se recebesse em troca moedas de ouro. Seu nome era Túlio e minha aflição estava na atuação dele em meu plano. Se daria certo ou não. — Acorde Myron — declarava com uma delicadeza nauseante. — Hoje é nosso dia! — eu dizia, fingindo estar radiante com nosso casamento. — Calma, Agretel — ele sorria um pouco desconfortável, com os olhos sonolentos ainda — Já tomou seu café? — Hoje quero tudo perfeito. Eu mesma irei buscar e tomaremos juntos — eu me sentia uma ordinária descarada agindo daquela forma, mas fazia parte do plano. — Mas... — ele tentou falar, mas interrompi com um beijo. — Nada de “mas”, eu já volto, docinho — disse eu, saindo do aposento dele. Desci as escadas da torre e rapidamente me pus a esperar por Túlio na cozinha onde o café da manhã já estava pronto. Se tudo corresse como imaginei, antes do final do dia estaria longe dali. Bem longe. A porta de madeira dos fundos enfim se abriu. Era ele. — Por Ares! — praguejei— Quanta demora, Túlio. — disse impaciente. — Me perdoe, princesa. Tive de treinar o que me pediu. — Túlio disse com um olhar sombrio.
— Não importa. Tome, leve esta bandeja com o café da manhã para o quarto de Myro, ele ainda está lá, seja frio e não demore — disse, colocando a bandeja em suas mãos e rapidamente o mandando ir embora. Caminhei até a torre onde ficavam os aposentos de meu pai e o pai de Myron. Em meu rosto comecei a traçar uma expressão de choro e fingi que estava ofegante por conta de uma corrida eletrizante. — Socorro! Fogo! Fogo! — eu gritava apontando para a torre onde eu estava a pouco — Tirem meu noivo de lá, por favor! — choramingava freneticamente, cobrindo meu corpo com a seda. — Mantenha a calma, minha filha. Vamos tirá-lo de lá — meu pai me confortava. Eu precisava arranjar um jeito, um sinal para deixa-lo ciente de que não me veria por um bom tempo. Então, apontei meu indicador para um corvo e em seguida para uma pomba branca que aplanava voo para onde o possível fogo estava acontecendo. Nicolau rapidamente ligou as coisas, como eu imaginei, afinal ele que me ensinara a comunicar-me por estes sinais. O corvo simbolizava a morte de Agretel, a menina reprimida que jamais voltaria. E a pomba branca, o nascimento de outra Agretel, a coragem em forma de fada. O olhar que meu pai lançou-me foi de compreensão, eu sabia que ele teria orgulho de mim, fosse como fosse. Soldados, meu pai e Gont, pai de Myron, todos corremos para “resgatar” Myron nos seus aposentos. Estavam todos aflitos. Todos menos eu. Tinha meus motivos e eles estavam prestes a descobrir o porquê. Quando por fim chegaram à porta do meu quarto e no desespero a arrombaram, se depararam com uma cena que destruiu honras, engrandeceu a vergonha e massacrou certezas. Myron estava aos beijos com Túlio em sua cama. Certamente sou a maior gênia que conheço. Tendo consciência disso, delineei um sorriso em meu rosto em sinal de dever cumprido. Minhas suspeitas estavam certas, Myron estava mais para Myra. E duzentas moedas de ouro fizeram de Túlio um excelente feitor de favores, afinal.
Todos estavam chocados vendo aquela cena no dia do grandioso casamento da princesa do reino. Eu, pelo contrário, estava satisfeita. Podia ver o rosto de vergonha de Myron, escondendo seu corpo com os lençóis e tentando camuflar sua façanha com desculpas esfarrapadas. Foi nesta hora que sai dali sem que ninguém percebesse. Doesi estava me esperando em um barco à beira do Mar Salemarin, precisava chegar lá o quanto antes. Estava tudo planejado. Fui até o estábulo, peguei algumas roupas que havia deixado de reserva por lá e, montando em um garanhão acobreado, fugi em galopes dos limites do castelo. O vento colidia em meu rosto e meus cabelos esvoaçavam-se. Eu estava finalmente fora da fortaleza principal e podia sentir o gosto e cheiro da liberdade que sempre almejei ter. E então, rapidamente cheguei até onde havíamos marcado nosso encontro. — Meu Jasmim de Ferro — Doesi dizia, ao me encontrar novamente. Segurou meu rosto e nossos olhos se encontraram marejados. — Meu Lírio dos Vales — eu respondia. Nossos nomes remetiam a flores na antiga língua morta e gostávamos de nos tratar por eles. Sentíamos-nos seguros de alguma forma. O tempo daquele começo de jornada parecia infindável. Iria demorar alguns minutos até o barco partir. E precisávamos deste tempo juntos, não era uma despedida, mas sim uma renovação de votos. — Você está bem? Parece aflita — Doesi sempre conseguia descobrir quando as coisas não estavam totalmente bem. — Meu pai — eu o lembrei. — Ele iria preferir que fosse assim. Eu sei disso, minha Jasmim. — ele colocou as mãos sobre a maçã de meu rosto e desenhou uma carícia circular, afastando os cabelos de minha pele. — Vai ficar tudo bem, confie em mim. Ao amanhecer estaremos longe daqui. — Não sei o que faria sem você. Acho que não é fácil ter de me aguentar.
— Mas vale a pena — ele disse, beijando-me em seguida — Seremos o triunfo de nossa raça. O amor valente que supera os limites das malditas tradições. — Não tenho dúvida alguma disto, meu Lírio dos Vales — os cabelos ondulados escuros dele começaram a ficar brilhantes com os finos raios de sol que ainda incidiam sobre Cordonne. Doesi puxou-me para perto como jamais havia feito. De um jeito cuidadoso e protetor, ali eu sabia que seríamos felizes juntos. Felizes na eternidade do mundo que nos esperava longe das fortalezas do império dos elfos. Doesi era minha alma gêmea, a terra que poderia plantar-me e criar raízes profundas. Novamente senti o corpo dele chocando-se suavemente contra o meu, produzindo uma faísca de excitação. O estopim de um inicio de descobertas e bem aventuranças. E no limiar do sol com a noite, nossos corpos envolveram-se nas areias da costa de Salemarin. Um emaranhado de grãos minúsculos invadiam nossos corpos, enquanto eles esquentavam, produzindo um suor com o calor da paixão. Eu podia sentir cada gesto e toque suave das mãos de Doesi sobre meu corpo. A minha inocência estava se perdendo e já não havia mais volta. E por mais tradições que houvessem, dizendo que isto era um ato de seres impuros, eu estava gostando. Gostando de ser impura, pois estava feliz. Nas areias do presente com Doesi montando sobre mim, fazendome sentir como uma deusa banhada a fogo. As chamas acesas de um ato que viria a ser um preço de uma cicatriz que carregaria para o resto de minha longa e tortuosa vida. Os eternos instantes tiveram o seu fim espetacular. Meu coração parou de acelerar e caí em um sono profundo nos braços de Doesi. Uma tola ação, não deveríamos baixar a guarda nem por um instante, ainda mais tão perto do reino. Mas já era tarde. Apenas senti um forte estrondo em minhas costas e vislumbrei a minha frente, com a visão turva, Doesi ajoelhado e com os olhos marejados ao me ver caída. Foi quando um dos soldados, sem piedade alguma ergueu sua espada e num ato cruel, arrancou a cabeça de meu Lírio, a mesma rolou violentamente, arrastando-se sobre a areia até
parar ao lado de meu rosto. Um Lírio estava voltando ao seu estado de origem, aliás, o mais puro e honrado de todos eles e a culpa era minha, eu o arrastei até aqui, eu o coloquei nisto. Seria banida por amar. Banida por recusar viver sob regras. Um grito desesperado tentou sair de minha garganta, porém um golpe ainda mais forte colidiu contra meu crânio e desmaiei sobre as areias que testemunharam o último ato de amor que tive.
Súbita Ilusão João Marcos Oliveira
Final do século 19 – Algum lugar desconhecido próximo a Península do Peloponeso.
A
ssim que determinado horário soou alto no relógio de parede mais próximo, um jovem deitado em sua cama, nada confortável, sofria por inquietações noturnas e soava frio à medida que o tempo passava. Fosse somente isso, não haveria pelo que se preocupar, mas ele tinha grande receio de que algo acontecesse. A conversa que tivera antes de dormir o deixou um pouco indigesto, mesmo que não acreditando em totalidade ao que ouvira. Por fim, deixou-se fitar o teto de madeira escura e esvaziou a mente esperando que algo acontecesse, mesmo que fosse o enjoo recorrente daquele recinto. Não estava acostumado com noites difíceis, muito menos as que eram interrompidas por medo. Entretanto, após certo instante, sentiu um baque interno em sua cabeça, involuntário, como uma mudança repentina de decisão. Sentia-se mais acordado do que nunca, acompanhado de uma sensação irresistível que o fez levantar da cama em um salto revigorante. Notou que a beliche estava vazia, mas não conseguiu se lembrar se isso era importante, pois ainda não sabia onde estava. O barulho do lado de fora, antes turbulento e tempestuoso, havia passado, e um estranho silêncio se estabelecera no ambiente, propício para uma boa noite de sono. Contudo, o silêncio não foi o bastante para que o rapaz, em sua idade de 22 anos, voltasse para a cama e tentasse se entregar aos braços de Morfeu. Ao sair do quarto, passou por um longo corredor mal iluminado, que julgou não conhecer de imediato. Olhou para as paredes que sofriam de infiltração, os quadros antigos, e assim que o estranhamento passou, notou que estava em sua casa, mesmo não lembrando o porquê. As a ideias de conflito no ambiente logo foram ignoradas pelo que passou a ouvir. Bem ao longe, infimamente, uma estranha melodia tomou sua atenção. Não sabia com precisão o que ouvia, mas era acompanhado por vozes femininas de total hipnose sonora.
Ele queria muito saber de onde vinha a música. Por isso deixou-se levar pelo canto doce, que o fez seguir para o que se encontrava lá fora. Ao atingir o chão da rua, mesmo descalço e de pijama, viu que sua cidade se encontrava deserta, provavelmente pelo horário, imaginou. Em nenhum momento passou pela sua cabeça objetivos mais claros ou coisas mais importantes a não ser andar em direção ao fenômeno sonoro vigorante. O canto não possuía letras claras, mas a harmonia o impulsionava fortemente. Já caminhando pelas pedras negras das ruas, um vento cortante trespassava por sua pele e o frio repentino não o atrapalhou. Continuou seguindo as ruas que naquela noite estavam sob névoa baixa e a visão limitada o impossibilitava de decidir qual caminho seguir. Guiava-se unicamente pelo som. Ainda vagando pelas ruas da cidade, percebeu que o som o havia direcionado para o porto quando notou a maré audível e o odor característico de sal. Assim que andou mais, pôde ver que havia chegado ao seu destino. O lugar em que os homens frequentam à noite. Casa dos prazeres. Reduto de mulheres vãs. A enorme mansão, instalada próxima a um penhasco marítimo, estava com diversas janelas iluminadas naquela noite. Apesar da incidência de neblina, era perceptível que havia pessoas lá dentro, provavelmente incluindo as donas das vozes. A música já em alto e bom som cada vez mais encantava o jovem que não respondia totalmente por si. Chegando ao portão principal que se encontrava fechado, viu que no interior se localizava um vasto jardim, próximo ao cabaré de aparência clássica. Achou isso estranho já que sempre se encontrava aberto, mas constatou que era melhor entrar furtivamente, pulando pelo muro da mansão que possuía mais de 3 metros. Observou a árvore ao lado, calculou medidas mentalmente e em poucos minutos estava agarrando-se majestosamente em seus galhos. No último movimento, o galho mais fino se rompeu e ele tombou para o lado. Por pouco não caiu no chão, mas se segurou na beirada do muro. Assim que se equilibrou sobre os tijolos, desceu vagarosamente o outro lado,
ajeitando-se para que a queda não lhe oferecesse nenhuma fratura. Ao cair, se assustou impressionado com o ocorrido, pois não somente se manteve intacto como também notou que o chão lhe pareceu muito macio como se fosse composto de algo imaginário. Andando pelo gramado viu que o mesmo funcionava como areia movediça, já que ele se afundava levemente pela terra fofa, por isto, andar por aquele jardim lhe exigiu bastante esforço físico e demorou mais do que deveria. Ele se apoiava em sebes e esculturas dispostas pelo terreno, evitando pisar no gramado. Ficou algum tempo sobre um chafariz de anjo com medo de que se saísse, afundasse e morresse soterrado. Quando passou pelas árvores e moitas, pulando nelas e agarrando em seus galhos firmes, alcançou a entrada da mansão em alguns minutos e a sensação esquisita havia cessado. Ao se aproximar da porta, a mesma se abriu sozinha dando ao jovem a visão do interior bem decorado e temático. Antes de entrar, pôde ouvir de perto os acordes com exatidão e as vozes penetrantes. No saguão se encontravam várias garotas. Todas elas eram deslumbrantes, vestidas de acordo com o lugar. Usavam vestidos leves e corpetes provocantes, acompanhadas de harpas, leves tambores de percussão, flautas, violoncelos, piano e muitos outros instrumentos clássicos. A maioria delas cantava em tom uníssono. “Seja bem vindo, grande máster à nossa buliçosa habitação. Vê-se que não vestiu a caráter Mas talvez não seja a intenção.” Estranhando a bela música e seu significado, tentou falar normalmente com as moças, dando sinal de interrompê-las, mas elas não pareciam dispostas a parar. Por isso, estranhou-as, pensando dar meia-volta, mesmo que resistindo piamente. Ao entender a vontade do homem, elas detiveram seus pensamentos.
“O que faz a sua realidade? É apenas o que vê e o que sente? Está certo do que é sua verdade? Por que não confiar na gente?” Ele olhou com graça para as dezenas de garotas, distribuídas pelo salão esbanjando beleza e provocando o rapaz. Sendo assim, se direcionou de encontro a elas jogando-se nas almofadas de um estofado. — Vocês são lindas... — disse tentando tocá-las. Ao perceber o toque, as mulheres se afastaram desvencilhando sorridentes, como se brincassem com ele ao mesmo tempo que cantavam. “Para o toque há um preço, mesmo que não seja o vosso. Se quiser nosso doce apreço, esteja de acordo com o aposso.” — Eu-eu não estou com dinheiro no momento, mas dou o que quiserem! — desesperou-se — Tomem minha vida de crédito se for necessário... — disse sem medir palavras. As mulheres sorriram, entreolhando-se e continuaram a cantar preenchendo seus ouvidos com a droga auditiva. Dançavam entre si, bailando festivamente no salão e a cada segundo davam olhadelas furtivas para o moço, que só faltava se atirar aos pés de uma e beijá-los ali mesmo, estirado ao chão. “Não queremos o seu ouro, Não é isso que nos apetece Terá um inesperado vindouro, não a ti, mas a quem desce.” No meio do saguão, estava ela, descendo pelas escadas com classe, no ritmo. Vestia um longo vestido vermelho em contraste com seus cabelos escuros. O decote era generoso, e ela era sem dúvida a mais bonita de todas as que ali se encontravam. Seus olhos, cristalinos, chamaram a atenção do
rapaz que ignorou as mulheres que se posicionavam a seu lado e passou a contemplar a outra que chegava em sua direção. Altiva e sensual, portou-se diante dele encarando-o com um sorriso dúbio no rosto. Suas sobrancelhas curvadas evidenciaram uma expressão de agrado, mesmo que contido. As garotas que cantavam, pararam por um instante, observando irresolutas a mulher em seu colo com a voz surpreendentemente afinada. “Querido, venha comigo, Para um lugar mais reservado. Faremos dele nosso abrigo, Esteja disposto a ficar acordado.” A mulher estendeu sua mão e puxou o rapaz surpreso do Chaise Longue, que sem nenhuma objeção, respirou fundo, ainda sem acreditar no que o destino lhe reservara. Os dois subiram as escadas do saguão em seguida. Ela brincava ao andar com seu vestido, dançando na melodia e guiava o homem cantarolando ao passar pelas colunas daquele local de atmosfera burlesca. O vestido vermelho de longos tecidos tomava vida com os movimentos. Possuía partes semitransparentes, atiçando ainda mais o desejo do rapaz que a seguia em pleno transe. Chegaram ao quarto destinado ao casal. que era todo ornamentado por tecidos e almofadas de cores quentes, espalhadas pela cama e pelo chão. O cheiro inconfundível de incenso e a iluminação fraca, à luz de velas, proporcionou a ele um ambiente primoroso. Assim que fechou a porta, retirou suas roupas em segundos e foi empurrado levemente pela mulher à cama, deixando-se ser levado pelo toque. Ela o jogou na cama. Seus sedosos cabelos negros caiam nos ombros, que naquele momento estavam sendo despidos vagarosamente. Tirando as alças e segurando os tecidos na direção do ventre, ficou parcialmente nua e de frente para o rapaz que a fitava imóvel. Sob a cama, deitado, ele tentou tomar a iniciativa, como
de costume, mas sentiu-se paralisado. Não sentia mais forças para se levantar e isso o desconcertou. Em um simples ato, ela deixara cair suas vestes por completo, revelando suas partes inferiores com um sorriso. Inicialmente, ela era uma mulher perfeita, suas pernas bem torneadas, seus seios, o corpo que muitas mulheres matariam para ter, se encontrava adiante, mas ainda intocável. Ao subir na cama, de quatro, engatinhando de leve, seu corpo foi mudando de forma. Sua pele, antes clara e sedosa, foi escurecendo na medida em que se enrugava, composta por crostas coriáceas. Suas mãos se alargaram separando os dedos com membranas que possuíam enormes garras negras. De suas costas saia uma leve barbatana serrilhada e seu corpo seguia afunilando com uma cauda escamosa que bifurcava em duas nadadeiras gigantes, semelhantes a pés distorcidos. Ele viu que o queixo proeminente da bela criatura parecia esconder grandes dentições. O rosto mais angular, os olhos brilhantes se enegrecendo nas órbitas e a proximidade dos dois o deixou aflito, em constante horror. Tentou sair dali, mas não conseguia se mover, nem gritar, ao menos revirar os olhos para não fita-la. A mulher em sua forma original prendeu o homem com suas garras na cama, abrindo a boca de proporções gigantescas, como a de uma serpente que desloca sua mandíbula, mostrando todas as fileiras de dentes justapostos. As unhas feriam seus pulsos com força, mas ele já não se importava com as feridas, só queria que sua morte se passasse indolor. O que não seria de forma alguma. Esperando ser atingido pela mordida ele ouviu, no último segundo, um som cortante e sentiu algo molhado tocar sua pele. Fechou os olhos com força, num reflexo, mas estranhou a possibilidade de se mover naquela hora. Não estava mais estático. “Será que já morri?” perguntou-se abrindo os olhos vagarosamente. Assim que os abriu, viu seu corpo repleto de sangue. Algo estava jorrando o líquido vermelho e viscoso na cama, mas não achou que fosse dele, já que não sentia nada de diferente. Ao fitar a criatura ao seu lado, notou que ela se
encontrava morta e o corte aberto em seu corpo evidenciava isso. Ao sentar, tentando se recompor do que acabara de presenciar, viu que o quarto em que se encontrava estava se desfazendo. Várias ondulações tomaram o ar, as paredes e o teto caiam aos pedaços, como numa explosão, e a cama juntamente com todos os objetos perdiam sua opacidade, revelando que aquilo não era real. Ele não se encontrava ali de verdade. Assim que sua visão se estabilizou, ele se assustou um pouco. Memórias ocultadas vieram à tona com o que via. Ao seu lado, sob pedras de uma gruta, estava a criatura morta, e em pé sobre ela, com uma afiada lança, uma mulher. — Sirenas... Tão fáceis de matar que dá pena. Ele não a reconheceu de imediato a mulher de curtos cabelos castanhos e de roupas rasgadas nas feridas, mas ao ouvir sua voz um lampejo de reminiscência se formou em sua cabeça. — Rose! O que está acontecendo? — perguntou confuso, passando a mão no pulso ferido e olhando a sua volta. Estava nu e havia sangue para todos os lados — Como vim parar aqui? — Foi fisgado como um peixe por outro peixe — ironizou — Mas levante-se, rápido! — ela disse, levantando o homem sentado sobre as pedras — Sobraram outros. — Tudo o que vi foi tão real... — pensou alto — Eu nem sabia quem eu era ao menos, estava totalmente fora de mim... — Ilusão. Elas são boas nisso. Caminhando pela gruta, após deixarem a sirena, encontraram outros corpos pelo chão. Alguns ainda estavam intactos, outros se encontravam aos pedaços. — Argh... Eu poderia ser um deles — disse, enquanto passava bem próximo aos corpos para atravessar uma fenda — É inacreditável que eu passei por todos esses lugares sem nem ideia. — Quem é o sexo frágil agora? — riu. Ele a encarou sério. Sabia que mulheres eram as únicas imunes ao canto das sirenas e apenas quem poderiam ouvi-las eram homens e as próprias sirenas, que às vezes mudavam de
forma para viver em sociedade e a partir disso atingirem seus objetivos sem alardes. Por isso, ficou calado já que devia sua vida a ela e todas as outras mulheres, mas naquele momento não entendia a necessidade de humor. — Estou apenas quebrando o clima. Não gostará nada do que encontrará lá fora. Você foi um dos poucos que saiu ileso. A maioria morreu antes mesmo de chegar aqui, afogados e posteriormente devorados no meio do mar. Quando chegamos aqui pelos barcos com os que se salvaram, apenas alguns estavam vivos. — Por que sobrevivi? Por que não me mataram assim como os outros? Qual o sentido de me manter em ilusões e não partir logo pro ataque? — perguntou confuso. — Não sei ao certo... Quando cheguei, a sirena já estava montada em você paralisado pelo toque, preste a copular. Ela gritava com uma voz esganiçada e remexia a cauda para os lados. Uma cena horrível. Deve ser assim que elas matam, primeiro reprodução, depois alimentação. — Re-reprodução? Rose meneou positivamente. Ele chegou próximo a uma sirena morta que possuía o ventre aberto envolto por pequenos ovos. — Olhe isso... — disse pegando um ovo com as mãos e checando o conteúdo esmagando-o — Eu cheguei a... — Não, mas estava quase. Por pouco não perde sua virgindade com isso — riu. — Não achei graça. — Mas fique calmo, os ovos morrerão. Não estão maduros. O homem estranhou o conhecimento dela sobre o assunto, mas ignorou este fato. Chegando ao exterior da gruta, meio as diversas sirenas decapitadas e homens aos pedaços, os dois encontraram alguns sobreviventes. A maioria deles estava sendo assistido pelo restante e pelas mulheres da embarcação. Encostado em uma rocha próxima à praia, estava um senhor que com a voz fraca o chamava.
— Adrien! Venha aqui... — sussurrou o velho em plenos pulmões. Havia perdido um braço e sangrava muito. Agachando próximo ao capitão, prestou-se em silêncio, esperando ouvir suas últimas palavras. — Esteja pronto... — tossia — para comandar este navio por mim. Leve os sobreviventes a salvo para terra firme e... Se puder... Mate todas essas crias do demônio! — disse finalmente. Adrien assentiu com a cabeça e viu-o fechar os olhos pela última vez deixando seu pescoço cair de lado. — Descanse em paz — sussurrou. Quando se levantou, viu que Rose estava em pé, distante da praia, rente a água do mar, fitando o horizonte sozinha. Chegou próximo a ela e os dois fitaram as sirenas restantes, pulando no mar longinquamente sob a luz da lua no céu, como golfinhos fugindo da morte. — Elas não vão escapar — disse quebrando o silêncio. — Não sei se será útil correr atrás delas. Elas já conseguiram o que queriam. Adrien olhou curioso pra ela. Nunca tinha acreditado em sirenas, e a conversa que tivera com ela naquela noite antes do incidente não foi levada a sério. Claro, ninguém esperava que isso fosse acontecer após histórias fantasiosas de viajantes do mar. Mas tudo agora fazia um sentido assustador. — Você sabia — disse boquiaberto — Você sabia que elas viriam! — Não, eu não sabia! Foi apenas uma intuição. Eu não sei o porquê, mas algo me dizia que sirenas estavam por aqui. Eu podia senti-las assim que chegamos a essa encosta. — Por que não fez nada?! — berrou — Poderia ter nos amarrado, ou então desviado da rota! — Eu não sei... Foi tudo tão estranho. Parece que me senti atingida também, quase perdendo o controle de algo se aflorando dentro de mim, mas nenhuma das outras mulheres se sentiu como eu... Tentada. — Tentada ao quê? — questionou. — A nada. Esquece... — disse trêmula. Ela pegou suas mãos feridas e olhou triste para o rosto sujo de sangue do rapaz. Fitou-o por um longo minuto,
enquanto os poucos sobreviventes se dirigiam a embarcação que esperava na encosta. Adrien chegou próximo a ela, sentindo sua respiração. Fechou os olhos e ameaçou um beijo, arriscando tudo no momento pelo que sentia desde que haviam se conhecido, mas Rose havia virado o rosto, partindo ao soltar suas mãos. Silenciosa, deixou-o ali meio as leves ondas. Eles não se falaram depois disso. ••• Dias depois, já na embarcação, Adrien, situado na cabine do comandante, folheava o mapa da rota que seguiam para a terra mais próxima, bem longe da ilha do incidente, quando ouviu gritos agonizantes do lado de fora. Isso o assustou severamente, virando-se para ver o que acontecia. Entretanto, após certo instante, sentiu um baque interno em sua cabeça, involuntário, como uma mudança repentina de decisão. Ao fundo, longe de seus olhos mortais, uma moça de cabelos curtos e olhos enegrecidos observava tudo ao batente da porta.
A História das Fadas Doceiras Giulia Ferreira
H
á muito tempo, em uma era de bruxas, fadas, princesas adormecidas e reis com toque de ouro, escondido muito profundamente em uma perigosa floresta e sob a guarda de mais de mil e quinhentas fadas doceiras, havia um mundo maravilhoso. Quem por ventura saísse de suas próprias casas e se pusesse a andar incansavelmente em meio ao denso matagal da floresta, e que por algum motivo do destino, por habilidade de sobrevivência ou até mesmo por sorte, conseguisse chegar ao seu coração, seria amplamente recompensado com a linda visão da maravilhosa cidade. Com
construções de biscoitos de açúcar, lama de calda de chocolate e, no inverno, a neve sabor baunilha que caía do céu em forma de sorvete. Acontece que tudo isso foi há muito, muito tempo, quando os seres humanos ainda sabiam da existência da magia (não, eu não sou humana. A propósito, Marte é um bom lugar para se viver). Mas infelizmente, eu não vim contar sobre a era de ouro desse reino. Parecia um dia como outro qualquer, as moças de alta classe sentavam-se com as amigas nas sacadas para tomar chá e chocolate quente com biscoitos, enquanto os rapazes treinavam esgrima com suas espadas de lâmina de bala de tamarindo (porque, convenhamos, se aquilo já corta o céu da boca…). Mas apenas parecia, pois não tardou para que soasse uma das trombetas de guerra nas muralhas duras de quebra-queixo do pequeno reino. Um alvoroço se formou. Nunca antes na história do reino dos doces das fadas doceiras a trombeta de guerra teve de ser tocada. Isso só podia significar uma coisa: código vermelho, formigas. Os guardas da cidade, os únicos que conseguiam permanecer realmente calmos na situação, começaram a preparar seu plano de defesa. Foram separadas as bombas de chocolate mais explosivas, os fios de ovos mais embolados e o caramelo derretido mais quente. Todos os guardas e também alguns dos civis do pequeno e doce reino, que depois de uma dose de mousse de maracujá conseguiram se acalmar, partiram então para defender suas muralhas dentro das suas armaduras de rapadura. Infelizmente tenho de vir aqui dizer sobre uma triste particularidade das fadas doceiras, todas elas são -um pouco— muito atrapalhadas. Por exemplo, saberia você que o chocolate, maravilhoso doce -dos deuses— das fadas, na verdade foi inventado por acaso quando uma dessas criaturinhas esqueceuse das sementes de cacau ao Sol? Pois é. Mas, por mais que esse atrapalhamento das fadas tenha levado ao erro fabuloso que foi o invento do chocolate, às vezes (e eu devo dizer que muitas vezes) essa característica acabava
por se transformar em graves consequências. Só que daquela vez não resultaria apenas em um dedo queimado. Enfim, o que ocorreu, ao invés de embolar a horda de formigas em fios de ovos, explodi-las com bombas de chocolate e queimá-las com o caramelo superquente; as ruas receberam um novo pavimento caramelizado, várias fadas caíram nos fios de ovos e se embolaram antes que pudesse lançá-las às formigas e as bombas de chocolate, o único método de ataque que foi possível executar corretamente, eram comidas pelas inimigas assim que tocavam o solo. Os gritos e pedidos de ajuda pelas ruelas eram incessantes, e nem mesmo a mais forte das magias de açúcar daquelas pequenas fadinhas, pareciam conseguir deter o exército do inimigo. Era como lutar com monstros, porém não um tipo comum de mostro, mas sim com um que se torna mais e mais forte a cada vez que você o ataca. Formigas, aqueles seres malignos. É a mais pura verdade que todos achavam que elas fossem mitos, bestas de histórias que se contavam para crianças antes de dormir, o que só tornava o ataque algo ainda mais assustador. Explosões soavam, levantando terra de chocolate em pó pelos ares, e flechas açucaradas se perdiam em meio à confusão. Por mais que as fadas fossem incrivelmente atrapalhadas, estaria mentindo caso dissesse que elas foram as únicas prejudicadas na batalha. Membros do exército inimigo que haviam caído diante do trabalho de defesa das fadas doceiras podiam ser vistos sendo carregados nas costas pelos companheiros e sumindo no horizonte. Mas, por mais que o desejo fosse oposto, as fadas ainda se encontravam em intensa desvantagem em relação aos atacantes, por isso, quando aquelas bestas cabeçudas e com pinças na cara, por fim, aproximaram-se das muralhas, não houve muito que fazer, e então a horda inimiga pôs-se a devorar pedacinho a pedacinho; cada canto da muralha e, logo a cidade. Bem, eu sei muito bem que esse não é o final que muitos dos que começaram a ler esse texto esperavam ficar sabendo,
mas é o único que tenho para contar, e a triste verdade é que esse lindo (e gostoso) reino já não existe mais. Após a noite e mais um dia de luta incessante, os nativos tiveram de se retirar, deixando para trás tudo o que haviam conhecido por toda a vida e se aventurando a sair da floresta com apenas as pequenas asas, as roupas do corpo e os doces conhecimentos da mente. Ainda hoje há quem diga que fadas doceiras podem ser encontradas nas cozinhas de muitas avós, principalmente do interior, e se por acaso alguém estiver interessado em fisgar um par pelo estômago, sugiro que vá a procura de uma dessas criaturinhas que, eu lhe garanto, lhe darão o dom para cozinhar os melhores doces e, quem sabe, se mudar para o pote de açúcar da sua cozinha.
Coletor de Almas Jean Lucas Ramos Veloso
rua era escura como todas as outras. Ratos corriam pelo meio-fio, arrastando suas patinhas nas poças d’água que se formavam pelas chuvas. Postes com sua fraca luz piscavam, ficando cada vez mais fracos, a ponto de apagarem a qualquer momento. Aquele cheiro pútrido de sangue e urina invadia as narinas de qualquer um, causandolhes náuseas no momento...
A
Menos a ele. Andando com sua roupa escura, sua cabeça estava protegida dentro de um capuz negro de um material não reconhecível. A fraca luminosidade atingia seu rosto e ele parecia não gostar daquela sensação, tampando a luz com a mão encoberta em uma luva. Casas e bares tinham um tom triste, escuras e deprimidas com aquela cor cinza, coisa que a chuva realçava ainda mais. As pessoas andavam na rua, com pressa de chegar a qualquer lugar que fosse. Há poucas delas, pensou; poucas almas. Finas gotas d’água agora despencavam do céu, molhando sua roupa. Procurou abrigo embaixo de uma proteção à porta de um bar pouco frequentado. Olhou o nome e depois para dentro do lugar, vendo as pessoas desanimadas que estavam sentadas. Uma delas lia um livro, o outro tomava cerveja no balcão enquanto dois amigos jogavam cartas em uma mesa. Com a mão enluvada abriu a porta, entrando no bar; este que tinha uma atmosfera diferente. Estava quente e quieto, com o som apenas dos objetos se mexendo e comentários ressoando no ar. Procurou uma mesa e se sentou, pedindo um café. Observava os homens jogando cartas, cada um deles com um número nas mãos. Pareciam estar se divertindo, ou pelo menos passando o tempo. Insólito, arrancou um livro encadernado em couro preto de dentro da roupa e abriu numa página avançada, lendo para si mesmo as palavras. Sem prestar a mínima atenção, ouviu o homem à direita jogar as cartas na mesa e sorrir, dizendo que havia ganhado o jogo. — Sou o vencedor! Mais uma rodada e eu ganho— falara para o amigo que também sorrira. — Não conte com a sorte. Distribuíram as cartas um para o outro novamente e começaram a jogar. O atendente trouxe o café dele, pondo sobre a mesa a xícara quente. Agradecendo, ele pegou a xícara e a levou até os lábios, sentindo o sabor doce do líquido marromescuro. Recolocou o objeto na mesa. Folheou o livro.
A pessoa sentada ao balcão pediu mais cerveja. Lá fora a chuva ficava mais forte, sendo audível o som das gotas caindo na vidraça e no teto do pequeno bar. Mais um cliente entrou pela porta, dirigindo-se até a mesa dos homens que estavam jogando cartas. — Finalmente você chegou, Rick! — exclamou o da direita. O homem de capuz negro bebia seu café, observando o chegado. Não havia mudado o mesmo clima de depressão, tristeza e suicídio. — Tive que andar duas ruas pra comprar cigarro, essa é a causa da minha demora. — Pode me dar um? — perguntou o da direita. O homem recém-chegado tirou um cigarro do maço e o ofereceu, acendendo a ponta dele com o isqueiro que tirara do bolso. Enquanto o homem da direita soltava a fumaça, o da esquerda começou a distribuir novas cartas, principalmente para o homem que tinha acabado de chegar. Eles apostaram dinheiro. Fumaram e fumaram, sem parar de jogar. A pessoa de capuz negro pôs a xícara na mesa, retirando o manto de sua cabeça e deixando a face à mostra. Tinha os olhos profundamente negros, com uma linha vermelha rodeando sua pupila. — Fumar faz mal, sabiam homens? — perguntou ele pela primeira vez. A voz era estranha, arrastada, áspera e grave. Os jogadores pararam para olhá-lo, com expressão de indignação. — E quem é você, por acaso? Um louco? — indagou o da esquerda. — Você pode acabar morrendo com tanto fumo — disse, sem se importar com a pergunta. — Eu poderia me juntar a vocês na partida, homens? Um pensamento hesitante se prolongou por quase cinco segundos, deixando que apenas o som da chuva lá fora fosse ouvido pelas pessoas presentes no local. — Claro. Por que não? Contanto que tenha dinheiro para apostar...
— Sim, claro. Ele se aproximou da mesa dos homens, puxando a cadeira em que estava sentado, tomando o café. Uma nova partida começou e novas cartas foram distribuídas. Ele olhou as cartas, atentamente. Rick jogou a primeira no bloco e comprou outra, vendo que estava com vantagem por ter aquela. O homem à direita jogou a carta e pegou uma de Rick, feliz. — Ah, dessa vez eu ganho. Era a vez dele, e jogou. A carta dera-lhe vantagem. — Desgraçado. Pegou meu dinheiro! O homem que antes estava de capuz pegou uma nota em cima da mesa, guardando o dinheiro no bolso da calça que vestia. — Mais sorte da próxima vez. As próximas jogadas foram comuns, sem nenhum deles ganhar vantagem sobre algum outro ou pegarem o dinheiro. Ele teve que devolver, pois o homem a sua direita tinha jogado a carta. Sem hesitar botou a nota na mesa, já que não parecia muito interessado nela. As cartas dos homens à direita e à esquerda acabaram e eles perderam, segundo as regras do jogo. Não muito conhecido, o jogo eram daquela forma: os que perdessem as cartas e ficassem com um valete de copas tinham que sair do jogo. Os que ficavam com um valete de paus ganhavam. Ele tinha dois valetes de paus e tinha a chance de ganhar o jogo, enquanto Rick tinha apenas um. Quem tivesse mais quantidade de valetes era ganhador. Rick comprou uma carta do monte e a jogou, pegando algumas notas. Sorriu ao ganhar o dinheiro, enquanto os amigos disseram coisas não muito animadoras. Rick e os outros três ainda fumavam, tragando a fumaça e a soltando um segundo depois. — Merda — falou Rick, ao ver a jogada do homem a sua frente. — Você realmente quer me ferrar, não? Pois vamos ver quem vai perder essa partida! — disse por fim.
Jogou uma carta e o outro também, contra-atacando, sem deixar nenhum dinheiro ser roubado. Rick agora tinha dois valetes de paus. Examinando o jogo, o homem com a roupa negra lançou uma carta e Rick hesitou, pensando no que devia fazer. Se jogasse os valetes não ia ter um lucro grande com a aposta, mas se não jogasse, poderia perder a partida e todo o dinheiro que tinha em cima da mesa. — Passe sua grana, pois você acaba de perder! — proclamou Rick, jogando suas cartas em cima da mesa. Tinha dois valetes de paus à mostra. Devagar, o homem de capuz preto olhou as cartas de Rick e voltou seu olhar para seu rosto. — Ao invés de apostarmos dinheiro, por que não apostamos uma coisa melhor? — Melhor que dinheiro? Tipo o quê? Expirou profundamente. — Sua alma. — falou por fim, jogando as cartas e mostrando os três valetes de paus. Os três homens ficaram boquiabertos ao ouvir e ao ver a jogada. E, então, o que aconteceu a seguir foi aterrorizador. Rick passou a engasgar em algo que não sabia o que era, tentando se livrar daquilo. Caiu ao chão, enquanto os amigos tentavam ajudar. As pessoas apenas observavam, e o de capuz também, com um rosto sério. Agonizando no chão, Rick não conseguia respirar. O homem apenas puxou o capuz rapidamente para a cabeça e pegou o dinheiro na mesa, pondo-o no balcão em seguida. Depois se dirigiu à porta, quando ouviu a voz do homem: — O que você é?! — Eu? Sou apenas um jogador, um apostador – e terminou, num tom sombrio— Diria que sou um colecionador. O silêncio percorreu o bar quando uma fumaça branca saía da boca e nariz do homem morto, pairando no ar até desaparecer completamente perto do teto. Pálidos e assustados,
as pessoas tremiam cada vez mais. Aquilo parecia impossível, e realmente era. Pelo menos para eles... — Eu disse que fumar faz mal. Vejo vocês dois em três meses.
O Livro do Dragão Laís Helena Serra Ramalho
adyere se debruçou sobre os pilares da varanda e observou a destruição que se estendia logo abaixo. A Torre do Conselho estava em chamas. As labaredas despontavam em direção ao céu cinzento e a fumaça negra intoxicava o ar e deixava Jadyere com uma sensação de sufocamento. As residências, pequenas casas de madeira que circundavam as torres da Escola de Magia, também ardiam ao longe, formando um círculo de fogo ao redor do centro de Yalladarae. Jadyere torcia para que não houvesse ninguém dentro quando as casas tinham sido incendiadas, porém, sabia que era uma esperança tola. As sete torres de proteção, que se projetavam dos muros externos de Yalladarae, estavam em ruínas, e os portões, os grandiosos e intransponíveis portões de Yalladarae, protegidos
J
pela magia dos melhores magos, tinham sido derrubados. Nenhuma magia era capaz de superar o poder, a destreza e a disciplina da mente de Allandora. Os dragões sobrevoavam a cidade em círculos, como dezenas de joias coloridas. O que mais se destacava era um dragão azul-noite, com asas imensas e uma longa e esguia cauda, que esporadicamente escancarava sua boca, exibindo suas presas cor de marfim, e cuspia fogo. A maior parte dos incêndios se devia àquele dragão em especial. E tudo isto — a destruição, a morte, o caos — era culpa de Jadyere. Se ela não tivesse ido a Ademarya, se não tivesse trazido de lá Yallador, o dragão branco. Se, antes disso, não tivesse bisbilhotado aquela pequena e misteriosa casa de madeira com que topara no meio da floresta, a caminho de Ademarya. Ou se tivesse guardado para si o que descobrira a respeito das Três Grandes Elfos, Ateyna, Allyana e Azza. Contudo, ela fizera todas aquelas coisas. Na época tinha apenas vinte anos, e queria provar para os elfos, membros do Conselho, que era capaz de estudar em uma das sete Escolas de Magia. Não apenas provar que era capaz, como também fazê-lo em grande estilo. E, para uma jovem de vinte anos, resgatar o Dragão de Ademarya era a melhor coisa a se fazer. Era uma missão perigosa, que teve de ser completada em pouco tempo, e demandava grande poder mágico, mental e um bocado de inteligência. Jadyere almejava entrar para a mais complexa e mais louvada Escola de Magia — a Escola de Introspecção. E conseguira, mas agora tinha de lidar com as consequências: assistir à destruição de Yalladarae, a Cidade dos Elfos, e à morte de seus amigos, parentes e de inúmeras outras pessoas que nunca chegaria a conhecer, mas que não tinha o direito de matar. — Parece que não mais há esperanças. — aquela voz fez Jadyere despertar de seus devaneios. Era uma voz bela e musical, mas seu tom expressava todo o desespero que a elfo sentia no momento, o que pareceu tornar tudo ainda mais sombrio.
Jadyere deu as costas à destruição a fim de encarar sua acompanhante. Era Yanna, a rainha de Yalladarae. Era uma bela mulher. Tinha rosto pálido que destacava o azul de seus olhos, longos cabelos castanho-escuros e traços delgados e delicados. As orelhas pontudas se destacavam entre os cabelos, e seu corpo magro e longilíneo estava vestido com roupas azuis escuras; a capa negra que tremulava em suas costas, assim como as linhas duras em seu semblante, indicavam o luto pela morte do Rei Fyonn — mais uma morte para repousar sobre a consciência de Jadyere. — Minha senhora, eu sinto muito. — disse Jadyere, com a voz tênue. — Por que sente muito, Jadyere? — indagou Yanna. — Por acaso é culpada pelo que está acontecendo a Yalladarae? Por acaso é culpada pela morte de meu marido? Jadyere abaixou a cabeça; não era capaz de sustentar o olhar da rainha. — Sim, senhora, eu sou. — disse. Yanna deu um passo à frente e, num tom severo, ordenou: — Explique-se. Yanna tinha um dom para dar ordens que ninguém mais possuía. Era inexplicável. Parecia existir alguma inflexão em sua voz, que fazia as pessoas agirem sem questionar, sem sequer perceber que tinham sido ordenadas a realizar alguma tarefa. Assim, Jadyere deu sua explicação: — Eu trouxe Yallador de Ademarya. Se não tivesse feito isso, o segredo teria permanecido guardado, e nunca teria caído nas mãos de Laeen ou Allandora. — Se não tivesse feito isso, é claro que agora Yalladarae não estaria sendo destruída… Teríamos ainda alguns anos. Talvez umas cinco ou seis décadas. — Yanna falou. — E seria pior. Sem compreender do que a rainha falava, Jadyere ergueu a cabeça e a fitou. — Perdoe-me, senhora, mas o que quer dizer com isso? — Quero dizer que, se você não tivesse descoberto o segredo, eles o teriam feito. Teriam demorado um pouco mais
para descobrir, mas teriam descoberto, de qualquer maneira. E nós não: seríamos pegos de surpresa. Então, graças a você, conhecemos o segredo, e por isso temos uma chance contra Allandora. — Mas a senhora acabou de dizer que não havia esperança… — Não havia esperança para Yalladarae. É inevitável que a cidade seja destruída. Mas ainda há chance para nós, elfos. — Yanna esclareceu. — Mas dezenas morreram neste ataque. — Jadyere contestou. — Dezenas, exceto eu, que sou culpada por tudo. Exceto eu, a única que merecia perecer neste horror… — Não, Jadyere, não merece. — Yanna insistiu. — Você não merece morrer, e também não é culpada por nada disso. Se quiser culpar alguém, culpe Allandora, que roubou o Livro do Dragão. Não só o roubou, como também está utilizando seus ensinamentos para o mal. Mas você, Jadyere… Era jovem na época e, mesmo que tenha ido a Ademarya por puro exibicionismo, fez-nos um grande bem. E conseguiu entrar para a Escola de Introspecção, que era, suponho, o seu desejo. Jadyere assentiu. — Sim, era esse o meu desejo. Ainda assim, senhora, não compreendo como posso ter feito algum bem… A rainha se aproximou e tomou ambas as mãos de Jadyere, como se quisesse lhe oferecer algum conforto. — Você desvendou a verdade sobre a morte das Três Grandes Elfos. Muitos acreditavam que tivessem partido, alguns até mesmo chegavam a duvidar que algum dia tivessem existido… Agora, contudo, sabemos que foi Allandora quem as matou. E também sabemos que Allandora é real, assim como aquilo de que ela estava atrás. — O Livro do Dragão. — Jadyere sussurrou. — Sim. — Yanna confirmou. — O Livro do Dragão. Allandora desejava o Livro do Dragão, que fora criado pelas Três Grandes Elfos (mais especificamente, por Ateyna). E assassinou-as quando estas lhe disseram que o tinham escondido, e que a sua localização era um segredo que nunca chegaria ao saber de Allandora ou de qualquer outra pessoa.
Além das Três Elfos, apenas outras sete pessoas conheciam a localização do Livro do Dragão; os membros do Conselho. Mas muito tempo se passou desde então, e Dyllah e os demais membros do Conselho acabaram por se esquecer da importância desse segredo, e com o passar dos anos, do próprio segredo em si. — Então, num belo dia, você decidiu que resgataria Yallador, o Dragão de Ademarya, no intuito de provar que era digna o suficiente para estudar em uma das Escolas de Magia de Yalladarae. E, por algum acaso, topou com uma velha casa de madeira na floresta e se sentiu curiosa para descobrir sobre o que falava aquele velho e empoeirado livro que estava largado a um canto, como se tivesse sido abandonado. — Eu ainda estou surpresa com a engenhosidade das Três Grandes Elfas. Porque Allandora nunca esperaria que o Livro dos Dragões estivesse escondido em uma pequena casa de madeira, abandonada no meio de uma floresta. Era muito provável que pensasse que estava escondido em um grande e luxuoso palácio, cercado por complexos feitiços de proteção e defesa. — Mas você o encontrou, Jadyere, e isso, por si só, a torna digna de ter estudado na Escola da Introspecção; ou, como a chamávamos antigamente, a Escola da Mente. Há quinze anos, ninguém se provava digno de tal feito, e havia ainda mais tempo que ninguém se destacava tanto quanto você, Jadyere. Você não só vê, como também enxerga. E isso é muito importante. Em tempos como esse, o que mais precisamos é de elfos com a mente como a sua. Capazes de enxergar, e capazes de desenvolver todas as sutilezas da mente. Por pertencer à Escola da Introspecção, você tem em sua mente todos os ensinamentos das demais escolas. Você é como poucos. — Todavia, não foi apenas isso, Jadyere. Você trouxe Yallador, e devido a isso temos ao menos um dragão ao nosso lado. E, acima de tudo, fez Dyllah se recordar da importância do segredo e da importância do Livro dos Dragões. E nos fez ter um vislumbre do que Allandora reservava para nós. Sem tudo isso, não somente Yalladarae estaria arruinada, como também todos os elfos; ou ao menos aqueles que possuem boa índole e
um mínimo senso de moral, uma vez que Allandora e todos os seus aliados também são elfos. Jadyere, sem saber o que dizer, apenas fez um movimento com a cabeça, indicando que enfim compreendera. Ainda assim, não conseguia se livrar daquele desagradável sentimento provocado pela morte de todos aqueles elfos. Fyonn morrera tentando impedir que invadissem Yalladarae, junto de muitos outros cujos nomes Jadyere sequer conhecia. — Então vocês puderam se preparar… Ao menos um pouco? — perguntou. — Sim. — confirmou Yanna. — Assim que relatou sua história, Dyllah correu a nos avisar. Demoramos alguns meses para conceber um plano, mas creio que tenha sido um bom plano. Muitas coisas já tinham sido deixadas prontas pelas Três Grandes Elfos. Elas talvez tenham previsto que Allandora nos atacaria. — E qual era o plano, senhora, se me permite perguntar? — Jadyere desejou saber. — Vamos nos esconder. Muitos anos foram dedicados à construção da rota de fuga. Aqueles que trabalharam em sua construção juraram guardar segredo, por isso nunca chegou ao seu saber. Esperávamos que nunca precisássemos utilizá-la, mas vejo que não temos escolha. Dyllah já está reunindo os sobreviventes. — Yanna explicou. — Nós fugiremos e permaneceremos escondidos por algum tempo. Não nego que serão tempos difíceis. Enquanto isso, precisaremos de você e dos demais alunos da Escola de Introspecção. Precisamos resgatar o Livro dos Dragões antes de fazermos qualquer coisa, e quem melhor do que você para isso? Em seguida, precisaremos utilizar o conhecimento contido no livro para convencer os dragões a se tornarem nossos aliados. Se Allandora não os tiver sob seu controle, teremos uma chance de derrotá-la. — Há quanto tempo o Livro dos Dragões foi roubado? — quis saber Jadyere. — Faz setenta anos. Dyllah decidiu guardar segredo quanto a isso, como fez em relação à construção das rotas de fuga. Os próprios membros do Conselho saíam de tempos em
tempos no intuito de recuperá-lo, porém, como você pode ver, todas as missões fracassaram. Talvez devêssemos ter enviado você. — Yanna tentou sorrir, para reforçar o elogio, mas tudo o que conseguiu foi uma careta de pesar. — E o que Allandora pretendia ao roubar o Livro dos Dragões? — inquiriu Jadyere. — Não me parece que ela precisaria dele se quisesse apenas destruir Yalladarae. — Sim, também acredito que a destruição de Yalladarae é apenas uma etapa. Uma pequena etapa. — Yanna comentou. — Porém, não sei dizer quais são as pretensões de Allandora. Isto, teremos de investigar. Jadyere anuiu para demonstrar sua concordância. Então mais uma questão surgiu em sua mente: — Senhora? Saberia me dizer o que está escrito no Livro dos Dragões? Yanna soltou as mãos de Jadyere e a fitou com intensidade. — O Livro dos Dragões ensina a fazer o que você fez com Yallador. — Dominá-lo? — indagou Jadyere. — Não, Jadyere. Você não dominou Yallador: Yallador é uma criatura livre, que não responde e nunca responderá exclusivamente aos desejos de uma elfa ou elfo, quem quer que seja. Você apenas se comunicou com ele, Jadyere, e ele achou que não matá-la e acompanhá-la a Yalladarae era uma boa ideia, por isso o fez. Jadyere sabia que ela tinha razão. Lembrava-se de ter entrado em contato com a mente do dragão e dialogado com ele de alguma maneira. Yallador possuía uma linguagem diferente de qualquer outra que Jadyere já tivesse visto ou ouvido falar, porém, ela de alguma forma fora capaz de compreendê-lo, e não apenas isto: também fora capaz de se expressar na linguagem dos dragões. Ou fora Yallador que tinha se mostrado capaz de também compreender a linguagem dos elfos? Isto ela não saberia dizer. Contudo, a lembrança ainda era vívida. Quando alcançou Ademarya, recordava-se de ter avistado Yallador, deitado com a cauda enroscada ao redor do corpo, descansando entre as
ruínas de dois castelos. Lembrava-se de como ele abrira seus olhos tão verdes em contraste com as escamas brancas, e de como, a seguir, ele erguera seu pescoço longo e reptiliano. E então se virara para ela, perigoso e majestoso, resplandecendo sob o pôr-do-sol como uma joia branca. Suas patas eram musculosas, e as garras e dentes que exibia para Jadyere, afiados e ameaçadores. As asas brancas eram gigantescas e lançavam sombras sobre o chão gramado. Porém, apesar de todo aquele poder, Yallador era, também, gracioso. A criatura mais bela que Jadyere vira em sua curta existência — que ela acreditava ter chegado ao fim assim que ele exibiu o interior cor-de-rosa de sua boca, pronta para assá-la com suas chamas infernais. Então Jadyere suplicou para que ele não a matasse. Prometeu que não lhe faria nenhum mal. E, de uma maneira incrível e inexplicável, Yallador a compreendeu. E não apenas isso: também a auxiliou quando, pela segunda vez naquele dia, Jadyere pensou que iria morrer, encurralada pelo poder e pela destreza de Laeen, também um elfo e, dizia-se, o braço direito de Allandora — havia até mesmo aqueles que teorizavam que era seu amante. — Tem razão. — ela disse para Yanna. — Eu me comuniquei com Yallador. — E Yallador sempre esteve ao seu lado pelo mesmo motivo que todos os seus amigos estiveram: amizade. — Yanna esclareceu. — Então Allandora roubou o Livro dos Dragões e durante todos esses anos esteve aprendendo a se comunicar com eles. — Jadyere concluiu. — Exatamente. Aprendeu a se comunicar com eles, então rodou o mundo procurando convencê-los a aliar-se à sua causa. — disse Yanna. — Mas não deve ter convencido a todos. — Jadyere falou. — E pode ser que alguns sequer tenham sido encontrados. É impossível que somente Yallador tenha se recusado a ajudá-la. — Sim, Jadyere, você tem razão; aliás, esta é uma excelente ideia. — Yanna falou, em tom de quem se orgulha de seu melhor aluno. — Procurar ajuda de outros dragões
certamente nos daria certas vantagens em relação a Allandora. Porém, por enquanto, precisaremos nos esconder e esperar. A destruição de Yalladarae foi uma tragédia, e precisamos nos recuperar um pouco. Ademais, restam poucos de nós. Precisamos planejar e nos fortalecer antes de sairmos em uma missão desse nível. Allandora precisou de anos e anos para conseguir o Livro dos Dragões e então convencê-los a ajudá-la. — E além de tudo temos de descobrir o que ela pretende. — Jadyere quase se esquecera daquela parte. A rainha acenou em concordância. — Tempos sombrios virão pela frente, e há muito a se fazer. — ela disse. — Nossos desafios são complexos e talvez nos custe a vida. Ainda assim, tenho esperanças de que algum dia possamos reconstruir Yalladarae. Jadyere acenou, embora não partilhasse das mesmas esperanças. E o silêncio caiu entre as duas, pesado e desagradável. Mas não durou muito, pois foi interrompido pela chegada de Dyllah. A líder do Conselho era uma elfo quase tão bela quanto Yanna, embora tivesse os cabelos louros e os olhos cor de mel. Seu semblante era severo, e ela trajava um vestido vermelho e uma capa marfim. — Está na hora. — ela disse, simplesmente. — Venha Jadyere. — disse Yanna, estendendo a mão como se se oferecesse para conduzi-la. — Devemos partir. Jadyere se virou para olhar uma última vez para o que restara de Yalladarae, a tempo de ver a torre da Escola de Introspecção despencar sob a ação de dois enormes e poderosos dragões, um deles laranja como as chamas que consumiam a cidade e o outro verde como as folhas escuras de uma árvore. Então Yanna a puxou e Jadyere seguiu as duas elfas em direção ao interior do palácio. Em direção ao seu novo refúgio, deixando para trás todos os anos que vivera em Yalladarae, todos os seus amigos e entes queridos que haviam perecido tentando impedir que a cidade fosse invadida. A Jadyere, apenas restavam algumas poucas lembranças, o peso de dezenas de mortes e a árdua tarefa de derrotar Allandora e
restaurar Yalladarae — algo que ela talvez não tivesse oportunidade de ver concluído.
Atrás de Você Eduarda Valle
ão existem regras quando o assunto é morrer. Ás vezes, você se esquece de olhar para os lados quando vai atravessar a rua e é pego por um carro. Ou então, é vítima de uma doença que te deixa incapaz de se mover e falece pouco tempo depois. São inúmeras possibilidades. Você morre, e tudo chega ao fim. Mas existem regras quando o assunto é matar. A primeira delas é não deixar que te percebam. Um homem mascarado entrando sorrateiramente no quarto de uma jovem mulher enquanto ela se troca. Ele se esconde nas sombras esperando o momento certo para atacar. A segunda é fazer com que sua vítima sofra. O homem a pega distraída, tapa-lhe a boca e tira uma adaga de seu cinto. A mulher começa a suar debaixo da sua mão. O homem mascarado ri e começa a fazer cortes simultâneos em seu rosto.
N
A mulher está chorando e suas lágrimas fazem com que cada um dos cortes doa. Mas ela não consegue gritar. Em seguida, o homem arranca-lhe a roupa recém-trocada e, com a mão livre, tortura-a, golpeando seu corpo em pontos estratégicos. Tudo que a mulher pode desejar é a morte. E esta lhe é concedida. A terceira regra, e talvez a mais importante, é ocultar sua presença. O homem pega o corpo, cujo pescoço fora cruelmente arrancado, e o carrega consigo. Pula pela janela e, com um gesto meticulosamente preparado, vê o prédio explodindo atrás de si. Depois acha uma cova em um lugar afastado e o único comentário que se ouve no dia seguinte é sobre um homem que ninguém sabe quem é. Sem identificações, simples assim. E há uma quarta regra, mas esta é para você, leitor. Não olhe para trás. O homem mascarado está aí. Breuddwyd é um reino qualquer, em cima de um continente qualquer. Pessoas como você não podem vê-lo, pois ele faz questão de se esconder de olhos cobiçosos de seres humanos comuns. Ele odeia o comum. Seus habitantes são fadas, sereias, duendes e criaturas que você considera mitológicas, mas há uma parte da população que é repudiada por ter nascido completamente humana. São os Renegados. E os Renegados foram as únicas vítimas do homem mascarado, por isso concluiu-se que ele era apenas uma criatura revoltada com seus inferiores. Não havia sangue quando Amber Carlot chegou em casa às 6 da manha. Sequer havia uma casa para a qual retornar. Tudo estava detonado. Alguns curiosos, com sua falsa piedade, lhe contaram a verdade. Sua mãe estava morta. A garota teria que viajar para a casa dos tios, pois também sendo uma Renegada, poderia ser a próxima vítima. Uma viagem a pé, sozinha. Quatro horas de viagem que Amber teria que enfrentar sob o céu escaldante, vítima de olhares preconceituosos ao seu redor. E logo escureceria e ela ficaria a mercê das sombras.
Sentiu fome. Em um pequeno vilarejo, resolveu parar. Fora seus cabelos coloridos e olhos amarelos, ela não se identificava com as fadas que circulavam por ali. Escondeu-se sob uma capa que trazia em sua bagagem. “Você ouviu sobre o homem mascarado?” ouviu um homem comentar. Sua atenção se voltou para ele enquanto bebia uma caneca fumegante de café. “Sim, ouvi dizer que ele também tem atacado no Mundo de Baixo” outro homem respondeu. O Mundo de Baixo ou Mundo dos Humanos. Se ele também atacava humanos, isso significava que ele não suportava qualquer um que não fosse uma criatura mágica. Elfo maldito. Pois sim, chegaram à conclusão de que esse homem também era um elfo. Ali no canto da taberna, um homem barbudo se virou para Amber. “Você está sozinha? Pela sua capa, não parece ser uma fada.” E seu sorriso presunçoso apenas se alargou quando o dono do bar, um duende, se virou para ela e disse “Não aceitamos Renegados aqui. Vá embora.”. Ela correu, mas seus pensamentos já não estavam mais ali. O homem mascarado seria mais procurado agora que atacara humanos e seria difícil fazer justiça com as próprias mãos. Precisava encontrá-lo logo. E encontrou. Primeira observação: o homem mascarado a acompanhara desde o início da viagem. Segunda observação: ele também era um Renegado. Amber sentiu sua aproximação quando começou a escurecer. Ela se virou e bem ali, oculto pelas sombras, estava Ele. Não um elfo, ou um duende, mas um Renegado, com longos cabelos grisalhos e olhos penetrantes. E ele sorria como um maníaco. “Deixei que me vissem antes da hora” sua voz era áspera. “Finalmente nos encontramos.” Amber jogou suas coisas no chão e retirou uma faca que estava escondida em algum lugar em suas roupas. “Mas você não é o que eu esperava”
O homem deu um passo à frente. “Eu tenho meus motivos para matar Renegados e humanos, se é o que você está pensando.” “E que motivos são esses?” Ele não respondeu. Em um único movimento, agarrou-a pelo queixo. Amber soltou a faca. O homem apertou com mais força. O maxilar da garota estalou. Ela não conseguiu gritar. Ele a jogou no chão, e deu chutes em seu estômago. Amber se sentiu inútil perante ele. O homem retirou uma adaga de seu bolso, rindo loucamente, e a aproximou dos olhos da garota. Ela arfou. Você é louco, pensava. Queria esbofeteá-lo, chutá-lo em partes que o fariam gemer de dor por uma semana, mas ele a havia imobilizado e ela só podia assistir, em pânico, enquanto ele repousava a adaga ao seu lado e tirava outro instrumento do bolso. Amber já escutara boatos sobre os lápis. Eram armas que criavam os rascunhos para coisas chamadas livros. Em Breuddwyd não havia livros, mas todos sabiam que eram coisas que mudavam as pessoas e ameaçavam aqueles corruptos que estavam no poder. Mas o lápis que o homem mascarado carregava era uma arma que faria mais do que mudar. Sua ponta era afiada. E ele a usou para perfurar o olho esquerdo da garota. Ela quase gritou, mas a dor do esforço percorreu todo o seu corpo. Sangue escorria onde deveriam ser lágrimas. Ela estava chorando por dentro. Estava apavorada. Não conseguia entender. Por que aquele homem, um Renegado, atacava sua própria espécie e torturava humanos? Por que era tão sádico? Por que tinha tanta sede de sangue? O que o motivava? O homem mascarado rugiu. Agarrou a adaga, e com um último olhar tempestuoso, enterrou-a no crânio de Amber. Um último pensamento: os olhos dele são azuis. Ele se levantou e limpou o suor de sua testa. Com aquela garota, foram 357 vítimas. Malditos humanos. Malditos Renegados. Agarrou o corpo da menina com cabelos coloridos e o jogou em um saco surrado que sempre carregava consigo.
Caminhou com o peso que julgara ser aproximadamente 48kg até uma clareira no meio da floresta escura e demoníaca. Ele não compreendia como as pessoas não enxergavam a beleza daquele lugar. Principalmente com sua obra de arte: uma pilha de corpos cujo odor se estendia por toda a área. Mas quem seria o louco que iria verificar? O homem retirou as luvas brancas, que já estavam imundas, e as jogou ao lado da garota que acabara de matar. Logo não restaria mais nada. Ele suspirou. As chamas alaranjadas começaram a devorar os corpos que já estavam se decompondo e ele se sentou para assistir ao espetáculo. Retirou a máscara. Mas não por muito tempo. Precisava recolocá-la para ir atrás da próxima vítima. E o motivo pelo qual matava humanos e Renegados? Por que não pergunta diretamente a ele, caro leitor? Pobre humano, olhe para trás. Afinal, o homem mascarado está bem aí. Atrás de você.
Um Eterno Sonho de Morte David Novaes
E
stava uma tarde ordinária, como sempre. Cinzenta e fria. Para dizer a verdade, é sempre esse o clima por aqui. As pessoas são sempre as mesmas, que perdem seu foco e seus ideias com o tempo, e às vezes até enlouquecem. Os mais fracos acabam perecendo no próprio campo de batalha, particularmente acho um futuro mais digno e honroso.
Não posso culpá—los, a vida num campo de guerra é realmente intenso e sinistro. Pessoas morrendo ao seu redor, e a vida de repente se torna tão insignificante e vazia. É algo duro, mas é para isso que os guerreiros usam os treinos, para apagar a essência que resta em si. As estratégias servem apenas para se beber vinho e fingir que há algo de honesto em matar e morrer sob o fio de uma espada. O dia se seguiu calmo hoje. Sem invasão dos bárbaros vindos do leste. Isso é quase uma dádiva, ou uma maldição. Um tempo de descanso significa calma, e calma faz pensar. Para um guerreiro, pensar é como se fosse a morte, pois você olha seu reflexo, e só então percebe quanto sangue tem em suas mãos. Assim se segue a vida por aqui. As vezes calmos e cheios de amargura. As vezes cheios, longos e sangrentos. Ao cair da noite todos se recolhem. Mal fecho meus olhos e já está de manhã. O som é irritante, o soar de uma trombeta e barulho de movimentação ao redor. Meus instintos me acordam antes do cérebro e já me torno o demônio que carrega a espada da “justiça”. Tudo já estava traçado quando eu nasci, e as luas que carregam meu escudo, símbolo da casa que meu pai jurou sua espada e me entregou como escudeiro de Lorde Caesar Sinther. Estava tudo escrito aqui, todos os meus dias. Pulo para dentro de minha armadura, não há tempo para os detalhes. Um menino escudeiro me ajuda a fechá—la. Desembainho minha espada e vou à luta. Sangue, pessoas mortas caindo ao chão. “É apenas isso que sou: Uma arma para aqueles que tem poder.” Eu realmente não podia reclamar, não conseguia gostar de fazer outra coisa além de lutar, mas matar era a consequência, e eu teria de lidar com ela querendo ou não. Um homem loiro, de barba grande, corre em minha direção. Aparo seu ataque com a espada e contra—ataco—o na direção da cintura. Sinto a espada cortar couro, pele, carne e raspar ao osso. Ele cai ao chão aberto da cintura ao peito. Fico pensando na mulher e nos filhos daquele homem. “Você é apenas a arma de quem detém o poder.” Transpassei mais dois bárbaros e decaptei mais um. Não penso mais em como vou atacar, deixo apenas que a mão guie a espada. Posso fazer isso tranquilamente, e o faço por pelo menos as próximas 6 horas de
batalha. Era um grupo grande, mas mesmo assim não resistiram. Paro quando derrubo o último homem, e encaro com um olhar vazio o mar de mortos. Uma chuva fina começa, eu começo a pensar quem são realmente as bestas. Eu vou ao mesmo lago de sempre. É uma pequena porção d’água de algumas centenas de braços. É bem fundo, apesar de não parecer. Mergulho a lâmina rubra na água, pareço sentir o sangue desgrudando de minha espada enquanto eu formo figuras na água. Escuto uma bela melodia, mas não consigo achar a fonte do som. Decido que foi coisa de minha cabeça, e então volto para o acampamento. Durmo. Acordo. Bebo da cerveja amarga. Como da carne. Todos comemoram a vitória de hoje, mas eu realmente quero apenas que tudo acabe. Realmente não sei o que irei fazer quando tudo acabar. Não tenho casa, não tenho família, não tenho vida. Sempre fui sozinho, e todos os anos o que fiz foi lutar, lutar e lutar. Cresci achando que fosse a única coisa que sabia fazer, mas agora até isso está me cansando. Penso que posso estar me tornando uma arma enferrujada, então ponho— me a treinar. Estocadas, cortes, quedas, chutes, socos, berros. Acompanhados do suor, dos hematomas e da dor isso é o refresco da alma de alguém como todos nesse acampamento. Sempre tem de haver uma válvula de escape. Se não é o treino é a bebida, e se não é a bebida é o sexo, proporcionado facilmente pelas mulheres de acampamento. Passo mais dois dias tranquilos. Apenas observando. O sol parece não querer testemunhar o que os humanos fizeram à sua visão. Não nasce no leste, não se põe no oeste. Nos deixa nessa eterna tarde, sempre cinzenta até que chega a noite, então tudo está escuro e perigoso. Logo pela manhã chega uma carta em um corvo, dizia apenas que a morte estava chegando em todos os acampamentos. Todos passaram aquela manhã em silêncio, o inverno uma hora ou outra chegaria àquela parte também. Lavro plantações, cuido de animais e faço tudo o que um sujeito pode fazer para manter a mente ocupada. Sempre sentindo o peso da carta em minha mente. “A morte está chegando.” Por algum motivo eu não consigo tirar isso da cabeça.
Novamente as trombetas soam. Penso se não é a morte chegando, mas logo pulo para a minha roupa de fera raivosa e vou fazer meu trabalho de pantomimeiro. Mato, sangro, esquartejo e contra—ataco. Recebo golpes, sofro, grito, suo. Pessoas morrem, animais morrem, me sinto quase um estranho assistindo aquela cena. Vejo um vulto entre dois homens, mas logo some. Retorno para a batalha com toda a intensidade, tomada por uma raiva incrível. Transpasso um inimigo com a lâmina, mas não é o suficiente. Estou farto. Exausto. Começo a cortá—lo em pedaços mesmo depois de morto, e me abstenho na sensação de força e poder que o sangue em mãos dá para um homem. Espada e escudo em mãos. Placa no peito e nada na cabeça. Isso faz de um guerreiro uma arma, isso faz com que eu possa morrer por todos sem nem ao menos começar a viver minha vida. E quando a luta acaba, percebo que estou no fundo do poço, pois grito por mais. E continuo ali, retalhando os mortos e berrando palavras de agouro. Por fim recebo um choque ao perceber o que estou fazendo, e ao ouvir um outro soldado me pegar pelos ombros e me sacudir. Eu chego a levantar a espada para ele, mas encaro seus olhos castanhos, brilhantes, seu rosto barbado, porém culto. Não é um guerreiro, e provavelmente um inimigo meu, mas não posso atacá—lo. Abaixo a arma e choro. O homem me acalma com palavras, ele acaba por me entender. Não teve problemas por eu ter segurado armas contra ele. Naquele dia eu conheci alguém que foi especial, ou pelo menos assim penso que tenha sido. Me aproximei mais do que em todos os anos de serventia ao exército, e foi a um desconhecido. Passamos aquela noite em claro, bebendo e jogando conversa fora. Ele disse ter uma vida solitária fora do exército, disse viver enfurnado de livros, que era melhor que pessoas. Conversamos até o sol raiou. Dessa vez pareceu até mais forte, ou eu o via mais feliz pela nova amizade. Treinamos juntos, e as batalha que se sucederam foram realmente boas. Um dia, depois de uma batalha, eu fui até o lago para pensar sobre a vida. Mergulhei a espada, que deixou o sangue na água. A melodia começou a tocar novamente, mas isso não me
chamou tanta atenção quanto a uma garotinha correndo no meio da névoa. Tento alcançá—la, mas ela era realmente rápida. Estava assustada, completamente temerosa por mim. — Não vou te machucar pequena.— Eu disse em um tom doce, mas não adiantou. Eu era o guerreiro Vince, ótimo em trabalhar com espadas, mas crianças sempre haviam sido um de meus fracos. Decido chamar por seu tão especial amigo. Daniel, da casa de Lancel foi no dia seguinte até o lago, mas nada aconteceu. Entretanto, todas as vezes que os dois terminavam uma batalha, mergulhavam a lamina com sangue na água, para ouvir novamente a melodia tão bela. Um dia, depois de uma batalha, os dois vão ao lago. Daniel está realmente mal por conta do que houve. Fora um massacre: Os bárbaros mandaram mulheres e crianças atacarem. Não adiantou nenhum soldado se negar à ir ao campo de batalha, foram todos assassinados cruelmente. Ficaram ali conversando sobre suas vidas. Dave realmente reclamava de tudo, e dizia que se pudesse escolher, queria morrer ali, naquele momento, com alguém que confiava e com aquela paisagem reconfortante. Sem mais nem menos, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa ele se levantou, sussurrando para que eu o desculpasse. Passou o fio da espada em seu pulso, e deixou—se cair no lago. Em choque observei o corpo dele afundar calmamente, só depois pulei e o retirei de lá. Ele tremia, parecia extremamente pequeno e envergonhado. Por fim cobri seu pulso e o bati no rosto, obrigando—o a me prometer sobre aquele sangue que nunca mais iria fazer isso. A partir daquele momento ele ficou em dúvidas se me odiava ou amava, como irmão. Tudo o que ele podia dizer era que eu salvei a vida dele, e ele não conseguia me odiar por isso. Por algum tempo as coisas ficaram assim, estranhas. Mas logo o inverno chegou e, cedo ou tarde, uma caravana de alimentos irá derrubar, lerdar ou ser assaltada. Daniel e eu treinávamos sempre à tarde, até que veio mais uma trombeta. Já estávamos preparados para batalha. Daniel se vingou do dia que foi obrigado a matar mulheres e crianças. Foi uma máquina de matar, e assiu com poucos ferimentos. Eu tive uma espada
atravessada no ombro, um ferimento leve, se calculado todo o saldo da luta. Tratou de meu ferimento com seu conhecimento sobre os livros, Daniel. E ainda assim dizia—se grato por eu ser sua cobaia. Ele nunca havia exercido sua paixão, que eram as plantas. No fim do dia eu fui até o lago, perto da noite. A pequena garota estava lá, sentada, cantarolando uma melodia linda. Ruiva, pequena, no máximo estava em seu décimo quinto ano de vida. Seu rosto fino e seus olhos incrivelmente azuis. Um sorriso psicótico lhe cortou à face e ela correu, deixando a melodia no ar. Sentei—me à pedra para pensar um pouco em como tudo se fora assim rapidamente. O tempo era algo que eu queria ter, mas que não dava para recuperar. Isso é trágico e deprimente de se perceber. Finalmente eu volto para a minha cabana no acampamento. Daniel passou por lá, provavelmente me procurando para conversar sobre mais um de seus pesadelos, mas não deve ter me achado. O garoto não tinha alma de guerreiro, apenas um gosto reprimido por luta e um cérebro acima do normal. Ele não conseguia lutar bem até que lhe dessem um motivo emocional. Talvez ele fosse o mais humano dali, que precisava de um motivo que lhe expunha os estímulos mais bestiais de si, e só assim matava descontroladamente. Mais um segundo de noite, e então já era dia. O dia acorda com uma trombeta. O sinal que estávamos sendo invadidos. Luto mais uma vez incessantemente, até que começa a amanhecer. Uma pilha de mortos no chão, mas apenas um cadáver me chama atenção. Ali estava Daniel. Cabelos longos e negros, olhos castanhos quase da cor das folhas secas embaixo de si. Empalado em sua barriga havia uma lança. Corro até ele, não há jeito, eu sei, mas eu não queria que ele morresse sozinho. Segurei sua mão, ouvi suas últimas palavras, e como sempre me surpreendendo ele pediu apenas para que eu ficasse ali, conversando sobre bobeiras com ele. No fim ele chorou, e pediu desculpas por não poder ser aquele que volta da guerra, como eu seria. E por fim morreu. Quando eu entendo que ele morreu, e que finalmente está em paz consigo, eu grito. Urro até ficar rouco, mas sem
ficar louco. Lembro de tudo o que levamos dessa vida, que não é nada. E ali estava eu, a última relíquia de uma guerra. Todos os meus companheiros mortos ao chão. Dave está ao meu lado, e então a garota aparece. — Finalmente entendeu?— Ela pergunta com a voz doce. – Sim, mas porque eu? — É simples, você é o que você sempre foi. E esses são os restos que você deixou para trás. O dedo da garota aponta acusadoramente para Daniel. Então o peito da garota se desfez quando uma flecha passou por ela. Era como o paraíso no inferno. Finalmente poder soltar a espada, o escudo, e retirar a flecha do meu peito. A morte me encara com pena, em seus cabelos de fogo. — Mesmo depois de tanto tempo mortos, vocês guerreiros teimam em voltar e voltar, para sempre viver esse ciclo doloroso para vocês... Porque tem de ser assim? Eu a escuto dizer isso, e todas as lembranças vem. O inverno rigoroso e as noites à rum puro que passei com Daniel, com conversas bêbadas e promessas de retorno. Lembrei dele cortando o próprio pulso e se jogando no mar, e da maneira que eu o observei afundar, e o retirei de lá apenas para perceber que era tarde demais. — Porque você não me mostrou tudo como realmente era? — Eu pergunto a morte, mas ela apenas sorri. Era o presente da morte. Ver tudo aquilo que eu sonhei nos meus últimos dias de vida. Eu estico a mão. A verdade era quase palpável por trás do véu da mentira. —Você é aquele que foi o último a cair. Que me driblou por mais tempo. Mas como em todo o fim, eu consegui te abraçar. Não é algo ruim, eu lhe dei o prêmio, lhe darei a imagem de tudo aquilo que quer... A morte começa a cantar uma música, bela, que eu nunca ouvi antes. Ela estava me ninando, para que eu acordasse no mundo dos mortos, provavelmente. Acordo assustado com meus sonhos. Minha mulher ao meu lado nem se mexe, e continua dormindo o sono dos inocentes. Permaneço aquela noite acordado, olhando a lua na
janela. Pela metade da manhã ele entra pela porta. Daniel me dá um abraço, e eu o retribuo como se não o visse há anos. Agora ao menos éramos homens livres. Ele traz um livro para cada livro meu, e parece estar bem feliz. Ao término da noite nós ficamos bebendo vinho na varanda enquanto ele me conta sobre as mil e uma aventuras que ficamos escrevendo. Dessa vez algo envolvendo morte. Eu sorrio e penso que talvez eu acabe sonhando com aquilo tudo. No fim me despedi dele. Deitei—me ao lado de minha mulher pensando em como eu tive sorte. Ela é mais jovem que eu, e muito bela, com seus cabelos ruivos e seu rosto fino... Por fim me viro e acabo por dormir.
Prometida Laura Nienow Scheffer
então ele disse: quando o céu se tornar violáceo e as estrelas se multiplicarem, e quando até mesmo os planetas e astros mais remotos forem perceptíveis... Neste momento, a Prometida deverá se posicionar entre as duas sequoias, e chorar. Serão as lágrimas do sacrifício, e conseguinte da salvação. Caso não o faça, paulatinamente as estrelas apagarão, assim como o céu e todo o mundo como se recorda.” — Oh, não! — Está acontecendo!
— Quem será ela? — O quê? — A Prometida! — É o fim! — Como eles descobrirão quem é a Prometida? O céu anunciava a aproximação do crepúsculo, e tudo estaria dentro de sua normalidade, não fosse o fato de que estavam no início da tarde. Padeiros saíam de perto de seus fornos e iam até a área externa, as massas ainda na mão. Mães agarravam seus filhos pequenos pelos braços. Agricultores largavam as inchadas. E em todos os cantos de Geópia, os olhos se voltavam para cima. Estava roxo. O céu estava completamente roxo. A profecia não era novidade para ninguém, visto que o reino de Geópia fora fundando sob sua sentença. Entretanto, quem um dia acreditaria que estaria vivo para vê-la se realizar? Os olhares, antes curiosos, agora se mostravam receosos. Ninguém havia lhes dito sobre o que fazer após a profecia se materializar. Beiravam a uma incógnita. Afastadas do centro da Cidade, em uma casa peculiar, constituída de galhos retorcidos envoltos por paredes de barro, mãe e filha também observavam atentas o evento do século. — Ah, meu Lorde. — murmurou a mulher, agarrada em um cabo de vassoura, as rugas transparecendo no rosto. Virouse para a esquerda e depois à direita, à procura de algo. Soltou logo após a vassoura no chão em um baque, e entrou correndo na casa. — Onde está seu pai, Kia?! — berrou de dentro. — Onde será? — a filha rolou os olhos em resposta, ironizando a pergunta óbvia que sua mãe fazia. Voltando para a área externa, a mãe a agarrou pelos ombros, os gestos alarmados, assim como suas expressões faciais. Os olhos estavam arregalados e ao mesmo tempo implorando um favor pessoal. A filha suspirou e se afastou, entendendo, sem sua mãe proferir palavra alguma, o que teria que fazer. Pegou uma tocha, acendeu-a rapidamente e, indelicada, respondeu: — Não precisa pedir. Já estou indo.
Virou as costas sem se despedir, deixando-a sozinha com a casa e a imensidão de flores que cultivava ao seu redor. — Não, mamãe. — murmurou sozinha, esmagando as folhas quebradiças que encontrava no caminho. — Eu não tenho mais nada de significativo para fazer, eu o procurarei a tarde inteira, sem problema algum. Obrigada pela preocupação com sua única filha ao larga-la aos deuses nesse momento. Já podia enxergar outras tochas se acendendo longinquamente durante o trajeto, agora que podiam se considerar à noite, o céu purpúreo sendo um show por si só a cada estrela irrompendo minuto a minuto. Era um longo caminho até o centro da Cidade; caminho que fazia ao menos uma vez por semana para buscar seu pai, embriagado, e leva-lo até casa. Trabalho cansativo, porém, não havia mais ninguém que pudesse fazê-lo. Sua mãe não frequentava a Cidade desde o casamento, dizendo sempre que “a melhor companhia que poderia ter eram sua flores e sua família”. Isolou-se de todos e às vezes a via perdida com sua própria solidão, quiçá se arrependendo das decisões tomadas. Já Kia era diferente. Embora fosse o espelho de sua mãe na juventude, com os cabelos dourados e os olhos escuros, a semelhança não saía do físico. Kia possuía o pulso firme que sempre faltara na mãe. Se fosse ela, por exemplo, já haveria arrumado suas trouxas e deixado o marido problemático. Mas ela o amava, e Kia amava a ambos. E esse era o motivo de fazêla caminhar quilômetros para resgatar, mais uma vez, o pai das garras do gim; o amor pela mãe, apenas, pois mesmo que nutrisse o mesmo sentimento pelo pai, ele não merecia os gestos gastos nas tentativas frustradas de restaura-lo. Meia-hora depois, o céu já estava pontilhado e podia-se ouvir o trote dos cavalos. Estava chegando. Já conseguia ver pessoas, umas admiradas com o céu e outras querendo evita-lo ao máximo, chegando aos prantos. Ao passar por alguns, a palavra que mais conseguia ouvir era “Prometida”. A aflição era grande, precisavam acha-la antes que fosse tarde demais, pois não sabiam quanto tempo o céu continuaria roxo, antes de virar negrume. O que não ajudava o fato de ninguém possuir pistas sobre sua identidade.
Podia resumir o centro da Cidade em uma palavra: desordem. Se antes via pessoas com diversas reações, agora estas eram mais abrangentes e mais extremas. Kia queria apenas poder achar seu pai e sair dali o quanto antes. Entrou no meio da multidão, retorcendo-se para passar entre os pequenos espaços entre um e outro, até chegar perto dos bares. Chegou no primeiro e nenhum sinal de seu pai; no segundo, o mesmo resultado. Quando adentrou o terceiro, encontrou um velho amigo lavando os copos no balcão. — Diga-me que sabe onde ele está. — falou exasperada. Temia não encontra-lo com a quantidade de pessoas aglomeradas lá fora. — Eu tentei para-lo, Ki, mas você sabe como é ele. — disse um jovem de pele morena e ombros largos, como se pedisse desculpas. Apontou para um canto, onde um homem com mais de cinquenta anos e fios brancos já ocupando metade da cabeça gargalhava, acompanhado de seus amigos. — Tudo bem, Sávio, não é sua culpa. — sorriu ela. — Lá vou eu, mais uma vez, convence-lo a ir embora. — Boa sorte. — desejou. — Se não conseguir, venha até aqui e tomamos um suco enquanto ele não cansa. Ela assentiu e caminhou ao encontro de seu pai. Demorou até que ele percebesse sua presença, e, quando a viu, abraçou-a e deu-lhe um beijo na testa: — Se não é a minha menina! — riu. — Veio me levar pra coleira novamente, não veio? — Vamos, pai. — falou ela, aproveitando-se do abraço para levanta-lo paulatinamente. — Só mais uma, filhota! — pediu ele, sem conseguir pronunciar as palavras direito. — Daqui a pouco o Rei vai se pronunciar, não podemos perder. O Rei? Se pronunciar? Embora a ideia parecesse, de fato, atraente, sabia que a quantidade de guardas era um obstáculo ao que se referia ficar presente no evento com seu pai. Não conseguia nem ficar de pé, humilharia a si mesmo se continuassem na Cidade e talvez causasse confusões. Não, era melhor encaminha-lo aos cuidados de sua mãe.
— Vamos, levante. — grunhiu, quando seu pai desabou novamente na cadeira. — Ah, garota, deixe-o beber mais umas! — falou um homem barbudo à sua frente, erguendo uma caneca cheia. — Você vai leva-lo pra casa? Vai carrega-lo nas costas por quilômetros, limpar todos os estragos que deixará pela casa e depois coloca-lo na cama? — o homem fez silêncio e olhou para o lado. — É, eu imaginei que não. Portanto, deixe-me fazer o que tenho que fazer. — Eu... não... quero... ir. — disse seu pai, como se possuísse dois anos de idade. — O senhor vai ir, querendo ou não. Reunindo forças para colocar o braço de seu pai sobre seus ombros, caminhou até o balcão: — Obrigada, Sávio. — Eu não fui muito útil, então não tem por que agradecer. — disse ele, um sorriso triste no rosto ao olhar para pai e filha. — Mas se quer uma dica, fique com ele mais uns instantes aqui dentro. Os guardas já estão pelo centro e não irão gostar de vê-lo durante o pronunciamento. — Se haverá um pronunciamento, preciso leva-lo o quanto antes para casa. — desgostosa, deu um passo para trás. — Será que eu não posso falar por mim?! — exclamou o pai de Kia, erguendo o dedo indicador. — Bem... acho que não. — e gargalhou, colocando a mão sobre a barriga. — Acho que não! — Boa noite, Sávio. — falou, recebendo em troca um abano de mão. Foi só abrir a porta do estabelecimento que os burburinhos lhes invadiram os ouvidos. As ruas estavam lotadas, com o dobro de pessoas que havia antes de Kia entrar no bar. Não muito longe dali, se via o Palácio Real, sua sacada colossal já com uma trono posto: tudo pronto para o pronunciamento. Apressou os passos, seu pai lhe dando o dobro de cansaço. Os tambores rufaram, as tochas da sacada se acenderam, e quando menos esperou, um homem robusto e de cabelos grisalhos saiu pela imensa porta. O silêncio dominou a praça.
Ele contemplou toda a imediação do local sem transparecer um sorriso, assustando a todos que presenciavam a cena. Quando sentou, então, observou a todos de maneira severa e suspirou. — Droga, já devíamos ter ido embora. — murmurou, puxando seu pai para o outro lado. — Ei, garota, espere! — esbravejou seu pai, falando mais alto do que deveria e atraindo os olhares daqueles que os rondavam. Kia parou, sabendo que se continuasse chamariam mais atenção. Era fácil, esperaria o pronunciamento, e quando ele acabasse, poderiam seguir o rumo para casa. Aquietaram-se em um canto e observaram. O homem “nas alturas” ainda não havia pronunciado uma palavra; e nem a população em geral. Depois olhou o céu, inquieto. O que estaria pensando nesse momento? Não sabiam. Os guardas aquietavam os últimos desordeiros e, enfim, com uma quietude absurda, o Rei abriu os lábios: — Caros senhores e senhoras presentes, sou eu, o seu Rei. Diante dos eventos turbulentos que tivemos esta tarde, venho aqui lhes dar um comunicado oficial. Primeiramente, acredito que não haja um ser sobre a terra de Geópia que desconheça a profecia, firmada por alguém cujo nome não conhecemos e cujo rosto ninguém nunca viu, milhares de anos atrás. Alguns a julgaram falsa, uma tentativa falha de amedrontar as pessoas que aqui vivem. Enquanto outros morreram temendo que o momento enfim chegasse. Pois, como todos perceberam, aqui estamos: diante de um céu purpúreo, as estrelas dobrando de tamanho e, se olharem bem adiante, os primeiros planetas começam a se juntar à festa. É o caos meus súditos, mas não o temamos. — fez uma pausa, tomando um gole de água. — Tudo irá se normalizar, quando descobrirmos quem é a Prometida! Toda a população se revoltou! Alguns gritavam enquanto outros simplesmente sentaram no chão e voltaram a chorar. Era o fim! Se nem o Rei sabia quem era a garota da profecia, como eles, meros camponeses, saberiam? — Acalmem-se! — bradou o Rei, fazendo sua voz ecoar em todos os cantos. — É para isso que estamos aqui! —
enquanto ele falava, alguns guardas usavam seus punhos para calar os mais radicais. — Eu, Rei de todos vocês, estou pedindo encarecidamente que, qualquer pessoa que possua informações sobre a Prometida, venha a se fazer presente. E, não esqueçam, indicar a pessoa errada fará com que Geópia entre em colapso! Ninguém falava, muito menos respirava. Esperavam nomes, esperavam se identificasse como “a Prometida”. E, enfim, isso aconteceu. — Minha filha! Minha filha é a Prometida! — berrou um homem, com a voz grogue. Kia olhou para o lado. O que seu pai estava fazendo?! — Pai, fique quieto. — Shh. — disse baixinho para a filha fazer silêncio. — Vamos ver se eles acreditam. — e gargalhou, voltando a falar com o povo. — Isso mesmo, minha filha é a Prometida! — Não, eu não sou, é um engano. — gritou Kia em retorno, tapando a boca do pai com as mãos. — É sim! — ele insistia, a voz abafada pelas mãos da filha, gargalhando como nunca antes. Não demorou muito para que três guardas viessem até eles. Dois deles pegaram Kia pelos braços, enquanto o outro apenas fez um sinal de positivo, longinquamente, para o Rei. — Escute, meu pai está bêbado, ele não sabe o que está falando. — dirigiu-se diretamente para um dos guardas. — Eu não sou a Prometida, eu não vou salvar Geópia. — Desculpe, — falou o guarda, olhando para o pai, bêbado, tropeçando em seus próprios pés. — mas nós não tomamos as decisões. Temos que leva-la. — É? E o que farão quando eu chegar lá e nada acontecer? — debateu-se. — Me soltem! — gritou. Mais guardas se aproximaram. O pai de Kia não ria mais, talvez a sanidade querendo se manifestar. Conquanto, nenhuma justificativa que desse agora impediria a situação que se alastrava. Os esforços da moça em se safar dos braços rijos que a agarravam se mostraram ineficazes. Por fim, parou de se debater, sentindo uma única lágrima descer pelo seu rosto, cair de seu queixo e descer pelo decote do vestido bege que usava.
Uma das lágrimas desperdiçadas, pensou, visto que gastaria mais algumas quando estivesse no local profético. — Vamos. — disse-lhe o guarda que antes havia sido tolerante. Depois, inclinou-se em seu ouvido, e sussurrou. — Nada está perdido, apenas siga em frente. Sem entender, o analisou. Mas o olhar feroz continuava no rosto do guarda. Concluiu que o melhor era desistir. O que era ela comparada a incontáveis guardas e um Rei que a requeria? Antes de dar as costas e caminhar com o resto de dignidade que possuía, olhou para o seu pai, e disse, ríspida: — Está vendo isso? — apontou para os guardas. — Explique para a mamãe! Ela vai adorar saber que você vendeu sua própria filha para dar algumas risadas. E saiu, enquanto o guarda com quem havia conversado segurava-lhe a mão, de modo nada gentil: podia sentir seus ossos reclamando. Ao contrário do que pensava, não chegou perto do Palácio Real, muito menos teve contato com o Rei. Seguiram até o porto e entraram direto em um navio, as velas já içadas. Havia apenas dois guardas dentro dele, um servindo como capitão. Os que a acompanharam durante o trajeto a ajudaram a subir, porém apenas dois deles continuaram na embarcação. — Cuidamos daqui. — fizeram um sinal para os que desceram do navio, e logo retiraram a ponte que lhes fez passagem. — Venha. — falou um deles, justo o que havia lhe dito frases sem sentido, com indiferença. Puxou Kia e a conduziu para um cômodo na outra extremidade do navio, na polpa, onde havia apenas uma cama e uma vela. — A realeza realmente se preocupa com sua Prometida. — falou de forma irônica, pegando os fósforos e acendendo sua única opção de iluminação. Ele espreitou para fora da porta, suspeito. Posteriormente entrou no pequeno quarto e o fechou, o vento do baque quase apagando a vela. Tirou o chapéu do uniforme que usava, revelando cabelos encaracolados na altura do queixo, combinando com seu cavanhaque e barba e fitou-a, o ar sério que possuía até o momento anterior havia sumido.
— Eu não deveria estar lhe contando isso agora. Não era o combinado. — tossiu. — Nada disso era combinado! — exclamou ela, perdendo o resto de sua calma e abrindo os braços em um gesto de amplitude. — Paciência, está bem? — rolou os olhos, de um azul extremo. — A questão é que... bem, nós — apontou com a cabeça para o lado externo da porta. — não somos quem você pensa que somos. Ela recuou, sentando-se ao fundo da cama. — O que você quer dizer com isso? — Eu não devia ter lhe contado. — culpou-se, dando um leve tapa em sua testa. — Agora fale! Suspirando, ele levantou e tirou a túnica das Forças do Rei. Depois, removeu a camiseta, revelando seu peitoril. E ali estava a prova. Kia ficou boquiaberta, sem saber o que fazer. Não bastava ter saído de casa para buscar seu pai alcoolizado e entrar em um navio seguindo as ordens reais. A insígnia gravada na pele era clara. — Você é um Twan! — observou novamente o símbolo; uma caveira preta com os olhos preenchidos de vermelho. Um arrepio lhe percorreu a espinha. Precisava sair dali o quanto antes, atitude difícil visto que escutava o capitão pedindo o recolhimento das âncoras. Logo estariam em alto mar, sabe-se lá para onde. — Eu conheço esse olhar. — falou ele, colocando novamente a camiseta. — E saiba que você não tem chances. Apenas se for estúpida o suficiente para enfrentar um navio com piratas. Apenas a palavra já lhe causava calafrios. Ela ficou em silêncio, enquanto ele provavelmente esperava alguma reação de sua parte. — Você quer saber o resto da história? — pediu ele, sem a menor impassibilidade. Kia, embora curiosa, não iria dar o braço a torcer. Não queria explicações de piratas, principalmente de um pirata Twan, famosos por intimidarem Geópia.
— Tudo bem então. Quando resolver ouvir, estarei lá fora. — disse, antes de sair do quarto, batendo a porta com toda a força que possuía. Kia escutou barulhos do lado de fora, e quando levantou para ver o que era, verificou que a porta estava trancada. — Ei, você não pode me deixar aqui! — bateu na porta com seu punho. — Eu posso fazer o que eu quiser. — respondeu ele, com grosseria, do lado de fora. — Quando desejar jantar avise. — Eu. Não. Quero. Ficar. Aqui! — continuou a bater na porta, já sem fôlego. — Você não tem escolha. Agora fique quieta, minha gentileza já se esgotou. “Que gentileza?”, pensou. Estava presa em um cubículo, sabe-se lá para onde, na companhia dos piores piratas, sem água, sem comida e apenas com uma vela como companhia. Deitou-se, bufando. Havia sido um dia longo e acreditava que não havia passado das seis horas da tarde. Queria saber como estavam as coisas por casa; isso se seu pai havia encontrado uma maneira de achar o caminho sozinho. Não sabia como sua mãe reagiria: se pela primeira vez na vida iria contra seu pai ou se continuaria a acariciar sua cabeça. E foi com estes pensamentos, que pegou no sono. Acordou com sussurros do lado de fora. — Você não deveria ter mencionado. — falava um. — Alguma dúvida de que ela vai fugir? Afinal, ela não é a Prometida. — Ela não vai fugir. Nem conseguiria. — respondeu a voz já familiar. — Você não acha que ela está aí dentro por tempo demais? Talvez devesse levar água ou alguma comida. — Vocês são piratas ou o quê?! — exclamou novamente a voz. — Denis, ela é uma garota, não um monstro. Nem deveria estar aqui em primeiro lugar. — Se tudo tivesse seguido seu curso, não mesmo. Agora está e vamos ter que nos conformar com isso.
— Ainda não entendo o motivo de ainda possuirmos ela. — uma terceira voz surgiu na conversa. — Ela não é a prometida, então por que estamos a levando até as sequoias? — Porque precisamos dela para depois. Não é possível que tenham esquecido do plano! — O plano consistia em trazer a minha irmã. Não sabia que íamos continuar seguindo-o com outra pessoa. — envolveu-se uma quarta voz. — Quem adivinharia que um bêbado envolveria sua filha na história? — disse Denis. Tudo bem, seu pai era um bêbado. Mas a única pessoa que poderia chama-lo de tal maneira era ela! — Estou bem aqui, sabiam? — gritou ela. — Droga. — resmungaram, cada um de sua maneira. — Agora você quer escutar a historinha? De trás da porta? — disse Denis. — Sim, algum problema? — retrucou ela. — Vamos, me tire daqui agora. Denis olhou para os outros Twan, e após eles assentirem, ele abriu a porta, contragosto. Kia os via de forma totalmente distinta agora. Já sem os trajes das Forças do Rei, estavam vestidos com seus trapos, insígnias de sua sociedade por todos os lados. Pelas histórias que contavam, deveria os temer. Eram assassinos e ladrões das piores espécies; porém, pelo pouco que havia escutado da conversa, eles precisavam dela. E isso significaria de que não poderiam nem cogitar a ideia de lhe fazer algum mal. Criou coragem e os afrontou. — Então vocês são os famosos Twan. — concluiu, séria. Eles não concordaram nem discordaram. — Bem, algum de vocês vai contar por que eu estou aqui? — Eu tentei ontem, recorda? E você não parecia ter a mínima disposição para ouvir. — falou Denis. — Denis, não é? — ela apontou para ele, encarando seus olhos azuis de modo intenso e, se fosse um pouco maior, pareceria ameaçadora. — Meu nome é Kia, caso não saibam. — segurou a aba do vestido e dobrou os joelhos, fazendo uma reverência de modo satírico. — E eu sou bem famosa por minha
intolerância. Por isso repetirei: o que eu estou fazendo aqui, já que sabem que não sou a Prometida? — Ui, a menina é perigosa. — riu um deles; o mais velho, já possuindo uma banguela na boca. — Você é que deveria estar preocupada com a nossa intolerância, mocinha. — ele se aproximou e passou a mão em seu rosto, a unha comprida roçando na bochecha. — Não toque em mim. — rosnou, olhando-o de lado. Talvez não fosse tão corajosa assim. — Chega, Juan. — disse Denis, e o velho se afastou de forma rabugenta. — Quer comer antes de contarmos ou depois? Escolha rápido, pois estamos chegando ao nosso primeiro destino. Kia olhou ao seu redor. Estavam cercados de montanhas gigantescas e pontudas, como agulhas, não fossem curvas — e acima de cada uma delas pairava uma águia. O rio era estreito, e notou que um dos homens correu para o timão do navio, visto que entravam em um local de extrema sinuosidade. — Eu estou com fome. — deu de ombros. — Jilli, vá até o cômodo do capitão e pegue a comida que deixei em cima da mesa. — falou Denis. — Então você que está no comando por aqui. — Não existem comandantes nos Twan. — Até agora você foi o único que deu ordens. — ele olhou-a de maneira brava. — O quê? Só estou fazendo um comentário. — Eu sou o organizador da missão, por isso tenho o direito a dar ordens nela. Não que isso lhe diga respeito, você não é e nunca será uma Twan. — E agradeço todos os dias por isso. — sorriu. — Não estou ofendido, se essa era sua intenção. — respondeu ele. — Vocês são uma ofensa por si próprios, não precisam das minhas palavras para isso. — cuspiu a frase. — Se acha tão esperta, não? — Denis estava vermelho, e Kia notou que seu punho estava cerrado. Aproximou-se, ficando rente a seus olhos. — Pois saiba que não é. E aqui — apontou para o chão do navio. — você nos pertence. Sabe as
historinhas que seu papai e mamãe contavam sobre nós? Saqueadores, matadores, caras ruins? São todas reais. Portanto, pense duas vezes antes de falar dessa maneira novamente. “Coragem, Kia, coragem”, ficava repetindo em sua mente. “Eles não podem fazer nada de ruim com você, você faz parte do plano, mesmo que não saiba qual o papel”. — Bonitinho o discurso. Mas vem cá, você não é muito mais velho que eu. O que significa que as outras que meus pais contavam, certamente não eram sobre você. Talvez em outra vida, não que eu duvide, você realmente tenha sido um Twan importante. Antes que Denis tivesse a chance de retrucar, ou prender Kia novamente no quartinho, Jilli chegou com a comida. Havia uma coxa de frango, já gélida, e frutas. Agarrou a coxa primeiro, achando-a extremamente apetitosa devido a situação em que se encontrava. E depois resolveu por uma maçã. Após a refeição, ainda sentia vontade de provar o resto, mas a curiosidade e nervosismo em respeito à história era maior, por isso pediu se poderia colocar as outras frutas no quarto. sendo prontamente atendida por Jilli, que de todos, era o que menos se parecia com um brutamontes marítimo. Denis a esperava para contar a história na proa do navio. Estava sentado, e longínquo assim, pareceria um simples jovem pensando na vida — e nos problemas que vêm com ela. Mas, conforme se aproximava a imagem ia se dispersando e voltava à realidade. Sentou ao lado dele e esperou que ele começasse a falar. Enquanto isso não acontecia, voltava a observar as águias nas montanhas pontiagudas. Nunca havia visto tantas juntas. — Elas significam coragem, você sabia? — Denis quebrou o silêncio, notando o interesse de Kia. — E liberdade. — murmurou. — Muito interessante. — disse ela, limpando a garganta. — Mas não é para isso que estou aqui, portanto vamos ao que interessa. Ele se inclinou para o lado e concordou. — Vamos começar por... bem, nós sabemos quem é a Prometida. Desde o princípio. — Kia ficou boquiaberta. — E nosso plano era pegar a irmã de Gust — ele apontou para o
homem, não muito mais velho que Denis, que controlava o navio. — e traze-la como a falsa Prometida. Para isso, nos infiltramos entre os guardas e em certo momento, Sasha iria gritar e se intitular a Prometida. Mas seu pai fez isso antes, por isso tivemos que agir com você. Se Sasha mesmo assim dissesse ser a Prometida, a confusão se alastraria, e acabariam por descobrir que nem uma, nem outra, deveriam partir para as sequoias. Kia tentava compreender. Tentava mesmo. Mas nada fazia sentido: o fato deles saberem a identidade da Prometida quando nem mesmo o Rei desconfiava de quem fosse e a necessidade de precisar de uma farsante. Havia mais nesta história, e arrancaria cada detalhe que fosse. — Por que motivo vocês precisam de mim, então, se possuem a Prometida em pessoa? Denis abriu a boca e fechou várias vezes, não sabendo se expunha tudo o que sabia, ou se deixava Kia na ignorância. Por fim, decidiu pela primeira opção; ela haveria de saber mais cedo ou mais tarde. — Existem boatos de que há ouro nas redondezas das sequoias. E nós queremos esse ouro, assim como a Prometida. — Que ótima Prometida a profecia escolheu, não? — debochou Kia. — Continuando... — criticou-a com o olhar. — nós não voltaremos para a Cidade quando estivermos com o ouro. Esperamos estar distante o suficiente para as suspeitas não recaírem sobre nós. Por isso você voltará, junto com Jilli, para receber as graças da população por ter salvado o mundo. Não suspeitarão caso digam que os Twan assassinaram os outros guardas no caminho. E quando tudo estiver mais calmo, Jilli voltará ao nosso encontro, enquanto você viverá uma vida de luxo e bênçãos da família Real. Bom para todos, não? — sorriu ele. — E você realmente acredita que eu irei cooperar? Com você e sua Prometida? — Kia levantou. — Poupe-me, Denis. Eu não sou ladra para cooperar com vocês.
— E de quem estaríamos roubando? — perguntou já de pé indo atrás da loira, que saía quase que correndo de volta ao seu cômodo. — O ouro não é de ninguém! — Ah, me sequestrar não conta, então? — arqueou a sobrancelha, já dentro do exíguo quarto. Denis forçou a porta enquanto Kia tentava tranca-la, porém, a força dele prevaleceu. — Você seria trazida de qualquer jeito. Está sendo dramática. — Perdão por não querer me envolver com piratas! — Quer saber? Você não tem escolha. — decidiu, já segurando a maçaneta da porta. — Você fará o que nós dissermos. Em um gesto súbito, Kia pegou o canivete, que havia notado minutos antes na cintura de Denis, e prensou-o na porta, colocando a ponta do objeto em seu pescoço: — O que você estava falando mesmo? — o questionou, agora sabendo o quão estúpida foi sua ideia, pois ele poderia gritar e chamar o resto dos homens. — Sabe, quando você tem que fazer o papel de pai em casa, você aprende alguns truques. Denis rapidamente esticou a mão direita, pegando o canivete pelo fio, e virou-se de frente para Kia. — O que estava dizendo? — indagou Denis. A mão estava sangrando, mas ele não ligava. Kia havia testado seus limites e ele não deixaria barato. Antes que ele conseguisse tomar uma atitude, entretanto, ouviu exclamações do lado de fora. — Chegamos! Denis, chegamos. Ela já está à espera. Denis olhou para a Kia, e depois para a cama. Pegou o canivete e cortou um pedaço do lençol que estava sobre ela, amarrando-o à mão. — Resolvemos isso depois. — resmungou, saindo. Kia esperou alguns minutos e foi atrás. Estavam parados juntos a uma encosta. Viu que haviam soltado a passarela, o que significa que estavam ganhando um novo passageiro. Aproximou-se de Jilli, ele sendo a pessoa mais sensata dentro do navio, e perguntou quem iria fazer parte da jornada. — A Prometida. — respondeu, antes que Denis o chamasse para ajudar com as sacolas.
Então finalmente a conheceria! A Prometida, destinada a salvar a humanidade, mas que não passava de uma ladra. Aproximou-se do parapeito, os olhos voltados para baixo. Lá vinha ela. De início, por conta de pouco iluminação, não conseguia identificar suas características físicas, mas conforme ia se aproximando, visualizou-a muito bem. Era esguia, com cabelos negros lisos que iam até sua cintura, e uma franja reta. A pele extremamente branca e o rosto delicado. Mas não lhe passava beleza, não mesmo. Seu nariz empinado estragava toda a faceta de porcelana. Denis vinha logo atrás, com uma sacola que presumia conter roupas, e Jilli com outra que, bem, não possuía a menor ideia do que poderia conter. Quando enfim ela chegou ao navio, olhou todos de cabo a rabo, dando uma atenção extra à Kia, de forma presunçosa. — Então você vai se passar por mim. — disse ela, um sorriso cínico tomando espaço em seu rosto por poucos segundos, antes de voltar a ficar séria. Kia precisava confessar que seu vestido esmeralda era divino. — E você deve ser a ladra. — respondeu, com o mesmo sorriso, ignorando o pensamento anterior. — Kia. — grunhiu Denis. — Vá para seu cômodo. Kia fitou-o com desdenho. — Deixe-a. — gesticulou com a mão, como se não desse bola. — Den, quero descansar, me mostre o quarto. Denis deixou o grupo e levou a Prometida até o quarto do capitão. Que sutil! Enquanto os outros continuavam discretos, apenas observando os dois se afastarem, Juan andou na mesma direção: — Última parada: as duas sequoias. Prosseguiram em viagem durante o resto da tarde e noite — embora não fossem capazes de distinguir quando era um e quando era outro. Ao saírem da parte estreita do rio, atingiram o mar aberto. Kia não possuía a mínima ideia de onde estavam ou para que lado se localizava o local descrito na profecia, mas os piratas que lhe faziam companhia pareciam não possuir dúvidas.
Kia apoiou-se no parapeito do navio, analisando o céu profetizado. Era lindo, o que dava um ar sarcástico a tudo: o fim do mundo belo, quem diria. Suas estrelas refletiam na água agitada do mar, criando um espelho magnífico. Pegou-se refletindo o que faria após a Prometida — cujo nome ainda não sabia — salvar o mundo. Se voltaria para casa como se fosse realmente a salvadora ou se denunciaria todos os planos feitos pelos Twan. Por um lado, a ideia de riqueza e reconhecimento lhe parecia apetitosa. Mas não justa. Como viveria sabendo que acobertou um roubo? Como Denis havia dito, o dinheiro não pertencia a ninguém, mas também não pertencia a eles, corruptos. Não poderia fazer parte disso, nunca fora desleal e não seria agora que jogaria todos os ensinamentos de sua mãe pelo lixo. Se os Twan queriam o ouro, assim o teriam, mas as consequências, como em toda decisão que tomamos, viriam. Não notou que possuía companhia, e apenas quando uma tábua rangeu ao seu lado, que viu Denis. Suspirou: — É mais fácil você me matar do que conseguir um pedido de desculpas. — Eu sei disso. — parou por um segundo, apoiando o antebraço na borda. — Mas você não está facilitando, Kia. Precisamos saber que podemos contar com você, caso contrário, aqueles caras — apontou com a cabeça para o grupo de Twan’s que preparavam a cabine do capitão para a janta. — irão mostrar o que significa ser um pirata. Eu sou pacífico, embora você pareça não notar. Afinal, você enfiou um canivete no meu pescoço. — Kia pensou ter visto a ponta de um sorriso, mas durou poucos segundos, e depois já estava austero novamente. — Mas eles não. Durante todo este tempo estão tentando lhe mostrar civilidade, mas os Twan não funcionam assim. No momento em que ficarem desapontados, as coisas esquentarão. Kia não sabia o que fazer. Juntou as palmas das mãos e estalou os ossos dos dedos. — Sinto muito, Denis, é minha decisão final. — Eu tentei. — voltou à sua postura rígida. — Não diga depois que não lhe avisei. As coisas podem ficar feias.
Ela assentiu, engolindo em seco e voltou o olhar para o mar. Denis a observou por um tempo, intrigado, embora Kia não fosse capaz de perceber. Ficava pensando o que passava na cabeça de uma garota ao escolher ser honesta mesmo que isso lhe custe a vida. Possuía toda a integridade que havia lhe faltado durante toda sua existência de pirata. Mas mesmo assim, fora capaz de por um canivete em seu pescoço quando se sentiu ameaçada. — O jantar está pronto. — murmurou, andando até a cabine. Ela assentiu, ficando lá por mais alguns momentos. A cabine estava barulhenta. Os talheres faziam sons estridentes, enquanto os Twan’s não se preocupavam em mastigar e depois falar. Linda cena. Quando sentou no único local disponível — ao lado da Prometida —, notou que Denis estava ao lado oposto dela. Parecia bem protetivo enquanto se tratava daquela garota. Resolveu ficar atenta. Como no almoço, não estava com muita fome. A comida parecia desnecessária, enquanto tantos problemas se faziam presentes. Pegou, mais uma vez, um pedaço de frango, e ficou brincando com ele no prato, apenas para não voltar diretamente ao seu “calabouço”. — E então, Dalila, — falava Jilli à Prometida. — entusiasmada com amanhã? A garota deu de ombros, sem muito entusiasmo. — Não me parece um trabalho árduo a fazer. — seu ar de superioridade era notável. — Claro que não, apenas a população inteira de Geópia está em suas mãos. — falou Kia, sarcástica. — Kia, por favor. — pediu Denis, irritado. E ele ainda se dizia paciente. — Não vale a pena se incomodar com ela, Den. Logo, logo, ela estará novamente em sua cidadezinha e não irá mais nos atrapalhar. Nos incomodar? Havia várias maneiras de interpretar essa frase, e Kia acreditava que a dela estava correta. Dalila e Denis, então, eram um casal.
Observou-os durante o resto da janta. Embora Dalila raramente sorrisse, seus sorrisos eram direcionados a Denis; já ele, não direcionava nem olhares para a garota. Foi, então, tentando dormir mais tarde, que descobriu o que aquilo significava. Levantou subitamente e saiu de seu cômodo, enrolando-se em uma manta. Juan está lá fora, controlando o navio: — Pode me dizer onde fica o cômodo de Denis? — pediu, com a maior gentileza possível, soando incrivelmente falsa. Juan havia lhe irritado no primeiro dia e desde então Kia possuía dificuldades em suporta-lo. — Ali em baixo. — respondeu agressivo, apontando para um escada. — A primeira porta à direita. — Obrigada. — falou, virando-se para a escada, aligeirada. Quando chegou à porta, bateu uma vez. Não respondeu. Bateu novamente. Também não houve respostas. Depois, socou-a incessantemente, e escutou, lá de dentro, um fraco “já estou indo”. Ele abriu a porta, sonolento, vestindo apenas uma calça e com a marca no peitoril à mostra. — Eu sei o que você está fazendo. — falou Kia. — Hã? — ele esfregou os olhos, querendo ter certeza que era Kia ali. — Você está usando aquela garota! — exclamou. — Não importa o quão insuportável ela seja, isso não lhe dá direito de usa-la pra conseguir o seu tão precioso ouro! — Você pode não acreditar, mas eu realmente gosto da Dalila. — nenhuma emoção transpareceu. — E além do mais, isso não lhe diz respeito. — Não acredito em você. — analisou o rosto de Denis. — Por que justo o cara desejando o ouro conhece a garota que sabe onde está o ouro? Por favor, Denis, já lhe mostrei que não sou nem um pouco ignorante. Kia virou as costas. Denis saiu e lhe puxou pelo braço. — Ei, o que você pensa que vai fazer? — perguntou. — Sinceramente? Nada. O que eu posso fazer, afinal? — não sabia realmente o que fazer. Se contasse para Dalila, ela
sequer acreditaria em suas palavras. — É seu problema, Denis. Você que está acorrentado ao seu carma. Ou realmente acredita que poderá pegar seu bendito ouro e sumir? Ou deixa-la no local da profecia, é isso que quer fazer? Deixa-la sozinha, sem saber o que fazer? — Eu sou um Twan. — Mas não uma aberração. Ou é? — deixou a pergunta no ar. — Boa noite, Denis. Quando acordaram, no dia seguinte, a atmosfera era de apreensão. Todos saíram de seus quartos para observar o local em que atracavam: uma ilha carregada de glicínias. E lá no alto, acima dessas árvores magníficas, apareciam as sequoias, posicionadas de maneira central ao campo. Todos desceram do navio e entraram no barco que os levaria até a areia, Jilli ajudando Kia e Denis com Dalila. Nojento, pensou. Quando enfim chegaram até a praia, Dalila mostrou-se pensativa. Abria a boca diversas vezes e a fechava novamente, balançando a cabeça. Até que Denis mostrou-se intrigado com tal atitude: — Algo errado, Dal? — pediu. — É tudo muito estranho... Não foi assim que eu sonhei com este lugar. Kia entrou em transe com as últimas palavras. Sonhou?! — Espera um pouco, estou meio perdida. Você sonhou com isso? Apenas sonhou? — Você havia me dito que possuía visões, Dalila! — exclamou Denis. — Sim, sim, eu possuía visões. — disse ela, gesticulando com as mãos, a voz trêmula. — Mas elas vinham durante o meu sono. — Então não são visões! São sonhos. Lorde. — murmurou Kia. Denis pegou uma pedra do chão e jogou-a longe. — Será que existe algum ouro aqui? — gritou com Dalila, controlando a vontade de pega-la pelos ombros. Kia mostrou-se indignada.
— Você só se preocupa com este ouro, Denis? Não percebe que há mais em jogo? Ela pode não ser a verdadeira Prometida! O que significa que estamos perto do fim do mundo, que é muito mais importante que seu ouro, e ninguém está sequer procurando a Prometida, acreditando que essa aí — apontou para a Delila, que agora chorava, parecendo frágil. — é a verdadeira. Ou melhor, que eu sou! — Ainda podemos tentar. — sussurrou Jilli, que mantivera-se afastado da discussão. Os outros não estavam por perto fazia algum tempo, ansiando explorar a ilha. Kia suspirou, fechando os olhos. — Conte como eram seus sonhos. — Era a profecia, mas a ilha não se parecia com essa. — enxugou uma lágrima. — E então, quando eu a completava, e o céu começava a clarear novamente, o ouro aparecia ao meu redor. Montanhas de ouro. E é apenas isso. — Ótimo, simplesmente perfeito! Então estamos aqui, no meio do nada e você pode nem ser a Prometida. — chutou a areia. — E de quem é a culpa, Denis?! — exclamou a loira. — Esqueça. Venha, Dalila, nós vamos descobrir se isso é verdade. — Você não pode me dar ordens. — disse a garota, voltando com a atitude arrogante. — Você quer que Denis a leve? Porque eu acho que depois do que acontecer lá — apontou para as sequoias. — talvez ele nem a traga de volta. Ela ficou quieta, enquanto Kia agarrava sua mão e a levava para dentro da ilha. Para sua surpresa, as árvores retorciam-se, tocando o chão, ao passo em que as jovens atravessavam cada uma. O caminho anterior bloqueara-se, mostrando que o dever era apenas delas. De Dalila, no caso. Talvez isso fosse um bom sinal. Caminharam por um bom tempo, Kia indo à frente e afastando os galhos de Dalila, mesmo contragosto. Ela já sofreria bastante com a rejeição de Denis, não queria causa-la ferimentos também. Além do mais, já estava acostumada. O céu começava a escurecer, o que não era bom. A profecia dizia que
quando o céu virasse negro o apocalipse aconteceria. Tinham pouco tempo para realiza-la, caso contrário, tudo viraria pó. Depois de um longo e mágico trajeto, com as glicínias transmitindo uma sensação de bem-estar a ambas, chegaram em um campo limpo e verde, cujo único contraste eram as duas árvores gigantescas. Estava na hora. Kia virou Dalila de frente e olhou-a nos olhos. Pela primeira vez a morena sabia a responsabilidade que possuía; e, se estivesse errada, pouco havia importado o percurso que fizeram para chegar ao local. — Você sabe o que fazer. — murmurou Kia. — Boa sorte. Dalila assentiu, e tremendo, virou-se. Caminhou a passos lentos, com receio. As mãos estavam leves ao lado do corpo, e o vestido verde arrastava na grama viçosa. Virou o rosto para Kia, deu-a um último olhar e continuou, mais segura ao notar a confiança que a loira depositava em ela. O rosto, antes temorizado agora se apresentava aguerrido. Fechou o punho e acelerou os passos, enfim chegando às sequoias. Olhou para o céu, responsável por todo aquele momento. Assentiu para ele, como se concordasse que aquele era o momento, e fechou os olhos, deixando as lágrimas escaparem, uma a uma. Kia observava a cena, afastada. Viu Dalila doar-se em pró da salvação. Viu o sorriso dominando o seu rosto. E viu também quando seu corpo cedeu ao chão. — Dalila! — gritou Kia, com todas as suas forças, correndo o mais forte que pôde até a Prometida. Ao vê-la jogada, curvou-se para baixo e segurou sua cabeça com o antebraço. Pegou-a pelo pulso e verificou. Nada. Ela estava morta. Não compreendia, realmente não. Embora Dalila e ela não possuíssem laços de amizades, isso não era justo! Olhou para o céu. Nada. Estava intacto. — Ela se sacrificou! Céu maldito, não vai fazer nada?! — ainda com o corpo de Dalila nos braços, berrou aos quatro ventos, os olhos focados no céu. — Vamos, alvoreça! Os olhos se fecharam. Não podia observar Dalila neste estado; o corpo estático, o rosto inexpressivo e a pele esquálida. Até mesmo seu desdenho agradaria nesse momento!
Ouviu ruídos próximos, mas não se deu ao trabalho de abrir os olhos. Depois, passos acelerados a cercaram. Não queria falar com ninguém. Será que não entendiam?! Não era apenas o fim de Dalila, mas sim o de toda a humanidade! — Meu Lorde, ela está bem? — era a voz de Denis. Apenas negou com a cabeça. — E você, está bem? — dirigiu-se a ela. Não respondeu. — Kia, você está bem? — Como você pode achar que estou bem? — sussurrou. — Eu estou com um cadáver entre os meus braços e todos nós vamos ter o mesmo destino. — Kia, abra os olhos, por favor. — Eu não quero. Não quero ver Dalila nesse estado. Não sou tão corajosa assim, Denis. Não sou uma Twan, destemida. — sua voz estava trêmula e fraca ao mesmo tempo. — Você não precisar ser. — disse-lhe. — Vamos, abra os olhos. Denis aproximou-se de Kia, tirando uma de suas mãos do corpo de Dalila e apertando-a, firme. — Abra os olhos. — disse-lhe novamente, de forma mais persuasiva. — Não há o que temer, Kia. Kia abriu-os e viu o céu brilhando, iluminado. Abriu os lábios, pasma. Não haviam estrelas, estas se reservando para a noite que viria logo após. E o sol começava a aparecer, pouco a pouco. Mas o azul, este sim estava presente, com nuvens brancas perambulando e dando-lhe contraste. — Ela conseguiu. — disse, mais para si mesma do que para Denis. — Você conseguiu, Kia. — falou. Denis dirigiu-lhe a mão livre, já que a outra ainda estava firme à dela. Passou os dedos ásperos do ferimento que Kia lhe causou em sua bochecha. Já ela apenas observava-o. Quando ele trouxe a mão para o ponto de visão da loira, o dedo que havia lhe tocado estava molhado. — Quando eu me aproximei, — Denis falou. — o céu ainda estava escuro, Kia. Porém, há poucos passos de você e de Dalila, isso mudou. De quase negro, voltou-se ao roxo anterior e clareou até atingir o azul tão conhecido. Quando lhe
perguntei se estava bem, pude notar as lágrimas nos seus olhos. Mas acho que você não havia notado. Ela negou com a cabeça. — Eu sou a Prometida? — pediu a Denis. — Sim, você é. Denis levantou-se e colocou Dalila sobre seus braços. Kia fez o mesmo movimento poucos segundos depois, ainda em choque. E caminharam, voltando ao trajeto que fizeram para chegar às sequoias. Kia colocou a mão em seu ombro, ao notar o olhar de culpa que Denis possuía. — Ela viria com ou sem você, Denis. Não adianta achar que a responsabilidade é apenas sua. Ele assentiu, mas agora quem não pronunciava nem ao menos uma palavra era ele, e ela respeitou esse momento. Caminharam até a praia e lá enterraram Dalila — sendo que no momento em que taparam seu corpo, uma águia pairou sobre a areia molhada. Consideraram isso um sinal de que ela havia mesmo sido guerreira e brava a ponto do sacrifício. Depois, entraram novamente no navio e partiram, irrompendo novamente em mar aberto. Estavam indo para a casa; ao menos Kia, pois Twan’s não possuíam lares. Denis estava na proa do navio, sentado. Ela sentou ao seu lado, na mesma posição que ficaram na ida e não falaram nada. Num gesto súbito, Denis encostou a cabeça no ombro de Kia, surpreendendo tanto a si mesmo como a ela. Deixaram o vento bater no rosto, tendo a certeza de que aquele dia, embora ainda no início, havia sido desgastante e capaz de mudar as convicções de cada um. Pois o destino é algo singular. Prega peças, estilhaça sonhos e se alimenta do seu próprio enigma; mas não falha. Assim como a Profecia ditou suas palavras, o destino mostrouse mais intenso, arbitrando a palavra final. — Então você está voltando sem ouro... — disse ela. — Não tem problema, — respondeu-lhe, sorrindo. — agora eu possuo a Prometida. Ah, Twans...
A Maldição da Lua Jéssica Cevidanes
ssim como a lua cheia, Jade alcançava seu auge. Nikolai, seu amante, a apreciava sem ar. — Ah, como és bela, minha mulher! Minha! — lembrava-se com o coração quase escapulindo pela boca — E de mais ninguém. Suas curvas de cigana só podiam ser amaldiçoadas pela cor mais doce do pecado. Elas irradiavam sensualidade e quase faziam Nikolai perder as estribeiras. Mesmo tendo posse daquela silhueta planejada pelos mais graciosos seres celestes, não via outra opção que não fosse a de se contentar em apenas engolir em seco. Nikolai poupavase de sua empolgação, pois, sabia que o melhor ainda estava por vir. Sua Jade, embora fosse perigosamente independente, o que o fazia desejá-la ainda mais, se dobraria aos seus caprichos, prevendo ou não a estratégia que armava em seus pensamentos. Bastava aguardar a hora certa para pegá-la desprevenida. E só assim poderia ter a chance de domá-la.
A
A moça mulher trajava roupas pouco contidas e que acabavam por ser muito provocantes. Seu saião cor de fogo encontrava-se molhado por completo, juntamente de uma blusinha branca com mangas, que expunha dois terços de seu tronco bem trabalhado. Nos cabelos, estavam postas propositalmente flores vivas e multicoloridas; elas haviam sido colhidas a pouco, no caminho de ida para além do bosque montanhoso da aldeia em que seu clã habitava. Aquela noite era a sua primeira a sós depois de tê-la perdido por intermináveis dois meses. Quando a encontrou, era de se partir qualquer coração. Jade estava completamente suja, sem nenhum pano ou tecido que pudesse cobrir ao menos a sua intimidade. À deriva, no meio do nada, como um verdadeiro animal selvagem. Ao avistá-la, Nikolai aninhou-a em seus braços para que nunca mais pudesse escapar. No entanto, lembrar-se de todo desespero devido a sua ausência, ou o fato de tê-la encontrado em estado tão precário, não surtia o menor efeito naquele homem perdidamente apaixonado. Não naquele momento prazerosamente torturante. Nunca vira Jade tão hipnotizante como naquela noite de lua cheia. Com seu sorriso provocante, ela perpassou suas delicadas mãos de unhas em forma de garra pelo peito do marido, empurrou-o de encontro ao tronco de uma frondosa árvore e rasgou seu colete com selvageria. Assim que o fez, afastou-se, deixando Nikolai confuso e excitado. Então, como se nada mais pudesse surpreendê-lo, Jade começou a dançar. A luz do luar mirava-a como um holofote, fazendo com que sua pele dourada quase cintilasse. A dança era magistral e lasciva. Jade balançava os quadris em intervalos lentos, outros ágeis; rebolando e curvando o corpo para trás em um vai e vem delirante. Até o mais simplório dos ignorantes poderia confundi-la com uma ninfa pronta para laçar seu objeto de luxúria, quando elevava sua longa saia e abaixava-a, com um sorriso maroto nos lábios, só para deixar na vontade. Jade dançava na ponta dos
pés e, lentamente, rodopiando sob uma música imaginária, perpassava as mãos pelo corpo. A esse ponto, Nikolai já não se contentava em somente observá-la encostado naquela árvore. Sem nem saber como, aproximou-se rapidamente, pegou-a de surpresa e a trouxe para si, acompanhando-a em seu ritmo alucinante. Bailaram a noite inteira, ansiosos para que aquele momento durasse a eternidade. De todas as vezes que ele tentava beijá-la, era impedido pelas mãos delicadas em sua boca, seguidas beijos espalhados pelo pescoço que estava tirando-o cada vez mais de seu controle. Cansado daquele jogo de submissão, resolveu que era a sua vez de colocá-la contra a parede. Aproveitando a baixa guarda de sua mulher, Nikolai puxou-a para si e deu-lhe um beijo de tirar o fôlego. Selando seus lábios como se os estivesse soldando, traçou um caminho ousado com sua língua, que percorreu todo o desenho de seu mais cobiçado paraíso, até alcançar o interior de sua boca, deixando em Jade a sensação de estar provando lava ardente. No entanto, ao invés de marcá-la com queimaduras do mais alto grau, Jade sentia que a qualquer momento poderia explodir. Deixando-se levar pelo fogo que os incendiava, Jade aproximou seus corpos, questionando as tão faladas leis da Física. Somente ela os impedia de parecer um só. Cego de desejo, Nikolai percorreu suas graúdas e brutas mãos por todo o corpo da cigana. Ela arfava e deixava que seu marido a descobrisse com sua boca selvagem. Estava adorando a natureza que havia despertado em Nikolai. Ele fazia-a perder o ar com mais rapidez e gemer como se estivesse em um lugar deserto. A lua os iluminava e queimava a pele de Jade, deixando-a com a impressão de estar dormente de tanto prazer. Nikolai beijava, sugava e mordia seu corpo sem pudor algum. Parecia que ele era o incontrolável, e não Jade. Ela implorava para que a deixasse satisfeita, e ele a obedecia com o maior prazer.
Nikolai estava adorando senti-la tremer diante de suas carícias, de ouvi-la gemer como se uivasse. O próprio cigano arrepiava-se quando sua amada gritava pelo seu nome e ansiava por sua boca como nunca havia antes. No entanto, quando o rapaz de cabelos negros e pele tão dourada quanto a de sua Jade estava prestes a consumir o ato, assustou-se com a força que Jade usou para arremessá-lo longe. Um tanto desnorteado e ofegante, o cigano Nikolai observou atentamente sua mulher, que gritava e puxava seus cabelos feito louca. Ele tentou levantar-se para acalmá-la, mas Jade o impeliu: — Não se aproxime de mim! Nikolai obedeceu a ordem assombrosa da cigana, tentando lembrar-se do que havia feito de errado. Mas, então, a imagem de Jade se jogando no chão e contorcendo-se de dor fez com que Nikolai disparasse alarmado em sua direção. Jade fixava seus olhos de profunda dor em Nikolai enquanto dobrava e se desdobrava, estalando toda sua estrutura óssea. Seus gritos agonizantes, aos poucos, cedia espaço para uivos involuntários. Suas mãos estavam sendo arreganhadas, enquanto que seus dedos duplicavam o tamanho. As unhas em formato de garra ganhavam mais espessura e rigidez. Nikolai arregalou os olhos perante a cena que presenciava: sua mulher, sua Jade era uma lobisomem! Tudo o que mais queria era correr para longe dali, pois não queria morrer. Mas aquela não era uma amaldiçoada qualquer. Não podia simplesmente deixar Jade para sofrer graças à maldição da lua. — Saia daqui, Nikolai! Eu não… Você vai morrer… Ah! Saia daqui, seu idiota! A voz de Jade havia engrossado assustadoramente. Nikolai, mesmo alarmado, ignorou os apelos da mulher e permaneceu onde estava. Ele a observava boquiaberto, sem esboçar nenhuma reação. Enquanto isso, Jade se transformava na besta fera que os ciganos combateram durante toda sua existência.
Nikolai viu os olhos claros como esmeraldas de Jade tornarem-se âmbar. Viu seu corpo escultural transformar-se no formato grotesco e negro de um lobo perigosamente mutado. Viu diante de seus olhos, um animal selvagem. Aquela não era mais sua mulher. Era o motivo de seus pesadelos futuros e a chave para loucura. A lobisomem levantou-se sobre as duas patas traseiras e o encarou ferozmente. Mas, antes que pudesse fazer qualquer coisa, reverenciou de forma clássica sua companheira lunática: uivou terrivelmente para o alto. Agora sim poderia voltar-se ao seu instinto predatório. Sob as quatro patas, a amaldiçoada rosnou para Nikolai. Entregando-se ao medo, o rapaz começou a afastar-se rapidamente, até chegar perto de onde tinha deixado um amontoado de objetos. No meio deles, havia água, uma muda de roupas para Jade e seu facão. Nikolai tremia diante de tamanha pressão. A lobisomem parecia não ter pressa de estraçalhá-lo. Caminhava lentamente em sua direção, enquanto salivava apenas de sentir o gosto de sua presa fácil. — Desculpe-me por isso, meu amor. E pela força de seu reflexo, pegou o facão com as duas mãos e voltou-o para trás, acertando em cheio seu coração lupino. A lâmina de prata que Nikolai usara para cortar a mata cerrada que os levou até aquele cume, agora estava manchada com o sangue do seu amor. A besta recebeu-a no peito com os olhos amarelos arregalados. Seu corpanzil perdeu todas as funções cruciais, cedendo aos caprichos macabros daquela lâmina mortal. Aos poucos, as feições e traços lupinos abandonaram o corpo de Jade, privando-a do veneno amaldiçoado que a condenou a dois meses atrás. No entanto, juntamente da maldição, sua vida também esvaiu-se. Jade deixou Nikolai para trás. Desolado. Com apenas seu corpo inerte e ensanguentado nos braços.
Depois daquele momento de terror, Nikolai nunca mais fora o mesmo. Ele havia matado seu amor. Como podia?! Tudo o que merecia era a morte, pois, nada era pior do que ter Jade em seus braços e, ao mesmo tempo, estar distante de seus olhos brilhantes. De sua essência. De sua alma encantadora. Nikolai havia acabado com a maldição da lua, mas iniciou a maldição da tristeza profunda, da loucura aterradora e da tormenta de ser condenado a sobreviver uma vida sem seu amor.
Relacionamentos Neto Kristain
T
yras Amorim e Undine eram noivos já havia algum tempo. Passaram por diversas atribulações até o pedido de casamento ser feito e não havia uma pessoa que duvidasse do amor que sentiam um pelo outro. Ele, um dos magos mais fortes do Reino Kristain; ela, uma elemental da água, tão bela quanto Afrodite.
O casal sempre costumava sair de manhã e passear pelo comércio da capital do Reino Okamoto. Quando juntos, estavam sempre animados, caminhavam pela rua comercial, de braços dados, soltando risos aqui e ali quando paravam em alguma barraca. Nesse dia em questão, a situação de Tyras e Undine não parecia começar diferente. Entraram no comércio, de braços dados em uma sussurrante e provocante conversa. Os dois se davam tão bem que chegavam a causar inveja de outras duas figuras que resolveram seguir o feliz casal naquele dia. Atrás de uma parede de caixas, Neto Kristain e Hanee Okamoto espiavam Tyras e Undine. Os dois eram da realeza e amantes há pouco tempo. Ainda assim, Neto e Hanee já pensavam em se casar, acreditavam sentir algo que os uniria para toda vida. No entanto, os dois estavam longe de ser um casal feliz. — Seu idiota, sai da frente! Eu quero ver! — Hanee socou as costas do Kristain. — Fica quieta, sua chata! Não quer que eles nos descubram, quer? – retrucou Neto — Precisamos saber como Tyras e Undine se dão tão bem. — Porque não simplesmente pergunta ao Tyras? Ele não é seu melhor amigo? — Pelo que eu me lembro, você e Undine não são desconhecidas também. — Ora, é vergonhoso perguntar esse tipo de coisa. – a princesa enrubesceu — Além do mais, é obrigação do homem manter um relacionamento. — Obrigação... — Neto bufou — Se eu agisse como metade dos monarcas por aí, já teria levado mais mulheres para cama do que você vai me deixar te levar na vida inteira. — Ah, então está dizendo que pensa nessa possibilidade? — Bem, se continuar a ser irritante, ela não precisa ser só uma possibilidade... — ele sorriu, claramente pervertido. Hanee chutou as costas do príncipe e arremessou-lhe contra a parede de caixas. Ele saiu rolando no meio delas até bater dentro de galinheiro.
— ERA SÓ BRINCADEIRA! — ele levantou, berrando, coberto de penas. A Okamoto pulou em cima dele e os dois entraram no galinheiro no exato momento que Tyras e Undine se viraram. Como não puderam encontrar a causa do barulho, resolveram dar uma pausa numa barraca de petiscos. — Essa não é uma das situações que eu imaginei que você fica em cima de mim — comentou Neto, dentro do fedorento galinheiro. Hanee meteu-lhe um tapa, não só pela frase, mas pelo fato dele estar com os olhos fixos no seu decote. — Qual o problema?! — ele gritou, revoltado — Tenho que admirar, enquanto posso! Você pode ser quase uma tábua, mas com certeza no futuro eles vão cair. Dessa vez, ela lhe deu um soco. E ergueu-se, bufando. — Temos que descobrir o segredo do relacionamento de Tyras e Undine urgentemente... — gemeu Neto se pondo de pé, enquanto seu nariz sangrava. — Realmente, eles não brigam, nunca aumentam o tom de voz um com outro e concordam em tudo. Mas acho que sei o segredo... — Hanee encarou Neto, furiosa — É porque Tyras não é um pervertido como você! — Ah, agora a culpa é toda minha! — É! — Qual foi a última vez que disse que me amava, Hanee? Quando na sua vida você me deu algum carinho?! — Ora, eu... eu... eu... — ela engoliu em seco, o rosto completamente corado — Eu já lhe beijei! — Uma égua pode me beijar, Hanee. — Seu nojento! — Pode fazer pelo menos isso por mim? — Neto apontou para Tyras e Undine. A elemental pegava um petisco de uma barraca e dava na boca de Tyras, que fazia sua noiva rir quando fingia ser um renomado crítico de petiscos de barraca. — Porque eu tenho que colocar comida na sua boca? — disparou Hanee, que parecia estar com o rosto fumegando de tão corado — Você tem mãos pra quê?!
Neto suspirou fundo. — Vamos logo! Eles estão se afastando! — Haneefoi à frente. O príncipe Kristain seguiu a noiva e os dois se esconderam atrás de uma barraca quando Tyras e Undine pararam novamente. Eles já estavam no centro do comércio, que era ornado com uma cintilante fonte de água. Tyras segurou a mão de sua noiva e pediu para que ela se sentasse à beira da fonte. A elemental da água obedeceu, curiosa, e admirou-se com o espetáculo que começou em seguida. Com as mãos viradas para a fonte e brilhando num tom anil, Tyras se pôs a controlar a água da fonte. De repente, os esguichos do monumento ganharam vida, se transformando em peixes que caíam dentro da fonte em saltos ornamentais. Depois a água se transformou em pássaros, que começaram a voar formando o símbolo do infinito, até que finalmente se fundiram e formaram um pequeno coração de água. Tyras congelou o coração e se ajoelhou frente aUndine, lhe entregando o coração. Ele deu um sorriso e nem precisou se utilizar de palavras para dizer que seu amor por Undine era infinito. Os olhos dela brilharam. Ela estava, mais do que antes, perdidamente apaixonada. — Sério que Undine se impressionou com isso? — Neto riu, zombeteiro — Foi magia de água! Ela é uma elemental da água! Com certeza ela sabe fazer mil coisas mais impressionantes que isso. — Não fale do que você não entende! — Hanee ralhou — Não se trata apenas do gesto, mas também da pessoa que o fez. Tyras é a pessoa que Undine ama e aquele simples gesto fez todo o significado para ela. Por isso, ela ficou impressionada. — Ainda assim, o gesto não é grande coisa — desdenhou Neto. Ele e Hanee voltaram a dar atenção ao casal a frente deles, quando o coração de gelo nas mãos de Undine começou a brilhar. O objeto emanava uma luz que vinha do seu interior, a qual projetava imagens dentro do coração. Imagens do dia em
que ela e Tyras dançaram juntos pela primeira vez, imagens que encheram os olhos da princesa elemental. — Porque choras? — Tyras alisou as bochechas de sua amada, limpando as lágrimas. — Porque sou uma mulher muito mais feliz do que essa Undine do coração um dia foi — ela abriu um sorriso. Undine se inclinou para seu noivo e os dois beijaram-se ali mesmo no comércio sem se importar com os indivíduos ao redor. — O que você dizia mesmo? — Hanee riu da expressão surpresa de Neto. — Tyras é bom nisso, admito... — Ele não é bom, é ótimo! — Posso ser tão bom quanto ele — rebateu o Kristain, emburrado. — Ah, é? — a princesa riu em deboche — Quero ver você me impressionar, então. Hanee sentiu uma tapa na bunda. De imediato, todo o sangue da princesa ferveu. Ela socou o chão com força e uma coluna de pedra ergueu-se, esmagando a virilha de Neto. — Hanee... — ele gemeu, a voz totalmente esganiçada — Nossos futuros filhos... — SEU CACHORRO PERVERTIDO! O poder mágico da princesa emanava em torrentes castanhas como a terra. A magia ao seu redor, atiçada por sua fúria, erguia os paralelepípedos do chão e os fazia girar ao redor da princesa. Quando Hanee gritou novamente, as pedras começaram se jogar contra Neto como diminutos meteoros. O pobre príncipe recuou como um cachorro, gemendo aqui e ali, enquanto os paralelepípedos esmagavam suas costas. Ele clamou por perdão e até fez juras de castidade, mas percebendo sua estupidez, virou-se para ela a fim de explicar que aquela havia sido uma promessa mal pensada, logo ela não carregava a verdade explícita. Mas como resposta, Neto só recebeu uma pedrada na cara. Embora ele começasse a pensar que morreria apedrejado, Hanee parou de arremessar seus projéteis quando um dragão rosnou para ela, se pondo em cima do Kristain para protegê-lo.
O ser reptiliano era verde e majestoso, tinha a ponta da cauda coberta por esmeralda e chifres feitos da mesma pedra preciosa. O dragão bateu as asas e incitou Hanee a recuar se não quisesse ser atacada. — Arcélia? — Hanee imediatamente reconheceu o dragão do ar — Porque você está protegendo o Kris? Você não é o dragão de Rafaela? Não sabe que Rafaela e ele não tem mais nada um com o outro? A princesa parou, vendo que direcionava as perguntas ao sujeito errado. — KRIS! — ela berrou. — SIM?! — Neto respondeu, arrepiando por completo. — Porque o dragão de Rafaela o protege?! — Rafaela não costumava me bater... — ele disse tímido, saindo debaixo de Arcélia — Acho que Arcélia não está acostumada a me ver apanhar, por isso me protege. O rosto da Okamoto imediatamente ficou sombrio. — Você não precisa ficar assim só porque eu tive um caso amoroso com Rafaela. – argumentou Neto — Eu nem te conhecia na época. Além do mais, eu nem cheguei a desvirginála. — Não fale isso como se fosse algo sem importância! — É sem importância, porque eu não a amo, mas amo você. — Ainda bem, porque eu também — Hanee cruzou os braços, ficando vermelha. — Você também o quê? — Eu também sinto isso por você — ela respondeu, constrangida. — Sente o quê? — Você sabe o que é, não me irrite! — Custa dizer?! — ele gritou, magoado — Rafaela dizia que me amava! — Rafaela era maluca! — Ela era muito mais feminina que você! Nunca me bateu!
— Está dizendo que eu não sou feminina, seu idiota?! Se eu te bato é porque você merece! És um pervertido, que só sonha em fazer sexo! — Sonho com o dia em que nos desvirginaremos juntos, há algum mal nisso? — Desvirginar, desvirginar, é só nisso que pensa! — E bater é só o que você sabe fazer! — Algum problema? – uma terceira voz soou no meio da discussão, a de Tyras. — Podemos ajudar? – indagou Undine, agarrada ao noivo. — Devem! – Neto e Hanee correram para frente deles dois. – Como conseguem? – diziam em coro. – Como podem se relacionar tão bem? Como concordam em tudo? — Não concordamos em tudo — Tyras e Undine disseram ao mesmo tempo. Os dois se olharam, confusos, e tentaram novamente: — Certo, concordamos em bastante coisa, mas não em tudo — disseram novamente em uníssono. Entreolharam-se mais uma vez, tão estupefatos quanto Neto e Hanee, mas acabaram por sorrir, dizendo novamente juntos: — Certo, concordamos em quase tudo. — Ótimo, entendemos essa parte — Neto assentiu — Mas afinal, quem está errado? Eu ou ela? Creio que seja ela, pois Hanee vive se negando a dizer que me ama ou a me dar carinho como se isso fosse um grande sacrifício. Sem falar que me bate a todo momento também. — Não esperavam que eu fizesse outra coisa, não é? — Hanee olhou para o casal — Neto é movido à perversão, a cabeça dele vive a imaginar essas coisas. Sinto-me cobaia de seus desejos. Minha reação não poderia ser diferente, eu me defendo batendo nele. — Então, quem está errado? — Neto tornou a perguntar aos amigos. Tyras e Undine olharam-se, pensativos e balançaram a cabeça, mais uma vez concordando: — Os dois.
— HÃ?! — Vamos dar uma volta, Milorde — pediu Tyras ao príncipe — Há uma coisa que quero lhe dizer. — Então vamos em direção contrária, Hanee — Undine sorriu — Preciso conversar com você também. — Precisa conversar o quê, Undine? — perguntou Hanee quando elas haviam se afastado dos rapazes. — Hanee, não estou dizendo que você não é feminina, mas uma mulher não deve bater no seu homem. — Mas ele é homem... — Hanee tentou desculpar-se — Ele aguenta. — Não se trata de aguentar as dores – a elemental parou, encarando a princesa — Neto alguma vez lhe bateu? — Não, porque bater numa mulher é covardia. — Há muitos homens que batem e estupram mulheres por aí e são chamados de heróis. Hanee retesou-se. — Neto não lhe bate porque, acima de tudo, ele lhe respeita. — Mas ele é um pervertido! Ele bateu na minha bunda! Ele...! — Não aponte os problemas dos outros sem antes resolver os seus — a elemental respondeu, incisiva — Até porque, você não conhece um verdadeiro pervertido. Se Neto fosse mesmo um, ele já teria tentado outras coisas que não beijos ou carícias. — Mas eu dou isso a ele, o que espera mais de mim? — Haneeperguntou, confusa. — Além de respeito, que você demonstre seu amor. — Ele sabe que eu o amo, porque precisa tanto dessa confirmação? — Porque isso o deixa mais seguro, isso o deixa confiante. Ele pode saber que você está do lado dele fisicamente, mas precisa confirmar se estão lado a lado sentimentalmente também. Afinal, é você quem dá forças a ele. Uma vez mesmo Neto me disse que você é a razão do sorrir dele.
— Ele é um idiota... — Hanee estava toda corada e envergonhada. — Seu idiota, que merece ser respeitado e amado. — Então, eu nunca mais devo bater nele? Nem quando ele pedir? — Bem... – Undine ficou um pouco constrangida. As duas se entreolharam, embaraçadas, mas acabaram por rir uma da outra. — Como assim eu sou o problema, Tyras? — foi a primeira coisa que Neto perguntou ao se afastar das moças. — Milorde, sinto muito — Tyras falou sem rodeio — Mas o senhor pensa demais e, praticamente, só em sexo. Parece que o senhor tem sua vida orientada por isso. — Mas é que eu amo a Hanee... — o príncipe respondeu, meio encolhido. – Não é normal desejá-la? — O amor é muito mais do que fazer sexo com alguém — replicou Tyras. — Não me entenda mal, meu amigo. Eu não estou vendo Hanee só como um objeto, eu... — Não vê, mas a trata como escape para seus desejos. Abusa do corpo dela enquanto a beija. — Como você sabe disso...? — Uma vez eu vi o senhor apalpando o ar e sussurrando o nome de Milady – confessou Tyras, nada orgulhoso de relembrar a cena — E não há algo mais sugestivo do que isso. Neto enrubesceu por completo, abaixando a cabeça. — Aonde quero chegar, Milorde, é que se o senhor não vê outro motivo para casar com Milady que não seja para se deitar com ela, então, para o bem dela, não se case. Aquelas palavras atingiram o peito de Neto como um punhal. Ele parou de respirar por um momento, encarando Tyras. — Não casar? O Amorim assentiu. Neto voltou a abaixar o cenho em uma profunda depressão. Os quatro voltaram a se reunir no mesmo local de antes, onde haviam encontrado com Arcélia. Lá, Hanee e Neto ficaram
de frente um para o outro, apesar de bem afastados. Mas os dois não se encararam, estavam cabisbaixos. Hanee com vergonha de ter sido negligente com seus sentimentos e Neto com vergonha dos seus desejos pervertidos e com medo da possibilidade de deixar Hanee. Tyras e Undine, vendo que a situação entre Neto e Hanee não se desenvolvia, deram um último e derradeiro conselho. — Conversar ajuda. – começou Undine. – Eu e Tyras nos damos muito bem porque conversamos muito. — Nos conhecemos há mais de dez anos atrás e conversamos muito de lá pra cá. Conhecemos muito um do outro. – confirmou Tyras. — E faz menos de um mês que começamos a nos envolver amorosamente. Então, devemos ter muito mais conversas do que beijos nesse tempo todo — Undine disse com um riso. — Logo, o que deve estar faltando a vocês é um diálogo civilizado, sem gritos ou xingamentos — completou Tyras. — Apenas digam seus sentimentos — concluiu Undine. — EU NÃO QUERO ME SEPARAR DE VOCÊ! — Neto berrou assim que Undine calou-se. Hanee o fitou, surpresa. — Se quiser podemos parar de nos tocar e até podemos ficar sem fazer nada quando nos casarmos! Você pode viver como uma freira se desejar, mas, por favor, não me deixe! — Neto suplicou. — Seu idiota! — ela gritou de volta. — Será que eles me ouviram quando eu disse “diálogo civilizado, sem gritos ou xingamentos”? — perguntou Tyras à noiva, que só fez rir. — Eu nunca vou lhe deixar! — garantiu Hanee — E nunca vou abrir mão da minha noite de núpcias também! — Não? — Neto corou e sorriu, claramente animado com a notícia. — Desde que você não me ataque antes do casamento, está tudo bem para mim — Haneesorriu, meio constrangida — Mas prometo que eu nunca mais vou te bater, Kris...
— Desde que não seja fora de quatro paredes, você pode me bater. Para mim, está tudo bem. – ele piscou para ela. — Seu pervertido! – ela riu, correndo para cima dele. — Um pervertido só seu! – ele a agarrou nos braços e beijou-a. Ela enlaçou o pescoço do noivo, ora rindo, ora provando de seus lábios. Até que fitou seus olhos prateados e com o coração batendo forte, conseguiu dizer: — Kris... Eu te amo... Os olhos do Kristain brilharam e um sorriso radiante formou-se em sua boca. — EU TAMBÉM TE AMO! Ele berrou, conjurando um par de asas angelicais que abriram-se de suas costas. Os dois alçaram voo, enquanto gritaram: Hanee, de medo; Neto, de alegria. — Hanee tem medo de altura, não tem? — lembrou Undine — Eles vão ficar bem lá em cima? — Milorde é meio cabeça de vento, acho que o céu é um bom lugar para ele — concluiu Tyras — Ainda assim, não me sinto bem. Fico me perguntando se ajudamos mesmo. Eles ignoraram meus conselhos no final. — Eles tem um jeito próprio de conversar... — Undine abraçou seu amado — Mas sei um jeito de fazer você se sentir melhor, meu amor. — Ah, é? — É...
O Amante Secreto de Eva Laurien Santin
“Eu soube que viveria o resto da eternidade na clandestinidade no momento em que decidi seguir os passos de Lilith. Sim, meu nome é Eva e não, eu não arruinei a humanidade.”
E
va andava de um lado para o outro, impaciente, enquanto esperava. Há dias Lilith não aparecia: desde que lhe tinha dado uma maçã para experimentar, precisamente. Quando Eva foi criada, Lilith ficou enciumada, embora tivesse abandonado seu marido. Assim, decidiu visitar a nova mulher
de Adão na forma de uma serpente, para ver como ela seria. No entanto, não esperava que Eva fosse extremamente curiosa e independente, a despeito do desejo de Adão de ter uma esposa totalmente submissa. A curiosidade de Eva acabou levando Lilith a revelar-se, de modo que as duas acabaram tornando-se amigas e Lilith começou a visitá-la sempre, disfarçada de serpente. Certo dia, entretanto, Eva perguntou-lhe sobre o tal fruto proibido, que Deus tinha dito tão enfaticamente para não comêlo. Qual seria o seu gosto? Adocicado ou azedo? Seria amargo, talvez? E o que aconteceria se o comesse? Seria castigada, por certo. Mas teria ele alguma propriedade mágica que lhe concederia a sabedoria ao comê-lo? As perguntas eram tantas, mas Eva não se atrevia a experimentá-lo. Sua vida no Éden era boa, apesar de tudo, e ela não estava disposta a arriscá-la ainda. Assim, perguntou a Lilith. Ela, entretanto, também não sabia, não havia permanecido tempo o bastante no Éden para experimentá-la. Naquele dia, saiu de lá pensando em perguntar a todos que conhecia (Lúcifer, inclusive) sobre o fruto. Como podia ninguém saber como ele era? Aparentemente, o fruto estava intocado desde a sua criação. Depois de muito debater sobre o assunto, na visita seguinte de Lilith, Eva decidiu dar uma fruta a ela, que não temia experimentá-la. Lilith não comeu a fruta em frente a ela, entretanto. Pretendia reparti-la com Lúcifer, que também estava curioso a respeito. No entanto, depois disso ela não voltou mais. Eva estava dividida, não sabia o que pensar da amiga. Temia que algo lhe tivesse acontecido, mas temia também que o objetivo dela fosse desde o princípio conseguir a tal fruta. ••• — Tem certeza que está tudo bem com ela, Lilith? — Lúcifer estava um tanto temeroso por Eva.
— Sim, Lúcifer. — ,Lilith respondeu, pela quinta vez, desde que voltara — Acal,me-se! E se não quiser, devolva-me logo essa maçã, pois quero, experimentar. — Acalme-se você, — Ele replicou — Preciso das sementes. — Para que? — Ele estranhou. — Você nunca se perguntou como as árvores surgem? — Ele sorriu — Das sementes. Se for boa, não quer uma árvore daquelas aqui, para ter mais? — É sério? — Lilith riu — Que… mágico! — Não é? — Ele sorriu, devolvendo a maçã para ela. Pegou uma das metades e deu uma mordida antes de entregarlhe. O sabor espalhou-se pela sua boca, doce. — É deliciosa — Ele sorriu. — Humm… — Lilith resmungou. — Eva precisa saber disso! Assim que terminou de comer, ela ergueu-se num pulo e saiu de lá, ansiosa por contar à sua amiga a novidade. Lúcifer riu, mas ficou onde estava. Algo estava errado: não deveria ter sido tão fácil roubar um daqueles frutos. Naquele momento temia por Lilith, mas temia mais ainda por Eva: ela provavelmente estava em apuros. — Acho que entendi por que estava com tanto medo… — Lilith anunciou, ao voltar, horas mais tarde. — O que aconteceu? — Lúcifer levantou-se num pulo. — Não sei, mas não consigo entrar no Éden de jeito nenhum! Onde quer que eu vá há anjos guerreiros! Vocês não foram criados para serem mensageiros? — Ela bufou. — Na teoria, sim. — Ele riu — Mas há muitos anjos e há a classe de guerreiros. — Explicou e fez uma pausa — Tantos assim? — Muitos. Não encontrei uma única brecha por onde pudesse entrar. — Ela retorcia as mãos, nervosa — Você acha que Deus fará alguma coisa com ela? — Não sei. — Ele confessou — Achei que o conhecesse… mas o Deus que conheci era bondoso e amoroso, apenas. Não arrogante e prepotente como se tornou depois da criação de Adão.
— Eu só conheci o Deus arrogante e prepotente. — Ela murmurou — Adão foi criado à sua imagem e semelhança e é um bastardo idiota. — Resmungou, subitamente com raiva. Lúcifer apenas ergueu uma sobrancelha, mas não discutiu. — E como ele é com Eva? — Perguntou, curioso. — Suportável, suponho. — Ela disse, antes de resmungar qualquer coisa incompreensível. — Desculpe? — Nada, não. — Ela sussurrou. Lúcifer não insistiu. Se já estava inquieto antes, com aquela situação, agora estava mais ainda. Permaneceu alguns minutos sentado, mas não conseguia ficar lá, simplesmente. Levantou-se: — Vou ver como está o Éden. — Anunciou — Fique aqui. — Acrescentou, ao ver que Lilith levantava-se, preparando-se para ir também. — Por que? — Ela bufou. — É perigoso. — Ele resmungou. Lilith riu. — Por favor. Olhe bem pra mim. — Ela retrucou — Não é perigoso. — Quero ir sozinho. — Ele rebateu. — Está bem assim? — Rosnou. Lilith ergueu as mãos, mostrando as palmas. — Tudo bem, garotão. Você quem sabe. — E voltou a sentar-se. Ele assentiu, antes de virar-se de costas e erguer-se de um salto para o céu, estendendo suas grandes asas negras. — Bastardo exibido. — Lilith riu. — Por que estás tão agitada, Eva? — Adão riu. — Relaxe, bebê. Não há razão para se preocupar. — Não estou preocupada. — Eva mentiu. Adão não sabia das visitas de Lilith, pois não aprovaria e com certeza queixarse-ia para Deus, arruinando a sua amizade. — A não ser que tenha feito algo de errado. — Ele continuou, como se ela não tivesse falado — Comeste do fruto proibido, não comeste? — Ele acusou-a. — Não! — Ela gritou, indignada. Como ele podia pensar algo assim dela? — Mentirosa! — Ele urrou — Sei que comeste! Pensa que não te vi retirar uma há dois dias?
— Não comi! — Ela teimou. Adão deu-lhe um tapa no rosto, fazendo ela virar-se para o lado, com a força do tapa. Eva permaneceu naquela posição, em choque. — Vadia! Não acredito em você! — Ele rugiu — Deus! — Gritou, com a intenção de entregá-la, sem piedade. Não demorou muito e o céu estava negro, como fica geralmente antes de tempestades. A voz rouca, já conhecida dos dois ressoou pelo jardim. — O que é, Adão? — Deus estava sério. Eles sabiam que ele sabia o que tinha acontecido, mas Adão não hesitou em denuncia-la. — Eva comeu do fruto proibido! — Tem certeza, Adão? — Deus perguntou, condescendente. — Claro! — Ele bradou, seguro de suas palavras. — Vou perguntar de novo. — Deus insistiu — Tem certeza? Você a viu comer do fruto? — Bem, não. — Adão confessou — Mas a vi tirando um da árvore! Por que tiraria, se não para comer? — Pois não comi. — Eva resmungou. — Não, não comeu. — Deus concordou — Mas o entregou a alguém. Que tal contar ao seu marido das visitas que recebeste? — Visitas? — Adão repetiu — Me traíste? — Ele urrou. — Não, pelo amor de Deus! — Eva estava perdendo a paciência. — Não deveria confiar em mim? Pelo menos um pouquinho? — Contestou. — Confiar? Eu não devo confiar em ti. Você me deve submissão. Deve me obedecer e contar tudo o que fazes para mim. Eu já sou muito bom para ti de não queixar-me que pegou o fruto escondido. Mas não vou admitir que me traia. — Ele declarou, com ar superior. — Deus! — Ela suplicou, para que a defendesse. — Ele está certo, Eva. Foi criada para ser sua serva, sua esposa. — Ele disse, de um modo que fez Eva entender por que Lilith já não estava lá.
— Bem, suponho que sim, mas não me perguntaram sobre isso. Não fui questionada se queria ser sua serva, sua escrava. — Enfatizou a palavra “escrava”. — Tua opinião não nos é importante. — Cortou-a Adão. Eva, que estava em pé ao lado de Adão deu um passo para trás, como que empurrada por uma força invisível. — Claro que não importa, não é mesmo? — Ela soluçou. — Sou só a serva. Mas bem, a serva não quer ser serva. E não vai ser. — Ela virou-se, correndo para o portão do jardim. — Se sair, não poderá mais voltar. — Alertou Deus. Eva não lhe deu ouvidos, apenas continuou correndo, sem coragem de olhar de volta, com medo que Adão visse suas lágrimas. Adão, por sua vez, não foi capaz de expressar alguma reação. Realmente não esperava que Eva pudesse se rebelar, como Lilith. — Ao menos diga quem era a sua visitante. — Deus ordenou. — LILITH! — Urrou ela. — Lilith me visitava! — Gritou, sem parar de correr, mesmo depois de passar pelos portões, abertos. Ouviu o estrondo dos portões fechando logo após a sua saída, mas não se importou. Tudo o que pôde registrar foram as nuvens se desfazendo aos seus pés e sua queda. Fechou os olhos, esperando o impacto inevitável com o solo. Ela não tinha ganhado asas com a queda, afinal. Mesmo assim, não o sentiu: dois braços fecharam-se ao seu redor, impedindo-a de cair. Abriu os olhos, surpresa e surpreendeu-se ainda mais ao ver que seu salvador era… um homem. — Olá. — Ele sorriu, voando para longe dali. — Oi. — Ele murmurou, surpresa. — Você é…? — Chamam-me de Lúcifer. — Ele disse — Você é Eva, não é? — Sim, sou eu. — Ela murmurou — Já ouvi muito falar de você, mas como sabe…? — Quem você é? — Lúcifer riu — Eu também te conheço, doçura. — C-Conhece? — Ela gaguejou.
— Sim. — Ele confirmou, descendo. Tinham chegado… onde quer que estivessem indo. — Eva! — Lilith levantou-se da pedra onde estava sentada e correu para abraçar a amiga. — O que houve? Eva explicou o que aconteceu e Lilith explicou que não conseguira entrar no Éden depois que pegara a maçã. Depois de tudo esclarecido, Eva estando mais calma, respirou fundo e observou onde estava: uma fenda escura, que se estreitava mais para frente e aprofundava-se em uma espécie de caverna, provavelmente terminando nos confins da Terra. Seria aquilo o que Deus chamava de inferno? Não era quente, entretanto. Ao contrário, era extremamente frio lá. Agora que estava calma o bastante para registrar qualquer coisa ao seu redor, estava ficando com frio. Lúcifer percebeu o estremecimento de Eva, e retirou o casaco que vestia, colocando-o sobre seus ombros. Ela sorriu, agradecendo com o olhar. A fenda era formada por dois penhascos bem próximos um do outro, de modo a ter apenas uma fresta por onde podia entrar luz. A vegetação de lá era sombria, composta em sua maior parte por musgos e arbustos. Mesmo assim, não era nada como ela tinha imaginado. — Onde estamos? — Perguntou ela. Lilith e Lúcifer se entreolharam, antes de Lúcifer responder. — Essa, doçura, é a entrada do inferno. — Ele parecia de certo modo… orgulhoso — Minha casa. — Mas aqui é… — Eva não pôde deixar de perguntar. — Frio? — Ele riu. — Aqui é só a entrada. — Explicou. — Quanto mais entramos, mais quente fica. Vamos entrar? — Vamos, está ficando muito frio. — Lilith reclamou. Entraram. Eva observava tudo ao seu redor, admirada. A caverna adentrava cada vez mais na terra, mais baixo e a temperatura aumentava a cada passo que davam. Pararam quando já estava um clima agradável, Lúcifer e Lilith cumprimentando diversos anjos caídos pelo caminho. Todos eles tinham as asas com as mesmas características penas negras das de Lúcifer.
A atmosfera era agradável, vários grupos conversando entre si. Lúcifer era claramente respeitado por todos lá. Nenhum parecendo ressentido por ter sido expulso do céu ou por terem perdido seus privilégios de anjo. Eva se perguntava o que realmente teria acontecido para Lúcifer e todos aqueles homens e mulheres terem caído. — Você parece estar cheia de perguntas por fazer. — Lúcifer comentou, sorrindo. — Tem razão. — Ela riu. Lilith juntou-se a um grupo, conversando animadamente, deixando os dois para trás e Lúcifer centrou sua atenção em Eva. Ela era uma mulher bonita, ruiva, como Lilith, mas pequena, ao contrário de sua antecessora e tinha curvas nos lugares certos. Curvas que estavam lhe tirando do sério há um bom tempo. Repreendeu-se mentalmente e forçou-se a prestar atenção no que ela perguntava. — Achei que anjos não tivessem sexo. — Ela murmurou, constrangida. Lúcifer riu. — Temos. — Disse — Somos quase como vocês, humanos. Apenas temos asas e somos um pouco mais resistentes. — E imortais. — Ela apontou. — Isso também. Mas não significa que não possamos morrer. Apenas que é um pouco mais difícil nos matar. — Disse. Eva assentiu, indicando que entendia, antes de perguntar, visivelmente incomodada. — O que aconteceu? — Pausou — Por que… por que caíram? — Nos desentendemos com Deus. — Ele respondeu, sem hesitar. Não parecia envergonhado ou incomodado em revelar o que tinha feito de errado. — Eu era bem… próximo dele. Ouvi-o contar seus planos para vocês, humanos. Estava animado, mas… eu não concordava com algumas coisas com as quais ele planejava. — Que coisas? — Ela instigou-o a continuar. — Principalmente, o mesmo motivo de você e Lilith terem se rebelado. Não acho justo que as mulheres sejam
consideradas inferiores. — Ele apontou para as várias “anjas” que estavam lá. — Olhe para elas. Não são nem um pouco inferiores a nenhum anjo macho que tenha conhecido. Mas Deus parecia estar certo de que as mulheres devem ser submissas e obedecerem a toda e qualquer ordem vinda de um homem. — Não o entendo. — Eva disse. Lúcifer assentiu. — Como ele parecia tão certo de que é pra ser assim, não quis discutir, mas aí… veio Gabriel, com a ideia de que ele deveria dar o livre arbítrio para vocês também. E Deus perguntou-me o que eu pensava disso. — Continuou — Bem, eu concordo com a ideia, mas… disse a ele que não daria certo. Que vocês não aceitariam se submeter. Ele não acreditou em mim. — Eva assentiu. Ele estava certo, depois de tudo. — E por isso… — Ela perguntou. — Não exatamente. — Ele riu. — Mas depois disso as diferenças nas nossas ideias ficaram mais evidentes. Eu não podia ficar apoiando, ou adorando alguém que pensa de uma forma tão diferente da minha. Só não pensei que ele seria… tão radical. — Oh. — Eva entendeu. — Entendo. — E entendia. Afinal, algo parecido lhe tinha acontecido há apenas algumas horas. Naquela hora, um dos anjos caídos entrou voando rapidamente na caverna. — Ajudem! — Ele exclamou. Lúcifer avançou rapidamente, junto de outros anjos. Eva e Lilith ficaram um pouco para trás, mas logo avistaram quem ele tinha trazido desacordado: Adão. Eva e Lilith saíram do meio da aglomeração, as duas surpresas. Lilith foi até uma pedra mais alta, onde sentou-se e Eva seguiu-a. — Adão! — Lilith sussurrou, a voz estrangulada. Eva nada disse, percebendo que a amiga ainda gostava do exmarido. Estranhamente, não sentia ciúmes. — Desculpe. — Murmurou Eva, depois de um tempo. — Não imaginei que ele viria atrás. Ou o que quer que tenha acontecido.
— Tudo bem, não é culpa sua. — Ela disse. — Eu achei que o tivesse esquecido. — Resmungou. Eva sorriu. — Você se importa? — Perguntou. — Não. — Eva murmurou. — Acho que deveria, mas… não. — Lilith assentiu. Adão estava desacordado, Azazel o tinha encontrado caído no chão. Por sorte, estava sobre uma montanha alta o bastante para que não tivesse sofrido danos fatais. Depois de tratado, Adão foi levado mais para dentro da caverna, para recuperar a temperatura corporal e descansar. Como era tarde e a noite já tinha caído, Lilith levou Eva para um lugar onde poderia descansar. Na mesma parte da caverna onde estava Adão havia várias camas de folhas, onde eles recostavam-se para descansar. Percebendo que estava exausta pelos acontecimentos do dia, Eva deitou-se e adormeceu.
Ela estava comendo uma maçã. Seu gosto era divino, melhor do que tinha imaginado em seus melhores sonhos. Doce, suculenta. O que nunca imaginaria era que comê-la poderia ser algo tão… erótico. Seu amante lhe estava oferecendo outro pedaço da fruta. Sem hesitar, Eva uniu sua boca à dele, roubando o pedaço que ele mordia. Suas línguas se entrelaçavam em meio à fruta, tornando tudo mais intenso. Mais delicioso. Mais pecaminoso. Logo, suas mãos passeavam pelo corpo dele, assim como as mãos dele passeavam pelo seu corpo, fazendo-a estremecer, excitada. Ele separou seus lábios dos dela e começou a descer, beijando seu pescoço e as carícias foram ficando mais ousadas. Eva pressionou seu corpo ao dele, querendo mais, ansiando por ele de um modo que nunca ansiara por Adão. Era errado, era pura luxúria, mas no momento ela não estava preocupada. Apenas deixou-se levar, como já estava virando rotina. Ele desceu ainda mais seus lábios, afastando a blusa que ela usava e alcançando seus seios. Ocupava-se de sugar seu mamilo esquerdo enquanto brincava com o direito, enviando correntes de prazer diretamente para seu sexo.
Eva acordou em um pulo, assustada. Tinha sonhado com ele de novo, quem quer que fosse. Sentia suas faces afogueadas e estava frustrada pela interrupção. O que a tinha acordado? Olhou para o lado e fechou os olhos novamente, constrangida: Lilith estava sentada sobre Adão, beijando-o ardentemente. Saiu de lá disfarçadamente para não atrapalhálos. Sentia-se feliz pelos dois. Não muito atrás, na caverna, Eva encontrou Lúcifer, sentado. Ele parecia frustrado com alguma coisa. — Tudo bem? — Ela perguntou, sentando-se ao seu lado. Ele virou-se para ela, como que esperando que ela dissesse alguma coisa. Então suspirou. — Sim, não se preocupe. ••• Assim, muitos anos se passaram. Adão acabou se conformando com uma esposa rebelde e voltou a ser oficialmente casado com Lilith. Eva continuou sonhando periodicamente com seu amante secreto, que não conseguia descobrir quem era. A Terra foi povoada com diversas espécies além dos animais que Deus já havia criado anteriormente: além de humanos, surgiram os vampiros, lobisomens, bruxas, fadas, duendes, elfos e uma diversidade incrível de criaturas espalhadas pelos quatro cantos. E quando suas vidas chegavam ao fim, seus espíritos iam para o céu, caso tivessem sido bons em vida. Do contrário, permaneciam a vagar pela Terra. Esse detalhe em específico estava atormentando Lúcifer. Ele sabia que os espíritos de pessoas más que ficavam na Terra continuavam a fazer maldades e prejudicar os bons. Porém, não sabia o que poderia fazer a respeito. Outros anjos se juntaram ao grupo também. Com o tempo, mais anjos caíram e Lúcifer não hesitou em acolhê-los. Alguns, entretanto, eram realmente malvados e ao perceberem que as histórias espalhadas sobre um Lúcifer diabólico e seu grupo de demônios eram apenas lendas tentaram formar a sua própria legião de demônios. Com o crescimento do número de
anjos maus, Lúcifer obrigou-se a terminar a exploração da caverna, para conhecer a sua real extensão. Para isso, ele precisou de tempo também. A partir de um certo ponto, a temperatura ficava muito alta para avançar sem se ferir. Casualmente, porém, ele encontrou um espírito de um piromante que não havia ido para o céu. Era um homem impaciente, teimoso e um pouco irritadiço, características que lhe causaram muitos problemas em sua vida. Com muita paciência, entretanto, Lúcifer tomou-o como discípulo e ensinou-o a controlar as suas emoções. E foi com a sua ajuda que terminou as explorações na caverna carinhosamente chamada de “Inferno”. Com o término das explorações, a preocupação com o crescimento no número de demônios voltou e Lúcifer começou a achar que prendê-los nas partes mais quentes do inferno não era uma ideia assim tão ruim. E com isso, veio a ideia de prender os espíritos mais cruéis lá também. E seu discípulo, Abramalech, tornou-se o guardião do inferno, encarregando-se do transporte dos novos espíritos. Os que não eram realmente maus, como Abramalech, passavam um tempo nas partes mais frias do Inferno, para se arrependerem de seus pecados e Lúcifer os deixava vagar livres novamente. Não muito depois, ficou sabendo que Deus os admitia no céu depois de libertos. Então, eles compreenderam por que tinham sido expulsos do céu: Deus precisava de alguém que cuidasse dos espíritos maus e provavelmente não confiaria tal trabalho a outros. Lúcifer não pôde deixar de sentir uma ponta de orgulho daquilo, junto de certa indignação: por que não lhe havia dito? Bem, ele com certeza tinha uma razão. Pensando, também acabaram chegando à conclusão de que Eva, Adão e Lilith também já não eram humanos, pois eles não envelheciam com o passar dos anos. Além disso, cada um deles ganhou uma função específica, a qual ninguém poderia fazer em seu lugar, ou ao menos não com a mesma eficiência. No entanto, mesmo com boa parte dos problemas que havia resolvida, Eva notava que Lúcifer parecia constantemente frustrado. Ela tinha lentamente se apaixonado por ele, mas não tinha coragem de se declarar, pois Lilith lhe dissera que ele
tinha uma amante secreta que ninguém conhecia. Aquele conhecimento lhe destroçava cada vez que pensava a respeito, mas simplesmente não conseguia forçar-se a mudar aquela situação e por isso buscava conforto nos braços de seu amante dos sonhos. E assim, vários séculos se passaram. Certa noite, Eva sonhava com seu amante. Ele parecia mais distante que o usual, entretanto, e ela estava preocupada, mesmo durante o sonho. Ele parecia querer que ela acordasse, por isso, mesmo Eva não querendo, acabou acordando lentamente e, ao abrir os olhos, encontrou Lúcifer em sua frente. — Lú-Lúcifer? — Ela gaguejou, completamente vermelha. Teria ela se masturbado enquanto dormia? Pior: teria ele visto tal coisa? — Bom dia, Eva. — Ele murmurou. — Precisamos conversar. — Eva assentiu, sentando-se e perguntando-se o que ele podia querer àquela hora da madrugada. — Fale. — Pediu depois que ele sentou-se ao seu lado. Lúcifer suspirou, pensando em como podia começar. — Lembra-se do primeiro dia? Quando você fugiu do Éden? — Ele perguntou. Ela fez que sim. — Eu lhe disse que a conhecia. — Eva assentiu, novamente, com a cabeça. — Você nunca se perguntou de onde? — Bem, eu… sempre supus que quis dizer que Lilith tinha comentado a meu respeito. — Ela disse. Lúcifer assentiu. — Mas não, não foi isso o que eu quis dizer. Claro, Lilith tinha falado das visitas que fazia ao Éden, mas eu a conhecia de outro lugar. — Ele explicou, esperando que ela entendesse. — Outro lugar? — Ela estranhou. — De onde? — Pense bem, doçura. — Ele enfatizou o apelido. — Você nunca me tinha visto antes? Eu não sou familiar para ti em nenhum sentido? — Ele encarou-a seriamente. Eva observou-o atentamente. Sim, ele parecera familiar, mesmo da primeira vez que o vira, embora nunca pôde recordar-se de onde o conhecia. Subitamente, lembrou-se do sonho daquela noite: seu amante estava vestido exatamente como Lúcifer estava. Mais que isso: ele também tinha as asas negras que ela achava tão…
sexy e reconfortantes ao mesmo tempo. Arregalou os olhos, compreendendo. Como podia ser tão cega?! — Você é…! — Ela exclamou, surpresa. Lúcifer não lhe deu tempo de digerir o que acabara de descobrir, entretanto: aproximou-se rapidamente e capturou seus lábios com os dele, furiosamente, desesperadamente. Com um suspiro, Eva abraçou-o, correspondendo com igual desespero. Esperavam por aquilo há séculos, afinal. — Eva, minha Eva… — Ele murmurou, cobrindo seu rosto de beijos. — Lúcifer… — Ela sussurrou, sua voz falhando. — Lúcifer, Lúcifer! — Puxou-o para mais perto, beijando-o novamente. — Te amo. — Eu também, doçura. — Ele sorriu. — Você me fez esperar tempo demais. — Resmungou. Eva riu. — Desculpe, querido. — Está desculpada. — Ele sussurrou, entre beijos. — Desde que passe o resto da eternidade comigo.
Mefist坦feles Esther Martins
E
la tinha nove anos quando aconteceu e confesso, leitor, que ela nunca mais foi a mesma. O pai havia se divorciado da m達e, a irm達 havia fugido de casa, as contas estavam altas demais para pagar. Quando ela completou dez anos, pediu para a sua m達e uma cadeira em miniatura e uma corda. Com a pouca altura, ela cabia perfeitamente na
cadeira. A mãe, curiosa, perguntou-lhe o porquê. Com um sorriso no rosto, ela disse: — Para acabar com a dor que eu estou sentindo, mamãe. A mãe, procurando psiquiatras e psicólogos públicos, estava desistindo de salvar sua filha. Os remédios eram caros demais para ela pagar. O tratamento era impossível. Meses depois, a depressão havia passado. Quando ela completou treze anos, pediu para a mãe uma faca bem afiada. A mãe, já indignada, perguntou-lhe o que havia de errado com ela. Com uma expressão triste, respondeu: — Você também me acha doente, não é, mamãe? A mãe, em pânico, não via saída. Anos se passaram e a garota seguia a vida normalmente. Todos os problemas haviam sido esquecidos. A mãe só tinha preocupações com o dinheiro. A filha servia de exemplo para todos. Mas um dia chegou. E nesse dia a casa pegou fogo. A garota, de dezoito anos, havia deixado um bilhete, o único que não fora queimado. "Diga a minha amiga que eu fiz o que ela pediu. Diga a ela, também, que eu sempre amei a sua companhia. Mesmo ela mandando-me pedir e fazer coisas." Com o estudo do corpo, foi descoberto que a garota se automutilava. E ela simplesmente não tinha amigos.
Fé Nathalia Nobre
Ela acreditava nas coisas. Na cor de rosa, no azul, nas bobagens juvenis deixadas de lado quando se chega a hora de ser mulher. Ela acreditava, porque queria ver a beleza das coisas vivas; porque para ela a vida é a maior das magias; a grande obra de arte que gerou sua própria arte, e tantas artes que seria impossível contar. Porque qualquer coisa e nada podem ser colocados em palavras, e ainda assim ser infinitos para qualquer um que o olhe. Qualquer um que, assim como ela, deseje acreditar.
A Luz da Noite Majestosa Geraldo Gomes
A
escuridão da noite era tão palpável que tudo que se podia ver era o negro devastador sobre o solo. Árvores e montanhas misturavam-se sob a penumbra do teto celeste, com o manto da noite cujo céu era salpicado por estrelas cintilantes. Todos os dias, a todo o momento. Não havia dia, não havia claridade. Não havia Sol, tampouco
seu calor. Havia apenas o sereno que pairava no anoitecer eterno daquelas terras. Tamanha era a escuridão que poucos eram os territórios habitados pelos homens, pois esses temiam a maldição das trevas infinitas. Assim, aquele mundo parecia solitário, sem pessoas para importunar a natureza ou importunar uns aos outros. Tinha a quietude devastadora de um verdadeiro paraíso, embora o silêncio perturbador fizesse com que o local parecesse mais o purgatório. Entretanto, longe, onde cruza uma das barreiras do mundo, algo parecia chamar a atenção da noite. Algo estranho e raro, que a Noite contemplava com olhar cuidadoso, minucioso. E pouco tempo após o fato, Ela começou não só a ver, mas a escutar tanto quanto. E subitamente sussurrou para o mundo: “Acorde!”. Em uma pequena estrada de terra próxima à barreira de uma dimensão inferior, a figura de uma criança lentamente aparecia. Esta, que a princípio parecia estar dormindo, despertou. Despertou quieta, calma. Abriu seus olhos quando um vento frio roçou nas suas orelhas desprotegidas pela capa e pelos cabelos. Ah, os cabelos... Tão claros quanto o brilho vivo das estrelas! E desciam escorrendo pela face da criança, desenhando o contorno do seu rosto. Havia, ao seu lado, algo que irritou a noite: um lampião aceso que queimava em um triste tom de amarelo. A Noite soprou para apagar a chama que o mantinha aceso, mas este era protegido por um vidro, assim era inalcançável. Mesmo irada, conteve-se quando a criança pôs-se de pé: era uma menina. Linda e graciosa, feita de porcelana e esculpida pelas mãos dos anjos. Levantou-se calmamente, tomando o lampião tombado no chão em suas pequenas mãos. “Onde será que estou?”, pensou a criança. — Livy, minha irmã, onde estás? — ela chamou na escuridão, mas sua voz ecoou nas árvores; sua voz fez soar as rochas das planícies distantes, onde descansavam as feras. O mundo jamais ouvira coisa como essa, além do sopro do vento, a cantoria da noite. Ela (a Noite) escutou o choro da criança e viu de seus olhos lágrimas caírem. Oh, a noite se encantou pelo
som expelido pela menina. Tão doce e suave era a voz da criança que fez a noite suprema estremecer, produzindo, lá longe, trovões e relâmpagos que não podiam ser escutados ou vistos por ninguém senão as criaturas que habitavam os pântanos ou os desertos rochosos. Sem resposta, a criança iniciou sua caminhada pela estrada de terra. Seus pequenos pés andavam cuidadosamente, ao mesmo tempo em que, com uma das mãos, ela carregava o lampião para lhe iluminar a fronte. Não sabia onde estava ou aonde ir. Estava com medo do escuro e por isso seus olhos refletiam o temor. Estava apavorada, pois além da escuridão, o silêncio era perpétuo — exceto quando a Noite cantava e soprava no vento a sua melodia, mas isso não ocorria naqueles poucos instantes em que a menina estava ali. Andou e andou, pé ante pé. Até o momento em que repentinamente ouviu uma vozinha que vinha da escuridão entre as árvores negras: “Para onde está indo?”. Ela, mais assustada ainda, gemeu: — Estou procurando por minha irmã. — Tens certeza de que é esse o caminho a seguir? — seguiu a voz. — Não. — respondeu a menina, titubeante. — Honestamente, não sei onde estou ou para onde ir. — Então terás uma jornada desconhecida, é decerto! — a voz decretou. Ao mesmo tempo em que temia o pior, a criança tinha curiosidade em saber a quem pertencia àquela voz. Não lhe vinha à mente ser de uma má alma, levando em consideração o seu timbre sereno e sua linguagem. — Por favor, revele-se da noite, voz que comigo conversa. Não temas a mim, pois não sou nada além de uma criança perdida — disse a menina com toda a reverência. A Noite observava àqueles que interrompiam sua quietude. Ora, que petulância! Nada poderia ter a capacidade de zunir e quebrar o silêncio angustiante do anoitecer. Que banhava em sono a terra, e suas criaturas selvagens acalmava. Porém, a badalada da voz de uma criança fez a eternidade se romper, fazendo desgostosa a Noite.
Da penumbra entre as árvores escuras, surgiu um pequeno iluminar, apenas um pontinho em meio a toda a escuridão. O que era que desafiava a natureza com luz? Quem trazia consigo o brilho para o luto da noite matar? O ponto amarelo de luz se aproximava vagarosamente até diante dos olhos vibrantes da criança. E logo ela viu que não passava de um simples vaga-lume. Tão pequeno e frágil, porém, com um invejável dom de acender-se em meio a toda aquela treva. — Posso te acompanhar? — o vaga-lume indagou, pousando no ombro da menina, que acenou num movimento positivo. — Que veio fazer aqui, nesse lugar? — perguntou após a resposta silenciosa da criança. — Não sei — ela respondeu. — Não lembro o que aconteceu a mim antes de acordar aqui; sei apenas que estava junto à minha irmã, Livy. Não viu uma moça andando à minha procura por ai? — Claro que não, pois não há outros como você por aqui. E aqueles pouquíssimos que existem vivem na quietude. Aqui a noite impera soberana, e não se é permitido perturbar o seu silêncio. — disse o vaga-lume. — Nessas terras noturnas, somente os animais e criaturas da noite podem viver, pois é de nossa essência. A senhora Noite observava tudo com olhos secos, escutando os ruídos que quebravam os seus acordes e faziam as ondas nos oceanos se agitarem. Todo o mundo parecia reclamar sobre o barulho que não provinha da Majestade Celeste. A Rainha que vela a Terra com sua própria vontade, pois é dela o véu que a envolve. — Queria tanto voltar para casa — a criança suspirou choramingando. — Quais os motivos que te impedem de fazê-lo? — o vaga-lume quis saber. — Eu não posso fazer isso! — a menina balbuciou. — Por que não? — o vaga-lume enfatizou. — Ora, porque não consigo fazer isso! — Mas é claro que consegue! — respondeu, finalmente, o vaga-lume. — Consegue fazer tudo o que quiser. Só não o faz
porque, de tanto dizer que não consegue, convenceu a si mesma disso. E então a criança se calou, triste. Sua mão já começava a ficar cansada de segurar o lampião, e por isso alternou. Ao mesmo tempo em que trocava de mãos, notou que em um momento instantâneo, um singelo brilho revelou-se na escuridão. A menina espantou-se, erguendo o braço para averiguar o que seria e, para a sua curiosidade, parecia algo como uma poça d’água. Esta, límpida, refletia em sua rasa superfície a luz amarelada do lampião. — Será que dessa água posso beber? — questionou-se a menina. — Não haveria mal algum em experimentar, pois nada há para se preocupar se for apenas água. — respondeu o vagalume. Porém, antes que a criança pudesse descansar o lampião ao lado da poça e levar as suas mãos a ela para apanhar um pouco de sua água, algo lhe ocorreu. Uma brisa fresca fez pequenas ondas na água e de súbito uma voz melodiosa surgiu do vento, e dizia: “Bebas o quanto quiseres, filha da terra. Este é um presente que lhe ofereço por visitares a minha terra, por alegrar os mares e acordar os animais de seus sonos de desprezo.”. Foi tão repentino que um arrepio passeou por todo o corpo da criança, e foi só depois que ela tomou um pouco da água e levou à boca. Tinha o gosto do mais suculento suco da mais fresca fruta matinal, ainda orvalhada. Desceu a garganta como a cascata de um rio plácido e alimentou a alma da criança com um punhado de paz, transformando o medo em sabor. E quão delicioso era o gosto do medo após convertido! Iluminou-a por dentro, como fazem os pássaros que ainda presos em gaiolas cantam suas canções — o brilho contém-se somente no interior. E após deleitar-se com a água saborosa, novamente a voz vinda do vento roçou em seus ouvidos: “Agora siga tua viagem e deixe-me cantar sossegada; vá embora e carregue consigo seus ruídos. Tudo o que desejo ouvir são meus próprios cânticos.” dessa vez a voz soou arrogante, imponente, mas a menina não
tinha medo, embora soubesse e sentisse que seu tempo naquele lugar já deveria ter findado. Pôs-se a andar novamente, trilhando a estrada desconhecida. Forçava-se a lembrar do que a trouxe até ali, mas nada parecia claro. Havia apenas um fulgor esbranquiçado repentino e mais nada. Não havia rostos, não havia som, apenas uma luz clara, tão forte que chegava a lhe prejudicar a vista — era sorte que isso não tenha durado por muito tempo, pois nesse momento poderia estar cega pela claridade. Assim como a escuridão, a luz também pode cegar. — Oh, Livy deve estar deveras preocupada! — a menina chiou para o vaga-lume. — És mesmo muito teimosa e aparenta não ter receio... Que ousadia! Depois do alerta da noite, eu não abriria minha minúscula boca para nada! O vaga-lume tinha razão em seu ponto de vista. Desafiar a Noite era como desobedecer a um rei, um imperador, um líder supremo. E ela, lá de cima, ouviu novamente a voz da menina. “Como tem a audácia de interromper o meu silêncio mesmo eu já tendo avisado que somente eu posso soar minha voz pelo infinito?” ela refletia furiosa. Os mares, ao longe, começavam a chacoalhar, crescendo metros de altura e quebrando em ondas violentas; o vento, em outras planícies, chegava a ser tão forte que varria as árvores como foices a ceifar uma lavoura. Tudo acontecia num lugar distante do que a menina estava, inexplicavelmente. A Noite, em sua fúria, fez chover, trovejar, relampejar, a terra tremer, o mar se agitar, os monstros despertarem, os homens se assustarem. Mas a menina simplesmente caminhava na escuridão, confiando em seu lampião para afastar o breu. Pensava em sua irmã, e lembrou de uma canção de ninar que ela costumava lhe cantar à cama: “Deite-se ao meu lado, Espírito da Paz Para que o sono me traga um sonho Onde eu sorria sem medo sob um sabugueiro Cantando uma canção e sentindo o cheiro do lilás.”
A criança iniciou sua cantoria, a voz tão macia e tão doce quanto o toque de uma harpa e uma sinfonia de liras. O canto da menina ecoava nos ventos que o transportava para as terras mais distantes, onde fazia com que toda a fúria da noite, em terra, se acalmasse. “Voar no céu e abraçar as nuvens Correr nos prados e tocar a relva É tudo o que eu quero fazer Num sonho onde tudo pode acontecer.” A menina seguiu cantante até avistar, há vários passos de distância, algo que lhe chamou atenção: um grande e profundo abismo, espesso de tal forma que a criança não poderia atravessar. Dentro dele, queimava sem cessar uma chama verde. Uma chama fria, que espantava, trazia um sentimento de tristeza, mágoa, dor. Um fogo que fazia as batidas do coração mais apertadas, mais demoradas, mais sofridas. E ele não parava de queimar. Lá, a noite não atingia: era apenas um grande abismo que brilhava num verde frio. A garotinha, ainda que não sentisse medo, ficou assustada e por isso parou de cantar. A sua voz, que fez com que a Noite se acalmasse, cessou. E, nesse momento, um estrondo maior corrompeu os céus. A Rainha Noturna havia se encantado pelo cântico da menina, mais do que seu próprio cântico. Como poderia haver na terra uma mortal com dom tão belo que ultrapassa o de uma deusa? A beleza, a grandiosidade, a magia, a fantasia, tudo era hipnotizador. A menina, mesmo sentindo-se mal por estar perto do fogo, se pôs nas pontas dos dedos para admirar o que lá embaixo havia. À primeira vista, nada conseguiu identificar senão fogo e mais fogo, por isso cerrou os olhos, e lá estava a imagem que precisava para acalentar seu pequeno coração: sua irmã. Mas ela chorava e em suas mãos parecia haver vestígios de sangue. O que poderia ter acontecido? Tudo passava em sua pequena cabecinha como um vulto negro. Nada parecia fazer sentido.
— Livy! — guinchou e jogou seu pequeno e frágil corpo para frente, como se quisesse pular. — Ora, não faça isso! A noite te castigará por tamanha petulância! — o vaga-lume disse covardemente. A Noite esperou para que a menina continuasse a cantar, mas sabendo que isso não iria acontecer, fez o que não havia feito há milênios: no céu um único relâmpago desceu, e junto com este vinha uma imagem extraordinária: uma figura feminina, vestida com um vestido que se camuflava no céu noturno. Nele, as estrelas serviam de lantejoulas e cintilavam seu brilho sem parar. Vestia, na cabeça, um véu negro, adornado por uma exuberante coroa de mil diamantes e ao centro um rubi majestoso se fazia imponente. Vinha em voo suave, flutuando no ar como um pássaro que se apoia no vento para planar. Tinha a graciosidade de uma dama da mais nobre classe e a beleza da musa mais bela, indescritível, incomensurável! O corpo muito pálido era incrustado com minúsculas estrelas, que lhe faziam iluminar como se brilho próprio tivesse e os seus olhos, dilatados e serenos, eram de uma negritude devastadora. A criança olhou para o céu, espantada com tamanha formosura, encantada com aquela aparição divina. Tão surpresa ficou que não se deu conta de que a Senhora Noite planou a sua frente, mas não tocou o solo. Ela admirou a menina por algum tempo e só então exclamou: — O que vês, criança? Lá em baixo, o que é que te atiça a pular? O vaga-lume apagou sua luz, temendo que a Noite pensasse que ele estaria competindo seu brilho com o dela. A menina boquiaberta ficou quando ouviu a voz da deusa da noite, mas esforçou-se para responder. — Avistei minha irmã lá embaixo! Queria tanto estar de junto dela neste momento! — Fazemos um acordo: devolvo-te à tua irmã, mas em troca me entregarás a tua voz! A barganha da Noite fez a menina pensar, mas ao olhar em seus olhos, a resposta veio imediatamente: Eu aceito!
A Senhora Noite lhe estendeu uma mão, brilhosa e alva, cândida como a mais cheia lua (embora não existisse uma lua naquele lugar), e a menina, hipnotizada pelos negros olhos da noite, a tocou. Um arrepio quente formigou durante o corpo da criança e esta sentiu sua garganta fervilhar: sua voz estava sendo drenada pela Noite. Um vento sinistro fez com que a luz do lampião se apagasse, mesmo que esse estivesse protegido por um escudo de vidro. O vaga-lume não se atreveu a falar nada, apenas continuou repousando no ombro da garotinha. A Deusa se postava ereta, de queixo erguido e com um ar majestoso. — Agora salte do abismo e encontrará sua irmã! — ordenou. A menina não sentia medo. Pôs-se de costas para a Rainha da Noite para admirar quão fundo era o abismo, com os olhos aflitos. Quando ia virar mais uma vez para a Senhora, ela a advertiu: Não olhe para trás! Baixou a cabeça, fechou os olhos e se lançou nas chamas verdes. Aquelas mesmas flamas agonizantes e cheias de sentimentos de desespero. O vaga-lume alçou voo momentos antes dela se jogar no abismo. Quando abriu os olhos novamente, que foi a segundos depois, se encontrava ao lado da sua irmã, como a viu da outra vez, porém a visão era mais aterradora do que se lembrava que fosse: Livy estava sentada no canto de sua pequena cabana, onde morava sozinha com sua pequena irmã. Estava ensanguentada e com um furo em seu coração, como se atingida por uma lança ou espada. Seu coração foi perfurado e o sangue corrompeu sua carne. A menina se debruçou sobre o corpo de sua irmã, chorando tristemente. Um choro sem ruído, apenas lágrimas e caretas. Encostou sua cabeça no peito ensanguentado de Livy, esperando que seu coração ainda batesse, vibrando em sua esperança. Mas o som que vinha de sua mente não a deixava escutar, era deveras perturbador. E, por um breve minuto, ela ouviu, por uma última vez, a voz de sua irmã antes que ela morresse: Fuja, irmãzinha!
Olhou para Livy com olhos esbugalhados e o medo começava a voltar ao seu corpo. “Fugir para onde e por quê?” pensou. Não tinha para onde ir. Seu único lar era sua irmã, e agora ela estava morta. Queria gritar seu nome, mas não tinha mais voz, e por isso apenas balbuciava. Por fim, ouviu passos do lado de fora da cabana e não se moveu, paralisada, apenas esperando pelo o pior. E era o pior: um bárbaro andou em sua direção, calmamente, sabendo que a criança não poderia fugir. Sorria friamente, decretando a morte da menina e esta, nada fazia, o medo a havia paralisado. Apenas seus olhos azuis brilhavam diante de todo aquele terror, pois neles era refletido o aço da espada do homem que lhe decepou a cabeça. Lá no fundo dos olhos da menina, uma figura se postava em pé. Vestia uma túnica negra que se movia suavemente, com gestos calmos como se imerso no fundo do oceano: era a Deusa da Noite cantando sua canção de ninar. Naquela noite, a aldeia em que Livy e sua irmã moravam fora atacada por bárbaros. A criança dormia quando Livy a mandou para outro lugar qualquer, tentando apenas protegê-la, pois sabia que se a menina ficasse ali, seria morta. Todo o esforço de Livy foi em vão.
Encantada Esther Martins
ada acontece por acaso. Prova disso são os encontros e desencontros da vida. Nesses felizes encontros, eu achei a fonte da minha vida - meu amor. Ele não tinha defeitos. E para ele, eu não tinha defeitos. Ele era tudo o que eu precisava. Mas não era bom. Os defeitos, que eram invisíveis para mim, estavam de cara para os outros. Eu nunca saberia que morava em uma cidade onde existiam Nefilins, Bruxas, Vampiros e mestiços de todas as espécies. Eu também nunca saberia, nunca imaginaria, que me apaixonaria por um. E que esse sentimento, aparentemente, era recíproco. Eu me enganei e me deixei levar. Quando vi, já estava encantada por ele. Não conseguia comer sem rir por causa dele, não conseguia dormir por ser sua única - e segundo ele - eterna companhia, não conseguia sorrir para outras pessoas, pois eu pertencia a ele. Eu era, de todas as formas, maneiras e jeitos, dele. Se eu sorria, era por ele. Se eu chorava, era por ele. Mas ele estava faminto. Uma fome que percorrera seu corpo durante os meses que estive com ele, que atravessava as noites, que cuidava para
N
que ele não machucasse ninguém - oferecia-me para ele, mas não o deixava machucar ninguém -, a fome jamais era saciada. Ele não procurava o amor, mas eu não sabia disso. Ele queria sexo e sangue. Todas as noites. Ele não se importava em se esconder, em fingir. Havia uma máscara em seu rosto e em seu coração. Seus atos eram claramente armados dias antes. Ele nunca errava; ele nunca havia sido recusado. Era um mestre em disfarces. Ele não tinha sentimentos. Sua vida era guardada à sete chaves. Ele era um vampiro de mais de setecentos anos. Era o favorito, o Rei. Era poderoso, determinado, elegante e másculo. Olhos encantadores, um sorriso digno de um anjo. Ele era a sedução em pessoa. Em seu coração imortal não havia mais bondade - em um piscar de olhos, a apaixonada, via um cruel predador, um devasso completo. O seu sarcasmo beiravam a realeza. Havia em seus olhos e gestos um convite para mulheres; não sentia remorso em deixá-las nuas e mortas pelas ruas. Eu era cega aos seus pecados. Quando ele queria, eu cedia. Nós dois estávamos na sala. A madrugada já estava indo embora. Haviamos brigado. E, pela a primeira vez, tive medo. Senti um frio na barriga, tremi. Sabia que se corresse, ele me mataria. E se continuasse ali, também. E assim aconteceu. Quando o vampiro sentiu que faltava pouco para o amanhecer três ou quatro horas -, ele me mordeu. O sangue fluía; uma vida se doando para outra. Uma vida superior, uma vida que não tinha limites. Não consegui lutar contra. Não consegui negar. Eu era toda sua. Meu coração pertencia a ele, assim como meu corpo e sangue. A minha alma estava ligada a dele. E eu morria, lentamente, com um sussurro de "eu te amo" nos lábios. O vampiro sorvia o sangue como o mais doce vinho. Meu corpo estava mole e era segurado facilmente. A escuridão vinha buscar-me. Eu estava indo para o nada. Saindo da realidade. Morri. Mas morri feliz por estar servindo ao meu mestre. Ao meu amor.
Córrego de Lembranças Vittoria Cunha
ony, por que você arranca as ervas daninhas do solo, mas nunca as tira de dentro do canteiro? — Porque quan-
do estão enraizadas elas roubam a comida e a água das flores. Mas quando estão sobre o solo, ajudam as flores a crescerem mais fortes e bonitas. — Acho que entendi. Jardineiro daquele castelo há quase vinte anos, Anthony conhecia os canteiros que rodeavam a antiga construção como a palma de sua mão. Sarah muito se interessava pelo trabalho do jardineiro, principalmente quando precisa escapar das aulas de caligrafia. Seu irmão mais velho, Allen, era o primeiro na cadeia sucessória de Odarin, de modo que ela não via necessidade de melhorar sua caligrafia ou aprender história. Em seu raciocínio simplificado como só uma garota de oito anos poderia ter, desde que mantivesse os bons modos à mesa seria livre para fazer o que bem entendesse. — Tony, por que você não ensinou Elliot a cuidar das flores do castelo? — Porque para ser um bom jardineiro é necessário delicadeza e paciência. — Definitivamente, duas qualidades que ele não detém. Mas então por que ele passa o dia inteiro com o velho Earnshaw? — Earnshaw não é tão jovem como um dia foi. Cuidar dos cavalos acabou se tornando um trabalho muito pesado para ele realizar sozinho. Quando soube que ele estava procurando por um ajudante, Elliot logo se ofereceu para o trabalho. Sarah se calou por um momento, pensando no que havia ouvido. Fisicamente, o velho Earnshaw aparentava beirar os cinquenta anos. Desde que o conheceu conseguia se lembrar de seu rosto duro e mãos grandes e fortes. Mas se parasse para refletir, desde que seu irmão nascera ele já era conhecido como ‘velho’ então era bem capaz daquela informação ser verdadeira. Ela já se preparava para formular outra pergunta, uma vez que a curiosidade da menina era insaciável. Entretanto, ela não ousou abrir a boca quando ouviu seu nome ser exclamado à distância. — Sarah, apareça! Não pense que pode fugir para sempre!
A alguns metros de distância, as portas do hall do castelo se abriram revelando uma Evangeline furiosa em sua busca. Com passos rápidos e precisos, ela enveredou pelo caminho de pedra de cobria toda a área do jardim. Em poucos minutos ela chegaria ao local onde Sarah e Anthony se encontravam. — Parece que Evangeline encontrou você — Anthony afirmou sem interromper seu trabalho, rindo consigo mesmo daquela situação. — Tenho que ir. Mas não esqueça, se ela perguntar, você não me viu aqui. Dito aquilo, a garota correu o mais rápido que conseguia. Em poucos minutos havia saído do jardim principal e atravessado a pequena campina, não tardando a chegar aos estábulos. Adentrou no longo estábulo, mas mesmo checando todas as baias não encontrou quem procurava. Do lado de fora, Barão a encarava com interesse. Os grandes olhos negros quase se misturavam com a pelagem do animal, tão escura quanto. O cavalo seria completamente negro, se não fosse o pequeno losango branco que havia entre seus olhos. Naquele momento, estava usando somente uma corda como guia, que estava presa a uma estaca de madeira. Ao se aproximar mais e contornar o belo animal, pôde ver quem tanto procurava. De pé sobre um cavalete, Elliot escovava o pelo macio e brilhante do animal. Barão era conhecido por ser o cavalo mais arisco do castelo, mas mesmo ele se assemelhava a um cachorro manso quando estava perto de Elliot. O garoto tinha uma habilidade para transmitir aos animais a sensação de calmaria que era extremamente útil ao velho Earnshaw. Sarah se aproximou mais um pouco de ambos. Aquilo fez com que Barão batesse o casco com força no chão algumas vezes e balançasse o pescoço para frente e para trás, mas um breve sussurro próximo a sua orelha fez com que o animal voltasse ao estado de calmaria anterior. — O que está fazendo Elliot? — ela perguntou ao se aproximar do rapaz. — O velho Earnshaw pediu que eu retirasse os cavalos da baia e lhes desse um banho antes que o outono acabe.
Também é uma das últimas oportunidades para que eles fiquem um pouco expostos ao sol antes do inverno começar. A jovem princesa assentiu com a cabeça. Apesar de estarem no meio do outono, ainda não estava tão frio, pelo menos não durante o dia e, naquele dia específico, foram agraciados com nuvens finas o suficiente para permitir um banho de sol. Terminado o serviço, Elliot desceu do cavalete e levou o cavalo de volta para sua baia, lembrando-se de trocar a água e repor o feno. — O Barão é bem alto, não é? — a menina observou enquanto se pendurava no portão de ferro que separava a baia do cavalo do corredor. — Mais ou menos. Ele é bem alto para um Quarto de Milha, mas Ourives é bem maior,já que ele é um Árabe. — Pode até ser, mas Ourives mais parece uma criança pequena que um cavalo! Ambos começaram a rir, afinal, aquilo era bem verdade. Ourives era o maior cavalo que havia no naquele castelo, embora não pudesse ser considerado o melhor em nada. Não servia para o trabalho com as ovelhas, pois ao invés de guiá-las, punha-se a correr entre as mesmas, dispersando o grupo e causando problemas ao velho Earnshaw. Não servia para as pequenas plantações que havia nos fundos do castelo, uma vez que não tinha força suficiente para puxar o arado, causando novamente problemas ao velho Earnshaw. Também não servia para transporte, pois quase sempre que lhe colocavam uma cela nas costas, Ourives rolava pelo gramado como um gato manhoso, causando, mais uma vez, problemas ao velho Earnshaw. Acabou sendo decidido por unanimidade que o cavalo não servia para trabalhar e o mais certo seria deixá-lo quieto até que se fizesse a necessidade de cruzá-lo com uma égua Árabe. Apesar de todos os reveses, era um belo animal. Ambos acabaram por sair de dentro do estábulo e se sentaram sobre o feno que estava empilhado do lado de fora. Sarah muito apreciava a companhia do rapaz, que era apenas dois anos mais velho que ela. Era bom conversar com Anthony e nem sempre conseguia escapar das intermináveis lições de
Evangeline, mas ter alguém com quem conversar trivialidades era reconfortante. — Sarah, você não vai acreditar no que descobri hoje pela manhã! — O que? Conte-me! Vamos, não faça cerimônia. — O velho Earnshaw me pediu para ir até o mercado para encomendar um novo carregamento de feno. Quando estava voltando, resolvi optar por um caminho um pouco mais longo. Você sabe, relaxar um pouco. — Diga logo aonde quer chegar! — Calma! Enfim, como eu disse, escolhi um caminho maior e acabei encontrando um córrego. Tentei acompanhá-lo, mas estava todo escondido entre umas árvores estranhas e não tinha como passar por ele. — De jeito nenhum? — Bom, a pé, talvez, mas... — Nesse caso, o que me diz irmos lá explorar? Elliot a encarou espantado. Apenas queria comentar a existência de um córrego que ele nunca havia visto, mas Sarah parecia empolgada com a ideia de explorar o local e seus olhos castanhos brilhavam de antecipação. Se se recusasse a ir com ela, a jovem princesa ficaria arrasada. Ou então, seria capaz de explorá-lo sozinha, o que seria infinitamente pior. Diante daquilo, não podia negar o pedido a garota. Antes que pudesse dar uma resposta, o velho Earnshaw passou pela campina e ao ver rapaz sentado sem fazer absolutamente nada, não tardou para começar a assobiar com força, chamando-o de volta para o serviço. Elliot se levantou com rapidez e já ia em direção do velho tratador, quando fora impedido por Sarah. A menina segurava o punho de sua camisa com força. — Você vai comigo, não vai Elliot? — Vou, mas agora tenho que ir, Earnshaw está me chamando. Esteja aqui no estábulo depois do jantar. Dito aquilo, o garoto pôs-se a correr até atravessar a campina. Earnshaw andava rapidamente, saraivando o rapaz com reclamações e mais trabalho a ser feito. No entanto, parou subitamente quando se virou para ele e certificar se havia entendido tudo.
— Não acredito que você vai ficar doente logo no começo do inverno, justo quando mais preciso de você. — Eu não vou ficar doente. — Assim espero. Mas vou avisando, se começar a espirrar, fique bem longe dos meus cavalos! — Já disse que não vou ficar doente! De onde tirou isso? — Já se viu no espelho hoje? Seu rosto está mais vermelho que uma maçã. ••• A noite estava fria e o vento forte não ajudava em nada aquele que ousasse sair de casa. Elliot esperava Sarah já fazia um quarto de hora e nem sinal da garota. Naquele momento ele estava sentado sobre a portinhola de ferro da baia de Ourives, com as pernas para dentro da mesma, numa tentativa de se proteger do frio. Ourives cutucava seu estômago insistentemente com o focinho e por vezes teve que se segurar com força para que não caísse para trás. Quando Sarah finalmente chegou ao estábulo, vestia seu melhor casaco e estava com o cabelo impecável. – Aonde pensa que vai desse jeito? A um baile? – Não, seu bobo. É que Evangeline disse que Allen e Jacques estão chegando hoje à noite, por isso tenho que estar bonita para recebê-los e... – as palavras morreram em sua bota e ela virou o rosto para fitar um ponto qualquer na parede. — E você quer desistir. — O que? Não! — Quer sim, Sarah. Está escrito na sua testa. É claro que você prefere ficar no castelo, perto de uma lareira quente com o seu irmão do que ir explorar um córrego durante a noite, principalmente num frio desses. — Não é isso! É só que... O Allen está sempre trabalhando com papai ou fica dias longe, na casa de Jacques e raramente tem tempo pra ficar comigo então eu só queria aproveitar e ficar um pouco com ele. — E por que você não faz isso? Não precisa se obrigar a vir comigo.
A menina precisou de um minuto antes de tomar sua decisão. Olhou para Ourives, como se o cavalo de pelo dourado fosse lhe dizer a solução para seu dilema. O animal relinchou, balançou o pescoço, bateu casco no chão e só então ela parecia resolvida sobre o que deveria fazer. — Vamos! Se formos depressa, talvez eu consiga estar de volta antes de Allen chegar. Sarah realmente parecia resoluta em sua decisão. Elliot seguiu até o fundo do estábulo, abrindo uma das últimas portinholas e retirando um cavalo de dentro da baia. Argos já estava selado e, apesar do frio, parecia animado para uma caminhada. Primeiramente, Elliot ajudou Sarah a montar no cavalo e em seguida, subiu ele mesmo. Argos trotava rapidamente e da forma mais silenciosa possível. Felizmente, o céu estava sem nuvens e a Lua tão cheia quanto possível, iluminando o caminho para os dois jovens aventureiros. Logo chegaram ao local. Na verdade, não seria difícil encontrá-lo, pois a água do pequeno córrego era cristalina e parecia brilhar sob a luz da lua. Olhando a oeste, podia-se notar que sua nascente deveria ser deveras distante, pois ele atravessava a muralha, por uma pequena grade instalada no meio do muro de pedra que contornava toda a região do castelo. Ao leste, ele seguia por um caminho irregular, a princípio no meio da campina, mas logo adentrava por um espaço coberto de arbustos e árvores pequenas. Eles seguiram o córrego até onde era possível. Quando as árvores começaram a ficar muito próximas umas das outras para que o cavalo pudesse caminhar, Elliot temeu que os arbustos machucassem as patas de Argos e preferiu amarrá-lo a uma árvore para que prosseguissem a pé. O local parecia tão iluminado que dispensava o uso da lamparina, mas Elliot resolveu levava consigo, apenas por precaução. As árvores não eram muito altas. Algumas tinham o tronco bem reto, com flores brancas, semelhantes a lírios, porém menores e mais bonitas, despencando de seus galhos. Já outras tinham o tronco bem retorcido sobre si, portando as mesmas flores brancas, que aparentavam emanar uma luz própria. Os
vagalumes estavam dispersos naquele espaço, mas a maioria deles se mantinha bem próximo da água do córrego. Ambos estavam maravilhados com a impressão daquele lugar. Nunca haviam visto nada tão bonito antes. Esqueceramse até mesmo do frio que fazia ou de quaisquer compromissos que pudessem ter. Depois de caminharem por um tempo indefinido, do qual não se deram conta tamanha era a beleza do local, eles acharam uma pequena ponte, no formato de um arco, que ligava os dois lados do córrego. Sarah foi a primeira que correu em direção a ponte e parou no meio desta para olhar ao seu redor, admirando ainda mais o local. Os vagalumes logo se aproximaram deles. Sarah estendeu a mão para tocar em um deles. De perto, não pareciam com vagalumes. Eram coisas pequenas que emanavam um brilho dourado, mas toda vez que tentava tocar em uma dessas criaturinhas, elas se desfaziam em dezenas de pontinhos dourados menores, antes de se reorganizarem no tamanho original e voarem para longe. — Isso são... Fadas? — Sarah perguntou ao garoto, mas não obteve resposta. Normalmente teria virado para o rapaz para checar o porquê do silêncio de Elliot, mas algo no córrego chamou-lhe a atenção. Uma pequena balsa vinha navegando lentamente, sem condutor, sendo guiada apenas pela correnteza do rio. A princípio pensou que a mesma estivesse vazia, mas à medida que foi se aproximando notou a presença de alguém. Sentada no meio da balsa, havia uma moça, ou pelo menos aparentava ser uma jovem moça. Usava um vestido azul, com diversos detalhes em branco e vermelho. O cabelo negro escorria sobre o rosto extremamente pálido. Sarah estava hipnotizada pela visão que possuía. Tinha quase certeza que já havia visto aquela mulher em algum lugar, mas por mais que se esforçasse, não conseguia lembrar-se aonde havia visto aquela mulher extremamente bela. De dentro da balsa, a mulher levantou o rosto e sorriu para a menina. Em seguida, ergueu a mão esquerda na direção de Sarah. — Não se lembra mais de mim, minha menina? — a voz da mulher era tão bonita quanto sua aparência e à medida que
proferia as palavras, que mais soavam como uma melodia, mais Sarah parecia se recordar daquele rosto que deveria-lhe ser muito familiar. — Você... Mamãe? — a garota interrogou, incerta daquilo. O sorriso da mulher tornou-se maior e ela estendeu a mão um pouco mais alto. — Finalmente nos encontramos, minha menina. Ah, temos tanto que conversar! Foram oito anos perdidos, mas não tem problema. Afinal, estamos juntas agora, não é minha menina? Sarah apertou o apoio da ponte com força. Estava estática. Era sua mãe, ali, bem a sua frente, ao alcance de sua mão. Quantas vezes não desejou tê-la conhecido? Quantas vezes não quis descobrir como era o toque de sua mãe e agora ela estava ali, tão perto de seus olhos e de seus dedos. Involuntariamente, Sarah esticou a mão, mas era demasiadamente pequena e não alcançou sua mãe. Tentou ficar na ponta dos pés e se esticar o máximo que pode, mas ela ainda lhe parecia tão distante. — Venha, só mais um pouco, minha menina! Só mais um pouco e logo estaremos juntas. E nada nem ninguém vai poder mais nos separar. Desesperadamente, Sarah esticou ambas as mãos. Quando estava bem mais próxima de sua mãe, esta lhe agarrou o pulso e começou a puxá-la insistentemente para baixo, para que caísse dentro da balsa. Quando ela estava preste a cair da ponte, sentiu um puxão forte em suas costas, o que fez com que voltasse a fincar os pés na madeira da ponte, já que a esta altura, a única coisa que a separava de sua mãe era o apoio da ponte. Um grito profundamente agudo pudera ser ouvido, fazendo com que Sarah e Elliot ficassem zonzos com o barulho. As flores brancas, que até então estavam todas desabrochadas, fecharam-se subitamente e a luz que parecia vir delas desapareceu, tornando o ambiente escuro e hostil. Elliot segurou a mão de Sarah e saiu correndo dentro daquela escuridão. Não enxergava um palmo a sua frente, por isso deixou que seus pés fizessem o caminho que ele esperava que os levasse de volta onde Argos estava. Quando finalmente se afastaram do córrego, montaram no cavalo o mais rápido que
conseguiram. O mais importante era sair dali tão logo quanto fosse possível. Argos trotou velozmente até o castelo. Quando finalmente chegaram perto de lá, Sarah gritou para que Elliot parasse. Este puxou as rédeas do cavalo, que parou quase que imediatamente. Ela desceu do cavalo e cobriu a boca com as mãos, pondo-se a andar de um lado para o outro. — Você viu, Elliot? Era a minha mãe, ela era de verdade! — ela virou-se para encarar o rapaz. Ele havia descido do cavalo e a encarava em silêncio, com uma expressão incrédula no rosto — Não faça essa cara estúpida Elliot! Você viu como era linda? Eu só a havia visto em pinturas. E sua mão era tão macia, parecia seda. — Sarah, do que você está falando? — ele finalmente perguntou, em tom baixo e inseguro. — Você estava dormindo, acordado ou o que? Já esqueceu o que acabou de nos acontecer? Minha mãe estava me chamando para ficar com ela e... — Sarah, não tinha ninguém lá. Só então a menina voltou à realidade. Estava extremamente gelado do lado de fora do castelo. Mesmo bem vestida, ela tremia de frio. Elliot a encarava com preocupação. Mas como ele pudera dizer aquilo? “Não havia ninguém lá”? Estava chamando-a de mentirosa? Louca, talvez? — Como pode dizer isso? Ela estava lá! Você viu, eu vi! — Sarah, não tinha ninguém lá. Você... Começou a falar sozinha e eu te chamei várias vezes, mas você não me respondia. Depois você começou a tentar sair da ponte e quase caiu no córrego. Se você fosse levada pela correnteza você com certeza iria morrer! — É mentira! Ela nunca me deixaria cair na água! — a essa altura, a garota gritava com força, recusando-se a ouvir o que o menino dizia — Ela disse que nós ficaríamos juntas e que ninguém nos separaria de novo. Eu não entendi bem, mas ela é a minha mãe e não deixaria que nada de ruim acontecesse comigo... — Sarah! — Elliot gritou, assustando a menina, fazendo com que ela se calasse — Sua mãe está morta! Será que você
esqueceu? Não se lembra de que ela morreu no mesmo dia que você nasceu? A verdade batera-lhe no rosto como um forte tapa. É verdade. Sempre lhe foi dito que sua mãe havia falecido poucas horas depois de seu nascimento. Mas se aquilo havia de fato ocorrido, como ela poderia ter visto sua mãe, tão viva e tão bela se a mesma estava morta há anos? A garota estava muda, imersa em seus pensamentos. Foi despertada quando ouviu ao longe o grito de Evangeline. — Sarah! Onde você se meteu esse tempo todo, mocinha? E olhe só para o seu estado, está imunda! E andando de novo com o filho do jardineiro! Quando vai aprender a não se misturar com os criados desse lugar? Segurando o pulso da garota, a governanta adentrou rapidamente no castelo e seguiu direto para a casa de banhos. A poeira estava totalmente impregnada no cabelo da menina e havia certas partes do corpo da moça que a lama parecia formar uma segunda camada de pele. Sem falar no cheiro insuportável de cavalo. A menina permaneceu em silêncio durante todo o banho, só voltando a falar quando estava devidamente vestida para dormir e sentada em sua cama, enquanto Evangeline tentava, sem sucesso, desatar seu cabelo. — Ai, isso dói! Ai! Evangeline, desse jeito eu vou ficar careca! — A culpa não é minha se o seu cabelo mais parece uma árvore arbustiva. Uma batida leve foi ouvida da porta e entre gemidos de dor, Sarah permitiu que adentrassem no quarto. A porta foi aberta, revelando um jovem rapaz em roupas elegantes, face pálida e cabelo escuro. Ao perceber quem era seu inusitado visitante, Sarah saltou da cama imediatamente. — Allen! A menina correu até os braços do irmão, abraçando-o com força. Este a ergueu do chão e retribuiu o forte abraço. Fazia pouco mais de duas semanas desde a última vez que se viram. Se havia uma pessoa neste mundo a quem Sarah amava incondicionalmente, este era seu irmão mais velho, que sempre
cuidara dela e havia sido seu suporte afetivo, substituindo um pai ausente e a falecida mãe. — O que é que você estava fazendo? — Evangeline estava penteando o meu cabelo para que eu pudesse dormir, mas ela é muito bruta! A governanta apenas abaixou a cabeça, como se pedisse desculpa pelo ocorrido. Allen, que raramente mudava sua expressão calma e gentil, apenas seguiu em direção à cama e pediu o pente a Evangeline, dispensando-a em seguida. Sarah sentou-se imediatamente a frente do irmão, que passava o pente por entre os fios com muito mais delicadeza que a governanta. Conversaram trivialidades por um momento, até que se calaram e Sarah, mesmo receosa, resolveu contar o que havia acontecido. — Allen, posso te contar uma coisa? Tem que me prometer que não contará a ninguém. — Claro que pode. Vai ser mais um de nossos segredinhos. A menina riu, só então contando tudo que havia acontecido. Do córrego, das luzes douradas, das flores brancas e por fim, sobre sua mãe. Allen ouvia com atenção e pareceu bastante interessado a partir do momento que a garota relatou o encontro com a mãe deles. Depois que contou tudo, ela se virou para encarar o rosto do mais velho, levemente preocupada. — Você acredita em mim, não é Allen? — Claro que acredito. — Ainda bem. Eu pensei se deveria contar a Evangeline, mas com certeza ela não acreditaria em mim. — Evangeline nada mais é que uma governanta. Nossa relação é muito mais forte. — Eu sei disso — ela respondera com um sorriso no rosto. A esta altura, seu cabelo estava escovado e completamente seco. Como a hora já estava mais que avançada, Allen convenceu a menina que ela deveria dormir, uma vez que o dia seguinte seria cheio para ambos. Depois de cobri-la com um grosso cobertor, apagou a luz e retirou-se do quarto de Sarah, que não demorou a adormecer.
••• No dia seguinte, foi ordenada uma busca por toda a área do castelo, em busca do misterioso córrego, assim como a ponte de madeira e as flores brancas que emanavam luz. Mesmo percorrendo todo o local duas vezes, nada foi encontrado pelos oficiais.
O Legado de Élÿn Thaís Giffoni
are! Pare agora seu elfo inconsequente! Élÿn corria através na mata de árvores antigas e elegantes. Sua nindë (mãe) lhe gritava
aos ouvidos, mas ele não parecia escutar. Seus pés eram ávidos por contato rápido com a terra e, assim sendo, atendia tais desejos correndo sem parar. Os cabelos cor-de-palha voavam rebeldes e tinham pequenas folhas presas em seus fios sujos, um sinal claro de falta de limpeza. E essa era a razão pela qual a velha Lúthien lhe chamava. O filho não tomava um único banho há exatos cinco dias. Claro que o garoto parecia não se importar. Pensava que seus dias deveriam ser aproveitados de maneiras mais produtivas e, com certeza, banhar-se não era nada produtivo. Não quando poderia estar correndo por aí e se aventurando, fingindo ser um guerreiro Aranel, um guerreiro do sol, tal como o pai. Ao longo de seus oito anos, Élÿn sempre repetia o mesmo percurso por entre a vegetação característica do local. Tudo parecia tão familiar que era guiado até ali de forma involuntária. Uma grande clareira mostrava-se adiante, com apenas uma única e majestosa árvore erguendo-se exuberante no centro e fazendo uma sombra convidativa. Nunca entendeu o motivo de sua raiz ter aterrado-se onde nenhuma outra havia. Embora seu coração guardasse tal resposta. Quem olhasse de relance nunca perceberia o repousar fúnebre que a morte fazia ali. Em um cochilo tranquilo da eternidade distante. Caminhou com cautela deixando seus pés descalços sentirem a energia do local. Estava agora diante do tronco e fez com que seus finos dedos sentissem a textura. Sorriu. Sorriu porque sentiu um calor dentro de si lhe sorrir também. — Inwë. — sussurrou. Sabia pouco sobre seu pai e como ele morrera. Mas tinha uma história que sempre gostava de ouvir, a história mais gloriosa de sua vida. A mãe já havia lhe contado incontáveis vezes, mas, sempre que fazia, exigia dele um banho. E ele tomava. Tomava apenas para ouvir e imaginar o guerreiro grandioso que Lenwë Tasartir fora um dia. O menino elfo sentou-se de forma preguiçosa sob a sombra e fechou os olhos. Pôde ouvir ecoar em sua cabeça a voz arrastada da velha e cansada nindë a lhe falar as aventuras do pai. O tintilar metálico da espada a rasgar o vento, assim como
a garganta dos inimigos. O rugido feroz de um Leão das Montanhas Nólatári, tão grandioso e amedrontador que fez um calafrio percorrer por sua espinha. O grande Rei dos Ogros, Amrod, a gritar e sacudir o mundo com sua voz grave. Pensava no pai como o elfo mais corajoso que já havia pisado nas terras de Elendil. E, dessa forma, o tinha como um herói. Caminhou de volta para casa com a esperança morna de que a mãe lhe contaria mais histórias. Preparava-se para sentir a água fria em sua carne rija e lhe congelar o sangue. Não entendia como poderia viver tão afastado da cidade e ser de uma família tão humilde, quando o pai fora quem fora. Às vezes faltava-lhe mesmo o essencial, como comida. Ou mesmo quem cortasse a lenha para aquecer seu banho e seus dias. Era uma situação precária e a já idosa Lúthien não poderia fazer mais do que já fazia. Ao longe avistou sua pequenina cabana a erguer-se em galhos fracos que pareciam pernas finas e bambas. A porta era de uma madeira úmida e estava tombada para o lado. As janelas eram buracos médios feitos na madeira e no barro. Ao redor, ervas medicinais enroscavam-se na construção. Tais ervas eram o sustento da família. A mãe era muito sábia e tinha plena noção da cura. Muitos eram os que recorriam a ela quando a morte e a enfermidade lhes batiam na porta. — Estou aqui, nindë. Estou pronto para o banho! — ele gritou anunciando sua chegada. Lúthien estava na cozinha. Fazia uma sopa com as sobras dos cogumelos que tinham comido no dia anterior. — Ah! Aí está você, rapazinho. Já lhe disse para não fugir daquela forma. — ela tinha uma expressão brava. Mas seu rosto era demasiado bondoso para inspirar medo. — Estou pronto para o banho. — repetiu envergonhado. — Talvez pudesse me contar mais histórias sobre inwë. — Claro, claro. Mas dessa vez será diferente. Tenho algo especial para você. Ela tirou a pequena panela do fogão improvisado e caminhou até o cômodo ao lado. Este era o quarto mais rico da casa. Era cercado por grandes estantes de madeira que estavam repletas de livros. Tantos que os olhos do pequenino Élÿn não
conseguiam focalizar tudo em um único piscar de olhos. Nunca havia entrado ali. Nunca lhe fora permitido. Mas, agora que ali estava, parecia que era seu lar. Os livros e seus títulos chamavam-lhe com suas vozes imaginárias. As histórias vibravam e dançavam serenas no ar. Uma grande janela, com ornamentos de vidro, iluminava o local de forma ampla, fazendo com que a claridade fosse agradável. — Este aqui, pequeno Élÿn, é para você. Seu pai lhe deixou como herança. — a mãe lhe entregou um grosso e pesado livro de capa envelhecida da cor do fogo. Pegou o livro como se fosse sua vida. As ideias borbulhando em sua mente. O abraçou com força, como se fosse seu próprio pai. Ele sentou-se no chão mesmo e começou a folhear. As palavras e as frases conversavam com ele. Dragão. Ogro. Leão. Guerreiro Guerra. Espada. Via as histórias familiares se formarem de relance. Teria sua própria aventura, com a consciência de que seriam tão cheias de perigo como as do grande Lenwë Tasartir. Entre as folhas, colocada ali para que ele, e apenas ele, lesse, uma carta escondia-se tímida. A mãe afastou-se e saiu o deixando sozinho para desfrutar daquele momento. Fechou a porta com cautela. Seus dedos eram ágeis e sedentos. Rasgou o envelope com certa pressa e começou a ler. "Pequeno Élÿn, quando puder ler esta carta é fato que meu fim já tenha chegado há muito. No entanto, deixo-te algo para reviver-me. Creio que já tenha ouvido histórias sobre mim, e até mesmo pensado que fui capaz de derrotar todas aquelas criaturas. E, de fato, eu fui. Mas não do modo como os Guerreiros Aranel. Pude fazê-lo da forma mais especial existente, ao passo que pude viver inúmeras aventuras.
Estou lhe dando de presente este livro para que você também o faça. O faça da forma mais poderosa, que é, afinal, a imaginação. Usa dela para viver teus dias, mesmo os com desventuras. Usa dela para ler as palavras impressas e moldá-las de tal forma que se tornem reais ao seu redor. Fecha teus olhos e usa teu poder de imaginar para que vivas outras vidas. Em outras realidades. Peço que sejas cauteloso com esse poder e não te esqueças de fazer, também, teus próprios escritos. Escreva para que os outros possam, assim, desfrutar de tuas histórias. Envolva-os e faça com que se tornem verdadeiros heróis, assim como fui para ti. Taurnil melwasúl vardamir, eu te amo”. O elfo terminou de ler a carta e ficou a encarando por longos minutos. A caligrafia do pai, tão elegante e soberana, o fazia compreender que todas as ideias que tinha em mente poderiam facilmente transformar-se em escritos. Suas obras. Ele folheou mais o livro, passando rapidamente os olhos por cada parágrafo. Ao fim, páginas em branco aguardavam para que ele pudesse fazer seu próprio mundo. E assim o fez. Os dias passavam. O sol ia e a lua vinha. A noite. Os dias com chuva, com ventos e tempestades. E o garoto escrevia. E escrevia. E escrevia. Tão desesperadamente que logo chegou ao fim das folhas em branco. Estava traçando ali seus sonhos e temores. Escrevendo sua história e contando seus anseios. Iria viver eternamente naquelas páginas, assim como o pai. Estava marcando seu legado. Era um criador de sonhos. Por fim, quando terminou, seguiu o mesmo caminho familiar. Seus pés desnudos sentindo a natureza viva. Suas narinas inspirando o ar cheio de lamento. Seus ouvidos apreciando o doce canto dos pássaros. A árvore permanecia ali, imóvel, apenas o aguardando. Toda a atmosfera lhe sorria. Ele tinha o livro em mãos. Este que guardava as histórias do pai, como também as suas. — Olá, inwë. Sentiu saudade? — e, parecendo ouvi-lo, a árvore balançou serena seus galhos e folhas. Sacudindo-se de forma harmoniosa. Então Élÿn deixou o livro sobre a grama rasteira que tinha um tom verde muito vibrante. O deixou ali para que
outro alguém o encontrasse e pudesse desfrutar de suas palavras de forma plena. Para que, aqueles que tivessem a ventura de pegar aquela relíquia em mãos e lê-la de forma sincera, pudessem divertir-se e sentissem tão livres como ele.
Onde Estou? Arthur Cerqueira
O
garoto acordou sobressaltado. Estava em um lugar barulhento. Olhou ao redor, se encontrava em um grande salĂŁo. E junto a ele, haviam vĂĄrias criaturas, de diferentes tipos. Algumas possuĂam asas, outras, quatro olhos... De repente, um pensamento ocorreu ao jovem. Onde estou?
Olhou para as roupas, usava uma camisa azul fofa e incrivelmente confortável, a calça era larga, com a cor cinza. Percebeu também, que usava uma capa azul-marinho. E outra coisa o incomodava, ele não lembrava seu nome, sua idade, nada. Ergueu-se com dificuldade. As criaturas o aterrorizavam e estavam em toda parte. O jovem decidiu se autonomear de Onde, pois era a única palavra que lhe passava pela cabeça. Avistou uma porta no fim da sala, mas teria que passar pelas criaturas. Tentou evitar olhar para elas, mas eram tão horríveis que não conseguia resistir. Viu um ser de um olho só, uma pessoa que era... Totalmente branca, não tinha olhos, nem boca, nem nariz... Nada, era apenas... Branca. Viu também um... Lençol? Sim, era um lençol, mas ele flutuava e tinha dois buracos onde deveria estar uma cabeça. Havia um gato com casco de tartaruga e patas de... Jacaré? E também uma garotinha de capa vermelha, que seria normal, se ela tivesse uma face. Onde se recusou a tentar deduzir o que era cada criatura. Alcançou a porta e a abriu. Se deparou em outra sala, mas era pequena e escura, com uma escada no canto. Ouviu um gemido e procurou de onde viera. Enfim, encontrou a fonte do som. Era uma garota. Tinha cabelos loiros, asas amarelas, usava um vestido verde e apertado e um brilho dourado destacava-se ao seu redor. — Por favor, não me machuque — ela implora. De repente, as palavras surgem na mente de Onde, as letras, as sílabas, a pronúncia... — Não irei te machucar — ele diz. — Ainda bem — a garota suspira, aliviada. — Você realmente não se parece com aquelas criaturas. Qual o seu nome? Onde iria dizer “não sei”, mas um nome surge em sua mente: — Martin — ele diz. — Meu nome é Martin. E o seu? Aliás, o que você é?
— Meu nome é Narya — fala ela. — Sou uma fada, e você? Humano. Era como se sua mente sussurrasse as respostas para ele. — Sou um...Humano — esclarece Martin. — Onde estamos? — Isso não posso te responder — Narya diz. — Simplesmente acordei aqui há três dias atrás, no meio de várias criaturas estranhas. Eu não me lembrava de nada, até as memórias começarem a voltar. — Eu também, mas acordei hoje — fala Martin. — Não há como sair daqui? — Não sei — Narya admite. — Eu tentei sair, mas sempre que passava pela porta de saída, voltava para a sala das criaturas. — Como assim? — Esquece- pede Narya. — Apenas tenha em mente que não há como sair daqui. Tentei várias vezes, e após cada uma, me sentia como se uma parte de mim sumisse, por isso, parei de tentar escapar. — Tudo bem- fala Martin. — Agora me explique, por que estava com medo daquelas criaturas? Elas não fizeram nada comigo. — Você humanos devem ser algum ser superior a elessugere Narya. — Porque aquelas criaturas me espancaram, abusaram de mim... Subitamente, imagens começam a passar na mente de Martin. Era uma garota, ela usava uma coroa prateada e sorria para um jovem, esse jovem era... Martin. A garota se aproximou e o beijou. — O que houve? — pergunta Narya. — Não sei — admite Martin. — Algumas imagens surgiram na minha mente. — Isso também aconteceu comigo! — exclama Narya. — Envolvia uma garota? Porque... Subitamente, a fada desaparece diante os olhos de Martin. — Narya? — ele chama.
Nenhuma resposta. Ele olha ao redor, não havia sinal algum da fada. Martin sentiu vontade se ir até a sala das criaturas para procurar Narya, ele se sentiu perdido sem ela. Mas estava temia o que poderia lhe acontecer lá. aquelas criaturas me espancaram, abusaram de mim, dissera a fada. Então, Martin se lembrou da escada no canto da sala, foi até ela. Olhou para cima e viu uma porta com uma placa que dizia “Saída”. Sem hesitar, Martin subiu os degraus. Alcançou a porta, girou a maçaneta e... Estava novamente na sala das criaturas. Realmente, sentia-se como se uma parte dele tivesse sumido, como Narya lhe avisara. Elas o fitaram e se afastaram. Martin sentiu raiva ao olhar para elas, pois lembrou-se do que fizeram a Narya. — Estão olhando o que? — ele gritou. — Estão com medo? — Não temos medo de você, humano — diz uma criatura com corpo de urso e rosto de onça, — Tememos o seu poder, isso sim! As outras criaturas assentiram. — Poder? — Martin indaga. — Não tenho poder algum! De que tipo de poder vocês falam? — Todo dia um de nós desaparece — fala uma criatura de pele verde e asa azul. — Alguns até voltam, mas a maioria não... — E o que tenho a ver com isso? — pergunta Martin. — É uma...Garota da sua espécie que tem esse poder — fala a criatura. — Ela nos controla, pode fazer o que quiser conosco, ela nos criou e ela nos descria. Martin lembrou-se da garota nas imagens que se passaram em sua mente. Tem alguma coisa estranha acontecendo por aqui deduziu. — Não há como impedi-la? — pergunta Martin. Repentinamente, o cenário muda. E ele se vê em um bosque. Era bonito, composto por uma trilha pedregosa. Aos lados, havia um capo florido, que parecia não ter fim.
Martin olhou para frente e viu uma garota. Usava um vestido roxo, e havia uma coroa prateada em sua cabeça. Ela sorria. Martin deduziu que era a garota das imagens em sua mente. É uma... Garota da sua espécie que tem esse poder, dissera uma das criaturas. — É você? — perguntou Martin, se aproximando rapidamente da garota. — É você que sumiu com Narya? Ele percebeu que a garota estava de olhos fechados, mas parecia enxergá-lo. — A fada? — ela indaga. — Como você sabe dela? — Estava comigo naquele lugar cheio de criaturas — fala Martin. — Do que está falando, meu príncipe? — pergunta a garota. — Sou eu, Melyssa, sua princesa, me trate como tal. — O que? — indaga Martin. — Esqueça — Melyssa pede. — Vamos apenas aproveitar esse sonho, enquanto eu não acordo. Ela se aproxima de Martin e lhe dá um beijo. Ele se afasta. — O que há com você? — ela pergunta, indignada. — Eu nunca te vi na vida! — exclama Martin. — Sim, só nos vemos nos sonhos, infelizmente — Melyssa diz. — Queria muito encontrar alguém como você na vida real, porém, é apenas fruto de minha imaginação... — O que... — Martin começou. Mas subitamente, os olhos de Melyssa se abrem e... Martin está novamente na sala das criaturas. — Ah, voltou é? — pergunta um... Armário falante, ao seu lado. — Sim — responde Martin. — O que viu? — indaga um... Lobisomem. — A garota de quem vocês falaram — Martin diz, e sai correndo na direção da porta da sala escura. Entra no local, e se depara com Narya. — Graças a Deus! — Martin exclama. — Onde estava? Ele percebe que a fada estava... Meio invisível.
— Eu me encontrei com uma garota em um sonho — Narya disse, feliz. — Vivemos aventuras, enfrentamos uma gárgula! — Eu também vi essa garota — Martin diz. — Ela disse que eu era... Ele se interrompeu, e ficou imóvel. — Martin? — Narya chama. — Não pode ser — ele diz. — O que? Martin lembrou-se da criatura de capa vermelha, e de uma história que ouvira em algum lugar. O lençol flutuante, as criaturas, fadas... Príncipes. A garota. Ela nos controla, pode fazer o que quiser conosco, ela nos criou e ela nos descria. Dissera uma criatura. Queria muito encontrar alguém como você na vida real, porém, é apenas fruto de minha imaginação. Falara Melyssa. — Narya — fala Martin. — Eu sei porque não podemos sair daqui, porque há várias criaturas... — Por que? — a fada pergunta. — Porque estamos na mente da garota, Melyssa — diz Martin. — Somos a imaginação dela. A imaginação de uma criança, por isso há fantasmas, fadas, príncipes. A mente dela é um universo de fantasia, aqui pode existir tudo. É como a vida, à medida que a garota cresce, sua maturidade aumenta e vamos desaparecendo. A sensação que sentimos quando tentamos escapar... Tudo isso faz sentido. — Não entendo — Narya admite. — E nem tente entender — pede Martin. — Só compreendo, pois tenho uma mentalidade parecida com a da garota. Porque sou um humano, como ela. E por que é raro aparecer humanos por aqui? Porque na idade dela, sua imaginação tem mais espaço para a fantasia. Quando estiver um pouco maior, ela vai amadurecer, as criaturas vão sumir e podem dar lugar a paisagens que ela quer visitar, pessoas que ela gostaria de conhecer... Entende? — Não — Narya diz. — Resumindo — Martin diz. — Estamos na imaginação de Melyssa. Nós somos a imaginação de Melyssa.
A Vingança das Lendas Vinícius Teixeira
calor estava de matar, o sol do meio-dia transparecia pela janela do apartamento de Diego deixando o ambiente mais quente que o normal. O ventilador, em vez de ajudar a resfriar o lugar só fazia o calor aumentar, jogando o vento quente no rosto dele. Todavia, Diego não ligava para o calor, ligava para sua cabeça, mais precisamente para o par de chifres que a namorada lhe dera de presente. O rapaz estava largado no sofá da sala assistindo ao jornal do início da tarde. Na verdade não estava nem prestando atenção, só ligara a TV para ter uma voz falando em seu ouvido. — Por que ela fez isso? Eu amava tanto ela! Trocou-me por aquele bombadão feio dos infernos – lamentava para si mesmo enquanto comia Doritos de um grande pacote.
— As cidades ribeirinhas estão em alerta – disse a repórter do jornal. — SIM! — delirou Diego – eles estão em alerta! Estão viajando para Belém... vêm me trazer um par de chifres para colocar na cabeça – ele colocou as duas mãos na cabeça fazendo chifre. — …embarcações e pescadores estão desaparecendo misteriosamente ao redor do Oceano Atlântico. Estudos mostram que os rastros desses desaparecimentos levam até a cidade de Belém. Até agora a marinha brasileira tenta descobrir as causas desse fenômeno. Mais notícias no jornal da noite – finalizou a repórter com o semblante sério. Diego havia parado com o delírio e prestou atenção nas palavras da jornalista. — Um rastro... que estranho! Só falta dizerem que a anaconda vai invadir Belém — Diego riu e voltou a pensar em sua namorada e de como sentia falta dela — Vitória, Vitória... por que me abandonastes? Sinto saudade do teu cheiro de flores e do teu rosto de indiazinha — começava a choramingar de novo. ••• — Você fez o que eu lhe mandei? — perguntou a velha. Elas estavam em uma floresta bem distante de Belém, os pássaros não piavam e apenas o barulho do vento batendo nas árvores era ouvido. A velha e a moça estavam à beira de um rio. — Sim — respondeu a moça que se parecia muito com uma índia. Sua voz tinha um quê de tristeza e sofrimento – mas, eu não queria ter participado disso. Você sabe o quanto eu fico tocada com essas questões. A velha riu. — Me poupe, Vitória. Você se apaixonou pela Lua, quebrar o coração de um rapaz não vai te matar, e sair um pouco desse lago nojento te fez bem, pena que não podes morar para sempre na terra. Vitória abaixou a cabeça, lágrimas começaram a rolar de seu rosto.
A velha apenas revirou os olhos. — Ele está marcado com a insígnia? Vitória limpou as lágrimas e respondeu: — Sim. Quando a senhora pretende revelar tudo? A velha olhou para o horizonte, o sol refletiu em seus olhos. — Assim que Ele se aproximar. Já posso sentir a presença dele desta distância. Ele não vai conseguir, não vai – ela se voltou para a garota com um sorriso falso — agora é a sua vez de voltar para o seu lugar. Vitória olhou ao redor da floresta e suspirou, foi bom enquanto durou. Infelizmente ela tinha essa mania de se apaixonar por alguém que não podia ser dela. Deveria encarar o destino imposto por sua loucura. A velha se aproximou e apontou a palma da mão para a garota. Instantaneamente seus olhos começaram a ficar brancos e límpidos. O vento ao redor das duas ficou mais forte e as águas mais rebeldes. As árvores pendiam para frente e para trás. A senhora levitava a trinta centímetros do chão. — Eu, a trigésima sexta Matinta Pereira Mor, ordeno que a eterna princesa Naía volte para o seu estado original. Agradeço a ela em nome de todas as criaturas, o serviço prestado ao Reino Amazon. Volte para o seu lar! Vitória-régia. O grito de Vitória ecoou em toda a floresta, aos poucos o seu corpo adquiriu um tom esverdeado, sua face se desformou e seu corpo encolheu, até que ela se transformou em uma planta circular. Ainda com o controle sobre a princesa ela pousou a planta na água e desfez todo o encanto. A velha se recuperou respirando fundo enquanto a floresta voltava ao normal. Ela botou a mão no peito, sentia uma pontada forte no coração. — Antes – disse ofegante – da minha morte, você vai se arrepender. Boíuna. ••• Diego não saiu de casa naquela noite. Os amigos tentaram convencer o rapaz de que na festa teriam muitas
garotas mais bonitas que Vitória, mas ele preferia continuar na fossa. — Me deixem, vocês não sabem como é difícil – disse ele revoltado. — Esquece ela cara, tem tanta gatinha mais bonita por aí. — NÃO! EU SÓ QUERO ELA – gritou. Um dos amigos revirou os olhos. — Vamos embora pessoal, pelo menos a gente tentou. Tchau, Diego. E vê se para logo com essa frescura. Ele ignorou e voltou a atenção para a TV. — Droga, ainda me fizeram perder a novela – resmungou. — Pele gigante de cobra é achada perto do Porto de Belém. Prefeito da cidade já comunicou a marinha e disse que qualquer coisa que se aproxime da cidade eles podem abrir fogo. Religiosos se reúnem em missa na Igreja de N. S. de Nazaré. Eles temem pelo fim do mundo. UFPA investiga as amostras da pele. Tudo isso e muito mais você vê depois dos comerciais. Diego cuspiu o refrigerante que estava tomando e caiu desmaiado no chão. Uma dor súbita em sua nuca causou tal enfraquecimento, tudo ficou escuro e ele entrou em um profundo transe. ••• Ele acordou com uma dor muito forte na cabeça, tentou levantar-se, mas uma mão idosa o fez continuar deitado. — Continue aí não se mexa! A dor da insígnia ainda está um pouco forte – disse a voz arrastada. — Onde estou? – ele abriu os olhos e se deparou no meio de uma... FLORESTA. — Você está em uma floresta qualquer perto de Belém, fique tranquilo. Nenhum animal chegara perto de nós enquanto você estiver comigo. O chão tremeu por três segundos – que pareceram uma eternidade. Diego ficou mais tonto. A velha permanecia parada
impassivelmente, vestia uma manta e segurava um cajado antigo. — O que é isso! – ele gritou espantado. A velha olhou para o céu e depois para a floresta. — Acho que ele chegou. — Ele quem? – Diego já tinha se levantado e estava encostado em uma árvore. A velha continuava olhando ao redor. — A Boíuna, você deve a conhecer como Cobra Grande. Diego olhou bem para a cara da senhora e começou a rir. — Você é uma velha maluca! Lendas não existem – ele se levantou – eu vou é embora daqui, passar bem. O rapaz levantou e foi embora sem rumo. Velha maluca, como conseguiu me tirar de casa? A terra tremeu pela segunda vez. — Eu não tenho tempo pra isso – disse a senhora com raiva. Ela se virou em direção ao rapaz e apontou seu cajado – Apiçá! Diego sentiu um aperto na barriga e foi instantaneamente puxado para perto da velha. Ele olhou para ela com horror. — O que é você? – perguntou atônito. — Sejamos rápidos. Eu sou a Matinta Pereira Mor, rainha do Reino Amazon. O Reino Amazon é toda a fauna e flora que você vê aqui nesta terra. Eu vim em missão – Diego levantou-se e prestou atenção nas palavras da senhora. Duvidando e acreditando nas palavras dela - o meu objetivo é encontrar o herdeiro de Magalhães Barata, o político populista. — Não consigo acreditar nisso tudo – disse o rapaz atarantado – é muita confusão! Isso quer dizer que todas as lendas amazônicas são reais? — Sim, lendas não surgem do nada. Os seres de sua terra às vezes topam conosco e contam histórias sobre nós, o que na maioria das vezes não consta com a nossa realidade, mas isso é outra história. Voltando a minha missão: eu tive permissão de um superior para usar qualquer criatura das suas “lendas”. A moça Vitória por quem você se apaixonou foi uma
delas. O objetivo dela era colocar uma insígnia em você. Essa insígnia o desacordaria, assim poderia te trazer até aqui e revelar a verdade. Diego surpreendeu-se e ficou sobressaltado. Só faltava a velha lhe dizer que aquela morena bonita era o boto cor-derosa. — Ela era um boto?! – estranhou. — Você é bem burrinho. Vitória vem de vitória-régia, te apaixonastes por uma planta. Mas não começas a te animar, ela é prisioneira da Lua, não pode virar humana novamente. — Eu beijei uma planta? – questionou Diego estranhando aquele fato. — Vamos focar na explicação, por favor! – alertou a velha – Durante o governo de Magalhães, Belém sofreu fortes tremores e os religiosos da época alertaram que poderia haver uma invasão a cidade. Naquela época as pessoas eram muito crentes em lendas. Um padre sugeriu a Magalhães que forjasse uma espada de ouro maciço e a entregasse à Igreja, que abençoaria a arma. Assim eles poderiam matar a tão temida Cobra Grande. — Hum, interessante – disse Diego ainda pensando na planta – e o que eu tenho haver com isso? — Os moços da minha época eram mais inteligentes. Ligue os fatos, garoto – a velha gritou – VOCÊ É O HERDEIRO DE MAGALHÃES BARATA! Diego ficou estupefato. Automaticamente as lembranças de sua infância vieram à tona. Ele se lembrava da foto de um homem na casa de sua avó, um homem com aparência de ser um soldado... ele matutou aquilo mas não teve coragem de perguntar quem era. Agora tudo fazia sentido. — Então, só eu posso matar a Cobra Grande, porque o sangue de Magalhães corre em minhas veias. Entendi tudo agora – ele transpareceu entendimento e olhou sério para velha. — Que bom que você usou a cabeça! No tempo a Cobra Grande não invadiu Belém, e a Igreja foi acusada de delírio, o padre foi preso e levado a um sanatório. Magalhães ficou furioso com o gasto de dinheiro usado na espada, e mandou
que sumissem com ela. Segundo fontes minhas, ela está no porão do Palácio Antônio Lemos, a sede da prefeitura. A terra tremeu pela terceira vez, era nítida a preocupação no semblante da Matinta. — Acelerando: você precisa entrar na prefeitura, pegar a espada e matar a Boíuna antes que ela destrua toda a sua cidade, e quem sabe, até o seu país. — Você fala isso como se fosse fácil – bufou Diego – é muita pressão! — Quem mandou você nascer herdeiro. Vai ser fácil entrar na prefeitura – a velha se virou para a floresta e fez um movimento circular no ar com o cajado. – Eçá! O que foi visto assustou Diego. Era o Porto de Belém, vários barcos e pessoas transitavam por ali, carregadores carregavam sacas de açaí e mantimentos para levar a cidade. Alguns pescadores negociavam peixes enquanto suas embarcações flutuavam na água barrenta. O sol da tarde batia feroz sobre o cocuruto das pessoas. Do nada a terra tremeu. No horizonte era possível ver uma figura grande e escamosa se aproximando. Montada nela havia um garoto de cabelos vermelhos, ele estava sem camisa e segurava um cetro. — Sim – disse ela adivinhando o pensamento de Diego – esse garoto montado na Cobra é o Curupira. Diego engasgou com a saliva. — O que?! O que o Curupira tem a ver com isso tudo? — O Curupira é Rei do Reino Amazon, ele há muito tempo queria destruir a sua civilização. Segundo ele, todos você são culpados pela destruição de nossas florestas. Ele quer vingança e para isso usou todo o poder do Reino para despertar a Boíuna de seu sono eterno – a velha não olhava para Diego, permanecia observando o desastre pelo transmissor mágico. De imediato uma grande cobra do tamanho de um prédio se levantou das águas, tinha a pele cheia de escamas amarelas e verdes, de sua boca saia uma baba nojenta que caia na água fazendo barulho de choque térmico; seus olhos eram vermelhos sangues e pareciam sedentos por vingança. Sua língua sibilava enquanto, de sua garganta, saia um grito feroz. Em sua lombar estava montado um garoto de cabelos de fogo.
A expressão dele era de raiva misturada com um prazer horrendo. Seus pés eram virados para trás e seus olhos estavam brancos. As pessoas corriam sem rumo, algumas observavam chocadas demais e outras estavam desmaiadas com tamanho susto. A cobra avançava em direção ao Porto de Belém. — Agora, é nossa vez de destruir as suas florestas. As florestas de pedra – o Rei Amazon apontou o cetro (feito de pau-brasil e adornado de raízes de árvores, em sua ponta uma rubi amarelo brilhava) para um prédio próximo ao porto, um raio vermelho saiu dele e atingiu a construção em cheio. Pedra sobre pedra foi sendo destruída, pessoas gritavam, sirenes eram ouvidas e helicópteros ressoavam nos céus. O Fim. A velha passou a mão pelo transmissor e ele desapareceu no ar, seu rosto permanecia impassível. — Chegou sua hora, você precisa resgatar a espada o mais rápido possível. — Como eu vou matar a cobra sendo que o Curupira tem aquele cetro maluco? – disse Diego ainda abalado pelas imagens. — Eu vou cuidar do Rei, você procure a espada e siga o brilho azul. — Que brilho azul? TUDO ISSO É MUITO CONFUSO – gritou. — GAROTO! Você faz perguntas demais. Apenas siga o brilho azul depois que você pegar a espada – ela apontou o cajado para ele e rapidamente disse – Jabró! Diego sentiu o corpo sumir e a vista desaparecer. A velha Matinta se transformou em um pássaro negro e voou longe. À medida que ele era teletransportado, sua mente dava voltas pensando naquele assunto. Então as lendas eram reais. Tudo o que era contado sobre a Matinta Pereira, Curupira, Boíuna e Vitória-régia era real... era muita informação de uma vez só. O rapaz caiu de cara no asfalto. — Maldito transporte – ele disse com dor. Levantou e tirou a poeira da calça – nunca confie em uma velha que tem um cajado e vira um pássaro.
Ele estava na frente do Palácio Antônio Lemos. A sede da prefeitura era um grande prédio antigo e azul-marinho, cheio de grandes janelas. Era um retrato da antiga influência europeia na cidade. Logo na entrada havia uma sacada sustentada por pilastras e uma porta grande de carvalho. Um verdadeiro palacete. Diego poderia ficar admirando a arquitetura, mas ele tinha um dever a cumprir, a rua toda estava em pânico. A praça que ficava perto dali estava vazia e nas ruas pessoas gritavam desesperadas, a polícia passava de um lado para o outro e helicópteros ressoavam no céu. O rapaz correu em direção à porta. Quando ele estava chegando perto, um forte soco veio em seu rosto. — Onde o senhor pensa que vai? – perguntou um grandalhão forte a alto, que usava um chapéu comprido. O boto cor-de-rosa. Diego massageou o queixo. — Isso só pode ser sacanagem! — Você não vai conseguir estragar os planos do Rei – o grandalhão estava pronto para dar um soco em Diego, mas então um pássaro veio assobiando na direção do boto. Corra Diego, uma voz ressoou na mente dele. A ave bicava rosto do homem. Ele tentava matar o pássaro, mas em vez de socar o alvo, destruía as pilastras do Palácio. — Traidora do seu povo! Rainha traidora! Diego chutou a porta do Palácio, esta caiu em vez de se abrir. O rapaz procurou alguma entrada que levasse ao subterrâneo. Havia uma escada ali perto. ••• A Matinta Pereira não era só rainha do Reino Amazon, ela também tinha o total controle sobre as aves e pássaros negros, era a rainha do obscuro. Uma verdadeira bruxa sempre tem um lado negro. A Cobra Grande já deixava um rastro de destruição. Praças, casas e prédios de luxo estavam destruídos, pedras
espalhadas sobre o chão, árvore sobre árvores, tudo aniquilado. Os canais de notícias pipocavam e os repórteres morriam esmagados pela passagem da cobra e pelos raios do cetro. Era de se esperar também que um rastro de sangue e morte acompanhasse a passagem dela. A cobra sibilava enquanto passava por cima de tudo, destruía monumentos com a ajuda da cauda e do Curupira, o mesmo ria de tudo aquilo. Os humanos finalmente provavam de seu próprio veneno. Eles aproximavam-se do Teatro da Paz, um grande prédio laranja cheio de esculturas, pilastras e janelas. Um dos mais conhecidos monumentos de Belém. Pessoas corriam para se proteger, já sabiam o destino do grandioso Teatro. Porém, neste momento, um helicóptero de guerra se aproximou e junto com ele muitos pássaros negros. O Curupira espumou de raiva e apontou o cetro para o helicóptero. Quando o objeto de poder ia disparar um raio vermelho os pássaros levantaram voou e roubaram o cetro com suas garras, levando a arma para longe do menino de cabelos vermelhos. O helicóptero começou a disparar contra a cobra. Ela gritou tanto que a terra tremeu pela quarta vez. O Curupira fez com que o animal se levantasse e ficasse frente a frente com o helicóptero, este disparou contra o rosto da cobra. Os olhos vermelhos brilharam com mais intensidade. O Rei ordenou o bote e ela engoliu o helicóptero como se ele fosse um pequeno doce de criança. A serpente soltou um grito tempestuoso e os vidros do Teatro e de todos os prédios, casas e lojas remanescentes explodiram. — Vocês não se safarão dessa! MALDITA MATINTA! VOCÊ SOFRERÁ AS CONSEQUÊNCIAS! Assim como vocês, humanos estúpidos, destruíram metade do meu Reino, eu destruirei metade do seu. A Boíuna urrou, levantou a cabeça o mais alto possível e jogou todo o corpo em cima do Teatro, o prédio desmoronou sobre o tronco da cobra. O Curupira saiu de cima dela e foi para frente do prédio. — Eu, o Rei do Reino Amazon invoco os vento dos quatro cantos da Amazônia e ordeno a destruição do... - quando
o Rei ia completar o encanto, um pássaro negro o atacou na cabeça dando diversas bicadas. – Saia animal estúpido! O pássaro levantou voou. O Curupira apontou a palma da mão para ele, dela saíram pequenos raios verdes, mas o pássaro não era uma ave qualquer: um escudo de proteção se formou e os raios não o atingiram. A ave negra explodiu e das plumas obscuras surgiu uma senhora que levitava. Em suas duas mãos estava o cetro do Rei e um cajado. Era a Matinta Mor. — Traidora do povo! Devolva o meu cetro! – gritou o Rei furioso, atirando raios na Matinta. — Você não deveria destruir uma civilização só porque eles dependem de nós. Chega da sua sede de poder, Curupira. Você não pode comandar o mundo! — Eu posso tudo o que eu quiser! Devolva meu cetro, velha ordinária ou sofrerá as consequências – ele já estava levantando a mão para atingi-la com outro raio. A Matinta levantou mais, voou, juntou o cajado e o cetro e apontou ambos para o Curupira. — Eu, a Matinta Pereira Mor, Rainha do Reino Amazon – nesse momento o Curupira jogou três raios amarelos contra ela, mas eles bateram no escudo. A Matinta estava usando todo o seu poder. Ela sabia que aquilo traria uma consequência grave – ODERNO QUE O REI DE AMAZON, PERSONAGEM DAS LENDAS AMAZÔNICAS RETORNE PARA O SEU LUGAR DE ORIGEM, A FLORESTA! E QUE VIVA EM SEU EXÍLIO POR DOIS SÉCULOS. EM NOME DESSE ATO... Aos poucos o chão ia abrindo-se ao redor do Curupira. Ele gritava e atirava raios para todos os lugares. A Boíuna já havia partido para outro setor. Somente ele, a destruição e a Matinta estavam naquele lugar. — … EU SACRIFICO A MINHA IMORTALIDADE EM PROL DISTO! PAEM PANEMA QUER RUCA!!! Uma rajada de luz vermelha, verde, amarela e branca saiu dos dois objetos de poder, atingiram o Curupira em cheio e ele gritou tão alto que a terra tremeu pela quinta vez e raios explodiram de todos os lados, destruindo tudo e todos.
— VOCÊ VAI PAGAR POR ISSO MATINTA, VOCÊ VAAAAAAAAAA... - aos poucos a voz do garoto de cabelos vermelhos foi sumindo. O impacto do poder dos objetos foi tão grande que destruiu todo o bairro onde se localizava o Teatro. O chão rachou e engoliu o Curupira para a escuridão. A Matinta despencou do ar e caiu ao lado dos destroços do Teatro. ••• O amanhecer dava lugar a tarde e esta dava lugar ao meio dela. O sol continuava imponente no alto do céu, iluminando os destroços da capital. O prefeito fugira e os governantes também. O povo ficara para trás, o exército lutava bravamente contra a Boíuna, mas ela era invencível contra as armas e munições humanas. Como a própria Matinta avia alertado, somente o Herdeiro e a Espada poderiam matar a Cobra. Diego havia chegado ao porão, a terra tremera pela sexta vez a alguns minutos atrás. O nervosismo de não achar o que procurava tomava conta de seu ser. Ele sabia que o futuro da cidade, e talvez do mundo, estava em suas mãos. — Pensa, Diego, pensa – ele revirava as bugigangas e sacas do porão a procura da espada – Magalhães era populista, e era tenente também, ele era ligado ao exército, logo... ISSO! No final da sala havia uma caixa de madeira coberta com uma bandeira do Brasil e uma bandeira do exercito. O rapaz agradeceu por ter prestado atenção nas aulas de História – mesmo que fosse só pela professora que era uma gata. Diego se aproximou e tentou abrir a caixa com a mão, porém, sem sucesso, pegou um martelo que estava por perto e bateu no caixote até destruí-lo. O pó veio diretamente ao rosto dele fazendo-o tossir e espirar. A Espada de Magalhães Barata era totalmente de ouro, desde o cabo até a grande lâmina super afiada. Uma janelinha permitia a entrada do sol no recinto, a lâmina brilhava à luz dela. Ao lado jazia uma bainha de couro com desenhos de serpentes.
— Finalmente – suspirou Diego, ele estava sujo e suado. Perdera boas calorias com aquela missão. ••• A Cobra Grande chegava à Basílica de N. S. de Nazaré e lá ela pegaria o resto do seu poder. No tempo em que o padre alertou sobre a cobra, ele mandou capangas contratados para retirar um pedaço do corpo da Boíuna. Morreram esmagados pela criatura, mas conseguiram retirar um pedaço do rabo dela. Isso impossibilitou a Cobra de viver e a deixou em seu sono eterno. Para viver completamente e deixar de ser uma simples lenda, ela precisava da outra metade. A arquidiocese já esperava por esse feito da criatura. A Cobra destruiu uma praça e matou pessoas que transitavam pela rua. As beatas rezavam ajoelhadas no chão; os padres jogavam água benta contra a cobra, mesmo que não pegasse nela; o exército havia preparado uma emboscada; um tanque de guerra se aproximava vindo da rua oposta. O primeiro tiro foi dado e abriu um buraco no tronco da cobra. Ela urrou de dor, se virou para o tanque, pulou sobre ele e o engoliu. Soldados atiravam contra a criatura, enquanto ela pegava o corpo de um deles e o mastigava, como um humano masca um chiclete. Diego precisava ser rápido. ••• O rapaz, sem escolha, teve que roubar um ônibus, o que não foi difícil, dada a situação em que a cidade estava: em chamas, cheia de destroços e com pessoas que estavam mais preocupadas em salvar a própria vida. A espada estava enfiada na bainha de couro em suas costas. Diego dirigiu o automóvel em direção a Basílica que, pelo que as lendas diziam, era onde o rabo da cobra estava. O brilho azul, que a Matinta havia alertado, o guiava pelo caminho. Enquanto passava pelas ruas, ele testemunhava a destruição: praças, prédios, casas, pessoas, sangue, tudo morto
e destruído. Aquela era a ira da natureza. As lendas viviam em suas floretas observando a destruição de seu Reino; até que eles cansaram de vivenciar aquilo. Realmente a civilização estava se esquecendo de preservar a fauna e flora amazônica. Mesmo Diego tendo que matar a Cobra, ele tinha esse pensamento. As lendas só estavam fazendo o que qualquer um faria: se protegendo do monstro, que às vezes, é o ser humano. A terra tremeu pela sétima vez. Sete era o número da sorte de Diego. Ele parou o ônibus perto do que restava da Praça Justo Chermont. A cobra estava na frente da basílica, o resto de corpos de padres e beatas era evidente e cruel aos olhos de quem presenciava a cena. Os soldados atiravam sem parar, mas sem sucesso algum. — PAREM! PAREM, PAREM, PAREM! – gritou Diego quando chegou perto dos soldados. — Afaste-se jovem, se quer poupar a sua vida! – retrucou um soldado que continuava atirando. — Só eu tenho a arma para matar essa criatura – ele tirou a espada de ouro da bainha e mostrou ao soldado. O homem olhou para ele incrédulo – eu só preciso de cobertura. A cobra destruiu a primeira torre da Basílica. — AGORA! – ordenou Diego. Os soldados foram para dois cantos opostos, deixando a passagem do meio aberta para Diego. O rapaz correu com a espada em mãos e chegou perto da cobra. Ela sentiu a presença dele e levantou o rabo a fim de esmagá-lo, mas ele se desviou com uma pirueta. A besta se virou e urrou em seu rosto, os olhos vermelhos dela pareciam cansados. — BAFO DE ONÇA! PELE FALSIFICADA! ACABA COM ESSA TUA MARRA QUE TU NÃO TÁ COM NADA – Diego correu em direção ao corpo da Cobra e enfiou a espada nas costas dela. A Boíuna urrou com tanto fervor que a terra tremeu pela oitava vez. Ela balançou o rabo e jogou Diego contra o monumento da Praça. A espada pulara das costas dela e o local da fincada estava espumando, uma gosma amarela saia.
Diego puxou o ar que lhe faltava, a Cobra havia acertado seu peito em cheio. Quando ele viu o local da ferida nas costas dela, não pôde conter um sorriso. Mas a criatura não sorria, muito pelo contrário, queria vingança. Quando ela abriu a boca Diego se esquivou pensando que ela queria lhe engolir, mas de lá saiu uma rajada de fogo amarelo e ardente. — Ah, ‘cês tão de sacanagem com a minha cara – revoltado, Diego correu até a espada que estava caída – ei, cobra que cospe fogo. Tá na hora de voltar pro inferno. Ele sabia que aquele era um lance perigoso, mas, mesmo assim, tentou. Os tiros ainda ressoavam e atingiam a cobra, mas parecia mais como mosquitos lhe perturbando. Ela ainda lançava fogo sobre as árvores e, ao mesmo tempo, queimava soldados. Diego levantou o braço e lançou a espada contra a cabeça da cobra. Ela fincou PERTO do olho. — Destino, você anda muito zoeiro – resmungou revoltado e bateu o pé no chão. A Cobra enlouqueceu e caiu em cima da Basílica destruindo-a de uma vez por todas. Ela cairá desacordada, era a chance para Diego enfiar a espada no olho da besta. Ele tentou andar no meio da poeira e das pedras, com dificuldade chegou até a cabeça dela. A criatura era quente e bem gosmenta, as escamas eram de dar agonia. Ele montou em cima da Boíuna e retirou a espada. Neste momento, uma pedra caiu no rabo dela, despertando-a. A Cobra levantou e Diego se segurou em suas costas escamosas e pegajosas. Ele lembrou-se de que quando aquilo acabasse deveria tomar banho vinte vezes. — Já chega de brincar, BOÍUNA – ele retirou a espada reluzente de perto do olho dela. Respirou cansado e, finalmente, enfiou-a nos olhos da criatura. Sem dó nem piedade. A situação que se seguiu foi muito rápida: a Cobra guinchou tão alto que foi possível ouvir em Manaus e a terra tremeu pela última vez por quarenta segundos que pareceram horas. Diego foi lançado ao chão. Sua queda foi amortecida por
uma cadeira da Igreja, mas, mesmo assim, ele não saiu ileso, quebrou o braço e desmaiou logo em seguida. A Cobra Grande se contorceu mais do que nunca. Ela saiu destruindo tudo. O fogo de sua garganta alcançava o céu. Alguns soldados foram esmagados e as construções remanescentes destruídas. Do seu grande olho vermelho saia muita gosma amarela, era perceptível que ela estava secando e diminuindo de tamanho. As balas das armas perfuravam as escamas. Aos poucos ela foi se transformando em uma... centopeia verde amarela pequena. Os tiros cessaram e a espada foi cuspida pela segunda vez. Um soldado correu em direção a centopeia que tentava fugir. — Sua maldita dos infernos, vagabunda, ordinária... – ele continuou xingando enquanto pisava em cima do inseto. O que sobrou foi uma gosma verde e pedacinhos de casca. Era o fim do terror. ••• No dia seguinte era evidente a destruição de grande parte da cidade. Por ironia do destino, as maiores destruições eram em prédios e casas de pessoas ricas. A parcela da população que não tinha dinheiro teve muita sorte de não ter sua casa tragada pela Cobra. A notícia correu o mundo, ninguém acreditava que aquilo havia acontecido. Era algo tão surreal que qualquer outra coisa podia ser real, menos aquilo. Porém, mesmo que as pessoas tentassem fugir, a realidade era estampada no caos que se encontrava a cidade. Calculava-se danos de 3 bilhões de reais e outros danos irreparáveis como perda de patrimônios históricos. A presidenta do Brasil se mobilizou e deu uma quantia significativa para a reconstrução das principais construções, tais quais: moradia, hospitais e escolas. Contudo, Belém levaria anos para se recuperar da fúria da natureza. No Reino Amazon só havia tristeza por uma causa: a morte da Rainha e Matinta Pereira Mor. A velha não conseguiu
sobreviver, sacrificou sua força vital e mental. Os pássaros negros levaram seu corpo de volta ao Reino para um enterro descente. O cajado e o cetro foram levados também e até agora aguardam a chegada de um novo Rei e uma nova Rainha. O boto-cor-de-rosa, que havia tentado impedir Diego na frente do Palácio Antônio Lemos, sofreu sérios danos em seu corpo humano e foi obrigado a voltar para a água o mais rápido possível. Ele prometera a si mesmo nunca mais embarcar na conversa de alguém que possua cabelos vermelhos, mesmo que seja uma bela moça. A Espada de Magalhães Barata foi resgatada e o sangue amarelo da cobra em sua lâmina não foi limpo. Os peritos do Instituto Renato Chaves retiraram a arma do local e avisaram que ela será guardada em um vidro blindado em um Museu de alta segurança que será construído. Aquela espada poderia trazer bastante dinheiro com turismo para Belém. O prefeito da cidade voltara, mas a população, desgostosa, fez vários protestos a fim de depor o pilantra que, quando o aperto havia chegado, ele fugira. A população exigira um líder, forte e heroico. Alguém que tenha feito por Belém algo muito maior que representar a cidade em uma sala política. Diego era essa pessoa. Depois da queda, o rapaz foi parar em um hospital particular, lá ele recebeu o tratamento adequado para os machucados e finalmente foi liberado. Ele ficaria marcado até os últimos minutos de sua vida, aquela sim era uma aventura inesquecível e inacreditável. Quando saiu do hospital seu nome era aclamado pelas ruas, Diego que salvara a pátria de uma ameaça chamada Boíuna e que até então era tida como “lenda”. Ele foi candidato nas eleições e conseguiu vencer, sendo o primeiro prefeito jovem da história. No dia de sua posse ele não se esqueceu das palavras da Matinta e da lição que tirou de tudo aquilo. — Belém sofreu um atentado. Um atentado contra a civilização, contra os humanos, contra nós. Quem pensa que isso só foi mais um desagrado do destino, está enganado. A natureza cansou de ser idiota, cansou de servir de matéria prima e não receber o reajuste. A cidade sofreu danos
irreparáveis e alguns que podem ser ajeitados. Eu pergunto para vocês: e as nossas florestas? Não sofrem danos irreparáveis todos os anos, quando o GRANDE ser humano polui seus rios e lagos com as suas grandes empresas? O ser humano que polui o ar com os carros e outros meios de transporte acompanhado da fumaça de fábricas. O ar poluído, a água poluída... são danos irreparáveis. O que podemos fazer é evitar, prevenir-se e reeducar-se. As florestas, a fauna e a flora são coisas que podemos reparar, plantando uma árvore, evitando o desmatamento, as queimadas... evitando que o nosso ego de querer sempre correr atrás do poder ultrapasse os limites. Afinal, as cidades são selvas de pedra e florestas de tijolos. Quando acontece um dano, imediatamente o reparamos a fim de não causar um rebuliço na população. Por que não pode acontecer isso com as florestas? Chega uma hora em que ninguém aguenta mais e até mesmo as lendas despertam de seu sono, a fim de acabar com a destruição de seu Reino. Preservem, porque um dia tudo isso vai acabar. E quando acabar, ocorrerá destruições muito mais grandiosas que as vividas aqui nesta cidade. Usem a cabeça, vocês são os GRANDES SERES HUMANOS. Nós somos. Vamos honrar o mérito que temos. Obrigado a todos. Diego viveu para proteger a Amazônia, as florestas, as águas, a matéria prima. Nunca mais namorou e nem pensou em se casar. Ele contou que se apaixonou um dia, por um amor impossível, e que nunca mais se apaixonaria novamente. E assim foi. A revolta das lendas se acalmou e as mudanças nas florestas foram notadas. Mas ainda havia muito trabalho para reconstruir o quase impossível. Trabalho para reeducar a mente humana.
Imaginação Esther Martins
u conheço uma história; uma história única. Que conta que o amor supera todas as barreiras. Que conta que quando perdemos totalmente a esperança, uma porta se abre. A realidade é que nós colocamos uma fechadura em toda a porta que abre. Que seguimos todas as regras. O feliz é ser o que
você é, é acreditar. É ser livre, é curtir todos os sentidos, todos os cheiros, todos os objetos. É observar com os olhos do coração àquilo que nunca demos valor. Nós colocamos rótulos em tudo o que pode dar uma boa história. Impedimos a felicidade alheia. E eu conheço a história de uma pessoa que se apaixonou. Ela era alegre, independente... mas tinha medo: medo de contar a sua paixão. Ela guardava para si. O assunto era delicado. A menina-mulher só sabia de uma coisa: ela queria aquilo. Daria braços e pernas para isso. Uns acusavam vício; outros, obsessão. Mas, a questão era acreditar. E se ela acreditava, então era verdade. Era verdade o mundo em que ela se trancava. Era verdade o mundo que ela acreditava ser real... para ela. Se segurava em galhos prestes a quebrar porque gostava da dor. Ela fazia lhe sentir viva. Gostava também do drama e a sua vida era cheia disso. Admirava a música e a maioria delas descrevia exatamente o que sentia. Tudo tinha um sentido. Loucura? Insanidade? Perda de tempo? Mas ela amava. Ela amava o que não era real. Ela não escutava e nem sentia. Algumas vezes até se perguntava se aquilo existia ou era apenas ilusão. Em cada sombra ela o via. Em cada buraco, ela o via. Em tudo era ele. Era uma dependência, uma crença exagerada. Mas era o "Penso, logo existo." Ela não o escutava. Ela não sabia se ele ainda habitava em sua cabeça. Ela não lhe tocava. Ela não sabia se ele existia. Era uma agonia invisível. Era uma agonia interminável. Era uma história curta e triste. Ela havia se apegado a única coisa que lhe parecia real. E, as presas de quem amava, apareceram... só para lhe alertar do perigo dos sonhos. E assim, desapareceu. Assim como apareceu. Nada mais existia. Ela não sentia mais nada. Ela havia desistido de amar e de sentir dor. De tentar provar. De ter esperança. O sangue se espalhava no chão. O sangue dela. E o sangue inexistente do seu amado. Ali haviam morrido duas pessoas. Dois seres. Uma pessoa e sua única paixão, que no fim, era si mesma.
Como Havia Prometido Henrique Lacerda
s sorrisos ressonavam entre as ĂĄrvores. Dois vultos distintos se procuravam entrecortando o bosque. Clemencie mantinha alguma vantagem sobre Domenico, apesar do vestido pesado de veludo azul. Ela acreditava que o corpo pequeno e os ossos leves a ajudava, mas estava enganada. Domenico treinava com o exĂŠrcito do Reino
há cerca de dois anos e os soldados não o poupavam apesar da pouca idade. Ele havia reduzido os passos poucos segundos após a largada e vinha culpando os adornos de ferro e bronze pelo atraso. Clemencie meneou o pescoço e os olhos cintilavam, procurando por Domenico. O sapato dela encaixou na saliência de uma raiz lodosa, alçando-a em um voo curto. Domenico inclinou o corpo para frente e alcançou Clemencie mais rápido do que podia imaginar. Com o corpo sobre o dela, levantou o vestido e atestou que um osso da perna estava deslocado. Bastou um pequeno toque para que ela projetasse um ruído de dor morticínio. O período entre soldados substituiu a infância de Domenico por uma maturidade precoce e deu-lhe um conhecimento básico sobre primeiros socorros. — Isso doerá um pouco — ele disse. — Você tem certeza? — Clemencie perguntou em um tom fraco, protelando a investida de Domenico. — Tem certeza que consegue fazer isso? Ele confirmou com a cabeça, o olhar rígido e concentrado. Contudo Clemencie não estava confiante. — Vá até meu pai, diga a ele o que aconteceu. Ele reunirá uma equipe médica ao meu encontro. Domenico olhou sobre o ombro, não alcançava o vilarejo entre tantas árvores. — Não haveria tempo — calculou. Olhando nos olhos dela com candura, ele continuou: — Eu posso fazer com que seu osso volte ao lugar. Só preciso que você não olhe e de bons tampões de ouvidos. — Está doendo muito – sussurrou Clemencie. — Confia em mim. Ela assentiu com um movimento de cabeça. Clemencie tinha um olhar temeroso. Domenico meneou a perna dela para o lado oposto à contusão, rapidamente para que ela não pudesse protestar. Clemencie apertou os lábios e seu rosto foi tomado por uma expressão de horror. O grito alto subiu ao topo das árvores, assurgindo os pássaros que alçaram voos distantes. Domenico jogou o corpo para trás de um jeito instintivo e a cabeça de
Clemencie pousou sobre a grama alta com cuidado. Ela respirava calma e branda. Domenico rastejou sobre a grama, apoiado nos antebraços. — Então, como está se sentindo? — ele perguntou. — Absolutamente normal — respondeu com um ar afetuoso. — Você. Me. Salvou. Clemencie realmente parecia vê-lo como um herói. — É – a voz dele estava presa na garganta, atada por um nó. Domenico coçou a nunca antes de continuar: – Eu faria outra vez se fosse preciso. Ela meneou o corpo, de modo que seus braços se encaixavam nas laterais dele. Sua respiração era quente e agradável sobre o pescoço de Domenico. – Eu estarei sempre contigo, Clemencie – reforçou, articulando a voz como um verdadeiro soldado. – Eu prometo que vou sempre te proteger até com minha própria vida, onde quer que você esteja. Em quatro ou cinco dias do aniversário de morte dos soldados que lutaram contra a invasão no Reino, uma soma de dor e honra reabriam as fissuras no peito de Clemencie. Dentre os mortos: Domenico. As semanas de choro deixaram um tom avermelhado em seus olhos. Ela passava as manhãs sob uma árvore de galhos fibrosos a alguns metros do vilarejo. Os dedos acariciavam o cordão dourado que ganhara de Domenico ao completar dezessete anos. Não era feito em ouro ou prata ou qualquer outro metal conhecido, segundo os ourives do Reino. Clemencie o carregava como um amuleto desde que Domenico havia entrado em combate. Por mais que não tivesse lhe dado a sorte de trazer o garoto com vida, era sua única lembrança física que tinha sobre dele. — Não deveria estar aqui — a sentença vinha tão próxima ao ouvido dela que a fez estremecer. Antes que pudesse identificar de onde vinha àquela voz a ouviu novamente — As pessoas não veem com bons olhos uma garota tão longe do vilarejo e sozinha.
Um vulto pousou a frente de Clemencie e levantou vagarosamente, revelando uma figura masculina e jovem. Os olhos avelados e profundos acertavam-na em cheio. — Quem é você? — perguntou Clemencie de assalto. — Peter. — Peter... — Saber apenas aquilo não a satisfazia. — Apenas Peter — confirmou com frieza. — E você, garota? — Clemencie de Bomsdrato. — De família nobre, eu presumo — disse, inclinando-se teatralmente à frente dela. — Não! Filha de um mercantilista. Qual sua família? Trabalham com o que? — Pouco importa — descartou. O tom rígido e técnico lembrava o que Domenico vinha adquirindo ao passar do tempo em que viveu entre os soldados. — O que você faz aqui? — perguntou Clemencie. — Sinceramente… Eu não faço ideia. — Você me assusta – confessou. — De onde você veio? — Lá de cima — disse, levantando o olhar sobre os troncos gigantescos da árvore. — Não há nada lá em cima — ela observou. — Eu vim do nada. — Você é poeta? — Acho que não. — Era a primeira vez que seu tom adquiria um ar dúbio. — Sou Peter e nada mais. Não entendo o porquê de tantas perguntas sobre quem sou e de onde vim. Não reparou quanto tempo perdemos nesse interrogatório desnecessário? — Se eu te perdesse, onde poderia encontrá-lo? — Clemencie insistiu nas perguntas. — Não acho que o faria. Não há motivos para querer me ver outra vez — seu pescoço ia caindo para um lado, depois para o outro, como quem quisesse estalar os nós. — Realmente você não sabe o que fala. — Ao menos sabe quem sou? Clemencie emudeceu, passou o olhar pelas laterais, mordeu distraidamente a parte interna das bochechas e
contraiu os ombros. Peter era apenas um rapaz que ela acabava de encontrar. Seu jeito centrado e o olhar profundo impediamna de conhecê-lo além das palavras que saiam pelos seus lábios. Contudo, aquela mesma atitude que o tornava distante, despertava uma sensação de familiaridade e conforto que forçavam os pensamentos de Clemencie a Domenico. — Eu sei por que você está aqui — concluiu Clemencie com os olhos saltados. Enrolou nos vestido algo que Peter não pudera identificar com os olhos distraídos. Peter estabeleceu uma distância entre ele e a garota, os pés arrastados como se protestassem sua atitude. — Ah, e, por favor, não pense que está sozinha — disse sem olhar nos olhos dela. — Mesmo longe, estarei aqui com você. E de qualquer coisa que possa vir lhe ferir, eu a protegerei, que seja com minha vida. Clemencie passou os olhos das mãos para Peter, porém ele não estava mais lá. O gramado seco sequer registrava suas pegadas. Ela mordeu os lábios, revelando uma adaga entre os panos do vestido. Apertou os olhos com força, confiante que não desistiria no percurso. A lâmina rasgou o vestido abaixo dos seis, tocando-a a pele com frieza. Com as mãos fechadas sobre o punhal, contraiu a adaga contra o corpo. O berro reprimiu-se em sua garganta. Peter caiu sobre os joelhos e Clemencie parecia extremamente distante. A camisa manchada e embebida com o próprio sangue, o corte ardiloso sobre a pele. O sangue formando uma poça letífera sobre a grama dourada. Clemencie abriu as mãos, o corpo esticado sobre o chão. Sem sangue, sem dor, sem adaga. Ainda viva
Fantasias e Ilusões Diego Tavares
Muitas vezes os sonhos são capazes de nos levar a realidades completamente opostas de nossos cotidianos. No entanto, poucos são os que os controlam, manipulando a realidade dos sonhos como se fossem verdadeiros deuses. Tudo corria bem até que certo homem de meia idade, possuindo tal habilidade, acaba perdendo-se numa onde de Fantasias e Ilusões.
E
ra o inicio da chuva. E com ela as nuvens estavam cinzentas, quase melancólicas. Já era final de tarde e as ruas já estavam todas escuras e cheias. Cheias de pessoas saindo de seus trabalhos e voltando as suas casas. Cidade grande e o movimento eram intensos como de
costume. A situação ficava mais caótica quando chovia. Nesse vai e vem de carros, motos e pessoas, em meio a um oceano de arranha céus, um homem vestido de terno e roupas formais adentrou a um prédio residencial. O velho porteiro dormia deixando uma pequena tevê ligada a sua frente. Passou por ele e entrou pelo elevador. Com relógio de pulso, indicando ser 6 e 15 da tarde, apertou o botão “13” das opções. E aguardou até que as portas se abrissem e pudesse chegar ao seu apartamento. Chegou. E nele era possível ver como aquele ambiente era espaçoso e bonito. Sentado no sofá e de frente para a tevê, um adolescente mexia no notebook sem soar um único ruído, e muito menos notando a presença de quem acabara de chegar. Entrando em seu quarto, percebeu que a esposa estava dormindo na cama. Na cabeceira ao seu lado, pôde ver duas caixinhas de remédio tarja preta. Em silêncio, o homem de meia idade tirou os sapatos, o terno e a camisa branca que vestira, mostrando seu tronco magro. Tirou também o relógio e o pôs na cabeceira que ficava em seu lado da cama. Prestou atenção no movimento do ponteiro que indicava os segundos, e percebeu como ele parecia mover-se mais demorado. Como se cada segundo levassem dois ou três. Sentou e deitou sobre a cama, virando o rosto e olhando fixamente o movimento dos ponteiros. Seus olhos pesaram buscando o sono. Buscando a válvula de escape que o daria pelo menos alguns momentos de satisfação. Assim sendo, dormiu e entrou em seu mundo. Seu verdadeiro mundo. ••• A praia estava ensolarada e com pouquíssimas pessoas tomando sol. Em sua maioria eram lindas mulheres, com corpos grandes e cheios de curvas. Sobre uma cadeira de praia, o homem estava sorridente, com óculos de sol e uma lata de cerveja nas mãos. No entanto, algo estava diferente. Seu corpo não era mais magro, beirando a desnutrição. Era forte,
musculoso. Parecia até mais jovem. Parecia ter diminuindo muitos anos de vida. – Ei, Gustavo, seu lindo! O que está fazendo aí sozinho? – disse uma louraça de seios fartos e rosto delicado e belo. – Vamos tomar um banho de mar e aproveitar esse verão! – ao lado da loura, uma morena de cor de chocolate disse com extrema empolgação. – Tudo bem, meus anjos. Vamos curtir um pouco essa praia – assim, fazendo a lata de cerveja desaparecer instantaneamente de suas mãos, levantou-se e foi banhar-se com as moças. No mar, o trio fez tudo o que pudera fazer para desfrutar dos prazeres da carne. O sol nunca ia embora e o tempo não passava. No entanto, seus desejos poderiam mudar e serem realizados quando quisesse. Cansado de se divertir com as duas mulheres, dessa vez decidiu algo inusitado. ••• Dentro de um luxuoso quarto do Copacabana Palace, Gustavo comia um pedaço de bolo de chocolate. Sua expressão transbordava de satisfação. Seu corpo, no entanto, parecia ficar mais forte. Seus músculos ficavam cada vez mais definidos, à medida que engolia o bolo. Lambuzava-se completamente como uma criança que ainda não conseguia comer sem se sujar. Terminando a refeição, sua boca limpou-se, sem a ajuda de nada, como se aquilo fosse magica. Partindo para sala, encontrou sua esposa. Mas ela também estava diferente. Sua face estava feliz, sorridente. Totalmente diferente daquela pessoa que ele via dormir. A mudança não estava só aí. Seu corpo também mudara. Agora, não era mais uma magricela. Era uma mulher de belos seios e corpo monumental. – Amor, vem cá ficar comigo – com voz doce, a esposa o chamou acenando para deitar de colchinha no sofá. Assim que se deitou por traz, envolvendo os braços sobre a mulher, seus olhos pesaram e se fecharam abruptamente. •••
Trovoada. O eco dos estrondos entrava pelas janelas do quarto, bem como a chuva que não dava trégua. Abrindo os olhos, Gustavo viu que já eram 9 e 30. Remexeu-se pela cama, e notou que a esposa ainda estava dormindo. No entanto, já era noite e o inicio de chuva já se transformara num temporal. Com olheiras, fechou todo o quarto e por uma pequena abertura da porta, viu que o garoto continuara fixado em seu notebook. Fechou a porta e deitou novamente para dormir. ••• Todos vestidos de branco, os amigos festejavam como se estivem no réveillon. Bebiam champanhe e estavam acompanhados por belas mulheres. Gustavo, o mais animado do grupo, ficou em cima do sofá e começou a cantar, parecendo bêbado. A galera ria, se divertia e estimulava a algazarra. Aos poucos, fora tirando a roupa. Começando pela camisa e terminando, ficando só de cueca. As mais belas daquela festa, foram pra cima dele beijando seu corpo, enquanto que os colegas também tiraram as roupas, tentando pegar, cada qual, alguma moça para se divertir. A bacanal estava feito. Com muito bebida, musica eletrônica bem alta e Gustavo com seus amigos se divertindo com as mulheres. ••• Depois da diversão, todos dormiam. Deitados nus no chão, uns em cima dos outros. O cheiro de bebida e cigarro entrava nas narinas de Gustavo, o ultimo que se mantivera acordado. – Que dor de cabeça! – pensara deitado com o crânio sobre as coxas de umas das moças que dormia – Mas porque ela não vai embora? Que dor maldita. Ah, dane-se ela – decidiu esquecer aquilo que o incomodava e fechou os olhos. Mas nada aconteceu. Fechou novamente. E nada. O coração começou a bater mais depressa e a expressão de seu
rosto demonstrara desespero. Tentou fechar os olhos com toda força que ainda restava, no entanto nada tinha acontecido. Um surto de fúria tomou seu corpo e levantou-se violentamente do chão, fazendo acordar algumas moças. – Levantem! – disse Gustavo com agressividade, chutando todos que ali dormiam – Levantem! Vão embora, seus inúteis! Vão embora! Agora! Sumam daqui! Assim, os amigos junto com as mulheres fugiram, sem entender o que estava acontecendo. Fugiram como quando jogamos agua num formigueiro e as formigas correm desesperadas. Sozinho, o homem levava às mãos a cabeça, sem entender o que estaria acontecendo com ele. – Calma, Gustavo! Pensa, pensa, pensa! O que está acontecendo comigo? Eu já era pra estar acordado. Não era pra estar nesse sonho. Tem algo de errado. Será que foi a bebida? Mas, espera. Essa bebida não existe! Ela não pode ter me afetado em nada. Como algo que não existe poderia me impedir de acordar? Jogou-se perplexo no sofá, tentando encontrar uma solução para seu problema. Mesmo que sua vida verdadeira fosso chata e monótona, ela ainda continuaria sendo a sua vida. E ele não pretendia ficar aprisionado nesta realidade, onde poderia fazer o que quisesse como um Deus. Mesmo que fosse tentador e lhe desse vários momentos de felicidade, Gustavo ainda preferia ter algum contato com a realidade. Com a verdadeira realidade. Inquieto, saiu do sofá e começou a andar pra lá e pra cá tentando pensar em algo. Até que acabou pisando numa das garrafas quebradas de champanhe. Seu pé sangrou algo que nem parecia sangue. Era preto como petróleo. Mesmo sendo algo estranho, Gustavo não se interessou sobre esse fato. Olhava atentamente ao caco de vidro, parecendo ter encontrado uma solução. – Eu já ouvi dizer que quando morremos no sono, acordamos. Não recordo de ter morrido alguma vez. Meus sonhos sempre são prazerosos. Mas talvez, eu possa tentar. Pegando o caco de vidro com uma das mãos, um dos dedos sangrou escuro como havia acontecido com seu pé. Mas novamente, isto foi ignorado.
O medo veio-lhe a mente. Mesmo estando num sonho, matar a si mesmo é algo difícil e que requeria coragem. Mesmo tendo certeza que nada de ruim poderia acontecer. Ofegante, Gustavo tentando acabar o mais rápido possível e enfiou o caco com violência no pescoço. – Agora, irei acordar a qualquer momento – pensara, enquanto o sangue extremamente negro espirrava para todos os cantos, sujando principalmente o sofá. Tudo a sua volta movimentava-se como uma transmissão de tevê com interferência. Como se o sinal com aquele mundo estivesse caindo, e a qualquer momento, Gustavo voltaria ao real. Doía muito o corte que fizera. Mas isso não o surpreendia. Todas as atitudes que fizera enquanto sonhava, o proporcionavam sensações de felicidade, prazer, satisfação, exatamente como na vida. Então já era de se esperar também ser possível sentir dor. Porem, ele não morria e por isso não acordava. Contorcendo-se de agonia e desespero, seu corpo começava a modificar, passando por uma espécie de metamorfose. Sua pele bronzeada mudava de cor, tomando uma tonalidade verde meio cinzenta. Os dedos cresceram, tornando-se longos tentáculos. O ambiente a sua volta mudava rapidamente. Dentro de poucos instantes ele tinha passado pela torre Eiffel, por uma pirâmide do Egito, por um arranha céu em Dubai, pela muralha da china... Até que tudo ao seu redor ficou branco, como se estivesse no nada. Seus olhos ficaram completamente negros, sem pupila, juntando-se formando um grande olho no centro do rosto. O corpo, não mais humano, tornava-se uma criatura de forma arredondada com grandes tentáculos. Agora, em seu estado natural, aquilo que parecia ser uma pessoa era na verdade um ser diferente de tudo que já foi criado pelo universo. Subitamente, pôde sentir que estava próximo do fim. Em um relance toda sua existência vinha à mente, fazendo-o lembrar de quem era. Principalmente fazendo-o compreender o que era. Mas já era tarde.
Sonho e realidade misturavam-se fazendo com que um e outro fossem quase indecifráveis. No entanto, para a criatura aquilo que os humanos chamavam de sonho, talvez fosse sua realidade, sua vida. Talvez aquilo que chamavam de vida, poderia ser apenas um sonho. Ou um pesadelo. Não importa. A criatura acabara de morrer, e com ela, os seus segredos. Um ser único deixava de existir... •••
– Amor, acorda. Acorda, por favor! – a mulher gritava, chorando ao lado do corpo do marido que estava na cama. – Pelo amor de deus, filho, liga pra uma ambulância. – na sala, o garoto com fones de ouvido não ouvia os gritos da mãe e continuava a acessar o notebook, como se nada existisse a sua volta. Lá fora, o tempo não estava mais chuvoso. Sobre algumas nuvens, uma grande lua cheia dava brilho àquela madrugada e assim, as fantasias e ilusões chegavam ao seu fim.
Sonhos Wilton Bastos
erta feita a Providência, por tardia benevolência, decidiu fazer do mundo um lugar onde os sonhos são. Sim: seria assim realizado cada sonho, sendo ele cônscio ou não. O sonho de fulano era ser um best-seller, o maior best-seller do mundo: conseguiria. O de beltrano era se casar com fulano:
igualmente, conseguiria. O de ciclano, rodar toda a Europa: outrossim, conseguiria. E assim sucessivamente, cada qual conseguiria. Nada obstante, havia dois “pequenos” “problemas”, dum cunho eminentemente prático para a consecução do tal mundo: um é que havia dissenso, cada concepção de mundo ideal, cada sonho, era tal que não coincidia com todas as outras; o outro é que havia mudanças, cada sujeito tinha seu ideal de mundo perfeito transformado a cada efetiva mudança em suas opiniões. Destarte, a Providência flagrava-se com um sutil (conquanto crucial) empasse: o mundo onde todos os sonhos concomitantemente são seria inexequível enquanto cada indivíduo sonhasse um mundo. Então, a Providência, providente, muito sabiamente, resolveu o empasse: cada indivíduo teria seu próprio mundo, seu universo, e este mundo seria consoante seu ideal, seu sonho. No improvável caso de os mundos concebidos por diferentes indivíduos serem exatamente iguais, compartilhariam tais indivíduos o mesmo mundo, enquanto seus sonhos mantivessem-se coincidentes, enquanto comungassem o mesmo sonho. Todavia, outro empasse então surgiu, este oriundo do outro motivo que insinuei acima: o ideal de mundo de certos indivíduos mudava, criando dissonância entre o mundo que a Providência lhe conferira e o mundo que eles então sonhavam. Então, a Providência, providente, muito sabiamente, resolveu o empasse: o universo de cada indivíduo se alteraria conforme se alterasse seu sonho, se adequando a ele. Perfeito: cada indivíduo com seu mudável universo paralelo sempre consoante seu presente sonho. Perfeito... Ou não: em cada universo paralelo, os indivíduos que não haviam naquele universo seus sonhos contemplados se flagrariam num universo exatamente igual ao que dera início a isso tudo, que suscitara a condolência da Providência. Desse modo, cada indivíduo estaria descontente, sem ter seu sonho realizado, num sem-número de universos, pelo bem de nalgum deles ter seu ideal observado. Triste, não? Para fazer cada sujeito feliz, a Providência fizera incontáveis vezes esse mesmo sujeito infeliz. A Providência se consternou. A solução óbvia em
tese estaria em alguém ter sonhado com um mundo onde todos os sonhos fossem realizados, mas isso, a Providência, com sua recente tentativa frustrada, sabia, era, em mercê dos dissensos, absolutamente inviável. Sem saber, pois, o que fazer, de todo desnorteada, a Providência, num último capricho, desfez seus últimos atos, recriando, assim, o universo único, onde, via de regra, muitos sonhos eram “só” sonhos, e alguns – quem sabe um dia – viriam a ser algo mais, alguns – quem sabe um dia – viriam a ser...
Sombras Felinas Rebeca Polizel
“Os híbridos de gatos são a união perfeita entre um ser humano e um espírito selvagem da terra. Estes seres são solitários, jamais desejando conviver em grupo, selvagens e sem sentimentos alheios a fome, raiva, desejo e felicidade. Um grande fator que contribuiu para sua quase extinção foram suas capacidades de consertar objetos quebrados e atrair “sorte”, sendo que não possuem escolha sobre tais habilidades.
Este fato fez a cobiça dos homens quase os extinguirem para posse. Em vingança, com o passar das eras, a carne humana acabou por tornar-se o alimento favorito deles. Determinados, jamais voltam em uma decisão. Se encontrar um híbrido de gato, fuja, porque provavelmente você será o prato principal.”
E
ra o que dizia o livro “Mitos e Verdades - A Arte da Defesa”, aberto de modo esdrúxulo jogado ao beiral da cidade, enquanto uma jovem adornada em verde claro corria para a mata sombria e afastada. Um grito agonizante ao fundo a impeliu de continuar. Na penumbra da noite, correndo com o tórax oscilando rapidamente de cima para baixo, o vento selvagem invadiu suas narinas com o cheiro do orvalho. Sentiu-se cega brevemente, pois seus olhos avistavam sombras fugazes adornadas pela lua, e a lamparina que carregava fora deixada pela pressa. “Porque toda vez que nota-se que está sozinho, pensamentos assombrosos vêm lhe atormentar numa deliciosa sinfonia macabra?” perguntava-se Aderet, correndo em alta velocidade cada vez mais ao centro da mata. Pensando em ocasionalmente parar, foi impedida ao avistar um par de olhos brilhantes e amarelos, que a obrigaram a aumentar a velocidade da corrida com seu vestido pesando cada vez mais, devido ao resvalo contra a terra molhada pela chuva da tarde. Era outono e em agonia seu estômago revirou, faltando ar aos seus pulmões, enquanto ouvia o barulho denso da floresta povoado por cigarras e grilos saudando a lua cheia. Ela tremulou antes de deixar as pernas cederem ao chão em uma pequena clareira, onde só era possível para os frágeis olhos castanhos enxergarem quatro palmos a sua frente, onde sombras folhosas dançavam banhadas pelos raios tantas vezes descritos como mágicos. Constatou que estava perdida enquanto seu cabelo levemente grudava no rosto úmido devido ao esforço empregado em sua fuga. Não sabia exatamente como, porém fugira de seu agressor. Lembrou-se do pai enquanto alisava os
braços sentindo o frio cortante em contraste com seu corpo quente, coberto pelo sedoso vestido sujo de lama. “Nunca ande a beira da cidade...” ele sempre repetia, “há monstros lá, e não falo de fantasmas dos seus livros bobos, falo de homens a beira da sociedade” lembrou-se mordendo o lábio e sentindo um gosto metálico rubro. Descobriu assim que não deveria ter desobedecido a seu pai da pior maneira possível. “Nunca nada acontecera em três anos, porque justo agora?” Martelou os pés sobre a grama úmida observando ao redor. Certamente seu agressor sumira. Nervosa, a garota ajuntou as mechas de cabelo que pendiam e grudavam colocando-as atrás das orelhas, enquanto se acalmava. Avistou uma pedra próxima e com certa dificuldade engatinhou até ela para sentar-se. Lá, viu que seu salto de madeira, de um dos sapatos, estava quebrado. Brancos anteriormente, agora possuíam uma leve coloração desagradável, puxando para um fitilho lilás encharcado. Assim que notou o estrago, livrou-se dos mesmos. A menina de média estatura precisava analisar suas opções. Ela estava no meio do bosque e a lua estava quase acima de sua cabeça, porém com uma leve inclinação para o leste, o que lhe indicava que ainda faltava quase uma hora para a meia noite. Um calafrio nada relacionado ao vento cortante percorreu sua espinha enquanto ela piscava nervosamente os olhos. Existiam lendas sobre monstros na floresta, e mesmo sendo “racional” como seu pai lhe insistia dizer, animais selvagens não haveriam de faltar. Tentou cambaleante se por de pé, ao passo que uma dor aguda rompeu-lhe no calcanhar direito. Ao olhar para baixo, viu um leve rastro vermelho alastrar-se e misturar-se ao verde vívido da grama. Olhou ao redor frustrada e tornou a sentar-se, não poderia deixar tal ferimento aberto. — Será mel para moscas... — concluiu enquanto rasgava um bom pedaço do vestido favorito e o atirava ao lado com o cenho franzido. Aquele pedaço era inutilizável devido à quantidade de lama e renda, para em sequência rasgar outro pedaço do tecido liso esmeralda. Os babados em verde claro, que tanto lhe
encantaram na loja, não eram mais necessários nesta situação. Sorriu com a situação. Apertando bem o torniquete ao dar um nó duplo, observou seu trabalho por alguns instantes, satisfeita. Com profunda amargura, lembrou-se de sua atual situação enquanto os barulhos dos animais notívagos a amedrontavam. Rapidamente começou a cantar para afastar o medo como lhe fora ensinando por sua mãe, uma velha canção e, enquanto tamborilava a leve melodia, percebeu algo estranho que a fez emudecer prestando atenção. Ela não ouvia nada, nem o cantar das cigarras nem o crocitar dos sapos, nenhum barulho a não ser sua respiração cada vez mais lenta. Um gosto amargo invadiu sua garganta enquanto suas mãos nervosas tentavam segurar-se firmemente à pedra como se esta lhe fosse um bote em meio ao mar. Sem nenhum barulho, ele apareceu em meio ao verdeterroso banhado pela lua que agora era coberta levemente por nuvens passageiras. Aderet, por breves instantes, focou no par de olhos redondos e brilhantes pensando ser seu perseguidor, para então dar-se conta de que era algo pior, muito pior em sua mente infantil. A criatura estendeu o peculiar pé para fora dos arbustos revelando-se de corpo inteiro com a lamparina da menina a sua frente, causando ao tom bruxuleante do fogo uma imagem aterradora. Coberta com um terno do século passado em roxo-escuro gasto e rasgado em suas bordas, sua silhueta lembrava claramente um homem, se não fosse o leve detalhe de que no lugar das mãos o ser possuía garras afiadas cobertas de pelos e pés que mais pareciam patas em uma cor marrom escura, misturando-se brevemente à terra fofa. Porém, nada era tão espantoso aos olhos da menina do que a face do mesmo. Com os olhos puxados e redondos com fendas negras compridas sobre íris verdes, adornado com uma vasta cabeleira desgrenhada com uma mistura de terra e folhas sobre o pelo negro, nada a assustou mais do que quatro dentes compridos
saindo levemente para fora da boca com lábios acinzentados que era levemente puxada para o centro em direção ao nariz. Ela tentou gritar, porém foi impedida por uma garra que se pousou sobre sua boca, com uma das garras fazendo-lhe um leve risco vermelho na bochecha. Piscou nervosamente várias vezes e não fazia a mínima ideia de como ele chegara tão rápido até lá. Começou a chorar copiosamente. O ser tão estranho fechou os olhos apertando as pálpebras como se estivesse fazendo muita força e abriu brevemente a boca, mostrando à jovem inúmeros dentes serrilhados, o que a fez parar de chorar para observá-lo assombrada. Era seu fim. Repreendeu-se por não conseguir ao menos lembrar-se de uma oração, enquanto a luz da lamparina dava a cena uma sordidez jamais presenciada pelos inocentes olhos. — Por favor, fique quieta. — o esforço e a movimentação que ele fazia para enunciar cada sílaba eram perceptíveis, porém em seus ouvidos a frase saiu como um rugido rouco de alguém resfriado — Não desejo lhe fazer mal por enquanto. Hesitante, o ser retirou a mão sobre a boca da jovem enquanto crispava os lábios estranhos. Ela, perplexa, assentiu tremulante. Pensava que não possuía muita escolha e ficou quieta observando assustada a figura imponente a sua frente, não fazendo a menor ideia do que “aquilo”, como chamou em sua mente, poderia ser. A criatura abaixou-se três vezes chegando a ficar de cócoras para por fim levantar-se com um leve espreguiçar, ficando de costas para a morena, que com um gritinho percebeu que tal ser possuía um rabo. Ele primeiramente estranhou a reação tardia da menina, para ao virar-se e perceber com o que a menina se assustara. Com um sorriso anunciou: — É, eu tenho um rabo... e acredite, é muito prático— findou relaxado enquanto apoiava-se em uma árvore próxima a pedra em que a garota se sentava. Se ela esticasse o braço esquerdo poderia tocar seu rosto. Rosto esse que, quando sorridente, era uma das coisas mais estranhas que Aderet já deslumbrara até em seus remotos sonhos.
— Eu sou Malka — disse a criatura recostando-se de modo a ficar mais próxima enquanto abaixava-se para colocar a pequena e delicada lamparina um pouco mais distante. Seu rabo balançava de um lado para o outro — o que causava na menina desespero, tanto que Aderet, não aguentando o silêncio, levantou-se. — O que quer de mim? — perguntou virando-se de costas para Malka. Aprendera desde pequena que na sociedade atual do século 19, não se poderia confiar em ninguém. Todos sempre querem algo. Com um choque súbito ela sentiu um leve suspiro acima de seu pescoço. — É simples... Sou um ser das trevas prestes a devorá-la e que está se divertindo com a comida. Ela só conseguiu arregalar os olhos antes de sentir sua cintura ser pressionada de ambos os lados até ser virada em 180 graus para ficar frente a frente com os orbes assombrosamente amarelos cortados por uma fina linha vertical negra, anteriormente sua cor favorita, e agora talvez, em seu mais secreto pensamento, a última cor que veria em vida. Ele inspirou fortemente, sorrindo, e soltou um suspiro satisfatório. — Sabia que posso sentir o cheiro do medo exalando de seus poros? — completou rindo de modo maligno enquanto inclinava levemente a cabeça para trás. Aderet estava desesperada tentando sair em meio às garras da criatura até que avistou a luz fugaz próxima ao seu pé, derivada de sua tão amada lamparina, e em um surto de coragem a chutou em direção ao seu agressor. Ele rapidamente a soltou enquanto chutava o pequeno lampião contra uma árvore, o esmigalhando em pequenos e cintilantes pedaços de vidro que tilintavam sobre a chama que se alastrava demoradamente sobre a grama molhada. Ele foi até aquela direção, soltando-a bruscamente. Aderet desejou correr, porém, não sentia suas pernas quando ouviu um sussurrou rouco: — Você não deveria ter feito isso — falou o híbrido enquanto pisava sobre a chama com a pata nua, extinguindo-a. Ele virou-se de modo macabro.
— Por culpa sua acabo de quebrar sua lamparina! — ele gritou a fazendo ficar em estado inerte — Eu andando calmamente, observando a cidade, resolvo ajudar uma jovem e ainda conseguir meu almoço... —discursando sobre suas decisões, prosseguia —... E então ao contrário de me agradecer por ter retirado o agressor dela de circulação, a débil sai correndo em direção a minha mata enquanto larga uma lamparina longe, que poderia causar um principio de incêndio, até aí tudo bem! — ele parou respirando um momento com dificuldade inflando as narinas enquanto cobria os olhos com as garras — Isso já me era motivo para matá-la! — concluiu voraz — Mas... Desejo ser bom ao menos uma vez, então venho devolver a lamparina inútil para a criança humana inútil... E você me faz quebrá-la! — gritou — Por que parece que você quer tanto morrer, criança? — ele fechou os olhos fortemente enquanto moldava o pescoço para o lado, produzindo leves estalares. Ela engoliu em seco, tentando assimilar tudo que ele lhe contara. Certamente se tivesse a intenção de matá-la já o teria feito, concluiu rapidamente. — Me desculpe... — disse enquanto de modo controlado, caminhava na direção do ser com a mão trêmula estendida — Me-me desculpe, senhor... Ele ainda nervoso parou brevemente de tremer, e abrindo levemente os olhos em direção ao luar suspirou. — Eu entendo, humanos são reles criaturas inferiores que precisam viver de aparências e que nunca procuraram a verdadeira razão da existência do ser — concluiu pesaroso — Minha mãe era humana também, e por conta disso, vou te levar de volta para seu mundinho de aparências, assim não fico devendo nada a sua espécie — disse com um leve asco na voz rouca. Ele brevemente estendeu a mão onde a palma era lisa e as costas possuíam uma grossa camada de sedosos pelos escuros e emaranhados selvagemente. Ela parou por alguns instantes observando onde estavam as... E de repente as garras negras brotaram e se recolheram.
— Ande, pode me dar à mão, eu sei me comportar quando estou de estômago cheio. Ela sorriu franzindo as sobrancelhas enquanto controlava o nervosismo ao segurar a mão da criatura, deixando os pensamentos correrem soltos. Nenhum som fazia-se presente com exceção do caminhar sobre as folhas escorregadias. Aquela criatura era a sua única chance de sair de tal lugar sendo que se tentasse fugir, duvidava que conseguisse, mancando, ainda mais contra um ser que se movia tão velozmente. Seria fácil para tal encurralá-la com um sorriso cruel e... Com um baque largou a mão do híbrido ao pensar naqueles dentes serrilhados lhe rasgando a pele e no grito horrendo que ouvira anteriormente. — O que foi? — indagou o monstro à jovem que agora olhava para os próprios pés. No momento, estavam sobre um local onde ela via cintilantes manchas de sangue que não lhe pertenciam. — Por que-por que quando passamos as coisas ficam quietas? — ela não disse a verdade, mas esta era uma questão que inquietava lhe a mente. — É uma questão de respeito e temor por parte deles, nada para se preocupar — disse fazendo pouco caso — Ande logo, se ficar parada muito tempo, vou ficar com fome de novo e não vai ser bom para você — ele findou, umedecendo os lábios acinzentados passando a língua sobre os dentes finos e brancos, enquanto novamente estendia a mão. Ela parou olhando da mão para os olhos amarelos. O híbrido fechou a mão e a colocou no bolso do terno velho. — Melhor andar perto se não quiser se perder — findou, virando-se de costas e andando um pouco mais rápido com o rabo balançando da direita para a esquerda em movimentos rápidos. Ela, com dificuldade por conta da dor que sentia, desesperava-se quando o via afastar-se gradativamente, esforçando-se para dar passos cada vez mais longos na tentativa de acompanhá-lo. Até que, cada vez mais, as árvores se tornaram escassas e desse lugar chagaram a um com fugaz brilho de casas e postes velhos de iluminação. Os olhos da
jovem brilharam e não perceberam uma fugaz amargura percorrendo um tremor de lábios curvados. — Bem, creio que é isso, seu mundinho é perigoso, mas não tanto quanto o meu. Se virar naquela esquina — ele apontou para a esquerda na cidade que estava há 4 metros de distância — Encontrará um guarda, poderá pedir ajuda a ele. Ela arregalou os olhos, perplexa. — Mas como sabe que tem um guarda na... — sendo interrompida por um leve remexer na cabeça da criatura, revelando duas fartas orelhas pontiagudas — Muito obrigada — disse deixando a frase morrer diante da conclusão absurdamente ilógica que obtivera. Ela rapidamente abaixou a cabeça quando o viu endurecer o olhar diante do agradecimento simples. Fez uma breve reverência com o vestido rasgado nas bordas. — Realmente, estou muito agradecida por ajudar-me a escapar da “Floresta Malka” — testou o nome lentamente enquanto permaneceu de cabeça baixa em respeito. — Acredite, senhorita... — ele falou enquanto se abaixava em uma leve reverência, puxando-lhe a mão — O prazer foi meu. Só espero não vê-la de novo, pois posso garantir que não desejará ver-me — sussurrou enquanto deferia-lhe um delicado beijo, sendo que rapidamente afastava-se, sumindo em meio à mesma escuridão da qual surgira. O que a jovem jamais esqueceu posteriormente foi como sua pequena lamparina intacta sob o livro que largara em meio à rua foi parar no beiral de sua janela. Também não soube explicar o porquê, porém, retornou outras vezes a floresta quando possuía medo ou precisava de sorte, jamais reencontrando tal criatura. Ainda assim, o fato mais curioso foi que, durante aquele ano, nunca mais ouviu um grilo ou cigarra cantar.
Crônicas de Dragonia: O Conto Arrematado Luiz Teodosio
uanto não seria doce e prazeroso para uma criança ouvir uma história fantástica, melhor ainda sobre dragões, enquanto o sono não o abraçava à noite? Pena que a voz do narrador inibia esse deleite. Enquanto que com a mãe, que era quem normalmente lhe contava essas histórias, Sef Dragomir sentia-se voando no dorso de um dragão
como se ele próprio fosse o personagem, com o tio ele ainda percebia o colchão macio da cama. Além disso, o estilo das histórias do tio Waldeck era sempre o mesmo: dragões que gostavam de devorar mulheres. Parecia ter um protuberante gosto por esses dragões malvados, claramente evidenciado quando chegava a hora de narrar as refeições, pois tio Waldeck proferia de uma forma tão maliciosa que até parecia ele mesmo quem estava comendo a pobre donzela. E o mais estranho de tudo era que sempre quando chegava a hora do guerreiro aparecer para derrotar o dragão, tio Waldeck encerrava a narração com a desculpa de que já estava muito tarde e precisava dormir para acordar cedo na manhã seguinte. Adormecer revolvendo na mente as imagens triunfantes de um vilão feroz certamente não é um final desejável para uma criança. Mas, felizmente, Sef era um menino de oito anos. O potencial imaginativo de uma criança é infinito e divertido. Por isso, ele mesmo resolveu continuar a historinha em sua cabeça. Mas aqueles tempos de maldade acabariam. Eis que um herói disfarçado entra na toca do dragão… A boca alargou-se deixando suas presas à mostra. As narinas expeliram um ar excitado. A cauda sinuosa movia-se de um lado a outro em ansiedade. E os olhos saboreavam a pureza na forma de uma mulher vindo ao seu encontro. Uma vez por semestre, os moradores do vilarejo de Paleon deveriam ofertar uma jovem virgem entre 15 e 25 anos ao dragão que residia na montanha próxima para que a fera não descesse de lá e queimasse o lugar. Um andarilho que passasse pela cidade pensaria que os vilões não ousavam enfrentar o dragão por medo de morrerem e verem o lar destruído. Porém, quem disse que os habitantes realmente desejavam a morte do dragão? Muito pelo contrário. Desde que a criatura surgira na aldeia há alguns anos, reavivando assim as lendas de outrora envolvendo Paleon e os dragões, o vilarejo tornou-se afortunado. Quem tinha pouco ou quase nada na mesa passou a se enfartar devido à melhora no gado e na agricultura. Quem
estava de frente à porta aberta para a morte natural ganhou, além de uma extensão de vida, uma vitalidade de alguém próximo dos quarenta anos. Quem sofria de alguma doença grave ou pequena alegrou-se com uma existência salutar e livre de quaisquer enfermidades (até mesmo impotência sexual era curada). Eram dádivas de deus, mais especificamente, de um dragão. Por esse motivo, a criatura chamada Josex era vista com respeito pelos habitantes, que não se importavam em pagar um pequeno preço por esses milagres. — Hm, que corpo saboroso — antegozou o dragão com sua voz cavernosa, avaliando a beldade achegando-se timidamente. A identidade da jovem, porém, era indiscernível. Uma extensa cabeleira avermelhada lhe cobria o rosto, revelado apenas pelas mãos do dragão quando este desejasse. Sim, exatamente. Mãos. Porque as garras da criatura, assim como todas as outras partes de seu corpo, regrediram para uma forma humana. Nenhuma vítima imaginaria estar diante de um homem de compleição vigorosa e desnudo em vez de um dragão prestes a comê-la. As mãos então puxaram as mechas do cabelo que ocultavam o rosto da donzela. Surpresa! Nunca aquelas feições pertenceriam a uma jovem e inocente senhorita. Muito pelo contrário, a fisionomia era masculina e desprendia agressividade. O dragão em forma de homem recuou dois passos, assustado, não por ser enganando pelos habitantes que lhe mandaram um homem ao invés de uma mulher, pois se assim fosse ele sopraria sua fúria que iria chamuscar sobre a cidade. O que lhe deixou enraivecido foi a identidade daquela pessoa; um rosto familiar de uma época em que a divina imponência ainda era um sonho. — Você… mas como? — o tom não era o de um dragão e sim de um humano chamado Waldeck. A súbita presença daquela pessoa exigiria uma forma mais altiva. Por isso a pele ganhava escamas e se esverdeava, os olhos retomavam a íris vertical e fendida, a mandíbula alargava-se para conter os dentes afiados, o rabo crescia, e
muitos outros aspectos de dragão se manifestavam um atrás do outro. Enquanto essa transformação ocorria, um vestido branco foi brevemente erguido. Um movimento ágil desembainhou uma espada e a girou na direção do inimigo, que só percebeu relances prateados no ar de tão rápido que foi o ataque. A lâmina atravessou o pescoço da criatura, fazendo o sangue jorrar e a cabeça que parecia um meio termo entre dragão e humano rolar pelo chão da caverna. — Agora eu sei porque você nunca me contava a parte em que o herói matava o dragão — disse Sef Dragomir para a cabeça decepada do tio.
Sacrifício Nathalia Nobre
halian era linda. Mesmo que não pudesse vê-la claramente na penumbra do quarto, seus traços eram o tipo de coisa que um homem — mortal ou não — dificilmente esqueceria. O cabelo negro caiu sobre os ombros nus quando montou sobre ele, emoldurando o
rosto delicado. A pele sedosa brilhava sob a luz bruxuleante das velas, dando-lhe aspecto de uma deusa do fogo. Os olhos — duas esmeraldas de um verde vibrante — o encaravam famintos, como se seu corpo fosse uma apetitosa especiaria. O corpo esguio se curvou sobre o dele, roçando os seios rosados sobre a pele morna de seu peito. Os lábios cheios se chocaram contra a linha dura de sua boca, convidativos, como uma fruta vermelha que acaba de ser colhida. Aquela ideia combinava à perfeição com tudo que era relacionado a ela. Desde o sugestivo papel de parede escarlate, aos detalhes em dourado que se estendiam por todo o cômodo, sobre as mobílias suntuosas, que poderiam ter pertencido a alguma rainha cortesã. A alusão a algo tão profano, o fez sorrir. A feiticeira deslizou uma unha longa sobre os contornos definidos de seu pescoço, forte o suficiente para que uma fina linha vermelha se formasse. — Eu adoro seu sangue mestiço... Corrompido desde que foi gerado. As comissuras dos lábios de Adam se moveram, mas o sorriso não alcançou seus olhos. Dhalian havia dito o mesmo, anos antes, quando estiveram juntos pela primeira vez. Naquela época, era apenas um rapaz das estribarias que não sabia muito a respeito de si mesmo, e não poderia dizer que estivesse corrompido de alguma forma até então. Havia crescido em Aisland, um reino onde a magia era proibida, e sua pratica era paga com a vida. Após a morte de sua mãe, decidiu deixar o lugar onde sua existência deveria ser um segredo, e foi quando se tornou um pupilo de Dhalian. Poderia ter colocado a mão no fogo em nome da bela mulher, e o certo é que teria se queimado. Ela era tão bonita quanto perigosa, e essa fora a primeira lição aprendida. A segunda, foi que apenas os homens fortes de coração sairiam vivos dali e os crânios que decoravam o salão principal, eram um lembrete de muito mau gosto. Durante muito tempo havia temido a feiticeira, tornandose além de pupilo, seu escravo e amante, até ser forte o bastante para ganhar sua liberdade. Na ocasião, prometera a si mesmo que nunca mais voltaria a pôr os pés ali, mas o destino havia encontrado uma maneira de contrariá-lo e ali estava ele. Suas
mãos percorreram as pernas longas, agarrando-se aos quadris que se moviam sobre o seus próprios, lançando uma onda de calor por todo o seu corpo. — Você é linda — sussurrou ele, reconhecendo o fato que fazia de seu corpo um traidor, mas que não mudava seu descontentamento nem minimamente. Ela sorriu, e o imobilizou sobre os lençóis de seda, prendendo seus pulsos acima de sua cabeça. — É por isso que está aqui? — quis saber, com uma nota do que poderia ser arrogância ou ironia, no tom de voz. — Estou aqui porque precisava vê-la — respondeu, selecionando cuidadosamente suas palavras. Ela hesitou, encarando-o longamente — Apenas veja se estou mentindo, não confia mais em seus poderes? — Não me subestime. Se havia algo que a irritava, era o questionamento de suas habilidades. Ele tentou se mover, apesar do brilho de advertência em seu olhar, mas as mãos em seus pulsos se apertaram como garras. — Acaso pareço tolo? — Você nunca foi tolo, o que faz de você um homem perigoso — assinalou, erguendo uma sobrancelha bem delineada. — Não foi você quem disse que meu coração está manchado pela bondade? — provocou ele, libertando-se do aperto que o prendia, para rolar sobre ela. Um sorriso de cruel satisfação surgiu nos lábios masculinos quando se abaixou para beijar os traços delicados de sua clavícula, eriçando os pelos da região sensível. — O que não significa que não haja maldade o bastante em você... — Ela se arqueou, cerrando momentaneamente os olhos para absorver as sensações que a inundavam. — Há algo que quero saber, Dhalian... — a voz de Adam se transformou em um sussurro, como se temesse despertá-la de seu torpor. Dhalian ronronou um assentimento, e ele prosseguiu — Você não sabia que eu viria, não é mesmo? Suas visões não a alertaram sobre minha presença.
Quando a feiticeira abriu os olhos, surpresa, já era tarde demais. Uma dor dilacerante atingiu seu peito, como se uma grande lâmina lhe rasgasse a pele, indo de encontro ao seu coração. Na verdade, era a mão de Adam. Com um pouco de magia e um golpe preciso abaixo do esterno, o mestiço a deixou completamente rendida. Dhalian resfolegou em busca de ar, com os olhos vidrados no semblante divertido de Adam. — Você não pode prever, porque sou aquele que lhe trouxe a morte. Adam podia recordar vividamente as palavras de Dhalian a respeito de suas visões. Nenhum feiticeiro poderia prever o próprio futuro, nem mesmo daqueles que interferissem em seu destino. Do contrário não teriam o livre arbítrio de suas ações. Dessa forma, seus planos de assassiná-la puderam passar despercebidos — uma vez que não teria chances em uma luta corporal, aquela fora a única maneira de chegar até ela. — Acaso o nome “Khalyn” te traz alguma recordação? — provocou, apertando o órgão escorregadio com a mão. O líquido quente e pegajoso banhava-o até o punho, escorrendo livremente pelo ferimento. Dhalian tossiu, na tentativa de falar, e suas mãos se fecharam inutilmente ao redor do braço de Adam. — Sim, é claro que sim — respondeu a si mesmo. Seu tom passou bruscamente da diversão à fúria, deixando o cinismo de lado ao pensar em Khalyn — Você prometeu que me alertaria caso algo acontecesse a ela. Esse foi o nosso trato! — as últimas palavras foram ditas em um grito — Quando me tornei seu pupilo... E o quebrou! — Seu... P-ponto f-fra-co... — as palavras saíram arrastadas, sendo mal articuladas, mas ela sorriu ao pronunciálas — Vo-c-cê... P-pagar... Com-a-vi-d-da... — Pagarei pelos motivos corretos — cuspiu em resposta, sentindo a adrenalina percorrer-lhe as veias como se tivesse sido injetada — Nos veremos no inferno, Dhalian. Com um puxão, Adam a silenciou para sempre, e o fez com uma enorme satisfação.
••• Ao sair de Aisland, Adam havia deixado seu coração com a corajosa jovem que fora sua única amiga em toda a vida. Khalyn havia se aproximado furtivamente, sem fazer perguntas indesejadas a seu respeito ou ao modo como vivia; sempre isolado dos demais garotos. Ela costumava observar seu trabalho pelas tardes, enquanto lhe contava histórias que havia lido às escondidas, nos livros de seu pai, um artesão da vila em que viviam. Ele havia apreciado sua companhia, ansiando ao fim de cada dia, por ver a garota de sardas novamente. Não percebera o quanto ela havia crescido, até o momento em que se despediu dela, na estrada dos desertores, o único caminho para entrar ou sair de Aisland. Podia vê-la ainda, com o vestido cor-de-rosa manchado pelo barro, e os cabelos ruivos como o fogo vivo, emoldurando lhe o rosto, que em breve seria o de uma mulher. Os olhos azuis, quase sempre astutos e sorridentes, ficaram marejados naquele momento, quebrando-o de mais formas que supunha ser possível. Todas as perguntas que havia desejado fazer pareciam, de repente, querer saltar por sua garganta. Além disso, a ideia de que ela poderia esquecê-lo, quase fez com que desse meia-volta em direção às muralhas fortificadas do reino. — Eu vou cuidar de você, onde estiver. — ela disse completamente convicta, ainda que aquilo soasse absurdo para ele. Anos depois, havia comprovado que ela estava certa. Quando era submetido às humilhações de Dhalian, era a lembrança de Khalyn que o mantinha racional, e foi o desejo de voltar a vê-la que o fez forte o bastante para conquistar sua liberdade. No entanto, não pensara duas vezes antes de arriscar-se novamente, ao descobrir que a vida de Khalyn dependeria disso. Como o filho de um feiticeiro com uma mulher, seus poderes não alcançavam o tipo de magia necessária para curar o mal que a acometia. Assim, fora em busca de Hadash, um feiticeiro que vivia nos limites do cemitério, que fora palco da
grande guerra entre os homens e as bestas da noite, cem anos antes. O preço pela cura fora o coração de uma feiticeira; um poderoso sacrifício resultava em maiores poderes para quem os exerciam. Escolhera Dhalian por havê-lo traído, ao manter em segredo o verdadeiro estado de saúde de Khalyn, e não se arrependera. Na verdade, pouco reconhecia de si mesmo, quando deslizou sobre a mesa de madeira, a trouxa de couro onde estava o coração extirpado. Depois disso, havia levado a metade de um dia para chegar até Hadash, mas as sensações que sentira no momento, ainda estavam presentes. Adam não queria pensar nisso, assim, concentrou sua atenção no idoso encurvado, que verificava o conteúdo com um sorriso de fria satisfação. — Onde está a cura? — perguntou, ignorando qualquer premissa. Havia levado a metade de um dia para retornar à velha cabana do feiticeiro, e o tempo não estava a seu favor. Hadash voltou a fechar o pequeno volume com as mãos nodosas, voltando-se para uma estante que ocupava a metade de uma parede. — Não tenha pressa, rapaz. — a resposta, dada com casualidade, fez com que o corpo de Adam se tencionasse pela raiva. — Ela está morrendo! Como pode dizer que não devo ter pressa?! — seu punho se chocou contra a mesa com um golpe seco, fazendo com que os objetos sobre ela — um cinzeiro e um castiçal de alumínio — titubeassem. O barulho atraiu ao rapaz que se encontrava no cômodo ao lado. O Jovem, que não devia ter mais que quinze anos, apareceu na sala através de uma cortina artesanal, que dividia um cômodo e outro. Adam poderia ter reconhecido os traços familiares a quilômetros de distância. As mexas de cabelo ruivo reluziam com a luz que se infiltrava pelas paredes, entre uma tábua e outra. — Adam! Finalmente chegou! — o irmão de Khalyn se aproximou. — Khiu? O que faz aqui? A cabana de Hadash ficava em meio à mata densa, onde a hera havia crescido livremente, tornando-se o esconderijo
perfeito. Não era tão simples assim localizá-la, e o acesso só era possível a pé. — O feiticeiro nos trouxe — disse o rapaz, com um tom ligeiramente reverente. — Espere, você disse que ele trouxe você e... — a frase morreu no ar, e Khiu assentiu. — Trouxemos Khalyn, para que pudesse curá-la. Só você pode salvá-la... Mas ele não estava mais prestando atenção. Ignorando Hadash e ao próprio Khiu, Adam avançou para o vão adiante, com o coração martelando firmemente em seu peito. Khalyn estava deitada sobre uma cama de palha, no outro extremo da cabana. Estava ainda mais pálida que da última vez em que a vira, e até seu cabelo parecia desbotado, como se a doença tivesse roubado seu brilho natural. “Estava lhe roubando a vida” uma voz interior fez questão de recordar. Ele se aproximou da cama, tentando não fazer ruído, mas os olhos azuis se entreabriram como se pressentisse sua presença. — Adam... — ele se agachou imediatamente ao seu lado, temendo que o menor esforço pudesse ser demais para ela. — Eu estou aqui, Khalyn. Eu consegui — isso a fez sorrir, ainda que muito pouco. Sua mão procurou pela dele, encontrando-a no meio do caminho. — Eu tive tanto medo, de não poder vê-lo outra vez... — sua voz estava fraca e pausada, de forma que precisou se concentrar para poder entendê-la. — Eu disse que viria. Acaso já lhe disse alguma mentira? — ela sorriu novamente. — Na verdade, sim. Sem poder conter o calor que parecia romper o gelo em seu peito, Adam se curvou sobre ela, para beijar-lhe os lábios pequenos. — Sempre desejei fazer isso, e estou sendo sincero quanto a isso — murmurou, tentando empregar humor em sua voz, para que ela não percebesse a emoção que o embargava no momento.
— Sempre desejei que o fizesse — seus olhos se fecharam por um momento, e tornaram para encarar o rosto que conhecia tão bem, mas que havia mudado tanto — Quando o perseguia, pelos estábulos... — Shh... Não deixe que Khiu a escute, seria uma péssima influência para ele. — Você era tão bobo... — ela continuou, piscando levemente. — Eu não sou mais aquele garoto, Khalyn. Havia sentido uma prazerosa sensação ao ter o coração de Dhalian em suas mãos, como se o poder preenchesse cada célula de seu corpo, na medida em que a feiticeira estava a sua mercê. Não podia dizer que se importava com os julgamentos de qualquer pessoa, mas Khalyn... Khalyn o importava além de quaisquer medidas. Dedos finos, com unhas curtas e bem cuidadas, tocaram-lhe o rosto áspero pela barba que crescia, e acariciaram sua pele bronzeada. — Não? — seu olhar encontrou o dele — Então por que está chorando? — Porque eu a amo... — ele disse, sem poder conter as lágrimas que marejavam seus olhos. — Prometa que não vai mais embora... Ele passou os braços ao redor do corpo delgado, atraindo-a para si. Precisava abraçá-la, pelo menos uma vez. Uma garra parecia esmagar lhe o coração, mas ele sabia que havia tomado a decisão correta. — Sou eu quem vai cuidar de você, de agora em diante. – uma mão afagou suas costas com extrema delicadeza; a ternura era algo que Adam não conhecia muito bem, mas parecia-lhe natural afagá-la, mesmo que isso o derretesse por dentro. Naquele momento, Hadash apareceu. Em uma mão, havia um pequeno pote de vidro, com um líquido branco. Na outra, uma faca com o cabo de prata. Em um acordo tácito, Adam assentiu, deitando Khalyn novamente sobre a cama. Ele se levantou, erguendo a mão para que um corte lhe fosse deferido. O pote foi posicionado abaixo do ferimento, para que o sangue fosse absorvido, até que o liquido ficasse vermelho.
Adam não sentiu a dor em sua mão, nem hesitou quando o feiticeiro levou o vidro aos lábios de Khalyn. Khalyn segurava sua mão, quando os efeitos da poção a fizeram adormecer. Adam planejava partir em seguida, para que seu corpo caísse longe o bastante de onde ela pudesse ver; mas no último momento, não foi capaz de se mover. Desejava morrer ao seu lado, e que seu rosto fosse a última coisa que seus olhos mortais vissem. Aos poucos, a cor retornou às bochechas de Khalyn, e aos lábios pequenos, sombreados por um nariz reto. Os cílios longos eram da cor do cobre, assim como as sobrancelhas arqueadas, e o cabelo, ligeiramente cacheado em suas extremidades. Para ele, sempre seria a mais bela das mulheres; a mancha de luz que profanava o negro de seu coração. Com alguma sorte, ela nunca saberia a verdade a seu respeito, nem descobriria que havia se tornado o monstro que Dhalian tanto desejara criar. Talvez, as coisas fossem melhores assim, porque nunca seria realmente digno dela. Havia partido em busca de conhecimento, apenas para descobrir que tudo o que precisava, havia estado ao seu lado o tempo inteiro. Em um mundo no qual um mestiço não tinha lugar, Khalyn havia se tornado seu lar, e graças a ela, havia conhecido o real sentido de estar vivo. Sem ela, nada disso seria possível. — Eu não podia... Perdê-la novamente... Uma vida pela outra, era assim que as coisas funcionavam na natureza, em seu ciclo de eterna harmonia. Parecia-lhe justo. Um grito cruzou o aposento, no momento em que Adam perdeu o equilíbrio, tombando para o lado. Ele fechou os olhos, sendo amparado pelo jovem Khiu. Quando uma gota salgada caiu sobre o rosto de Adam, ele sorriu, e adormeceu em seguida.
Olho do Tigre Vitor Castrillo
A
bri meus olhos rapidamente, e logo tornei a fechá-los devido à claridade extremamente ofuscante. Não me lembrava de muita coisa de antes de eu desmaiar. Apenas me lembrava de uma única coisa: eu não sou humana. Lembro-me também de sons. Um estilhaçar agudo de vidro contra algo rígido, o chão provavelmente. Gritos, muitos gritos. Vozes apressadas e palavras sendo atropeladas pela pressa da própria língua atormentada e amedrontada. Tudo isso seguido de um único e final som que sobrepôs todos os outros na minha mente, um rugido. Um rugido tão alto que parecia ainda ecoar em minha mente. Levantei-me de súbito, sentindo a ardência na minha pele e as costas sendo raladas e levemente machucadas por algo áspero. Com uma rápida olhada para trás logo vi do que se
tratava, areia. Olhei ao meu redor e a confusão voltou a tomar conta de mim. Onde eu estava? As únicas coisas ao alcance da minha vista eram dunas e alguns cactos aparentemente tão secos quanto a minha pele maltratada e queimada. O que eu estava fazendo ali? Na verdade, creio que a pergunta que cairia melhor seria: Quem sou eu? Olho para as minhas mãos, mal crendo que realmente são minhas.Nem mesmo sei quem sou, se já fui alguém. Minhas mãos ardem quando as deito abertas no meu colo, cortes finos, alguns largos e arroxeados, se espalhavam desde os dedos até acima dos pulsos em ambas as mãos. E minhas unhas poderiam ser chamadas de garras, literalmente de garras. Tão compridas a ponto de formarem uma leve curva para baixo, ásperas e amareladas, e algo que me assustou quando olhei-as mais de perto foi o formato das unhas, começavam largas e terminavam tão finas quanto a ponta de uma adaga. Senti uma pontada de dor forte contra minhas têmporas quando terminei de examinar minhas “garras”, meus olhos ardiam como se chamas dançassem logo a minha frente. Então eu ouvi novamente aquele rugido na minha mente, começava baixo, e então, de repente, tão alto como um trovão ele tomava toda a minha audição. Pisquei com força tentando normalizar minha vista machucada, na segunda vez que pisquei, assim que abri os olhos novamente eu não via mais o deserto. ••• Estava dentro de algum lugar estranho, as paredes eram completas de placas de metal e apenas um ventilador desligado se destacava na parede ao meu lado. No fim da sala onde eu estava eu podia ver uma parede por onde a luz do lado de fora dali vazava para dentro dali como longas serpentes de luz. Eram grades. Eu estava presa. Presa em algum lugar muito longe daquele deserto, algo me dizia que eu não deveria estar ali, que corria perigo, e eu concordei com essa voz interior.
Me aproximei das grades o mais silenciosamente que eu podia e vasculhei o lado de fora. Uma outra sala, um pouco maior que a cela onde eu estava, mas igualmente mal iluminada, uma única lâmpada mal instalada projetava a luz que eu vira vazando pelas grades para dentro da cela. Ouvi um rangido, de uma porta abrindo, um forte rastro de luz se estendeu pelo chão da direção da tal porta, mas logo foi coberto por uma sombra esticada pela luz. — Vejo que já está acordada, criatura — disse uma voz grave, mas baixa e fraca, quase ofídica. ••• Minha vista finalmente normalizou, a dor nas têmporas parou de repente se esvaindo junto com aquelas imagens. Eram memórias? Tentei levantar, o calor escaldante deixava a tarefa ainda mais difícil pelo calor da areia contra meus pés descalços. Lancei um olhar rápido para meus pés, estavam igualmente machucados como as minhas mãos, exceto que ali, os machucados pareciam ainda piores e ainda mais infeccionados. Contive uma onda de náusea ao ver uma fina linha roxa escura que subia desde um dos cortes mais largos até passar da metade da minha canela, onde o meu shorts – que aparentemente costumava ser uma calça – terminava. Eu não usava mais do que uma camiseta branco acinzentada e o tal shorts cinza. Passei uma mão pela minha cabeça, sentindo os minúsculos fios de cabelo raspados causarem cócegas e ardência na palma machucada de minha mão. Repeti o movimento mais uma vez por impulso, e logo foi seguido pela mesma pontada de dor nas têmporas, desta vez se estendendo até minhas pálpebras, forçando-me a fechá-las e apertá-las com força. A dor era lancinante e machucava como se meu olho tentasse saltar de meu crânio. ••• Abri os olhos e novamente não via mais o deserto de antes. Senti algo gelado contra as minhas costas e também nos
meus braços, tentei me mover, mas fui jogada de volta para trás por grossas tiras de couro que me prendiam a cadeira de metal fria onde eu estava atada. Chutei com força, e logo me arrependi desse movimento, minha perna foi chicoteada contra a beira da cadeira. Penosamente senti o arrependimento da pior forma, um fio quente de sangue correu pela minha panturrilha, encharcando minha calça com meu próprio sangue. Não deixei mais do que um gemido escapar de minha garganta, eu não poderia gritar ali, só mostraria minha fraqueza. Uma risada ecoou pela cela, seguida pela voz ofídica de antes. — Criaturas como você só servem para me fazerem rir, por Deus! — Caçoou. — Você realmente achou que conseguira se soltar desta cadeira com um chutinho? Ah, minha querida, Essas tiras que te seguram foram feitas do couro do teu próprio povo, e como você mesma sabe, esse tipo de couro é tão resistente como aço. Do que diabos ele estava falando? Meu povo? Couro? Olhei para as tiras de couro nos meus braços e fui tomada pela náusea. O toque do couro contra minha pele era áspero e arranhava, mas algo naquele arranhar era familiar, o cheiro que eu logo senti chegar estranhamente as minhas narinas, misturado ao cheiro de meu próprio sangue, também me era familiar. Ele não mentia. Aquilo, aquelas tiras, eram feitas de pele. Pele de pessoas como eu. — O que você quer de mim? — Finalmente encontrei minha voz. — Nada do que eu já não tenha, queridinha. — Ele se aproximou, entrando debaixo do feixe de luz que escapava para dentro de minha cela, seu rosto era quase tão ofídico quanto sua voz, exceto pelos cabelos tão negros quanto piche. — Somente a sua vidinha, miseravelmente condenada. — Me solte! — Gritei. Sentia uma força crescer pela meu corpo, e minha voz tremia enquanto o tom de minha voz subia. Senti, também, uma vibração percorrer meu peito, tentando escapar pela minha garganta.
Não consegui conter o que subia pela minha garganta. E me assustei com o que ouvi sair de minha própria garganta. Um rugido felino, como o deu um leão, ou de um tigre, escapou por meus dentes cerrados. ••• Senti tudo a minha volta girar quando uma pontada dor atingiu minhas panturrilhas, me tirando do que pareceu ser a memória mais concreta até agora. Sentia como se uma faca atravessasse minha perna de um lado ao outro, sem parar. Joguei-me ao chão e me retorci ao máximo, tentando desesperadamente conter os gritos e gemidos de dor que teimavam em escapar de meus lábios. Finalmente a dor cessou da mesma forma que começou, de repente. Tirei a areia que grudara na pele suada das minhas pernas e as inspecionei. Uma linha fina branca atravessava minhas duas panturrilhas de um lado ao outro, uma cicatriz completamente curada e fechada. Mas o sangue seco e coagulado ao redor das cicatrizes provava que o ferimento era recente. Passei a mão por uma das pernas, sentindo a leve protuberância da cicatriz, seguida da aspereza da minha pele saudável coberta com o sangue seco escuro. E logo senti minha mente voar para longe de asas abertas e sem medo de se distanciar de mim, estava à procura de mais uma memória. Que a cicatriz trouxe assim que tirei minha mão dela. Um rugido soou alto em meus ouvidos, mas mesmo assim era distante. De minha cela eu pude perceber que ele vinha do mesmo lugar onde eu estava. Quem quer que seja que tenha rugido, também estava aqui em alguma cela. Preso, como eu. As tiras de couro, dessa vez ainda mais apertadas por causa da minha última “reação”, cortavam a pele dos meus braços e meus pulsos. A dor me lembrava de quem estava fazendo aquilo comigo, e do porque eu estava presa. E, também, de que eu precisava conseguir um jeito de fugir daqui.
Mas não havia nenhuma saída por perto, e eu nem mesmo conhecia a mim mesma a ponto de conseguir evocar meu Espírito. O mais perto que já cheguei disso foi o último rugido involuntário, que só me acarretou em mais uma tira de couro segurando meus braços e uma mordaça. Senti a cadeira embaixo de mim recomeçar a vibrar. Não! A primeira onda de choques atingiu meu corpo como milhares de vespas picando meu corpo inteiro. A segunda, mais forte, veio como tijolos cobrindo-me por completo, deixando meu corpo pesado e mole. Então um peso a mais se fez sobre minha cabeça. Fechei os olhos, derrotada, e deixei as descargas elétricas viajarem por mim, sentindo que a morte estava logo ali, do outro lado da cela, acenando para mim como uma velha amiga. Nunca estive tão errada em minha vida. Quando a terceira onda de choques chegou pelos fios que se prendiam ao meu corpo e a cadeira, eu não senti mais nada. Todo meu corpo se retesou de uma só vez, para logo depois parecer se expandir. Doía, doía como se todos os ossos de meu corpo estivessem se realocando e se quebrando logo em seguida. Seguido pela dor lancinante da minha pele rompendo, literalmente rompendo. Por último ouvi um rangido, seguido de sons de coisas quebrando, de metal sendo retorcido. Então eu estava ali, a verdadeira eu. Aquela vibração no meu peito, dessa vez familiar, voltou a se formar em meu peito, senti-me grata por isso e, feliz e vingada, libertei o rugido felino por entre minhas presas. ••• Um trovão me trouxe de volta ao presente. Olhei para o céu, algo úmido atingiu meu rosto assim que o ergui para fitar o céu. Eu estava em um aparente deserto, e mesmo assim a chuva começou a cair torrencialmente logo acima de mim. Encharcando tudo ao meu redor, alimentando os cactos que provavelmente agradeciam ensandecidos pela água. O vento frio veio logo em seguida da chuva, sussurrando segredos
silenciosos por todo o lugar. Sussurrando palavras inaudíveis em meus ouvidos, como se quisesse me dizer algo, quisesse me tirar de um devaneio. Ou melhor, como se quisesse me lembrar de algo. ••• Gritos cada vez mais altos ecoavam ao meu redor. Eu os ignorava e continuava meu caminho para a liberdade. Minhas quatro patas atingiam o chão em um ritmo frenético e sem paradas, somente reduzia a velocidade de minha corrida para desferir um golpe com a pata em algum dos soldados que tentavam me impedir. Eu já podia sentir o cheiro do ar limpo, do ar fresco que preenchia todo o mundo do lado de fora. O ar dos livres. Rugi uma última vez quando me lancei para fora dali. Rugi o mais alto que pude, um chamado para despertar todos meus irmãos de Espírito que ainda estavam presos ali. Não esperei uma resposta, sabia que se não retomasse minha corrida alguém conseguiria me derrubar. Eu ainda era fraca, era a minha primeira transformação. A minha primeira vez vestindo a minha verdadeira pele. O tom alaranjado de meu pelo brilhava contra o Sol forte, as listrar pretas e as áreas brancas de meu corpo pareciam se destacar e brilhavam tanto quanto o resto de meu pelo. ••• Eu era o tigre que rugia. Eu era o tigre fugitivo. O rugido que me acordara era meu. A chuva engrossava enquanto eu levantava da areia áspera, o vento me empurrava levemente, como um amigo encorajador que me dizia “vá, siga em frente”. E foi o que fiz, segui em frente, mas não sem antes despertar meu corpo completamente. A dor familiar de meus ossos se realocando e de minha pele sendo reformada tomou meu corpo. Dessa vez não lutei contra ela, não a retrai, nem mesmo a estranhei. Dessa vez a
recebi como parte de mim, parte de minha alma, de meu ser. Eu era novamente o tigre. Olhei de relance para uma das poças que se formavam em sulcos na areia do deserto. No meu reflexo inquieto e agitado pela chuva vi algo que me trouxe uma onda de um misto de satisfação, felicidade e realização. O olho de um tigre, a fenda negra contra o azul claro se destacava de meu pelo alaranjado. Aquela era eu. A dona daquele olho. Do olho do tigre. Rugi novamente aos quatro ventos anunciando o que deveria ter acontecido muito antes: E eu estava livre.
A Lenda de Skelver L. F. Reis
Origens xiste uma lenda muito antiga sobre um planeta que permanece atĂŠ hoje com costumes medievais. Seu nome ĂŠ Skelver. Skelver foi criada por sete Senis, seres imortais que tĂŞm o poder de controlar quase todos os elementos do universo, a saber: Skelage, Seni do universo com o poder de
controlar a gravidade, tele transportar-se, criar planetas e dimensões; Agetskel, irmão de Skelage e Seni do tempo, com o poder de controlá-lo a seu favor; Erlver, esposa de Skelage e Seni da natureza, controlando tudo o que há nela; Estvkin, Seni do gelo, as temperaturas invernais do planeta; Saykel, Seni da água, controlando os rios, lagos e mares do planeta; Samkela, Seni do fogo, controlando as altas temperaturas e mobilizando vulcões; Luver, Seni que controla a iluminação através das luas de Skelver: Ackaley e Naskel, e a estrela mestre, Kerlt. Havia quatro raças em Skelver: humanos, elfos, orcs e khitur. A última foi a criação mais hodierna, sendo um híbrido de elfos com gárgulas — monstros vindos de Agartha, cidade intra-terrena, e que foram banidos para a dimensão obscura. Os Senis criaram o Aw-kin, um vírus que altera os genes da pessoa em que é aplicado, facilitando o manuseio de armas específicas e a facilidade de absorção dos poderes concentrados nos pergaminhos e livros. Fizeram o último para nivelar os poderes dos guerreiros, impedindo que ficassem limitados. Skelver era um planeta com tecnologia demasiado avançada, e algumas delas, eram compartilhadas com a Terra, espaço controlado por Morgana Le Fay, rainha de Agartha, cidade intra-terrena. Os terráqueos tiveram mais facilidade em aderir às tecnologias skélvicas e isso irritou muito Morgana, que declarou guerra à Skelver. A batalha perdurou por anos e a maior parte do povo de Skelver foi dizimada. Eles se renderam e tomaram uma decisão. Escolheram cinco crianças que foram enviadas à Terra na época para aprender seus costumes. As crianças eram: Equus, Ninhursag, Ynis, Zamir e Zyrak. Após a derrocada completa de Skelver, eles foram presenteados pelos Senis com a eternidade para poder reconstruir o planeta. Eles trouxeram da Terra pessoas eivadas com o Aw-kin e repovoaram o planeta. Os Senis colocaram suas essências em lobos, que podiam ser invocados através de sete pedras, escondidas nas sete passagens de Agartha, colocadas lá como um sinal de paz entre as civilizações. Só podiam ser capturadas por pessoas que tivessem os mesmos poderes do Seni respectivo. Depois disso, desapareceram.
As crianças que passaram a comandar Skelver receberam o nome de Lonios. Aquinhoavam-se nas áreas de acordo com o que tinham aprendido na Terra. Equus era o Lonios dos equites, classe que usava espadas e escudos e serviam para ataques ofensivos e defensivos. Ninhursag, Lonios dos abades, classe que usava bastões e absorvia o poder de Ackaley, Naskel e Kerlt, semelhante à Luver. Ynis, Lonios dos druidas, classe que usava foices e tinha o poder da natureza, semelhante à Erlver. Zamir, Lonios dos Elementaristas, usavam orbes, semelhante à Estvkin e Samkela. Zyrak, Lonios dos fosc, classe que usava arcos e flechas e tinha o poder da umbracinesia. Depois que eles assumiram, Skelver voltou a ser uma terra próspera, dividida em províncias: Tavrom para os equites; Heilun para os abades; Natyror para os druidas; Sumendi para Zamir; e Cathlán para Zyrak. Burlando o pacto dos Lonios, Zamir teve um filho com uma elfa elementarista do gelo, Irynd Densuly. Seu filho recebeu o nome de Khvateush Densuly. Zamir recebeu várias represálias dos outros Lonios, e no fim ficou decidido que o caso seria submergido. Eles não deixaram a população de Skelver tomar conhecimento da existência de um filho Lonios. Na tentativa de se retratar, Zamir arriscou a criação de uma raça, o que era impossível, pois apenas os Senis possuíam tal poder. E ele falhou. A raça surgiu com deformações, e os Lonios, ao descobrirem isso, baniram-na de Skelver, para as profundezas do Santuário de Zamir, na Terra. Zamir foi enviado pelos Lonios para a Keinum, uma dimensão paralela que aprisionou criaturas horrendas causadoras de ruína. Aprisionado como um criminoso. Khvateush cresceu como uma criança normal. Treinando com os outros elementaristas em Sumendi. Ao chegar à vida adulta, descobriu sua verdadeira origem. Presunçoso, sabia o poder que tinha. Que podia usar as armas do pai. Que podia ter o mesmo poder do pai. E foi o que ele fez. Roubou a On’wor — conjunto de armadura e arma mais poderosa usada pelos Lonios — e os pergaminhos do fogo. Como primeiro ato, desejava controlar territórios da Terra, por isso participou na Batalha de Hastings que estava em andamento na época.
Crendo que Haroldo II já estava vitorioso, aliou-se a ele. Porém, não esperava uma reviravolta na luta, fazendo com que Guilherme II ganhasse. Furioso, amaldiçoou toda a família de Guilherme II com o Aw-kin alterado para causar anomalias cromossômicas. Depois matou Haroldo II, a família de Guilherme II descobrindo tal tragédia mudou o sobrenome da família para o local conquistado. Inutilmente, pois a maldição ainda perdurava. Os Corruptores eram um clã formado da junção de seis famílias: Deesom, Shyosris, Taisayess, Chaysrin, Quivorath e Haemack. Eles tinham como objetivo causar a subversão no planeta, e como eram poderosos, conseguiram. Tomaram vários castelos de outros clãs e dominaram Skelver. Ao descobrir os planos de Khvateush, aliaram-se a ele. Os Lonios possuíam alguns empecilhos e entre eles está a luta. Como a tarefa deles era proteger Skelver, eles podiam apenas reagir a ataques diretos. Quando descobriram o que estava acontecendo entre os Corruptores e Khvateush, reuniram os cinco duques de cada província e os mandaram para enfrentá-los. Por usarem trajes escuros, o combate ficou conhecido como “A Batalha Sombria”. Os duques venceram e selaram Khvateush numa pedra de gelo encantada, e o levou para as mesmas profundezas onde a raça de Zamir, conhecida entre os Lonios como anões, foi banida. A On’wor foi colocada em seu local de origem e os pergaminhos e livros do fogo foram conservados dentro do castelo do Sumendi, recebendo o nome de Index Librorum Prohibitorum. Sem Zamir e sem os livros do fogo, os elementaristas foram sumindo com o tempo, até ficarem totalmente extintos e Sumendi se tornar uma cidade desolada.
A Breve História de um Príncipe Não Tão Príncipe Assim Ana Flávia Wendpap
m um reino belo e distante... — Será que dá pra me deixar dormir? — eu perguntei para Celine, a mulher contadora de histórias.
— Tenha modos, garoto — ela me disse, era velha já. Não sei há quanto tempo ela era criada no castelo de meu pai, mas deveria ser bastante. Ela se levantou e foi embora. Eu já tenho 15 anos, não tenho idade para histórias antes de dormir. Mas sei por que meu pai manda ela me contar histórias de romances antigos, entre príncipes e princesas, todas as noites. É porque eu contei para ele que não queria casar, porque não me sentia atraído por mulheres. Na realidade me sinto muito atraído pelo aprendiz de cozinheiro que sempre vejo ao descer na cozinha, mas isto eu não mencionei para meu pai. Eu peguei rápido no sono, sonhei com finais felizes, mas diferentes — os finais felizes com que eu sempre sonhava. Acordei em uma manhã ensolarada. Eu podia ver de minha janela todo o reino, e um pouco da floresta, tinha uma imensa vontade de saber o que tinha por lá. Se existiam fadas, unicórnios, seres incríveis com os quais eu sonhava em conhecer. Já havia perguntado para Celine se eles existiam de verdade, ela me disse que sim, que já havia visto muitos deles, mas meu pai a mandou parar de encher minha cabeça de bobagem, que eu tinha me preocupar em saber como os casamentos e alianças eram importantes. Desci para tomar café, meu pai estava sentado no lugar de sempre, minha mãe ainda dormia. Sentei-me ao lado de meu pai, não sentia fome. — Coma algo, garoto, e é bom se arrumar bastante hoje. — meu pai me disse. — E por quê? — Porque você vai conhecer sua futura esposa. Senti o sangue correr de meu rosto, minha cara não deve ter sido das melhores, pois meu pai me olhou e disse severo: — Você sabe que vai ter que se casar, James. — Eu... Estou sem fome, com licença. — disse e levantei rápido antes que ele me dissesse algo. Corri para o lugar onde sempre passava tardes pensando, ou lendo: na beira do lago.
O que fazer? Eu vou ter que me casar, mas ela vai descobrir que eu não consigo... Bom, você sabe, com mulheres. Eu sou um fracasso, meu pai me odeia, mas eu não vou me casar contra minha vontade. Mas como não casar? É importante para o reino de meu pai, não consigo pensar em nada. Passo um longo tempo chorando, é a única coisa que consigo fazer, até que uma criada vem me chamar, dizendo que a princesa chegou. Pronto, é agora que minha vida vai de ruim para horrível. Enxugo as lágrimas, torcendo para não parecer que chorei. Entro no castelo e ela está lá, meu pai em seu trono, e a princesa, o Rei William e sua rainha conversando animadamente com ele. Quando meu pai me vê finge estar feliz e faz um aceno para eu me aproximar. Aproximo-me com cautela, observo a princesa, ela é linda, realmente, mas um tipo de beleza que gostaria de ter, de sê-la, e não de tê-la para mim. — Olá. — eu digo. — Oi. — ela diz tímida. Observo seus olhos azuis, seu cabelo é de um castanho claro e cai em ondas até sua cintura, tem um sorriso bonito. Os seios estão apertados e saltados por conta do vestido, ela deve ter usado assim para me impressionar ou algo do tipo, o que não ajudou em nada. É magra e usa um vestido que eu achei muito bonito, é azul marinho e longo, mas não é rodado. A parte de cima é toda bordada com miçangas. Vejo que ela me observa também, e não vejo nenhuma aprovação em seus olhos, pelo menos aparente. — Como é seu nome? — lhe pergunto, pretendo pelo menos ser educado com a bela moça. — Dorothea e o seu? — James. — Que lindo! Combina certinho, não é? James e Dorothea! — diz animadamente a mãe da moça, eu seguro a súbita vontade de bufar e revirar os olhos.
Os adultos nos dizem para irmos andar juntos e nos conhecer melhor, por fim decido levar Dorothea para a beira do lago. Sentamo-nos e ficamos em um silêncio constrangedor. Olho para ela e vejo que está mordendo os lábios de... Nervosismo? A coitada não pode ter esperanças de que vou me casar com ela. — Dorothea... Eu... — começo a dizer, mas ela dispara a falar: — Eu não vou conseguir casar com você, me desculpe. Se ela esperava reações como: raiva, nojo ou surpresa... Enganou-se. — Eu também não. — Não? — ela me pergunta, incrédula. — Pois é... Mas por que você não vai conseguir se casar comigo? — Eu... Amo outro homem. — Ah... — E qual seu motivo? — ela me pergunta. Fico um tempo sem resposta, devo dizer que amo outra mulher? Ou devo dizer a verdade? Opto pela verdade, minha vida não pode ficar mais louca mesmo. — Eu sou algo totalmente fora do normal, você vai ficar com medo de mim. — eu lhe disse, apenas para ver se ela desiste de saber. — Medo? Não vejo uma possibilidade, a não ser que você seja um assassino. Olho para aqueles olhos inocentes não tão inocentes assim e digo: — Eu não gosto de mulheres. Ela recebe a notícia melhor do que eu imaginei, fica quieta por um tempo olhando para o chão e então me olha e diz: — Tudo bem. Fico feliz por ela não ter rido ou algo do tipo, ficamos quietos por um tempo, até que eu lembro que mesmo assim teríamos que casar.
Não vemos alternativas viáveis. — Podíamos casar, mas cada um viver com quem ama. — ela diz. — Isto é impossível, traria problemas, além de que teríamos de ter um herdeiro, e não aceitariam um bastardo. — Não precisariam saber. — Acredite, Dorothea, todos saberiam. Ela fica quieta novamente e olha para o lago, pensativa, até que olha para mim e diz animadamente: — Vamos fugir. Eu já havia considerado esta opção, mas eu não teria para onde fugir, mesmo assim, eu concordo, passamos o resto da tarde planejando nossa fuga. — Então eu te ajudo a fugir com o seu amado na noite de núpcias, mas eu vou para onde? — eu lhe pergunto. Ela pensa durante um longo tempo, então diz: — Você pode ir conosco para nossa casa, que fica no meio da floresta. — Tudo bem, é minha melhor opção. – eu digo e neste exato momento uma criada nos chama para o jantar. Andamos em silêncio para a mesa onde estavam sentados nossos pais, todos conversam sobre política. Quando chegamos lançam olhares significativos. Eu como rápido para sair da mesa o quanto antes. Quando termino dou a desculpa que estou passando mal e me retiro, mas desço depois para me despedir de Dorothea e de seus pais. Dou-lhe um beijo na mão para fazer uma cena e lhe lanço uma piscada de um olho só. Ela abafa uma risada. Durmo pouco, fico acordando e sonhando com fugas, fadas e animais que falam. As semanas com o preparativo do casamento passam voando, eu me sinto um pouco mal a cada dia, pois a cada dia que passa minha mãe fica mais feliz ainda, animada e falante. — James, meu querido, seu traje chegou, ah! É lindo! Realmente é um traje bonito. Uma calça de veludo vermelha, botas altas de couro negro, uma blusa de linho branca e por cima uma capa que arrasta no chão de veludo,
também vermelha, com detalhes em dourado, feitos com fios de ouro. Sinto-me mal, muito mal, mas eu lembro que a minha felicidade eterna está em jogo. Na noite do casamento, lá estou eu, me arrumando. Devo admitir que fiquei bonito, mas logo esqueço, pois Dorothea se esgueira pela porta do meu quarto e a tranca. Ela está linda, um vestido de um rosa quase vermelho, rodado e com detalhes em fios de ouro também. Seu cabelo foi preso no alto da cabeça, com flores pequenas acompanhando seu coque. Ela me olha com os olhos azuis enormes. Dá para perceber que está nervosa. — James, meu amado me espera daqui dez minutos na porta dos fundos, com dois cavalos. Esteja lá, sem falta. — ela sussurra, e sai tão silenciosa como entrou. Começo a suar frio. Os dez minutos parecem que nunca passam. Assim que dá o momento eu me dirijo para a porta dos fundos do castelo de meu pai. — Aonde vai, Senhor Príncipe? — pergunta-me uma convidada qualquer. — Vou tomar um ar... Estou me sentindo nervoso. — minto. Ela ri e acena com a cabeça. Assim que ela some eu saio correndo. Chego à porta dos fundos e lá está Dorothea com um homem lindo, e quando eu digo lindo é porque é lindo mesmo. Ele é alto, musculoso, o cabelo é escuro assim como os olhos. Ele olha para Dorothea com olhos apaixonados. Sinto uma pontada de inveja, ninguém nunca vai me amar assim. — Olá... —digo. — Você é o James? — o homem lindo pergunta, a voz dele é grave. — Eu mesmo. — Então vamos. Quanto mais rápido sairmos, melhor. Ele coloca a princesa no cavalo à sua frente, eu subo no meu cavalo, sempre gostei de cavalgar, saímos correndo, literalmente correndo, em direção à floresta. A floresta parece nunca chegar. A este horário já devem ter notado nossa ausência no castelo, mas pelo menos estamos
distantes para nos enxergarem. Começa a ficar frio à medida que cavalgamos, mas minha capa me protege do frio, o homem lindo coloca sua capa em Dorothea que treme e está arrepiada. Chegamos a uma casa simples, em uma clareira cheia de árvores e plantas diferentes. Escuto o barulho de água corrente perto dali, eles escolheram um bom lugar. A casa é pequena. Dentro tem uma cozinha, uma sala com apenas um sofá e um tapete, um quarto com uma cama de casal. É uma casa aconchegante. — Você pode dormir no sofá, tudo bem? — Dorothea me pergunta. — Claro! Obrigado. Ela sorri e vai para o quarto com seu amado. Queria eu saber o nome dele, mas afasto este pensamento da mente. Deito-me e ao fechar os olhos já caio no sono. Acordo com pássaros cantando. É realmente uma cena linda, a casa é rodeada por plantas, tudo é verde e há flores espalhadas pelo quintal. Sinto-me bem. Decido buscar frutas para comermos. Tudo ali é mágico. Ando e ando e ando, por um bom tempo. Chego a um riacho e avisto umas amoras. Começo a colhê-las, colocando-as em meu bolso. Decido comer uma, mas quando vou colocá-la em minha boca, uma pedra acerta minha mão. — Ai! — eu digo, porque realmente doeu. Olho para o lado para ver quem a jogou, mas não há ninguém. Ignoro e pego outra amora, mas novamente quando vou colocá-la na boca, uma pedra acerta minha mão. Olho para cima, para a direita, para a esquerda e nada vejo. Começo a sentir um leve medo. Viro-me em direção ao caminho que seguia, mas quando dou alguns passos, uma mulher pequena aparece na minha frente. Dou um pequeno pulo devido ao susto. É uma mulher magra, bonita, seus cabelos são de um tom azul escuro e são enrolados, estes caem até seus quadris. Tem um rosto fino e olhos da cor dos cabelos. Veste um fino vestido de cor rosa claro. — Quem é você? — eu lhe pergunto estupidamente.
— Eu sou a pessoa que vai te ajudar. — ela disse com um leve sorriso nos lábios. — Ajudar? — perguntei levemente confuso, mas uma parte de mim gritava a todo o momento por ajuda. — Exatamente. — ela disse. Fiquei um tempo parado. Então me veio uma pergunta. — Você é uma fada? Ela riu e disse: — Se você quiser que eu seja... — Eu sempre quis conhecer uma fada. Ela novamente riu, perguntei-me se ela estaria me fazendo de bobo, e se as fadas eram criaturas boas ou más, também se elas realmente existiam. — Venha, quero lhe mostrar a minha floresta — ela disse, e, sem esperar resposta, deu meia volta e saiu andando, ela sabia que eu a seguiria. Andamos por lugares lindos. Era uma floresta verde e cheia de vida, havia cervos, coelhos, pássaros... Flores de várias cores e formas, arbustos, frutas, riachos. Eu poderia viver ali para sempre. — É lindo aqui. — eu disse distraidamente. — Sim, mas de dia, de noite é um pouco... Escuro demais. “Os terrores da noite”, pensei, “a contadora de histórias sempre me contava histórias sobre estes terrores.” — Em quê você quer me ajudar? — perguntei. — Bom primeiramente, eu salvei a sua vida impedindo que comesse aquelas amoras. Aparentam ser saborosas, mas são, na verdade, venenosas. — Ah... Obrigado. — era a única coisa que consegui dizer naquele momento. — E — ela continuou — Eu vi que está perdido. — Perdido? Mas eu sei o caminho para a casa da princesa... — Não, James, perdido em seu futuro. Perdido em meu futuro? Realmente, eu não podia viver naquela casa para sempre, e não tinha para onde ir, a não ser voltar para o castelo de meu pai.
— James, eu apenas vou guiá-lo por hoje, para um lugar no qual lhe dará respostas. — ela disse olhando-me com um ar sério. — Para onde? — Você verá, venha. — ela disse e retomou a sua caminhada. Andamos quilômetros. Eu estava cansado e com sono, e já estava escurecendo. Os caminhos que tomamos eram lindos. Ao fim de tarde, com os poucos raios do sol, a floresta ficou aconchegante, mas eu estava com medo do que vinha depois do belo dia que estava. Por fim chegamos a uma clareira parecida com a que ficava a casa de Dorothea, e havia ali uma casa também. A fada sorria, ela olhou para mim e disse: — A partir de agora o seu futuro está inteiramente em suas mãos. — com isso, virou-se e foi embora, me deixando ali sem amparo algum, com medo do que vivia dentro daquela casa. Andei cautelosamente até lá, bati duas vezes na porta, esperei um bom tempo, até que abriram. Quem abriu foi um homem de minha estatura, não tão alto, mas também não baixo, era moreno e tinha olhos castanhos, um homem não bonito, mas não feio. Meu coração deu saltos. — Quem é você? — ele me perguntou. Sua voz era suave. — Eu... Estou perdido, será que poderia apenas passar a noite aqui? — decidi não mencionar a fada, lembrando de que ela disse que meu futuro estava inteiramente comigo agora. — Claro, e por que não? Entre. — Obrigado. — eu disse, já entrando. A casa era pequena, mas bem arrumada e quente. O cheiro ali me acalmou. O homem fez um gesto para que eu sentasse. Senteime em uma cadeira de madeira confortável, ele se sentou de frente para mim. — Como é seu nome? — ele me perguntou. — James, e o seu? — George. George...
— E o que faz na floresta, James? Vejo que usa roupas arrumadas demais. — ele disse olhando-me dos pés a cabeça. — Eu... Fugi de meu casamento. Sou um príncipe. Príncipe James. Ele ficou um tempo quieto e olhando para qualquer ponto fixo da casa, enquanto isso eu reparava no quanto ele era atraente. — Por que fugiu de seu casamento? — ele perguntou finalmente. — Porque... Eu... — minha voz falhou, eu não sabia se dizia o porquê ou não. Ele levantou uma sobrancelha de um modo indagador. Decidi falar, selando meu destino. — Eu não gosto de mulheres. — ao dizer isso, dei de ombros, passando a impressão de não ser nada demais para as pessoas. — Interessante. — ele disse com um sorriso. — Interessante? — lhe perguntei. — Sim, eu também nunca fui muito com a cara de mulheres. E foi naquele momento em que eu percebi que o meu futuro teria um final feliz. De contos de fadas. Talvez não tão padronizado como se espera.
Como se Livrar de um Bloqueio Criativo Laurien Santin
ra um tempo difícil para elas… — E agora? — Lynda resmungou, pela terceira vez na última meia hora. Estava tendo grandes dificuldades em escrever o conto que lhe renderia o salário daquele mês. Isso não seria um problema se seu prazo não estivesse tão apertado e como sua prima, Vera, estava desempregada, precisavam urgentemente daquele dinheiro. Desde que os pais das duas tinham morrido em um acidente de carro, Vera acabou indo morar com Lynda em Porto Alegre e largando seu emprego na cidade onde morava, pois
seu salário não era o bastante para pagar suas contas e a cidade da prima oferecia mais oportunidades de empregos melhores. Patrícia, a terceira prima, acabara por juntar-se às duas quando chegou a época de fazer faculdade. Cursava medicina, na universidade federal e, assim, também não tinha renda para ajudar nas contas. Assim, era Lynda, com seus 25 anos, que pagava as contas. Vera, de 28, saia diariamente para procurar um emprego, mas era difícil encontrar um em sua área: direito. O mercado estava muito saturado lá e sem um bom “nome”, ou um parente influente, não se conseguia nada. Pensando nisso, Lynda comprara apostilas e pagou a inscrição de Vera em um concurso público. Mas faltava muito tempo ainda para a prova, de modo que Vera preferiu continuar tentando conseguir um emprego. — Meu Deus, se continuar assim tu só vais terminar essa droga ano que vem! — reclamou Vera. — Bem, se tu não tivesses gastado todo o nosso dinheiro do mês passado naquela droga de festa, não estaria tão necessitada de dinheiro agora! — rebateu Lynda, girando a cadeira para encarar a prima. — Shh! — reclamou Patrícia, que estudava para uma prova. As outras suspiraram, cansadas. Vera pegou sua bolsa e pasta com as cópias de seu currículo. — Estou saindo. — avisou. — Espere, vou sair contigo e dar uma volta. Preciso espairecer. — disse Lynda, levantando rapidamente e correndo para o quarto. — Se mexa! — gritou Vera, jogando-se no sofá. Cinco minutos depois, Lynda estava de volta, pronta, e as duas saíram. Lynda decidiu acompanhar Vera até sua primeira entrevista de emprego para depois decidir aonde ir. Assim, no caminho, as duas conversavam. — Sabe… eu fiquei sabendo de um cara lá do Boa Vista que precisa de uma cozinheira. — Vera murmurou — Se hoje eu não conseguir nada, estou pensando em ir lá. — É uma ótima ideia! — Lynda sorriu, animada com a notícia — Mas… você de cozinheira? — riu.
— Eu cozinho muito bem! — Vera rebateu. Lynda apenas riu mais. — Sei. — ela disse, pegando fôlego — Mas é uma ótima oportunidade. Se não conseguir nada hoje, vá sim. — ela completou, depois que conseguiu controlar o riso. Vera assentiu. — Aqui é minha primeira parada. — ela apontou um escritório de advocacia ao lado de Lynda. — Ok, até depois. — Lynda acenou e continuou a caminhar. À noite, Vera voltou para casa, frustrada por não ter conseguido absolutamente nada novamente, mas também estava esperançosa: ouvira que o tal homem que estava contratando uma cozinheira ainda não tinha contratado ninguém. — E então? — Patrícia perguntou, durante o jantar. — Nada. — Vera suspirou — Mas eu vou fazer uma entrevista com… — começou, mas Patrícia a interrompeu. — A Lynda me disse. Eu perguntei sobre isso na aula e não tive boas informações. — Patrícia resmungou — Você já se perguntou por que ele não contratou ninguém ainda? — Não. — confessou Vera. — Bem, os boatos são de que ele é esquisito, não aparece muito e se aparece, sempre com as janelas fechadas, tudo escuro. Estão chamando-o de vampiro de Porto Alegre. — informou-a Patrícia. — Ai, Patrícia, por favor! — Vera bufou — Essas coisas não existem, pare de falar como se morássemos em Estação e todos soubessem da vida de todos. — Você quem sabe. — Patrícia deu de ombros. Lynda, que estivera quieta até então, deu um pulo. — Eu vou junto amanhã! — anunciou, subitamente excitada com a perspectiva. — Pra quê? — Vera perguntou. — Porque é perfeito! Eu preciso de ideias para um conto e… é perfeito! — ela guinchou, saltitante. Vera e Patrícia riram.
— Tá, — Vera consentiu, a contra gosto — mas não me atrapalhe na entrevista! Pela manhã, as duas pegaram um ônibus para o Boa Vista, Lynda com um bloquinho de notas e uma caneta, Vera com seu currículo (vai que seja útil). Chegando ao endereço procurado, as duas viram-se diante de uma enorme casa verde, de dois andares; e todas as janelas fechadas. — Será que tem alguém em casa? — Vera perguntou, nervosa. — Tomara que tenha. — Lynda respondeu, adiantandose para tocar a campainha — Nossos estômagos dependem disso. — mal ela o tinha dito e um grande portão para carros se abriu. Vendo que nenhum carro entrava ou saía, entraram. Mais perto da casa uma senhora as esperava. — Olá, são candidatas ao emprego? — ela perguntou, amável. — Ela é. — Lynda respondeu — Eu sou apenas uma acompanhante. — Marianne assentiu e guiou-as para dentro. — Sou eu quem vai fazer a entrevista. — disse, enquanto caminhavam para uma porta nos fundos — Você tem algum curso superior? — Em direito. — Vera respondeu — Mas sei cozinhar bem. — Interessante. — Marianne sorriu — Não se preocupe, meu patrão não é muito exigente com a comida e os empregados, que não são muitos, também não. — chegaram à cozinha — Seu teste será bem simples. — Teste? — Vera perguntou. — Teste. — Marianne confirmou — Faça uma refeição para quatro pessoas. — Só isso? — Vera perguntou, surpresa. — Sim. Simples, não? — Marianne sorriu — E vocês duas podem almoçar aqui. Sinta-se à vontade. Se quiser fazer uma sobremesa também, sinta-se em casa. — e com essas palavras, saiu do recinto, fechando a porta. Vera virou-se para Lynda, perplexa.
— Dá pra acreditar?! — ela perguntou. — Não! Nem vimos o seu patrão! — Lynda resmungou, decepcionada. Vera bufou. — Talvez o vejamos no almoço. — replicou — Vamos lá, o que farei? — perguntou, remexendo na geladeira e procurando algo no freezer. — Quer que eu faça a sobremesa? — Lynda riu. — Risoto de camarão! — Vera exclamou, retirando um pacote de camarões do freezer — Se quiser fazer, fique à vontade. — Ótimo. — Lynda sorriu — O que eles têm aqui? — Puxa, que delícia! — Marianne exclamou, na hora do almoço — Tem certeza que não teve ajuda? — brincou, piscando. — Tenho. — Vera sorriu — Mas a sobremesa foi por conta da minha prima. — apontou Lynda. — É mesmo? — Marianne ergueu uma sobrancelha. — Gosto de fazer doces. — Lynda deu de ombros. Sentia o olhar curioso de Marianne sobre si, mas algo nela lhe dava calafrios. As histórias sobre o tal dono da casa não podiam ser verdadeiras, afirmou para si mesma. Podiam? — Não deveríamos esperar o patrão? — Vera perguntou, curiosa — Ou ele não almoça em casa? — Ele trabalha em casa, mas não costuma comer conosco. Não se preocupe com ele. — Marianne sorriu. Lynda imediatamente estranhou tal fato. Teria ele uma cozinheira especial? Onde seria a sua cozinha? Vera não deu muita atenção ao fato, apenas continuou comendo. Adorava risoto de camarão, mas rara vez tinham condições de comprar os ingredientes para fazê-lo. — Tudo bem. Então posso considerar-me contratada? — ela perguntou. Lynda quis mandar a prima calar a boca. Vera estava sendo imprudente com tantas perguntas. Não disse nada, entretanto. — Sim. — Marianne consentiu — Não tivemos muitas candidatas e você foi definitivamente a melhor delas. Meus parabéns. — estendeu a mão para cumprimentá-la.
— Obrigada. — Vera disse, mal contendo a animação. Lynda riu discretamente do entusiasmo da prima — Quando começo? -- Bem, hoje podemos discutir as condições de trabalho, salário e outros detalhes e você pode começar amanhã, que tal? — Marianne sugeriu. — Perfeito! — Vera sorriu. — Ótimo, Vera. Preciso passar no mercado, então eu vou indo. — Lynda disse, sorrindo — Até depois. Tchau, Marianne. — ela sorriu para a governanta. — Tchau, querida. — Marianne acenou e Lynda saiu. Magnus observou, escondido, a cozinheira que Marianne conseguira contratar. Com os boatos crescendo e se espalhando, poucos ou ninguém queria trabalhar lá, mas ele tinha que reconhecer que Marianne estava certa ao dizer que precisavam de alguém que cozinhasse para ela e James, o jardineiro, já que os dois, ao contrário dele, alimentavam-se de comida humana. Suspirando, voltou furtivamente aos seus aposentos. Marianne com certeza conseguiria lidar com a cozinheira sem precisar de sua ajuda. Bocejando, deixou a pesada capa que vestia sobre uma cadeira e deixou-se cair em sua cama e adormeceu. Em casa, Lynda estava extremamente frustrada: tinham dinheiro garantido naquele mês, tudo bem, mas seu conto continuava empacado. Além disso, a visita à casa do sujeito que contratara Vera mostrara-se inútil, pois ele sequer aparecera. Pensando bem, era estranho que não tivesse aparecido para conversar com Vera. Provavelmente confiava muito em Marianne, para permitir que ela tomasse a decisão de quem contratar como cozinheiro. — Desista, Lynda. — Vera bufou, ao vê-la encarar a tela do computador sem nada digitar — Você não vai conseguir terminar a tempo e já temos dinheiro providenciado esse mês. — Dinheiro nunca é demais. — Lynda retrucou — Pelo menos, não no nosso caso. — acrescentou, tristonha, batendo com as duas mãos no teclado e fazendo aparecerem caracteres
aleatórios na tela. — Você conheceu o teu patrão? — perguntou, esperançosa. — Não. — Vera disse — Acho que ele não estava em casa… — Que estranho… — Lynda murmurou — Por que contrataria uma cozinheira se passa o dia fora? — Ele pode ser uma pessoa generosa e ter contratado uma pros seus empregados terem almoço. — Vera replicou e Lynda encarou-a, descrente. — Ok, e eu sou a fada Sininho. — rebateu. — Oba, eu quero voar! — Patrícia entrou correndo e gritando na sala. As outras duas riram. — Aqui está o pó. — Lynda levantou-se e balançou as mãos sobre a cabeça de Patrícia. — Pensamentos felizes, pensamentos felizes! — Vera encorajou-a. Naquela noite, Lynda deitou-se pensando novamente na misteriosa figura do patrão de sua prima. Como ele seria? Com aqueles pensamentos, adormeceu. No final da tarde do dia seguinte, Lynda saiu para encontrar a prima em seu trabalho. Queria ver novamente, ao menos a casa onde ela trabalhava, para tentar imaginar como seria seu dono e assim, quem sabe, escrever sobre ele. Desceu do ônibus quando já era noite, assim, esgueirouse rapidamente pelas ruas que precisava atravessar até a casa dele. Estava uma quadra longe de sua casa, entretanto, e alguém a agarrou por trás, tapando sua boca para impedir que gritasse. — Shh, quietinha. — uma voz masculina ordenou. De imediato e involuntariamente, seu corpo relaxou e ela parou de se debater. Internamente, entretanto, Lynda tentava com todas as suas forças mover-se, mas seu corpo simplesmente não lhe obedecia — Isso, boa menina. — o seu agressor sorriu — Não vai doer nada. — ela sentiu pânico explodindo em suas veias com aquela frase, embora nem isso fosse capaz de fazer seu corpo retesar-se. Em sua mente, podia vê-lo pegar uma faca para assassiná-la. O que seria de suas primas, quem faria de
mãe de Patrícia e conteria os impulsos consumistas de Vera? No entanto, o que sentiu não foi o contato gelado do metal em seu pescoço, mas a calidez úmida de sua boca a lamber o seu pescoço e logo depois, duas presas roçarem sua pele. Quando ele as enterrou nela, Lynda realmente não sentiu dor, sua mente pareceu adormecer ao mesmo tempo em que sentia partes específicas de seu corpo enrijecerem, sensações que alguma pequena parte alerta no fundo de sua mente reconheceu como excitação. Essa mesma parte gritava que devia ter enlouquecido para estar sentindo-se excitada enquanto alguém a mordia e sugava seu sangue. Finalmente, ele a soltou, parecendo tão surpreso quanto ela: sequer se dera o trabalho de fechar a ferida no pescoço de Lynda antes de virar-se e desaparecer na escuridão. — Por que a demora? — reclamou Vera, ao virar a esquina e avistá-la — Ficou com medinho? — Não, o ônibus atrasou… — mentiu, sem saber bem o porquê. Naquela noite, Lynda não dormiu: sentou-se na frente do computador e simplesmente escreveu a noite toda. Pela manhã, exausta, tinha um enorme conto terminado e pronto para ser enviado. Como estava embalada, tomou um banho e saiu para imprimir e entregar o conto. No centro, aproveitou para imprimir outros materiais e perambular procurando outra oportunidade para escrever algo. Assim, passou o resto do dia fora de casa, até que, no final da tarde, foi encontrar novamente sua prima, inconscientemente querendo se encontrar com seu “agressor” novamente e quem sabe vê-lo dessa vez. Do mesmo modo que no dia anterior, foi agarrada pelas costas e bastou uma palavra dele para que seu corpo relaxasse. Sentiu suas presas sendo cravadas em seu pescoço, mas dessa vez não tinha forças para se sentir excitada, protestar mentalmente ou o que quer que fosse. Sentiu uma forte tortura, percebendo que tinha ficado tempo demais sem dormir, além de ter comido pouco no almoço e nada a tarde toda. Por isso, apenas ouviu-o praguejar antes de perder os sentidos.
— Maldição! — Magnus praguejou ao sentir sua presa desmaiar em seus braços. Reconheceu o cheiro como sendo o mesmo da noite anterior, quando a tinha largado sem sequer fechar a ferida em seu pescoço, temeroso que seus instintos o fizessem causar mal a ela. Ao vê-la, estranhou não poder ler sua mente, ou ordenar que parasse; precisou segurá-la em seus braços e dizer a ordem em voz alta para que obedecesse. Ao provar seu sangue, entretanto, tudo piorou: nunca tinha provado algo tão bom, nem nunca tinha se excitado em alimentar-se de alguém. O que teria aquela mulher de especial? Agora, contudo, não conseguia entrar em sua mente para saber o motivo do desmaio, de modo que simplesmente levou-a para a sua casa, preocupado. Lá, evitou a cozinha, onde poderia encontrar Vera e foi direto ao seu quarto, chamando Marianne no caminho. — O que houve, Magnus? — ela perguntou, entrando em seu quarto. — Traga… não sei, alguma coisa que a acorde. — pediu. Sua governanta e amiga arregalou os olhos: — Oh, meu Deus! Um instante! — ela saiu correndo e voltou logo em seguida com sais aromáticos. — Santo Deus, Marianne, onde conseguiu isso? — Magnus reclamou, cobrindo o nariz. — Tínhamos na cozinha. — explicou ela. — Vera não ia gostar de saber que mordeste a prima dela. — A prima dela?! — ele repetiu — E o que ela fazia por aqui? — Provavelmente vinha encontrar a prima. — replicou. Em meio à conversa, Lynda acordou e ergueu-se abruptamente. — Onde estou?! — perguntou, na defensiva — Marianne! — exclamou, logo em seguida. — Olá, querida. — ela cumprimentou-a. Marianne estava de roupão, provavelmente tinha recém saído de um banho e, pela primeira vez, Lynda notou protuberâncias nas costas dela e em sua cabeça. Arregalou os olhos, antes de perceber que estava no colo de alguém. Olhou para trás, lentamente, e pulou
da cama logo depois. Arrependeu-se imediatamente disso, entretanto, pois tudo ficou escuro novamente. — Droga, fique quieta. — grunhiu Magnus, preocupado, depois de agarrá-la e fazê-la sentar-se novamente — Quando foi a última vez que comeu? — Na hora do almoço. — ela respondeu. Descrente, Magnus encarou-a, sério. — O que comeu no almoço? — sondou-a. Lynda esboçou um sorrisinho amarelo. — Um pastel folhado de frango. — Magnus quase a chacoalhou ao ouvir aquilo. Ela por acaso queria ficar subnutrida? Contendo sua impaciência, lançou um olhar para Marianne e ela saiu, para buscar comida. Quinze minutos depois, Marianne entrava com uma bandeja farta de comida para Lynda. Durante aquele tempo, os dois permaneceram em silêncio, Lynda muito constrangida para falar e Magnus ainda tentando conter sua impaciência. — Bom apetite. — Marianne sorriu — Vou ligar para a sua prima. — Obrigada. — Lynda murmurou, envergonhada. Magnus observou-a comer, calado. Sentia uma estranha ânsia de protegê-la e aquilo o estava incomodando. Mal a conhecia! Suspirou, cansado. — Desculpe. — murmurou Lynda, após terminar a refeição. — Não se preocupe. Se eu não estivesse ali, você provavelmente teria chegado em casa bem. — ele rebateu. — Ou teria desmaiado no ônibus. — Lynda retrucou. — Mas eu ter bebido seu sangue piorou sua situação. — Magnus teimou. Lynda respirou fundo, irritada. — Eu provavelmente teria desmaiado de qualquer forma! — guinchou — Por minha exclusiva culpa. Você não me obrigou a passar a noite em claro e depois sair caminhando pela cidade em busca de um bico. — Passou a noite em claro? — ele perguntou, metade confuso e metade furioso.
— Passei! E penso que se tem algo no qual você tenha culpa, é nisso. — ela bufou — Passei a noite escrevendo sobre ataques de vampiros. — Magnus fez uma careta. — Uma crítica? — Não, um conto. — ela corrigiu — Você não chegou a beber de mim hoje, não é? — perguntou ela, pensando em como aquela conversa era estranha. Ele não tinha escondido o que tinha feito e ela tampouco tinha fingido que não sabia do que ele estava falando. — Não. Prefiro nem pensar no que aconteceria se tivesse… — ele interrompeu-se ao vê-la estender seu pulso. — Não é justo que fique sem comer por minha causa. — ela explicou. — Não ficaria sem comer. — ele replicou — Mas não, obrigado. Você já passou mal uma vez e prefiro não arriscar. — Por favor. — ela grunhiu. Por que tinha que implorar que ele comesse? Não devia se importar com ele, pensou. — Tudo bem. — ele suspirou — Mas só se ficar aqui, onde posso ter certeza de que está bem e descanse. — exigiu. Lynda hesitou, mas acabou concordando. Aquilo seria bom para a sua criatividade, afinal. Magnus sorriu para o pulso ainda estendido e agarrou-o, mas não levou-o à sua boca como Lynda esperava: puxou-o, de modo que ela caiu sobre si. Lynda ofegou, surpresa e Magnus a colocou de joelhos sobre a cama, de modo que seu pescoço ficasse na altura de seu rosto. Sem dizer nada dessa vez, ele aproximou-se e mordeu-a. Dessa vez, a mente de Lynda estava em um turbilhão e não se acalmou. O prazer que ficara oculto em alguma parte obscura de sua mente veio à tona e ela não conseguiu conter um gemido, agarrando os ombros de Magnus com força. Sangue escorreu do ferimento com o movimento de Lynda, mas nenhum dos dois deu atenção àquilo, pois naquele momento a porta bateu na parede: Vera estava lá. — O que é isso?! — ela exclamou. Lynda, por reflexo, tentou escapar de Magnus, mas ele a manteve no lugar e retirou suas presas de seu pescoço devagar e fechou o ferimento em seguida. Logo depois, Lynda saiu de cima dele, ruborizada.
— Não é o que você está pensando. — ela tentou consertar, em vão. — Ele estava te mordendo! — Vera urrou — É claro que é o que eu estava pensando e isso explica também por que você desmaiou na rua! — Não, eu desmaiei na rua porque passei a noite em claro e o dia na rua, comendo pouco. — Lynda corrigiu. — E com ele sugando seu sangue também não ajuda muito, não é? — Vera resmungou. — Eu acabei de comer mais comida do que achei que fosse capaz, não vou desmaiar novamente. — Lynda apontou a bandeja vazia sobre um criado-mudo. — Ótimo. — Vera rosnou — Agora vamos para casa. — Nem pensar! — Magnus levantou-se e postou-se ao lado de Lynda — Ela se comprometeu em ficar aqui essa noite para que eu tenha certeza de que ela estará bem. — declarou. — E você pensa que eu vou permitir isso? — Vera debochou. — Você não manda nela. — ele rebateu. Vera respirou fundo, furiosa, e Lynda adiantou-se até ela. — Calma, vou ficar bem. Não é como se ele fosse me matar. — Lynda riu — Poderia tê-lo feito ontem, se quisesse. — murmurou. — O quê? — Vera perguntou, embasbacada — Então é isso o que você estava me escondendo ontem? — Lynda assentiu, novamente corada — Você deve estar enlouquecendo. — Vera resmungou, virando-se e saindo. Parou, entretanto, na porta — Precisa de alguma coisa? — Não. — Magnus respondeu por ela — Providenciarei tudo o que ela precisa. Vera suspirou, frustrada. — Está bem, boa noite para os dois. — disse, antes de sair. Lynda suspirou, sentindo-se culpada por ter deixado a prima ir daquele jeito. — Acalme-se. Ela vai ficar bem. — Magnus disse, colocando a mão em seu ombro, num gesto de consolo. Lynda assentiu. — Eu sei. Onde vou dormir?
Magnus levou Lynda para o quarto contíguo ao seu e deixou-a acomodar-se, deixando uma camisa sua para ela usar como pijama. Quando voltou, dez minutos depois, Lynda dormia, exausta. Na manhã seguinte, quando Lynda acordou, Vera já tinha chegado e trazido seu notebook, para que Lynda pudesse ficar lá com ela e trabalhar. Magnus dormia, provavelmente cansado com os acontecimentos da noite anterior. Vera e Marianne a receberam na cozinha com a mesa posta para o café, novamente com muita variedade de comida. — Puxa, desse jeito vou ficar mal acostumada. — Lynda riu. — Você deve ter muitas perguntas. — adivinhou Marianne. — Sim. — Lynda confirmou, entre mordidas da laranja que comia — Ele é um vampiro, então? Como é o nome dele, falando nisso? — Sim, é um vampiro relativamente novo. O nome dele é Magnus Fillanrion. — Marianne respondeu. — E você? — Lynda não fez rodeios. Marianne suspirou. — Eu sou uma succubus. — anunciou, altiva — Imagino que saiba o que é. — Sim. — Lynda confirmou — Puxa… — murmurou, surpresa. Não esperava que ela fosse um demônio. Marianne riu. — E o jardineiro, James? — James é humano. — Marianne disse — Ele sabe que somos diferentes, mas não sabe exatamente o que somos. Temo que Magnus será obrigado a tomar uma providência com relação a ele, uma vez que está causando problemas espalhando boatos por aí. — Entendo. — Lynda murmurou — O que vocês são um do outro? — não pode deixar de perguntar. — Amigos. — Marianne deu de ombros — Como deve saber, eu sugo energia vital através do sexo e temo que sou obrigada a fazê-lo com certa frequência, ou me enfraqueceria. Não faria isso com ele, de qualquer forma. — Lynda assentiu.
— Vocês têm a menor noção de quão bizarra é essa conversa? — Vera reclamou. Lynda riu. — Sim, ontem eu e Magnus conversamos assim também e foi muito estranho, mesmo. — concordou. — Conversaram ou discutiram? — Marianne riu. — Você ouviu?! — Lynda se surpreendeu. — Claro. — Marianne sorriu. Depois do café, Lynda pegou seu notebook e, novamente, as palavras fluíram por ela, de modo que ela já tinha terminado um dos contos que lhe tinham encomendado no dia anterior: tivera sorte, vários jornais estavam apostando em colunas de contos curtos, divertidos, para atrair leitores, embora ela se dispusesse a escrever de outras formas também, não foi necessário. À noite, antes de ela e Vera irem para casa, Magnus levantou. — Você está bem? — perguntou, ao ver Lynda desligando o notebook para ir embora. — Sim, obrigada. — ela sorriu. — Que bom. — ele sorriu. — Hoje é você quem não parece bem. O que houve? — Lynda observou que ele estava mais pálido do que já era. — Nada, não se preocupe. Eu não me alimentei direito ontem, é isso. — ele explicou. Lynda arregalou os olhos. — Ah, claro! Minha prima chegou bem na hora e eu dormi logo depois. Desculpe. — lembrou-se ela. — Não é culpa sua, estava exausta. — ele bufou — E não tem obrigação nenhuma de me alimentar todos os dias. Isso provavelmente te fará mal. — Bobagem, você não bebe tanto assim. — ela replicou. Por algum motivo não gostava da ideia de ele alimentar-se de outra, o que era ridículo, pois eles não tinham nada e ele nunca dissera que ele alimentava-se exclusivamente de mulheres. — Você é malditamente teimosa. — ele reclamou. — Sim, acho que sou mesmo. — ela concordou, aproximando-se. Magnus inalou profundamente o doce cheiro dela, sentindo-se faminto.
— Droga, Lynda. — queixou-se, puxando-a para perto. — Você cheira… bem. — grunhiu, contendo-se para não praguejar. Enterrou seu rosto na curva do ombro dela, suspirando. Lynda suspirou, apreciando o contato, estremecendo quando ele roçou os caninos em seu pescoço. Novamente, sentiu um prazer quase incontrolável quando ele mordeu-a. Aferrou-se a ele, querendo mais ao mesmo tempo em que queria vê-lo bem. Desta vez não houve interrupção e ele pode tomar o quanto achava que fosse o bastante para ele e seguro para ela. — Basta. — rosnou ao afastar-se dela — Mais um pouco e irei longe demais. Lynda assentiu, sentido os joelhos bambos pela excitação, o que não passou despercebido por ele, embora não dissesse nada. — Tudo bem. Tenho que ir. — ela despediu-se. — Até breve. — ele respondeu, sorrindo. — Até… …mas desse dia em diante, Lynda não teve mais dificuldades para escrever e as coisas finalmente melhoraram.
O Chamado Thalita P. Moreira
natureza esconde diversos segredos; segredos que são revelados apenas para aqueles que ela julga serem merecedores, dignos. Os outros viverão para sempre privados de descobrirem o que existe por trás daquilo que vemos. Mais um dia como qualquer outro estava começando e antes de todos da aldeia acordarem, Hela já estava no alto da montanha. Gostava de sentir os ventos gelados da manhã, que sussurravam em seus ouvidos. Antes de sua mãe morrer, havia
lhe dito que eram na verdade espíritos da natureza que tinham sempre mensagens para passar. Desde então a garota dos cabelos ruivos e densos subia todas as manhãs a fim de escutar o que eles diziam. Era filha única e seu pai Gunnar nunca havia aceitado que sua única herdeira fosse uma mulher e ele até podia ter relevado se não fosse o fato da garota não querer seguir o caminho do pai e se tornar uma guerreira Viking. Preferia entrar pela floresta e ficar escalando as montanhas. Não mostrava interesse pelas navegações e muito menos comparecia aos treinos. Além do mais era pequena demais e não tinha forma física adequada para segurar uma espada, que era pesada demais para ela. Enquanto escutava as vozes dos espíritos e tentava sem muito sucesso compreender, um grande pássaro azul surgiu voando no céu. Já tinha ouvido falar sobre ele, porém eram apenas histórias. Suas penas eram de um azul tão intenso que chegava a brilhar quando os raios solares batiam em suas asas. O pássaro se aproximava rapidamente de Hela e seus grandes olhos negros fitavam os seus de uma maneira desconcertante. Pousou no topo da montanha, alguns metros apenas de distância da jovem viking. Alguns minutos depois ergueu voo novamente, o bater de suas asas era tão forte que fazia barulho no ar. Hela não pensou duas vezes antes de seguir o grande pássaro azul que parecia estar chamando-a. Desceu as montanhas velozmente — o que não tinha em força havia sido compensado com agilidade. Hela parecia ter sido criado para correr. Ao longo do percurso, Hela percebeu que o pássaro havia mudado sua coloração, quanto mais adentrava a floresta, mais colorido e brilhante ficava. Era impressão sua ou o pássaro havia ficado maior? — Para onde está me guiando? — perguntou no decorrer do caminho. Nunca tinha ido para aquele lado da floresta. Ali o sol não conseguia penetrar e ela podia ouvir a água pingando das árvores. Parou para ouvir melhor.
—Elas estão chorando. — uma voz disse atrás de si. Era uma voz forte e ao mesmo tempo tão melodiosa que a assustava. Virou-se com rapidez colocando-se em posição de defesa, ele pareceu não se importar. — Não costumavam serem árvores e hoje choram com saudade de suas antigas formas. — a criatura que estava na sua frente disse, seu olhar seguia por todas as árvores. Hela imaginou se ele estaria triste. Era diferente de todos os homens de sua aldeia. Era esguio e sua pela era muito branca, quase brilhava. Seus olhos eram azul-escuros, quase negros e os cabelos loiros e lisos iam até a cintura. — Quem és? — Hela perguntou e o estranho pela primeira vez fitou seus olhos e por alguns segundos ela perguntou-se se ele seria o grande pássaro azul, mas este ainda estava do seu lado. — Tem certeza que não sabes quem eu sou, Hela? — ele perguntou instigando ainda mais sua curiosidade. — Confesso que não, estranho, mas não posso dizer que o conheço. Como poderia? És tão diferente de mim, do meu povo. Ele sorriu. — E você é igual a eles? — ele perguntou e ela sentiu um frio na espinha. É claro que não era igual ao povo de sua aldeia, nunca havia se sentido em casa. — Disseram que você viria. Eu não acreditei até ver você seguir o pássaro. — ele continuou dizendo. Ela olhou de relance para o pássaro que de tão silencioso parecia uma pedra. — Qualquer um poderia seguir o pássaro. — ela disse. — Sim. Mas, apenas um humano a cada mil anos consegue vê-lo. — sua voz saiu como um suspiro enquanto ele se aproximou lentamente de Hela, que pode perceber que ele tinha um arco preso em suas costas. Suas roupas eram brancas e leves, diferentes das roupas em couro que ela usava.
— Sou Elvellon, o elfo. — ele disse e só então a garota conseguiu ver suas orelhas pontudas. — O que quer de mim, Elvellon? — ela perguntou, sua voz saiu tremida. — Não sei. Não depende de mim, Hela. Não entendo o motivo, mas me disseram para esperá-la aqui e eu esperei. Quando você nasceu, eu a avistei de longe, escutei seu primeiro choro e toda a minha aldeia, também. — quanto mais Elvellon falava, mais Hela ficava espantada. — Vi seus primeiros passos e quando Calliel morreu, tentei me aproximar... Mas, disseram que ainda não era a hora. — Como sabe o nome de minha mãe?! — Hela perguntou confusa. Elvellon a olhou curioso. — Calliel cresceu comigo. Ao completar idade apaixonou-se por um viking e percebeu que seu lugar era ao lado dele. Entenda, ela tinha sangue élfico, mas também tinha sangue humano. — ele disse tranquilamente, de vez em quando voltando a olhar para as árvores chorosas. Hela sentou-se numa pedra, sentia as pernas bambas e calafrios percorriam seu corpo. A vida toda havia se sentido diferente e no final das contas, de fato, era diferente. O que impressionava a garota é que o elfo a sua frente aparentava ser apenas alguns anos mais velho que ela. — Apenas depois de quinze invernos você ficou pronta e por isso conseguiu vê-lo. — disse apontando para o pássaro — Mas, ele ia todas as manhãs enquanto você estava na montanha. Hela não notou quanto tempo passou enquanto conversavam. Elvellon contou acerca de sua aldeia, sobre sua cultura e cada vez mais a garota ia ficando mais a vontade em relação ao que acabara de descobrir. Então o grande pássaro cantou, como se estivesse falando com Elvellon que no mesmo instante se levantou, recuperando a rigidez. — O que houve? — Hela perguntou preocupada. Elvellon se aproximou repentinamente, fazendo com que a distância entre eles fossem de apenas centímetros, seus olhos estavam arregalados.
— Estamos em guerra, Hela. Uma guerra que começou a milhares de anos entre meu povo e os elfos das trevas. — Elfos das Trevas? — disse confusa. O elfo olhou mais uma vez para o pássaro e voltou o olhar para Hela. — Há muito tempo atrás alguns elfos do meu clã foram seduzidos pelos deuses das trevas. Trocaram a luz pelas sombras e traíram seu próprio povo. — o olhar de Elvellon era triste e Hela percebeu que havia algo mais. O pássaro cantou novamente e Elvellon começou a seguilo, sem pensar duas vezes Hela foi atrás. — Espera, Hela! — ele parou de repente. — Sim? — É perigoso demais e não posso colocar você nisso. — ele disse um tanto quanto confuso. Ela respirou fundo. — Minha vida toda me senti um estranho no ninho. Meu próprio povo me julga estranha e nunca fui útil para nada em minha aldeia. Hoje finalmente descobri que não sou quem eu sou e ainda preciso descobrir o motivo pelo qual o pássaro apareceu para mim. — as palavras saiam de sua boca rapidamente, como se estivesse engasgada há muito tempo. — Você precisa saber que o caminho não será fácil e o que você verá poderá ir contra tudo o que você acredita. — ele disse. E foi assim que... — Mama, o que aconteceu com, Hela? — uma das crianças perguntou. — Ela descobriu quem era realmente? — a outra gritou desesperada. — Acalmem-se, crianças, que já está na hora de dormir. — a mulher rechonchuda falou sorrindo. Vendo, porém, a curiosidade no rosto de seus filhos, acolheu-os em seus braços. — A jornada de Hela não foi fácil, mas Elvellon esteve com ela em todos os momentos. Juntos com os outros elfos, derrotaram as trevas, mas as trevas ainda vivem escondidas e
há quem diga que estão esperando para atacar. — ela ia dizendo. — Hela descobriu que podia ser o que quisesse ser e ao lado dos elfos descobriu sua verdadeira família. O pássaro nunca mais foi visto, mas ele apenas espera o momento certo para mostrar-se, cabe a quem vê-lo decidir se irá ou não ouvir o chamado.
Te Peguei Matheus Melo
e peguei — disse o pequenino, num tom de voz alegre. Um sorriso inocente estava estampado em seu rosto.
E o rapaz se viu no escuro do quarto. Ofegava e, apesar do frio que fazia, estava transpirando. Sentia-se tão cansado quando foi dormir, na madrugada do mesmo dia. Perguntava-se se havia mesmo pegado no sono, mas a bagunça na sua cama e o relógio do quarto afirmavam-lhe que sim. Já estava quase na hora de ir para o trabalho, era raro acordar sem a voz barulhenta do despertador. Já dentro do ônibus, a caminho do trabalho, ele encarava a paisagem da cidade que corria diante de seus olhos a vagar sem rumo. Tinha sua mente concentrada no estranho sonho que tivera naquela noite. Aquelas lembranças causavam desconforto, e quão logo ocupasse sua mente com os assuntos do trabalho, melhor. Quando o ônibus parou, viu ao longe a entrada de sua empresa e deu um suspiro preguiçoso. Cumprimentou as secretarias e seguiu em direção ao elevador. Encararam-no com uma expressão de surpresa por ter chegado tão cedo. A porta se abriu no quarto andar, e ele caminhou em direção ao escritório no qual trabalhava. — Bom dia, senhor estagiário. — assim que o jovem abriu a porta, o homem cuja mesa ficava mais próxima da porta o cumprimentou, não sem o usual sarcasmo. — Bom dia, Paulo. — ele apenas respondeu de volta, junto de um sorriso simplório e seguiu em direção ao seu local de trabalho, aos fundos do aposento. Gostava de lá, pois além de ficar perto da janela, era o último da fileira. Após ter ligado seu computador, levantou para pegar uma xícara de café. O bule estava cheio, e tomando cuidado para não derramar nada, preencheu sua caneca de porcelana lentamente. — Olá, Senhor Estagiário! — uma voz veio de trás, assustando-o. E por muito pouco sua camisa branca não ganhou uma mancha marrom. — Susanna! Não me assuste assim, por favor. — ele disse sem jeito, enquanto a garota apenas caía na gargalhada — E também, pare com esse negócio de Senhor Estagiário! — Você tava pegando café ou desarmando uma bomba pra ficar concentrado desse jeito? Nem me ouviu chegar. E olha que desde que o Paulo mudou pra mesa lá da frente, é bem
difícil não saber quando alguém chega. — após parar de rir, seu usual sorriso amigável estava estampado em seu rosto. — Pois é. — o rapaz riu de volta. — Há algo te incomodando, senhor est... — ela se lembrou da reclamação, e assim que notou a boca do jovem se abrindo para contestá-la, interrompeu a fala e o chamou pelo nome — Moisés? — Não, não. Só tô um pouco distraído hoje, mais nada. — sabia que mentir não iria adiantar, pois seu olhar vazio já havia o denunciado. — Te conheço faz meses e te vejo todos os dias, desde que começamos a fazer o mesmo curso. Mentir não vai pegar comigo, bocó. — Como esperado. — ele sorriu sem jeito — Eu tive um sonho esquisito, só isso. — E sonhou com o quê? — Susanna se dirigiu à pequena mesa para pegar café. Havia chegado cedo, então tinha tempo para conversar. — Com um menino. Mas ele tinha uma voz meio distorcida, o corpo dele ficava mudando de uma hora pra outra entre o de um adulto e de uma criança. Como se duas metades brigassem pra ver quem tomava o controle. Ele e eu brincávamos de esconde-esconde, e quando ele ia me vencer, se transformou numa criança mesmo. Daí eu acordei. — Eu, hein. O que tu andou vendo na TV ultimamente? — suas sobrancelhas levantadas demonstravam surpresa e confusão. — Nada! Acha que dá tempo de ver TV? Faz dias que não ligo meu videogame. Foi muito estranho, eu sabia que tava dentro do sonho. Vai ver por isso que acordei cansado, eu me lembro de ter corrido um bocado. O moleque era muito bom. — Hm, então seu despertador de pássaro deve ter servido pra algo pela primeira vez. — debochou, após tomar um gole de café escaldante. — Não fala assim do Pijama! Apesar deu nunca acordar quando ele canta, eu ainda gosto dele. — retrucou Moisés, com convicção no que dizia.
— Só você pra chamar um despertador em forma de pássaro de Pijama! Com um nome desses, você acha que o bicho vai te acordar? — Como queria que eu o tivesse chamado? De Polícia? Ambulância? Sirene? — Você não tem jeito mesmo. — ela riu, e tomou o último gole da xícara — Daqui a pouco o chefe vai chegar e eu nem arrumei minhas coisas ainda, vamos, e deixe de vagabundear, senhor estagiário. — Susanna, com uma expressão travessa, passou pelo rapaz, e nem precisou olhar pra trás para sentir a raiva dele. No final do expediente, o céu já estava avermelhado pelo sol da tarde. Susanna e Moisés, como de costume, pegaram o ônibus para ir até a faculdade. Tinham o hábito de jogar pedra, papel e tesoura todos os dias para ver quem sentava perto da janela. Quem ganhou dessa vez foi a garota. — Sabe se tem algo pra hoje, Susanna? — perguntou à garota cuja atenção estava fixada no horizonte. — Eu nunca vi o céu tão vermelho assim. — ela disse, como que em transe. — Como é que é? — confuso, ele inclinou a cabeça para averiguar. Concluiu, após observar a janela do outro lado, que não era o céu a estar vermelho — O que é aquilo? — Parece... — Susanna estreitou os olhos — parece que algo está pegando fogo. É uma casa. E está em chamas. — Ah, que beleza. E tá no caminho pra faculdade. Imagina o trânsito que vamos pegar! — É só descer do ônibus e seguir a pé. — contornou, mais preocupada com o incêndio que com o possível atraso que corriam o risco de conseguir — De quem será que é aquela casa? — Não sei. Vamos descobrir de um jeito ou outro quando der no jornal. — ele tentava desligar a garota do assunto, mas já conhecia aquele olhar fixo e determinado — Ah, não. Não. Você não tá pensando em ir lá perto, né? Os passageiros do ônibus pareciam igualmente comovidos pelo acidente. Todos se alvoroçaram e o tom de vozes dentro do veículo passou de silêncio pra cacofonia.
— Quero sim. Nós somos jornalistas e temos aula de fotografia hoje, que oportunidade melhor do que essa? Podemos tirar as fotos e vender pros jornais locais. — e os olhos da garota brilhavam. — O que tinha dentro daquele brigadeiro que você comeu depois do almoço? A mídia não perde tempo não, criatura. Eles não são como nós que dependem dessa tartarugamóvel pra andar por aí. — Então vamos correndo. — Moisés irritou-se consigo mesmo por atiçar mais ainda a determinação da garota. Desistiu de convencê-la a voltar quando a mesma se levantou e pediu para que o ônibus parasse. — E lá vamos nós. — ele suspirou, e assim que desceram do ônibus, desataram a correr. Quanto mais se aproximavam do local, maior a barulheira, o trânsito, as buzinas e a comoção. A típica sinfonia bagunçada de uma metrópole no fim de tarde. A rua da casa havia sido fechada pelos bombeiros, que já a postos, lutavam para apagar as ferozes chamas que se alastravam. Uma multidão se aglomerava atrás dos limites impostos pelos homens, demonstrado através de placas de madeira. Após uma exaustiva e longa corrida, os dois se esgueiravam entre as pessoas, já com as câmeras em mãos. — Susanna, você lembra como é aquele lance de filtro? Eu esqueci como fazer pra luminosidade do ambiente não atrapalhar. — ela já batia as fotos, enquanto ele parecia manusear um equipamento alienígena. Irritado, apenas apertou qualquer coisa e bateu as fotos, depois daria um jeito de ajeitar tudo no computador. Uma senhora se mantinha em pé, ao lado de Moisés, encarando a cena. Sendo melhor entrevistador do que fotógrafo, o rapaz abordou-a: — O que houve aqui? Sabe de quem é essa casa? — Dizem que era de um senhor. Ele saía todas as quintas para ir até a praça, mas justo hoje, como pode ver, ele escolheu o dia errado pra ficar em casa. — respondeu, sem tirar os olhos daquela desesperadora cena. — Céus... — ele se sentiu um pouco mal após saber, mas continuou a perguntar — E o que ele fazia na praça?
— Nada muito longe do que nós, velhos, fazemos. Ele sempre estava lá, ao sol, com um livro. — Livro? Então ele devia ser um idoso saudável, pra poder caminhar, ler e se cuidar sozinho. — deduziu — O que será que causou esse incêndio? — Não há como eu saber, rapaz. Agora pegue sua amiga e saia daqui com essas câmeras antes que os bombeiros venham pra cá enxotar vocês. Susanna escutou toda a conversa, mas ficou focada em seu trabalho, só voltando a si quando Moisés a puxou pelo braço, dizendo que tinham trabalho a fazer. Agradeceram à senhora e saíram de lá. Distanciaram-se da confusão e ao olhar para cima, perceberam que as estrelas já tomavam conta do céu. — É, mais duas faltas pra minha conta. — reclamou Moisés. — Relaxa, pelo menos conseguimos um ótimo material. Agora é só passarmos pro computador e enviar pros jornais. Tenho certeza que vamos conseguir um bom dinheiro com isso, se formos rápidos. Sua casa fica muito longe daqui, não quer dormir em casa pra fazermos a edição das fotos? Podemos aproveitar pra adiantar os outros trabalhos da faculdade. — Quê?! — o garoto tentou o máximo possível esconder a vergonha em seu rosto. — Não pense besteira! Até você chegar à sua casa do outro lado da cidade, no mínimo metade dos jornais já vão ter recebido originais. Não temos tempo a perder. Susanna estava certa, então logo Moisés concordou e ambos partiram em direção à casa da garota. Em cerca de vinte minutos de caminhada chegaram ao local. Susanna morava sozinha, a casa estava toda escura. Assim que abriram a porta, ela pediu para que a ajudasse a acender as luzes enquanto ela ligava os computadores e preparava um lanche, pois a noite de trabalho seria longa. Não era um lugar muito grande, mas era o suficiente para Moisés se perder na casa recém-alugada por sua amiga. Se enveredar entre cômodos escuros fê-lo lembrar do sonho que teve. Só de imaginar aquela criança o perseguindo fez com que seu coração
batesse mais rápido, então acendeu logo as luzes e correu para a sala do computador. Encontrou o seu notebook e o de Susanna, mas a anfitriã só respondeu quando o rapaz chamou por ela. Estava ligando a TV, procurando alguma notícia sobre o caso. E naquela noite, ficaram até depois da madrugada terminando seus afazeres. Descobriram que o incêndio não pode ser contido antes de levar boa parte da casa, mas que as forças investigativas encontrarem vestígios da vítima no andar de cima, bem onde ficava o quarto. A casa era de Augusto Lopes, um senhor já aposentado. As causas do incêndio ainda não foram descobertas, mas os bombeiros suspeitam que não foi causado pela vítima, já que esta provavelmente dormia na hora do incêndio. Os acontecimentos daquele dia drenaram quaisquer chances que Moisés tinha de conseguir uma noite de sono pacífica. Enfiou-se no computador e foi dar uma segunda olhada nas fotos que mandara, até perceber algo estranho. Enquanto se estapeava com a câmera para encontrar a configuração correta, havia batido uma foto de Susanna. Um vulto esbranquiçado a acobertava. O rapaz colocou a foto em negativo para poder ver melhor e sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Tinha uma criança do lado dela. Aquele mesmo rosto fez seu coração bater rápido, e seu corpo correr mais rápido ainda até o quarto de Susanna. Estava tudo escuro e ela dormia em paz, como esperado. — Pode ela ter o mesmo sonho que o meu? Quem é aquele garoto? É melhor acordá-la. — pensou Moisés. Quando um de seus pés iria passar a porta do quarto, uma voz conhecida o parou. — Você não terminou de brincar comigo ainda. — o rapaz virava pra trás lentamente, e a cada músculo que se movia, o terror tomava conta de seu corpo. Quanto mais daquela figura ele via, mais arregalava os olhos. Estava de frente com o menino. Sua mente estava a mil, quis fazer inúmeras perguntas, mas apenas uma saltou de sua boca: — O que faz aqui?!
— Estou te achando, moço! — e a voz se alterou para um tom grosso e torpe, junto do corpo, que foi tomado por um braço e uma perna mais grossos, como os de um adulto — Que nem aquele velho hoje de tarde. Ele não me achou e teve que ficar dormindo. — Eu só posso ter caído no sono enquanto estava no computador. — ele apenas encarava o chão, com medo de ver o que estava a sua frente. Sua mente procurava uma explicação lógica para aquilo, mas temia não encontrar. — Vamos, se esconda! Se não fica chato, puxa. — disse a criança, tomando o lugar do adulto. — O que você quer? — Eu quero brincar — respondeu a voz fina, e a mais grossa continuou —, eu quero sossego, eu quero paz. Não aguento mais, perdi minha esposa, meu emprego, onde quer que eu vá, eles me olham com cara feia. Vamos brincar! Moisés percebeu que a criança sempre falava sobre brincadeiras, enquanto o adulto reclamava. Perguntava-se o que aquilo queria dizer. Sentia que era melhor acatar o pedido daquela coisa, então o fez. — Oba! Vou contar até quarenta e quatro, daí você se esconde, tá? — de adulto, aquilo só tinha o rosto melancólico, da mesma forma da noite passada. Ele apenas assentiu com a cabeça, engolindo seco logo após. A casa era dividida em três partes. A entrada dava pra sala, onde à direita ficava a cozinha e à esquerda o corredor que dava para os quartos. Moisés e o espírito situavam-se no corredor. O menino, ingenuamente se virou para a parede com os olhos fechados e passou a contar. Moisés, não acreditando no que fazia, passou por ele, fechando os olhos, e se escondeu atrás do sofá, que ficava de costas para o corredor. Foi aí que sentiu seu peito disparar mais ainda. Seu corpo estava ali, deitado, dormindo. — Mas o q... — quase levantara a voz, o que poderia denunciar sua posição se não tivesse se calado a tempo. Ver seu
corpo adormecido na sua frente deixou-o mais perdido ainda, até que ouviu o menino dizer “quarenta e três...”. — Ok, eu tenho que me acalmar. Deve haver uma explicação lógica pra tudo isso. Preciso pensar num plano, e logo! — e antes que pudesse pensar em algo, a criança proclamou o final da contagem. — Pronto ou não, lá vou eu! “As luzes estão apagadas, mas os postes lá de fora iluminam o suficiente aqui pra eu ver quando ele estiver chegando. Assim que ele for pra algum lado, eu corro pelo lado oposto e bato na parede, declarando minha vitória! Essa é minha melhor opção”, ele pensava, determinado. Ouvia os passos vindo em direção à sala, então flexionou os músculos das pernas. Seu corpo todo tremia, e cada passo parecia ressonar às batidas de seu coração. Os olhos de Moisés estavam fixados no chão, mas antes que pudesse ver qualquer sombra, o garoto estava do seu lado. — Como assim, ele não tem sombra?! — sentindo a agonia por seu plano ter falhado, apenas recuou enquanto o menino se aproximava, atravessando a pequena mesa que ficava em frente ao sofá. — Não tem sombra e pode atravessar objetos, será que é um fantasma? Só pode! O que mais ia ser isso?! — pensou alto. — Fantasma? Eu tenho medo deles. — balbuciou, enquanto caminhava lentamente na direção do rapaz, como se aproveitasse cada momento. Moisés se chocou com a parede, se vendo encurralado. Do canto que estava preso, havia de um lado a estante com a TV, no outro, oposto às janelas, um espelho de tamanho médio. Numa tentativa desesperada, ele agarrou o objeto, se encolheu e colocou-o a sua frente, como um escudo. — O que é isso, moço? Por que eu não tenho reflexo? — a criança perguntou, com uma expressão curiosa em seu rosto, ainda com feições de adulto. — Será que... — Moisés parecia ter entendido algo, e apenas se calou. Sentiu o fantasma tocar o espelho, e quando viu aqueles dedos transpassando a superfície e chegando perto
de encostar-lhe, fechou os olhos e engoliu seco, esperando o fim. Moisés sentiu um toque gelado em seu rosto, o que entrou em conflito com o calor aconchegante da luz do sol. Acalanto nenhum foi maior do que o de levantar do sofá e ver o semblante sorridente de Susanna em sua frente, te dando um bom dia. As únicas memórias que vinham de sua conturbada noite de sono eram as palavras “obrigado, ajudar, morte, perceber e aceitar”. Ponderava no que elas significavam.
O Quinto Medalhão Sanchel Cotta
1 - Encontro marcado rês luas brilhavam no céu escuro, enquanto ele preparava sua fogueira naquela clareira. A floresta o cercava, as árvores altas e cheias de folhas secas, os gritos e grunhidos dos animais eram ignorados por ele, enquanto ele ajeitava os gravetos e troncos. Seu cabelo longo e branco voava com a leve
brisa, sua capa em tom negro também, escondendo suas vestes claras de tecidos finos. Ele cantarolava mentalmente a mesma canção há alguns dias, e sua atenção foi desviada pelos passos pesados de um homem. Ele se virou e segurou a bainha de sua espada, preparado para usá-la — se necessário. O homem tinha uma boa aparência, usava vestes negras, que cobriam todo o corpo; nos pés, botas feitas do couro de algum lobo cinza; os cabelos eram negros, anelados e cortados na altura do pescoço; o rosto tinha traços fortes, a pele era pálida e os olhos tinham um tom azul claro, quase branco. — Noite boa! — o homem disse-lhe. — Boa! — ele respondeu — O que fazes por terras tão distantes? — Estou de passagem, perdido em mim. Chamo-me Sinkoo. — Prazer em conhecê-lo, Sinkoo. Tenho muitos nomes, mas já fui conhecido por Valaistus. Um minuto de silêncio, Sinkoo arqueou uma sobrancelha e sorriu pelo canto dos lábios: — Uma noite incomum para cruzar com um semideus. — Não sou um há tanto. — Valaistus respondeu-lhe. — Um deus é sempre um deus... — Quando há fé. — Valaistus completou. O semideus então se virou para a lenha e invocou algumas palavras, em sussurro, até que as chamas dominaram os galhos secos, iluminando a clareira. O homem recuou dois passos, evitando olhar para as chamas. Valaistus notou isso e virou-se para ele, curioso. — O que teme? — Sou do Norte. — Sinkoo foi breve e direto. — Oh. — Valaistus sorriu desculpando-se e virou para as chamas, diminuindo-as após dizer mais algumas palavras desconhecidas — Está melhor? — Obrigado. — Sinkoo acenou positivamente com a cabeça. Os homens e mulheres do norte viviam em montanhas altas e geladas. O frio era um companheiro e o fogo, um inimigo. Evitavam e odiavam o Sol, ou qualquer coisa que fosse
quente o bastante para queimar-lhes a pele. São alérgicos ao calor, e passam por grandes dificuldades durante o verão das terras mais ao Sul, sendo obrigados a usar de magias e runas mágicas para diminuir a temperatura ao redor. Valaistus sabia disso, em razão disto algumas coisas passaram a martelar em pensamentos. — Desculpe-me intrometer, mas qual o seu destino, meu caro Sinkoo? — perguntou ele, após alguns segundos em silêncio. — Estou à procura de alg... Algo. — Interessante. Pois também estou. E eles ouviram mais passos, então se viraram rapidamente para a mesma direção. Um homem, trajando um casaco feito da pele de um cervo, com os chifres em ombreiras e uma espada em suas costas, aproximava-se; os cabelos loiros e longos dançavam ao ar, soltos, e a barba rala cobria parte de um belo rosto jovial. — Não estou a trabalho. — ele logo disse para os dois, aproximando-se lentamente. — Então o que faz por aqui, ladrão? — Valaistus perguntou-lhe, intrigado. — Só de passagem. — ele resumiu. — Muitas pessoas de passagem em uma só noite. — Valaistus recuou dois passos, olhando para os dois recémchegados. — É coincidência. — Sinkoo logo disse, olhando fixamente para o semideus. — Eu nunca os vi em minha vida, — o ladrão adiantou-se — Eu... Eu preciso seguir adiante. E aconselho aos dois que saiam também. — Por que deveríamos? — Valaistus perguntou-lhe, segurando a bainha de sua espada com desconfiança. — Uma coruja está nos observando, e creio, pelas marcas nos galhos, que ela está ali há alguns minutos. — o ladrão falou calmamente — Há quanto tempo o homem do Norte chegou aqui, meu caro? Acho que é muita coincidência para uma noite só.
— Uma coruja? — Sinkoo olhou ao redor, numa tentativa falha de encontrar algo. — Uma metamorfa. — não era uma pergunta. Valaistus afirmava, com toda certeza. No instante em que o semideus fizera tal afirmação, uma coruja cortou o céu e pousou ao lado da fogueira, transformando-se em sua forma humana. Uma garota, de aparentes quinze anos, pele clara, olhos grandes cor de mel, os cabelos loiros e lisos desfiados em sua cabeça, uma única mecha castanho escuro descia por sua face, parando no meio do pescoço. A garota usava um fino vestido de tom cinza e luvas sem dedo, os pés descalços e tornozeleiras de prata em ambos os lados. — Noite interessante para um encontro. — a garota disse-lhes — É um prazer estar ao encontro de um semideus, — ela encarou Valaistus por alguns segundos, e prosseguiu com seu pequeno discurso — Meu nome é Elain, Elain Albatroste, e estou seguindo o homem do Norte há alguns dias, ele é desatento, foi fácil até então. Sinkoo, enfurecido, segurou sua espada com força e apontou para a pequena metamorfa, seus olhos brilhavam dominados pela ira. Ele a atacaria sem hesitar, se ela não estivesse tão próxima do fogo. — Por que me segue? — Um encontro... Hm. — O ladrão arqueou uma sobrancelha. — Nós temos o mesmo objetivo. — ela falou calmamente. — Que objetivo? — Valaistus intrometeu-se. — Quando eu disse "nós", não me referia somente a mim e ao homem do Norte. — Meu nome é Sinkoo. — ele bufou. — Creio que só não sei o nome do ladrão. — a metamorfa arqueou a sobrancelha. — Varkaus. — ele apresentou-se em um tom baixo e sereno.
— Pronto, já temos os nomes. — Valaistus falou, impaciente — Mas, o que infernos realmente trouxe vocês até aqui, esta noite? — Estou em busca de algo. — Sinkoo foi o primeiro a dizer. — Eu também. — Eu também. — primeiro a metamorfa, para logo em seguida o semideus também afirmar o mesmo. Todos se viraram para Varkaus, curiosos: — Já eu estou de saída, acabei de roubar um demônio. E ele logo virá atrás de mim. Então, por favor, deem-me licença! Um rugido gutural ecoou por todos os lados no instante que se seguiu, e todos se armaram rapidamente. Os três homens com suas espadas, e a metamorfa com dois pequenos punhais. Valaistus notou as armas da garota e segurou uma risada. “Ela não tem chances contra um demônio com isto!”, pensou. — O que você roubou? — Sinkoo perguntou para o ladrão. — De quem você roubou? — Valaistus acrescentou a pergunta, sem dar espaço a Varkaus. — Kunnit. Conhecem? Valaistus virou-se para o ladrão, inconformado. O semideus mostrou-se claramente preocupado e engoliu em seco: — Você... Por... você... Estamos mortos! — Por quê? — Sinkoo era o único que parecia não entender o que acontecia ali. — Kunnit é um dos demônios guardiões dos medalhões. — Elain, a metamorfa, respondeu por todos, com um sorriso em sua face. Era a única entre todos que emanava tranquilidade. Um clarão vermelho dominou a imensidão negra do céu, e o cheiro forte de enxofre dominou toda a clareira. Os animais gritavam em desespero, aves voavam pelo ar, fugindo do mal, animais corriam para todos os lados, numa tentativa desesperada de continuarem vivos. As árvores queimaram-se e torciam com as chamas fortes do Inferno. Uma sombra negra cruzou o fogo em direção aos quatro, e parou a vinte metros
deles, com um largo sorriso em sua face demoníaca. O demônio tinha seis metros de altura, o corpo era extremamente musculoso, seu tronco era longo, quatro braços se estendiam e encostavam-se ao solo de terra batida; em sua cabeça, três pares de chifres subiam retos até o céu, formando uma espécie de coroa negra, seu único olho vermelho brilhava junto ao fogo, e seus dentes pontiagudos estavam à mostra com seu largo sorriso. 2 - Sangue e rum Quatro desconhecidos seguravam suas armas, lâminas brilhavam com as chamas que ardiam e destruíam a floresta ao seu redor. Um grande demônio os encarava, com um largo sorriso em face. Valaistus virou-se para Varkaus e balançou a cabeça negativamente: — Você acabou de matar a todos nós. — ele sussurrou. — Pra que tanto negativismo? — Elain gargalhou — Eu própria derrubo este demônio, se quiserem fugir, que façam isso! — Essa luta é minha. — Varkaus intrometeu-se. — Acho que ele não pensa desta forma. - Sinkoo disse, com a voz fraca. A metamorfa, sem hesitar ou esperar por alguma reação dos outros correu pela clareira em direção ao demônio. Seus pés descalços batiam com força no chão e ela apertava os punhais entre os dedos com tanta intensidade que arrancava-lhe sangue. Ela saltou no ar, seu corpo girou por completo e uma luz brilhou em seu peito, seus olhos arregalaram e um grito ecoou no ar, transformando-se em um uivo intenso. Os pelos louros cobriam todo seu corpo, que agora tinha a forma de um lobo. Ela pulou em direção ao demônio, cravando os dentes no pescoço dele. Um grito gutural ecoou no ar, e uma mão pesada puxou a loba para trás e a arremessou no ar. No meio do céu, a jovem metamorfa transformou-se em uma águia, voando novamente em direção ao demônio, que a socou com violência. Varkaus corria em direção ao demônio, e cravou sua espada no joelho do monstro, chamando-lhe a atenção.
Enquanto o ladrão fugia das mãos gigantes, Valaistus dava a volta na clareira, até parar nas costas de Kunnit. Ele aguardou, enquanto o demônio socava sem parar o chão, tentando acertar Varkaus. Sinkoo permanecia parado, sentindo-se fraco e abatido, devido ao fogo que queimava a floresta ao seu redor. — Eu tenho... que... Tenho que fazer alguma coisa. — ele encorajou-se, e retirou de dentro de sua pequena mochila um pergaminho, abrindo-o no ar. Ele ditou algumas palavras, e um forte vento gelado cercou-lhe, junto com a folha do pergaminho. Ele segurou sua espada com força e, com um sorriso em sua face, correu até Varkaus, ficando ao lado do ladrão para distrair o demônio. Elain, Varkaus e Sinkoo continuavam a lutar contra Kunnit, enquanto Valaistus continuava atrás da criatura, apenas observando-o com atenção. “Uma chance em um milhão!”, ele sussurrou para si em pensamentos e, num único salto, parou no meio da nuca do demônio, que não o sentiu. Valaistus não hesitou em cravar sua lâmina em um grande símbolo redondo marcado na nuca do demônio. Uma forte luz negra saiu de dentro do ferimento, o demônio urrou de dor e socou o ar, pisando em falso para trás. Valaistus saltou no ar, enquanto o demônio caía com tudo no chão, berrando de dor. O semideus parou ao lado dos outros dois, e a metamorfa voltou a sua forma humana, após pousar entre eles. Os quatro observavam o demônio, ainda preparados para continuar a luta, enquanto ele se rebatia de dor no chão. — Se nos aproximarmos agora, ele nos transformará em pó em segundos. — Valaistus sussurrou para os outros. — Nós não o derrotamos? — Sinkoo arqueou uma sobrancelha, surpreso. — Estamos longe disso. — Elain disse-lhe. O demônio levantou-se em segundos e encarou-os, com uma fúria de dar calafrios em qualquer um. Eles encararam o demônio, engolindo em seco. Varkaus sorriu: — Está no peito dele. — Minha vez. — a metamorfa ditou. — Sinta-se a vontade! — Valaistus sorriu.
Valaistus correu para a esquerda, Varkaus para a direita, e Sinkoo, sem saber o que fazer, permaneceu no centro. A metamorfa girou o corpo e se transformou em uma cobra, rastejando rapidamente pelo solo escuro. — Sinkoo! — Valaistus chamou o homem do Norte, que virou-se rapidamente para ele e correu ao encontro do semideus. O demônio seguiu Sinkoo com os olhos e tentou socá-lo, mas o homem do Norte desviou rapidamente, pulando para o lado. Valaistus aproveitou a chance e cravou sua espada no dedo do demônio, que urrou raivoso e socou-o com a outra mão. O semideus voou no ar, parando metros adiante; Varkaus assobiou para chamar a atenção do demônio, e retirou um pequeno punhal de sua bolsa, jogando-a na direção de seu oponente. O demônio desviou rapidamente, e uma lâmina cravou em seu tornozelo. Era Sinkoo. O demônio socava o ar, tentando atingir os seus adversários. Ora era Sinkoo, ora Varkaus. Valaistus estava abatido, ainda de bruços no chão da clareira e Elain subia lentamente pela perna do demônio, rastejando. Valaistus levantou-se e segurou sua espada com força, voltando a batalha. Ele cortou dois dedos do demônio num único golpe, mas eles logo se regeneraram, e o demônio virouse até ele, tentando golpeá-lo com força, mas o semideus desviava de todos os socos. Elain subia no tronco do demônio, com cuidado para não cair. Nukkit socou o ar tentando acertar Sinkoo, mas o guerreiro do Norte desviou com velocidade. O demônio não desistiu de atingi-lo, tentando socá-lo novamente, e o guerreiro foi golpeado com força e arremessado para o meio da floresta em chamas. Elain já estava no peito do grande demônio e voltou a sua forma humana. Com seus punhais em mãos, ela cravou as lâminas no peito da criatura, que berrou de dor, socando o ar e pisoteando o chão violentamente. Uma luz negra saiu do ferimento do demônio, e a garota saltou para o ar, transformando-se em uma águia e voando para longe de Nukkit.
A metamorfa, o semideus e o ladrão pararam lado a lado, enquanto o demônio caía com força no chão pela segunda vez. — Onde está Sinkoo? — ela perguntou aos outros. — O demônio o jogou no fogo. — Valaistus lamentou — Acho que ele não tem chances de sair vivo. — O quê? — ela olhou-os, surpresa. — Ele se foi, atente-se ao demônio! — Varkaus falou. — Ele é importante! Ele é realmente importante! — Elain disse, nervosa — Eu tenho que salvá-lo! — É tarde demais, Elain! Valaistus disse muito tarde, pois a pequena metamorfa já havia se transformando em um guepardo e saltado para dentro da floresta em chamas. Antes que ele ou Varkaus pudessem impedi-la, o demônio já estava de pé e corria na direção dos dois, furiosamente. O demônio tentou atingi-los com um soco, mas eles saltaram para trás e empunharam suas espadas. O demônio tentou um segundo golpe, socando com as quatro mãos o chão com tanta força que toda a clareira tremeu. Os dois se desequilibraram e concentraram-se para não cair, enquanto Nukkit invocava uma magia com sua voz gutural. Espadas de chamas saíram de cada uma de suas quatro mãos e ele cortou o ar, numa tentativa de acertar os dois homens. Mesmo despreparados para tal golpe, eles milagrosamente desviaram das lâminas de tom rubro, saltando para todos os lados. — Eu não consigo achar! — Varkaus disse. — Nem eu! As lâminas passaram por poucos centímetros do pescoço de Valaistus, que contorceu o seu corpo para trás. O demônio continuou a tentar atingir-lhes com suas lâminas, mas os dois eram rápidos e desviavam de todos os golpes com sucesso, falhando por poucos centímetros e recebendo apenas pequenos cortes como recompensa. — Já achou? — Valaistus perguntou para o outro. — Não sou bom em trabalhar sobre pressão! — o ladrão respondeu.
As lâminas quase cortaram o semideus em dois, mas ele desviou para o lado, em acrobacias rápidas e ágeis. Ele já estava se cansando, e o tempo não estava ao seu favor. Varkaus continuava a desviar dos ataques do demônio, enquanto tentava encontrar as marcas no corpo do demônio. De repente, o demônio berrou novamente, e os dois puderam notar a luz negra saindo do topo da cabeça dele. Uma coruja voou para o chão e transformou-se em Elain. O demônio caiu violentamente no chão, transformando-se em pedra e, em seguida, em pó, que voou no céu escuro, desaparecendo da visão de todos. Valaistus olhou para a garota, que desviou o olhar rapidamente para um ponto na clareira, onde Sinkoo estava inconsciente. Varkaus seguiu a garota, que corria até o homem no chão. — Ele está vivo? — ele perguntou-lhe. — Não por muito tempo. A garota transformou-se em uma águia, e voou pelo lado intacto da floresta. Valaistus parou ao lado de Varkaus, a poucos metros de Sinkoo, e os dois observavam o homem desmaiado. — Este cara não é um bom lutador, nem tem o raciocínio e percepção que nós. Por que ela disse que ele é importante? — Varkaus fazia a pergunta mais para si próprio do que para Valaistus, que permaneceu em silêncio. Alguns minutos se passaram e a águia havia retornado e pousava ao lado do homem caído, com uma erva negra em seu bico. Elain voltou a sua forma humana e começou a rasgar as folhas negras com rapidez. — Água! — ela ordenou. Valaistus jogou-lhe uma garrafa. Ela colocou as folhas picadas dentro da garrafa e sussurrou algumas palavras, em um tom quase inaudível. A metamorfa então fez que Sinkoo bebesse o líquido. Ela se levantou e afastou-se do homem do Norte, apreensiva. Os segundos se passaram tão lentamente que parecia uma eternidade. Ela olhou para os dois homens de pé ao seu lado e depois voltou a observar Sinkoo, que continuava
imóvel no chão da clareira. Ela recuou com um susto quando ele levantou-se num salto, puxando o máximo de ar para seus pulmões. Ele olhou ao redor, procurando pelo demônio, mas não avistou mais do que três rostos assustados e uma floresta em chamas. — Ele... Morreu? — foi a única coisa que Sinkoo disse. — Quem dera. — a metamorfa sorriu. — Nós temos que seguir adiante. Não temos muito tempo. — Varkaus disse seriamente. — Acho que não vamos precisar correr. — o semideus chamou a atenção deles. — Por que não? — Sinkoo olhou-o curioso. — Diga-me, ladrão, o que tem de Nukkit para deixá-lo tão furioso? — O medalhão celeste. — o ladrão assumiu, arqueando uma sobrancelha. — O medalhão? — Elain mostrou-se surpresa. — Ele vale muito no mercado! — Varkaus comemorava em pensamentos — Com esta venda não vou precisar mais trabalhar pelo resto dos meus tempos! — Eu preciso do medalhão. — Valaistus falou, e Varkaus recuou. — Você precisa? — Você quer ou não sair deste lugar o mais rápido possível? — E o que o medalhão pode fazer para nos ajudar? — Varkaus questionou-o. — Todos nós sabemos que um medalhão não tem nenhum poder sem ter pelo menos mais um consigo. Valaistus sorriu e retirou um pequeno objeto redondo de dentro do seu colete, revelando mais um medalhão. Os outros se mostraram claramente surpresos, não imaginavam que um semideus ainda tinha posse de um medalhão. Os medalhões eram objetos singulares, eram pequenos em tamanho, mas tinham uma espessura considerável. O formato de todos era redondo, e os símbolos contidos na frente e no verso eram poderosos. Separados, não tinham nenhuma utilidade, mas, se juntassem dois ou mais, eles tinham poderes
divinos e, se todos os cinco medalhões estiverem unidos, eles equilibrariam o mundo e controlariam o Bem e o Mal. Varkaus concordou em entregar o seu medalhão para o semideus, que, unindo os dois e pronunciando algumas palavras desconhecidas pelos outros, fez uma forte luz cercar a todos. Quando a luz desapareceu, eles notaram estar em uma espécie de taverna. Vários homens bebiam, desatentos e alcoolizados demais para notarem o surgimento misterioso de quatro pessoas. — Não sei onde, mas em algum lugar próximo, há mais um medalhão. — Valaistus esclareceu — Os medalhões vão procurar pelos outros, eles querem, assim como eu, restaurar a ordem e o equilíbrio no mundo. — Pelos deuses! — Sinkoo sussurrou para si. — Como o universo é interessante. — a metamorfa falou para os outros — Eu seguia um homem com desejo de vingança e de encontrar os cinco medalhões; acabei por encontrar um semideus que já possuía um deles e com um ladrão que acabara de roubar outro! — É... realmente curioso. — Valaistus sussurrou em resposta. — Mas... Por que me seguia? — Sinkoo perguntou para a pequena metamorfa. — Eles me tiraram o mesmo que tiraram de você... O amor de uma mãe e um pai... Uma mulher gorda aproximou-se dos quatro, vestindo somente uma grande saia que cobria-lhe do umbigo para baixo, deixando seus fartos seios para fora. Ela tinha cabelos cacheados, em tom cinza, que caíam até suas nádegas, os olhos eram grandes e expressivos, e uma grande verruga crescia na ponta de seu nariz levemente arredondado. — Vão querer o quê? — Oh... Sim! — Elain sorriu simpaticamente para a mulher. — Traga rum! — Muito rum! — Valaistus completou.
3 - Só de ida para o inferno Dois dias se passaram e os quatro não haviam encontrado nenhuma pista de onde poderia estar o terceiro medalhão. A escuridão já dominava o céu, deixando somente as estrelas e as luas brilhando acima do vilarejo. Eles se reuniram na praça principal, próximos a uma grande árvore seca. Sinkoo foi o último a chegar, cinco minutos após Elain. — Acho que o medalhão não está aqui. — a metamorfa mostrava-se impaciente. — Acalme-se. — Valaistus tentou animá-los — Temos esperando há tanto, um dia ou dois a mais não nos fará nenhuma diferença. — Faz sim. — Elain cruzou os braços. — Eu concordo com a metamorfa. Não há nenhum vestígio de demônio por aqui, não creio que o medalhão esteja com um mero humano. — Vocês estão procurando por um demônio? — Valaistus decepcionou-se. — Os demônios têm os medalhões, não é? — Sinkoo disse o que lhe parecia óbvio. — Eu pareço um demônio? — Valaistus disse em tom rude. — Você não tirou isso de um demônio? — Elain estava claramente curiosa. — Não. — Então como tem um medalhão? — Eu simplesmente sempre o tive. As histórias e profecias ditadas pelos sábios não são verdadeiras. Eu e outros quatro semideuses éramos os guardiões dos medalhões, cada um tinha um medalhão em sua posse, e deveriam protegê-los de qualquer Mal para manter o equilíbrio. Três de nós decidiu trair os deuses e entregaram seus medalhões para os demônios, e eles foram transformados em demônios logo em seguida. Eu e outro semideus fomos condenados pelos deuses porque eles acreditavam que nós sabíamos dos planos de nossos irmãos, e então nos exilaram, junto com vários outros que eles julgaram
traidores. Então eu tenho vagado pelo mundo, não em busca dos cinco medalhões, mas de um em especial. — O do outro semideus que não se entregou ao Mal? — Exatamente. — Então depois de encontrá-la, você não vai seguir adiante conosco em busca dos outros três medalhões? — Elain o interrogava, furiosa. — Exatamente. — Você não pode fazer isto conosco. — ela estapeou-lhe a face. - Eu já o fiz. - Valaistus sorriu - Ela está aqui. - Ela? De repente, tudo pareceu parar ao redor de todos. As pessoas já não mais se moviam, os animais também não. Nem sequer as folhas das árvores ou as rodas das carroças. Somente os quatro pareciam não estar dentro do encantamento. Uma mulher caminhava lentamente até eles. Ela tinha longos cabelos brancos, lisos, que desciam até sua cintura, ela usava um vestido de tecido fino e claro cobrindo-lhe todo o corpo, e em uma de suas mãos, carregava um cajado branco, com uma pedra roxa em sua ponta. — Valaistus. — ela disse, uma voz melódica ecoou por todo o vilarejo paralisado. — Lunna. — ele sorriu. — Finalmente nos encontramos. — Finalmente. — ele se aproximou dela, e, ao tentar tocar-lhe em um envolto abraço, um campo de força parecia bloqueá-lo de seguir adiante. Ele a olhou curioso, e ela torceu os lábios. — O semideus mais fraco diante de meus olhos, acompanhado por uma metamorfa, um guerreiro do Norte e... Ora, ora, um ladrão. — ela olhou para eles, de forma superior. — Parece que sim. — ele a encarava. — O que quer aqui? — Reunir os medalhões. — O que faz você acreditar que eu quero isso? — ela disse-lhe rudemente. — O que a faz não querer?
Ela ficou em silêncio, apenas encarando o semideus. Sinkoo, Varkaus e Elain permaneciam em silêncio, apenas escutando a pequena discussão dos semideuses. A garota parecia impaciente, os outros dois encantados pela presença daquela bela mulher. — Lunna, eu tenho dois medalhões comigo, e os daria... — Se...? — Se nós pudermos voltar a ser o que éramos antes. — ele disse, havia tristeza em seu olhar. — Isso é impossível, Valaistus. — ela lamentou, mais com o olhar do que com palavras. O semideus engoliu em seco, retirou um dos medalhões do colar preso em seu pescoço e entregou para ela, virando-se de costas e caminhando para longe de todos — O outro está com o ladrão. — ele disse para ela, e a semideusa virou-se para Varkaus. — Venha comigo. — Lunna chamou-lhe — Eu tenho procurado pelos medalhões também. Eu já possuía dois medalhões e, com estes que me trouxe, só nos restará o último medalhão. — Nós também iremos — Varkaus disse —, ou não lhes entrego o medalhão. — Eu posso te matar com um piscar de olhos, ladrão. — Lunna o intimidou. — E eu com meus punhais. — Elain cruzou os braços. — Não vamos nos voltar uns contra os outros. — Sinkoo acalmou a metamorfa. — Que seja. — ela bufou. Valaistus retornava lentamente até eles, pensativo. Ele parou ao lado de Luna. — Uma última batalha... pelo equilíbrio? — Pela ordem. — Varkaus falou. — Pela paz. — Elain completou. — Pela vingança. — Sinkoo tinha o tom e a expressão fria. — Pelo amor. — Lunna disse diretamente para o semideus.
Eles reuniram os quatro medalhões e uma luz cercou os cinco, fazendo com que eles desaparecessem do meio do vilarejo, que lentamente retornou ao normal. Já para eles, após a luz retornar aos medalhões, a escuridão havia tomado posse de tudo. Eles se viram em meio a uma caverna grande, as paredes e o teto rochoso estava fora da visão de todos, somente as lavas que brotavam do solo iluminavam o lugar, o calor era imenso, e Sinkoo via-se mais fraco que o comum. O homem do Norte estava de joelhos, e tentava pedir por ajuda, mas nada que ele falava podia ser compreendido. Lunna aproximou-se do homem e sussurrou algumas palavras, e ele conseguiu sentir-se vivo novamente. Uma massa de ar frio o cercava. — Nós temos duas horas até o meu poder se dissipar por completo. Eu não posso usar meus poderes, estou concentrada no guerreiro. Varkaus, você está encarregado de me proteger, os outros, lutem, nós não teremos outras chances. Eles, pela primeira vez, sentiram o peso que carregavam em suas costas. Com suas espadas em mãos, eles atentaram seus ouvidos e o rugido gutural vinha de todas as direções. Engolindo em seco, Valaistus notou a aproximação de Nukkit, acompanhado por outros dez demônios de mesmo tamanho e forma. Um outro era duas vezes maior, e carregava correntes em todas as quatro mãos, em seu peito um medalhão estava cravado. — Eu fico com os cinco da esquerda. — Elain sugeriu. — Eu com os cinco da esquerda. — Sinkoo falou com um largo sorriso em sua face. — E eu com o grandalhão ali. — Valaistus concordou com os temos. Os três então correram rapidamente em direção aos inimigos, enquanto Varkaus e Lunna ficaram parados, preparados para qualquer ataque possível. Elain transformouse em uma leoa e pulou contra o primeiro demônio, Sinkoo, por sua vez, retirou um pergaminho de sua bolsa e o leu rapidamente. Lâminas de gelo saltaram do chão e voaram em direção aos demônios. Devido ao calor, o gelo derretia
rapidamente, mas ainda afiados e pontiagudos, atravessaram alguns demônios. Valaistus desviava de todos, correndo diretamente para o último deles. O demônio jogou a corrente contra o semideus, atingindo-o com força e arremessando-o para longe. Alguns demônios passaram por Sinkoo e Elain, e correram rapidamente em direção a Lunna e Varkaus, e o ladrão prontamente pôs-se a lutar contra eles. Os demônios desviaram suas atenções para o ladrão, e a mulher estava fora de ser alvo de algum deles, concentrada em manter o escudo de gelo em Sinkoo. Valaistus recuperou-se rapidamente e voltou a atacar o grande demônio, escalando seus braços em direção a sua cabeça. Ele cortava o demônio com movimentos rápidos e precisos — sem conseguir causar-lhe nenhum dano, somente impedi-lo de atacar. Elain cravou sua lâmina no símbolo redondo posicionado no meio da barriga de um demônio, e ele explodiu, transformando-se em pó. Ela adiantou-se para outro, transformando-se sempre que necessário para voar para longe dos ataques de seus oponentes. Sinkoo, por sua vez, invocava lâminas de gelo e tentava atingir seus inimigos, e outrora saltava diretamente contra eles, usando sua espada para cravála nas marcas dos demônios. Valaistus chegou à cabeça do grande demônio, e enfiou sua espada no primeiro símbolo, fazendo-o se debater. Enquanto o demônio se recompunha, o semideus voltava-se contra os demônios menores, para ajudar Elain e Sinkoo. O grande demônio voltou ao seu estado comum e girou as correntes em todas as direções, atingindo demônios e os três guerreiros. Elain caiu com violência no chão, Sinkoo chocou-se contra um demônio de pedras e Valaistus rolou pelo chão, altamente ferido. Varkaus continuava lutando contra os demônios: derrubou dois deles, e ainda lhe restava outros três. E ele continuava, sem hesitar, sem se cansar, lutava como se somente isso lhe restasse — e realmente era.
O semideus se recompôs rapidamente e voltou a enfrentar o demônio, escalando-o pelos braços até seu peito direito. Novamente, ele cravou a espada contra o símbolo, e o demônio novamente se debateu de dores, berrando furioso. Elain derrotou mais dois demônios, e Sinkoo havia derrotado o seu primeiro. O demônio maior ergueu-se e golpeou Valaistus com um soco forte, jogando-o longe. Ele levantou-se rapidamente e voltou a lutar contra o demônio, golpes atrás de golpes, ele estava abatido, estava fraco. Não aguentaria muito mais tempo. O tempo passava e a luta continuava. Parecia uma eternidade, até que um demônio pisoteou Varkaus. Antes que o ladrão pudesse se recuperar do golpe, outros dois demônios se uniram e o socaram sem parar, uma sequência de golpes poderosos contra o ladrão, que rapidamente perdeu a consciência, e a vida. Os demônios se viraram para Lunna, e a semideusa via-se cercada por eles. — Pelos deuses. — ela sussurrou — Me desculpe... Então ela se desconcentrou do poder investido em Sinkoo, e o guerreiro nórdico caiu fraco no solo rochoso da caverna. A semideusa então ergueu as mãos e de dentro de si uma forte bola de luz voou no ar, em direção aos demônios. Lâminas luminosas cortavam-nos em todas as direções e, um a um, os demônios foram resumidos em pó. Ela então desmaiou, usou todos os seus poderes de uma só vez, estava fraca, indefesa. Elain notou que Sinkoo estava inconsciente, e que os demônios se aproximavam dele rapidamente. Os segundos se passaram lentamente em seus olhos, enquanto ela se lembrava das palavras daquela velha bruxa do Norte, antes de assassinála cruel e rapidamente. "Meu filho é o segredo de tudo. Eu investi toda a minha força nele, toda a minha alma está nele. Quando eu morrer, ele irá me vingar. Mate-me. Faça-o acreditar que foram os demônios. Quando a hora certa chegar, ele será o único capaz de acabar com o Inferno."
Tudo o que ela fizera, matar a velha bruxa, proteger o guerreiro nórdico, seria em vão? Ela não podia acreditar nisso. Rapidamente, se transformou em uma ave e voou até ele, transformando-se em um grande urso e atacando qualquer demônio que se aproximasse deles. Ela então sentiu e viu a essência da vida escapando do guerreiro do Norte. Sinkoo não estava mais entre eles. Um demônio a socou com força, e a garota voou pela caverna até rolar pelo chão. Ela então viu um clarão escapando de dentro de Sinkoo, e o homem levantou-se, imponente. Ele então transformou-se em um grande bloco de gelo, e o gelo se espalhou por todas as direções. A névoa branca envolveu toda a caverna, junto com o gelo. Os demônios estavam presos pelas grossas camadas, sem conseguir se mover. Eles berravam, gritavam, imploravam por misericórdia, enquanto Elain e Valaistus atacavam e resumiam cada um deles em um monte de pó cinzento. O grande demônio com o medalhão em seu peito era o único que se via livre do gelo, e ele aguardava a chegada de seus adversários, em pose e expressão imponente. Lunna despertou lentamente e olhou ao redor, desconhecendo o cenário. Ela estava claramente surpresa com aquilo, e contente em notar que Valaistus ainda estava entre os vivos. O grande demônio encarou cada um deles: — Então, é assim que irão morrer? — ele perguntou-lhes com uma voz grave e gutural. — Não. É assim que retomaremos o equilíbrio. — Não precisamos matá-lo. — Lunna disse — Somente entregue o medalhão, e nós iremos embora. — Ou eu mato vocês, pego os medalhões e os destruo, assim o Mal irá dominar o mundo pela eternidade. — Nós vamos precisar matá-lo. — a metamorfa sorriu, e transformou-se em um urso, correndo em direção ao demônio. Os dois semideuses acompanharam a pequena, e avançaram contra o demônio. Ele jogou sua corrente contra eles, Lunna saltou no ar, desviando do ataque, Elain também obteve sucesso ao desviar, mas as correntes atingiram Valaistus com violência, jogando-o para longe. Elain pulou contra o peito
do demônio, empurrando-o com força para trás, enquanto Lunna invocava lâminas prateadas e as arremessava contra a face do demônio — local onde o símbolo vital se encontrava. Valaistus recuperou-se e acompanhou Elain no seu ataque contra o peito do demônio, fazendo-o recuar mais. O demônio socou a metamorfa com força, arremessando-a longe, e a garota caiu sem forças para se levantar. Lunna invocou mais lâminas e as jogou contra o demônio, mas ele desviou rapidamente e jogou suas correntes contra a semideusa, prendendo-a e a jogando longe. Elain levantou-se e transformou-se em uma coruja, voando até o alto da cabeça do demônio e retornando em sua forma humana. Com seus punhais em mãos, ela pisou nos chifres do demônio e correu até sua testa, cravando as lâminas pontiagudas contra o símbolo, e a luz negra saiu do demônio. Enquanto ele caía com violência no chão, e a garota transformou-se em um urso, pegando uma das correntes e envolvendo-o no tronco rapidamente. Ela sentiu como se diversas lâminas partissem seu corpo de dentro para fora. Ela estava perto demais! Elain transformou-se em uma águia e voou para longe, quando o demônio chocou-se contra o chão e rebateu-se, envolvido pelas correntes. Ela pousou ao lado de Lunna, que se recuperava do golpe do demônio, e voltou à sua forma humana. Valaistus correu até as duas e aguardou que o demônio se levantasse para retornar a batalha. Eles então sentiram um calafrio e seus pelos se eriçaram. Eles se viraram para a mesma direção, e um vulto caminhava até eles, envolvido pela névoa. O misterioso homem ergueu a mão em direção ao demônio e várias lâminas de gelo pontiagudas voaram até ele, prendendo os elos das correntes no chão. E o demônio se recuperou, mas estava preso por suas próprias correntes. Ele rebateu-se e tentou se erguer, mas suas forças não eram suficientes para se ver livre. Ele berrou de raiva, e implorou para que lhe tirassem a vida. Lunna sorriu pelo canto dos lábios; Elain, por sua vez, gargalhou de contentamento ao notar que o homem na névoa era Sinkoo. Valaistus caminhou pelo demônio e envolveu o
quinto medalhão com seus dedos, puxando-o com força. Com o medalhão em mãos, ele voltou até Lunna e entregou-lhe o pequeno artefato. A semideusa envolveu-o em um forte abraço, e eles uniram os cinco medalhões. A luz novamente os envolveu, eles desapareceram daquele inferno de gelo. 4 - Equilíbrio e ordem O reino dourado encantava os olhos de qualquer um que ali chegasse. O reino dos deuses, completamente feito de ouro, brilhava cercado pelos raios solares, dia e noite, o Sol sempre tinha lugar ali. Sinkoo, misteriosamente, não se sentia incomodado, ou mais fraco, era como se não pudesse sentir nada ruim, nenhum sentimento negativo. Os outros compartilhavam da mesma sensação de serenidade. Eles passaram por enormes portões dourados, atravessaram o grande jardim real, onde até as flores brilharam em ouro e adentraram no hall principal, em que um grande lustre brilhava, em tons vivos e intensos, acima de suas cabeças. Os quatro estavam boquiabertos — até mesmo Lunna ou Valaistus, que viviam ali há tempos, estavam surpresos com tamanho encanto. — O que semideuses exilados fazem aqui? Uma voz feminina, imponente, forte e chamativa fez com que todos virassem para a mesma direção. Uma mulher nua caminhava até eles, ela tinha um corpo escultural, com curvas elegantes e sensuais, os seios redondos e a cintura fina. Seu corpo era completamente dourado, e seus olhos eram brancos, os cabelos também em tons claros desciam até o chão, e se transformava no próprio chão, numa mistura encantadora de cores fortes e vibrantes. Ela segurava um escudo redondo, no mesmo tom de sua pele, e de seus lábios saía uma luz branca a cada palavra pronunciada. — Nós recuperamos os medalhões. — Lunna disse em tom calmo e melódico. — Como o fizeram? — Nós derrotamos os demônios. — Elain disse. — Estou falando com os exilados. — a mulher disse para a metamorfa, que se encolheu intimidada.
— Ela tem razão, Deusa. — Valaistus disse para a mulher de ouro. — E agora que os têm, querem devolver para o Reino? — Sim. — Lunna respondeu com firmeza. — E o que querem em troca? — Queremos paz. — Valaistus respondeu-lhe. — Paz. — a mulher virou-se de costas. — Sigam-me. A mulher caminhou por longos corredores, como se seguisse os fios dourados que desciam de seu couro cabeludo até o solo. Os semideuses, o guerreiro e a metamorfa seguiamna, silenciosamente e curiosos. Ela chegou a um grande salão, onde havia somente um poço. A mulher adentrou no poço e permaneceu ali por alguns minutos, enquanto os quatro aguardavam apreensivos. Ela então retornou, e ao seu lado, um homem caminhava em passos lentos, era como se ele estivesse esquecido como andar. Os quatro reconheceram-no com facilidade, era Varkaus. — Vocês foram os responsáveis por trazer a Ordem e o Equilíbrio de volta ao Reino Dourado. — a mulher disse-lhes — Logo, eu tenho o poder de ditar quem deve ser o guardião dos medalhões. Caso aceitem tal fardo, vocês terão vida eterna no reino dourado, com a esperança de paz eterna. Senão, devem partir em busca de um substituto. Eles sabiam que, se aceitassem, correriam o risco de que os demônios se revoltassem novamente e restaurassem uma guerra contra o reino dourado, lutando pela desordem e pelo fim. Mas também sabiam que retornariam de mãos vazias caso não o quisessem. Elain, sem hesitar, recusou o fardo, seguida de Sinkoo. Varkaus aceitou ser um protetor do medalhão, assim como Valaistus e Lunna. Os dois voltaram para a Terra e, quando a noite chegou, eles embriagaram-se em alguma taverna em algum vilarejo nórdico. Bebiam e alegravam-se, até que Sinkoo olhou fixamente para a jovem metamorfa e, com uma pontada de curiosidade, perguntou-lhe: — Por que recusou? — Meu lugar não é lá. E eu não sou tão merecedora de tamanho dever! E você?
— Eu vivo pela vingança. Os demônios ainda vivem, e eles tiraram o que eu mais tinha de precioso. Eu ainda tenho que me vingar. — E nós ainda temos que encontrar alguém para nos substituir... — ela completou. — Mas isso fica para outras noites. — Para outras canções. — ela sussurrou para si. Eles sorriram silenciosamente, e entornaram mais uma taça de rum.
A Trilha Ruth Oliveira
sol que estava a adentrar o quarto do castelo, que ainda estava úmido pela noite anterior, fazia tudo criar vida, e com seu resplendor aquecer os meros seres vivos que habitava a terra. Meredith, almejando abrir os olhos, mas se sentia impedida pelo clarão que havia no recinto, colocou as mãos a frente de seus olhos. Levantando-se de seu leito, avistou sua leal e fiel companheira Esmereldat, que nada mais era que uma coruja de rapina branca, tão branca como a neve. Foi em direção à porta para ver se existia alguém acordado no castelo.
Desceu as escada tão vagarosamente em sua leve calmaria para que ninguém ouvisse seus passos, olhou para os lados e avistou as teias de aranhas que haviam nas paredes e quadros empoeirados que fazia seu nariz coçar. “O castelo parecia cada vez mais velho”, pensou ela. Chegando ao salão de festas viu que os criados já estavam acordados e executando seus afazeres. Deu um ligeiro sorriso de felicidade, correu para se esconder atrás dos grandes vasos que eram usados como objetos de decoração, para que ninguém percebesse sua presença. Observou os movimentos das pessoas que havia no local, percebeu que poderia sair rapidamente dali sem ser percebida. Aguardou meros segundos então saiu a correr, os criados que lá estavam perceberam e tentaram impedi-la, mas não obtiveram sucesso. Estando ela já fora do castelo começou a maravilhar-se a paisagem como era de costume, continuou caminhando em direção a densa floresta que ali havia, onde costumava fazer seus passeios matinais. Começou entrar na floresta por uma trilha demarcada por pedras. Trilha essa que levava a uma linda cachoeira que era grande para aquela pequena jovem. Suas águas eram brilhantes como uma linda peça de cristal; eram agitadas e faziam borbulhas de ar. Existiam plantas aquáticas no fundo da cachoeira e suas águas tocavam contra as pedras e gerava leves respingos. Começou a andar na direção que a trilha levava. Olhou para os céus que ainda não podia ver com total nitidez. O chão estava úmido e fazia sujar seus sapatos. Mal ouvia o canto dos pássaros. O pouco do calor que já havia fazia os pingos de gelos derretessem aos poucos, dando a crer que, nas árvores, seus galhos e folhas estavam a lagrimar. Pela escuridão que queria persistir, dava um sentimento de medo em qualquer um, mas Meredith era uma jovem que se dizia destemida de tudo. Ao se aproximar da cachoeira, olhou a linda paisagem em sua volta. Tinha uma pergunta que não parava de vir em pensamentos: por que não poderia ninguém sair daquela trilha? Haveria o quê de tão misterioso naquela floresta? Naquele momento seus passos mudaram de direção, no exato momento seu coração começou a pulsar mais rápido do
que o normal. Quis correr para que ninguém a avistasse ali. Seus longos fios de cabelos com tons de alaranjado esvoaçavam no ar como se fosse uma leve seda jogada ao vento. Olhando para sua frente só percebia a mesma floresta que vira perto da trilha. Ao se distanciar mais, avistou de longe uma pequena casa inventada com recursos da floresta. Parecia que só continha duas janelas. Percebeu que saía fumaça da chaminé, então poderia haver alguém morando lá. A casa parecia isolada, pois não tinha outras perto dali. Foi se aproximando lentamente até chegar à frente da porta e disse: — Olá? Há alguém em casa? — enquanto batia na porta. Ninguém respondeu. Percebeu que a porta estava só encostada e a empurrou levemente. Fazia som de porta com ferrolhos envelhecidos. Entrou devagar e olhou para os lados para ver se não morava alguém. Na casa tinha móveis com aparência antiquada e objetos curiosos que Meredith não conseguia entender. Meredith olhou para um lado da sala. Parecia irreal, mas havia uma armadura dessemelhante na parede daquela casa, um escudo com um emblema que não era de nenhum reino próximo e uma espada com o mesmo emblema, e vestes de metal, feita com algum tipo de material que não existia por perto. Seus olhos cintilaram de tanta beleza que vira naquela armadura. Ao quase tocar, ouviu uma voz que semelhava de uma mulher. — Acho melhor que tu não toques aí, pequena moça. — com uma voz doce e calma. Ao se virar para ver de quem era aquela voz que tinha lhe chamado a atenção, viu uma mulher de cabelos compridos, de tons de loiros que pareciam fios de luz. A tonalidade de sua pele era branca como o leite que bebia logo pela manhã; seus olhos eram como o céu sem nuvens que pareciam cintilar para Meredith, e adotava um leve vestido feito com um material resistente. Sua cor era indefinida, parecia como um campo com vários tipos de flores. Meredith olhou para aquela admirável senhora e disse:
— Perdoe-me, pensei que não morasse ninguém aqui. — baixando seu rosto com sentimento de embaraço. — Mas não viste a fumaça que saía pela chaminé? Pois estou fazendo um chá. — disse enquanto se virava para o outro cômodo da casa — Queres me acompanhar no chá? — A acompanho, sim! — deu um leve sorriso de canto. Meredith se pôs a acompanhar aquela senhora que ia em direção a algum cômodo da casa. Percebeu que era a cozinha. A mulher tirou o bule de chá que estava em cima de um fogão a lenha, olhou para Meredith, sorriu e acenou como se chamasse ela para se assentar na mesa. Ela foi em direção a mesa e se assentou na cadeira. A cozinha parecia bem arrumada, mas não havia muitas louças de material como havia no reino, mas louças feitas à cerâmica. Existiam algumas teias de aranha e alguns quadros pequenos com rostos de um casal. A moça que estava no quadro parecia extremamente com a senhora que estava assentada, e a beleza era mesma. Meredith quis indagar quem era o jovem casal que estavam no quadro, mas foi interrompida pela senhora. — O casal que vê no quadro era eu e meu esposo, que eu havia pintado. —disse com angustia no olhar. — Vocês formam um belo casal! — sorriu alegremente — Seríamos mesmo se ele ainda estivesse aqui. Se for me perguntar se ele faleceu: sim, ele faleceu. Mas faz muito tempo. — disse enquanto levava a xícara de chá à boca. — Desculpe-me. Pensava que ainda estava vivo. — enquanto puxava a aba de seu vestido. A senhora firmou com a cabeça e deu um leve sorriso. Meredith se sentia uma ignorante por ter falado sobre o cônjuge daquela senhora, mas não podia fazer nada. A senhora se ergueu, pegou as xícaras que estavam sobre a mesa e chamou a moça para fora. Ao passar pela porta, Meredith viu aquela senhora sentada regando as rosas que havia em seu pequeno jardim. — Como veio parar aqui? — a mulher disse como se estivesse confusa.
— Estava caminhando pela trilha, mas quis sair para ver o que havia aqui de tão misterioso. — enquanto chegava mais perto daquela senhora — Mas pela aparência, não tem nada! — Por que pensas assim? — fitou a moça — Só por que não viu o que procuravas? — Não sei lhe explicar, poderá ser! — Entendi, mas me diga como andas a tua vida? — colocando uma mecha de seu cabelo para trás. — Está indo muito bem, mas... Deixa pra lá! — Mas o quê, pequena moça? Conte-me. Talvez possa lhe dar um conselho. — colocando sua mão no ombro de Meredith. — Estou apaixonada pelo um moço do meu reino, mas meus pais não aceitam. Querem que eu me case com um príncipe do reino do sul. — disse com tom de aborrecido. — Acalma-te, pequena! Quando falaste isso, fez-me lembrar de uma história que ocorreu há muito, mas há muito tempo atrás. Queres que eu lhe conte? — Conte-me! Amo escutar histórias, principalmente as de amor! — disse com um suspiro no ar. — Já escutaste história de amor verdadeiro? — Minha mãe contava para mim quando eu era pequena. Gostava muito daquela princesa Rapunzel. — Isso não é história de amor verdadeiro, é só uma história que foi empregada através dos tempos, história de verdade é essa que irei lhe contar. ••• Há muito, mas muito tempo atrás existia uma moça, assim como você: ela tinha uma beleza exuberante que chamava a atenção de todos do reino; seus cabelos eram de tons negros e uma pele de cor esbranquiçada. Sua simplicidade cativava a todos em sua volta. Seu nome era Catherine. Sempre estava disposta a ajudar todos aqueles que precisavam. Catherine gostava de caminhar na floresta, assim como você. Em um de seus passeios ela caminhou até não conseguir saber exatamente onde estava: só via árvores e mais árvores. A
moça estava olhando os seres viventes que haviam por perto, ao se virar teve uma leve impressão que tinha visto alguém correr para longe. Pensara que estivesse tola e começou a dizer: — Tem alguém aí? Mas ninguém respondeu. O silêncio ficou mais assustador. Quis voltar para o castelo. Começou a correr de volta pelo mesmo caminho que havia feito anteriormente, ao chegar pulou de felicidade. No outro dia não parava de pensar no dia anterior. Achou tudo aquilo fascinante, e quis voltar a caminhar por lá. “Quem sabe a pessoa que havia corrido poderia esta por perto novamente e dessa vez poderia lhe responder”, pensou ela. Foi pelo mesmo percurso que havia feito no outro dia, não demorou muito para que chegasse ao mesmo lugar novamente. Começou a dizer: — Tem alguém aí? — gritando, falou essa frase por três vezes. Ouviu novamente os mesmos passos ligeiros, como se estivesse vindo em sua direção. Sentiu uma leve mão mexendo em seus cabelos. Estava com medo de se virar, mas quando virou não havia ninguém. Mas tinha a plena certeza que alguém havia lhe tocado. Sentiu uma leve tontura, suas pernas bambearam. No instante em que ela deveria cair, sentiu a mesma mão lhe segurar. Ao se voltar para trás, viu um homem de beleza incomparável: seus olhos eram de cores acinzentadas, parecia que mal havia cor neles, e tinha cabelos médios com tons de amarelo e sua pele era esbranquiçada. — Você está bem? – com tom de preocupação. — Estou sim, muito obrigada. Quem é você? — o empurrando para sair de seus braços. — Fique calma. Chamo-me Daeron Tasartir. Ouvi-lhe gritar e quis ver o que estava acontecendo. Quando me deparei com você a cair, só pude lhe segurar. O coração de Catherine começou a palpitar acelerado enquanto olhava aquele belo rapaz a sua frente. — Está bem. Adeus e obrigada novamente. — se levantado. — Mas assim tão depressa? Nem conheço o teu nome. — Sim, já vou. Meu nome é Catherine.
— É um belo nome: combina com tua beleza. O coração de Catherine faltava saltar-lhe de sua boca com as palavras que o jovem dissera a ela. Do nada surgiram imensas nuvens e estrondosos trovões. O moço que lá estava puxou-lhe pela mão, sugerindo que ela viesse com ele. Inicialmente ela não queria ir, mas cedeu. Eles andaram até chegarem de baixo de uma árvore que ela jamais vira igual: era larga, mas pequena, e existiam muitas flores de cores diferentes. Eles se sentaram e encostaram-se ao tronco e ficaram vendo a chuva cair. O jovem acabou se apaixonando de tanto olhar a beleza que havia no olhar daquela tal moça. A moça percebeu que a chuva estava a cessar e quis ir embora, pois seus pais poderiam estar preocupados. Quando estava a se levantar, disse adeus novamente para o rapaz. O jovem sabia que poderia nunca mais olhar a beleza de sua amada — só seguiu o que o seu coração dizia e correu até ela, puxando-lhe um de seus braços, a trouxe para mais perto de si. Seus corações batiam cada vez mais rápido, até que o jovem lhe deu um beijo. Naquele exato momento parecia que não existia mais nada em volta deles, a não ser um ao outro. Despediramse, mas prometendo que se veriam novamente. A moça voltou ao castelo, cheia de felicidade e sorrisos que viam até as orelhas. Imaginara se aquilo não seria um sonho. Pôs-se a olhar as estrelas até pegar no sono. No outro dia não pensou em mais nada, a não ser voltar à floresta e rever seu amado. E foi isso que fizera: correu mais rápido que pode. Chegando perto do mesmo local começou a chamar seu nome até ele aparecer, colocando suas mãos sobre seus olhos e virando-a para si. Só passaram o dia como meros apaixonados, desfrutando do amor que cada um podia oferecer. Quase o sol se pondo, ela já tinha que voltar para seu castelo. O moço guardava um segredo do qual a jovem não sabia, mas tinha que contar-lhe, pois seria melhor, e não tinha medo do que poderia acontecer. — Tenho que lhe contar algo. — disse enquanto deslizava sua mão sobre o cabelo de sua amada. — Diga-me!
— Eu menti quando disse que ouvi você gritando e comecei a correr ao seu encontro para saber o estava acontecendo. Fui eu que passei a mão em seus cabelos, mas posso lhe explicar. — mas foi interrompido por Catherine. — Como assim? — indagando com tom de irritada — Por que não me disseste isso? — Por que sei que seria complicado e não acreditarias. — Tente explicar. — Tive medo que não iria gostar de mim se soubesse. Eu sou um elfo, por isso que não me viste da primeira vez. Só pode me olhar se eu quiser. — Elfo? Aquele ser de histórias que ouvimos? — gargalhando — Para de mentir. — Não estou mentido. Se você ouviu histórias sobre mim, sabes que temos orelhas diferentes das que vocês estão acostumados a ver. — erguendo seus cabelos. — Então você é um... — gaguejando — Elfo mesmo. — Sim, mas lhe amo, e não quero que me deixes por isso. Nunca lhe machucarei, eu prometo. Tudo passava na mente de Catherine, mas aceitou porque seu amor foi maior do que qualquer barreira que viesse ao seu encontro, pois só estar ao lado de seu amado tinha importância. Ela ficou ao lado de seu amor e se encontravam todos os dias durante três luas cheias, mas aconteceria algo que mudaria tudo: a tal moça se sentia enjoada com frequência e muitas tonturas viam junto. Seu sangramento não estava vindo como deveria. A mãe de Catherine percebeu que ela só poderia estar grávida. “Mas de quem?”, pensava a mulher, pois ela não se encontrava com ninguém do reino. A mãe da jovem se sentou com a filha para conversar sobre o que estava acontecendo e disse a ela que só poderia ser que ela estava esperando uma criança em seu ventre, pois não havia outra opção com os mesmos sintomas que ela apresentava. “Mas quem seria o pai daquela criança?”, a mulher perguntou. A jovem começou a chorar e começou explicar tudo que havia acontecido durante as três luas cheias. Sua mãe pensou que ela só poderia estar alucinando com tudo aquilo. A moça prometeu trazer o rapaz
para que ela visse e acreditasse do que ela havia dito, pois sua mãe havia falado que ela tinha pouco tempo, logo seu pai a perceberia e não poderia mais ajudá-la. Catherine foi ver seu grande amor como fizera normalmente, mas desta vez contou-lhe que ela poderia estar esperando uma criança. Ele a encheu de beijos e carícias, mas ela tentava explicar a ele que tudo aquilo estava errado, pois seu pai o mataria e ela não conseguiria viver sem ele. Mas ele prometeu que iria ter o fim por ela, porque jamais vira em toda sua vida beleza maior do que a dela. Ela contou que ele tinha que ir falar com seu pai, pois ele iria perceber que ela estava grávida em breve. O rapaz foi no mesmo dia conversar com pai de sua amada. Ele encarou tudo como um perfeito cavalheiro, mesmo isso podendo custar sua vida. O pai da jovem quis matá-lo, mas a filha não deixou. Colocou sua vida à morte, mas não a dele. O pai da jovem expulsou-os dali, mesmo com dor no coração, pois sabia que ela tinha que se casar com um príncipe, mas quis deixá-la ser feliz com seu amado e fez um feito para que ninguém soubesse o paradeiro de sua filha e seu bebê. Então os dois foram morar na floresta. Ninguém soube mais o paradeiro de sua filha, só o rei e a rainha que sabiam. A moça deu luz à uma criança metade elfo, metade humana, com a beleza igual de sua mãe e cabelos igual ao de seu pai. Fim — Já acabou? — indagou Meredith. — Sim, minha jovem! — É lindo. Que pena que é só mais um conto. — Por que achas que é só um conto? — indagou a senhora — Por que não podes ser real em tua mente? — Mas é real na minha mente. — Isso que importa, minha jovem. — Mas uma pergunta não para de vir a minha mente: qual é o feito do rei, o pai da jovem? — O feito? — começou a rir — Uma pista: tu a viste hoje. — Como assim? A história que contaste passou aqui na nossa cidade?
— Mas sim, ela se passou aqui em nossa cidade. — As únicas coisas que vi foram todas normais: a trilha, a cachoeira, tua casa e meu reino. — A trilha, minha jovem, foi o feito do rei. — Não pode ser. — disse com tom de surpresa — Se não existiria elfos mesmo. — Por que não? Mas existe sim, só por que não viste ainda não quer dizer que não existam. A jovem repensou a história toda que a tal senhora tinha lhe contado, e pensou: “e se fosse verdade, onde estaria a criança do casal? Estaria viva ou morta?” — mas pensou bem: isso era uma besteira, isso só era um conto. — Já te perguntaste sobre a criança? — Isso que estava a me perguntar. — Ela está viva e ainda mora na tal floresta. — Que bom, para ela. — Pensa mesmo que isso e só um conto? Para com isso, jovem. Como sei que não acreditarás sem provas, lhe mostrarei do mesmo modo que Daeron mostrou a Catherine. Naquele momento a senhora levantou uma de suas mechas e apareceu a mesma orelha que dissera no conto. Meredith se espantou. Quase pulou e caía para trás. Meredith pensou se tudo era verdade. Como pode ela estar com medo de batalhar pelo seu grande amor quando a jovem deixou tudo que tinha para ficar com um elfo, se o dela era um mero camponês? E que mal havia nisso? Ela o amava do jeito que ele era. Meredith só quis correr dali e ir atrás de seu amor e ser feliz, e fizera isso. Despediu da tal senhora e quando estava indo, lembrou que não sabia seu nome. — Como te chamas mesmo? — Esmereldat! — Este é o nome da minha coruja, pois minha mãe conta a história de uma jovem que era uma guerreira. Não acredito que seja você — Essa é uma história que lhe contarei depois. — disse fechando a porta.
Memórias João Marcos Oliveira
N
ão sei com precisão quando tudo começou. Talvez tenha nascido com o mundo, talvez tenha sido uma de suas últimas dádivas. Só sei o que vi, e o que vi é o que tenho como vida, é isso que me completa, o que sou: memórias. Nas reminiscências de minha mente, vejo que tenho muito a dizer. Talvez, no começo
de tudo, tenham ocorrido coisas importantes, mas era pequena demais para notar. Era tudo muito escuro, denso, molhado e terroso. Eu não sabia nada do que encontraria ou o que existia a minha volta. “Lá fora” era como defini o outro mundo, e o “aqui dentro” era o que conhecia como o meu absolutamente vazio. Foi assim no começo, mas com o tempo me vi crescer. Primeiramente, pequenina e sem forças, fui erguida pela natureza. As primeiras sensações fora de minha terra foram duras. Chuva, sol, vento e o tempo me fizeram erguer. Eu sobrevivi. Assim que os primeiros raios de sol se estenderam sobre mim, vi que era única. No alto de um cume estreito, distante de tudo. Centenas semelhantes a mim se estendiam pelo solo lá embaixo, mas elas eram diferentes, mudas, fixas, e próximas umas as outras. Eu não. Mesmo que jovem, já podia me mover, dançar com o vento enquanto pequenina, distanciar-me de pragas quando necessário e olhar para o céu, fitar as nuvens e as criaturas que sobrevoavam os ares. A natureza foi minha mãe a princípio. Cuidou-me, alimentou-me, e por ela cresci saudável até atingir a idade adulta. Havia adensado e me apresentei corpulenta, a mais alta de todas, fixando-me na terra e nas rochas. Criei casca, milhares de folhas em galhos, era robusta, uma jovem linda, mas sozinha. Um dia, porém, recebi em mim a moradia de alguns animais. Quando não aves, roedores, insetos... Minhas companhias. Aprendi a comunicar-me com eles depois de certo tempo. Movia meus galhos para abrigá-los, dei parte de mim para que vivessem, e assim se deu por muito tempo... mas a harmonia não durou para sempre. Em determinado momento, presenciei a chegada de outros seres no sopé daquela montanha. Vi seus bandos chegarem e dominarem as terras. Vi árvores tombadas, moradias feitas a partir de minhas irmãs, cortadas, amputadas, queimadas... vivas. Filhas de minha mãe se perderam meio as nuvens de fumaça e eu estava lá, intacta. Observei tudo aquilo com temor e tristeza em minha face, antes repleta de verde e vida. As lágrimas se confundiam ao orvalho e minhas
companhias já não se faziam mais presentes devido à chegada dos “outros”. Eu vi o horror na face daquelas pessoas, eu vi guerras, vi sangue ser jorrado e as feridas no solo já não eram mais passíveis de cura. Vi criações, construções se erguerem, vi a indústria mortífera daqueles seres, vi fuligem tomar o meu ar. Eu estava cinza e sem vida. Estava morta, mas viva. Não pude de imediato fazer algo. Não havia nada a fazer. Mesmo que tentasse, seria em vão. Suas ferramentas eram capazes de dar fim a si mesmos. Quando eles vieram, cercaramme, mediram-me e por fim, cortaram-me. Era preciosa para eles. Ouvi o que diziam ao meu redor. Falavam de muitas coisas que não entendia, números, cifrões. Talvez tivesse maior significado para eles do que tinha pra mim. Observei indiferente o meu fim e o meu novo começo. Mesmo dividida em pedaços, eu conseguia sentir o que fizeram com meu corpo. Fui transformada, readaptada, e hoje, eternizo... ...nas páginas deste livro.
Agradecimentos À todos que participaram no processo de criação deste livro, diretamente ou não. À todos que usaram de sua criatividade não somente pela arte, mas pela interseção de diferentes mentes em um único prol. À todos que fizeram de seu coração e esforço a realização deste projeto. À todos os que aguardaram mais do que deveriam para ter o produto final em mãos. À todos os frutos de escritores não reconhecidos. À literatura nacional não valorizada. À você, caro leitor, que deu momentos preciosos de sua vida para esta leitura... MUITO OBRIGADO!