++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++
OLGA BRACKS MENDES
Fragmentos do Passado A vida é como a neve… A memória, como folhas secas ao vento.
Caratinga-Minas Gerais 2017
++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++ a
a++++++++++++++++++++++++++++++ a
++++++++++++++++++++++++++++++
a
M B N
Agradecimento especial à neta Mariana e filhas Ângela e Márcia pelo trabalho, eficiência e dedicação nessa composição. Meu profundo reconhecimento.
M B N
Copyright@ 2017 by Olga Bracks Mendes PROJETO GRÁFICO DA CAPA E MIOLO Guilherme Horta e Mariana Mendes Cimini FOTOS Arquivo da família REVISÃO Angela Bracks Mendes EDIÇÃO E TRATAMENTO DAS IMAGENS Studio Anta
Mendes, Olga Bracks M538f
1.
Fragmentos do Passado/Olga Bracks Mendes — Belo Horizonte: s.n., 2017. 80p. Literatura brasileira - crônicas CDD: B869.4 2017
Todos os direitos reservados à autora. Email: olgabracks@hotmail.com Facebook: olgabracks Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por nenhum meio, sem a autorização da autora Impresso na Gráfica O Lutador em papel Pólen Soft 80 gsm
tiragem de 150 exemplares
E
antes que tudo se perca ou se vá, recolhi daqui e dali, perdidos no labirinto da memória e
no fundo do coração, fragmentos de vidas vividas. Tentarei compor um mosaico, simples, de poucas nuances, porém repleto de amor, trabalho, sacrifício, coragem e calor humano.Aventureiros, temerários ou audaciosos? Quem sabe dizer? Uma incógnita. Contam!!!...
9
...Era 1897 Um jovem charmoso, não muito jovem nem muito velho (39 anos) vindo da Austrália em visita à terra natal – Zahlé, Líbano – logo ao chegar, encanta-se por uma linda jovem síria de 19 anos, elegante, culta, olhar meigo e de sorriso encantador. Ficam noivos. Ele volta à Austrália, põe fim aos negócios, mas antes, encomenda a um artesão uma joia original, para oficializar o noivado. Uma ave do paraíso, cravejada de pequenos diamantes (cascalhos) pousada em delicados galhos confeccionada com arte e beleza. Um passador, para ornar os cabelos de sua amada.
10
O enlace Unidos pelos laces matrimoniais: Ackel Bracks e Ássima Kioumgi, em Zahlé, iniciam o trabalho a dois. Os anos se passaram. A viagem - 1914 A Europa preparava-se para a 1ª Grande Guerra. Os portos estavam se fechando e único operante era o de Gênova, na Itália, com um navio indo para Buenos Aires. Com 6 filhos: Aziz, João, Maria, José, Nicolau, Josefina e uma no ventre, a família confia todos os bens, fruto de uma vida de trabalho, ao bispo de Zahlé e iniciam uma longa viagem. Ackel, Ássima e sua patota embarcam no luxuoso navio Principessa Mafalda, de bandeira italiana, em sua rotineira viagem à América do Sul – o último porto aberto. Os
aventureiros
deixam
para
trás,
num
melancólico adeus, a pátria, pais, parentes e amigos. O tempo era premente, não havia mais retrocesso. Após 20 dias de navegação, finalmente chegaram 11
ao Rio de Janeiro (há quem diga que o destino seria Buenos Aires).
As dificuldades começam aí; para onde ir e como
se comunicar? Minha mãe Ássima e seu bom francês tornou-se a intérprete – procuraram o consulado francês e só assim entrosaram-se com os conterrâneos, dentre eles dois parentes, os irmãos Jorge e Calil Moisés, que muito contribuíram para a tranquilidade de todos.
A família permaneceu no Rio de Janeiro até o
nascimento da filha Julieta. Meses depois, a conselho dos primos, seguiram viagem pelo único meio de transporte na época, o trem. Pela estrada de ferro Leopoldina Railway, descem próximo a última estação, no povoado de Carangola.
Para sanar um pouco as despesas, que eram
muitas, Ássima abre uma escola de francês. Mas não foi em Carangola que fixaram residência. Mais tarde seguiram até o final da linha (ou do mundo) e chegaram a Bom Jesus de Manhumirim. Ironicamente ao bonito nome, o lugar mais parecia “onde Judas enterrou as botas e o diabo amassou o pão”. Era necessário ajudar o diabo e mão na massa!
12
A bitaca
Nosso pai, com muito desprendimento e
humildade, abre uma vendinha ou bitaca, como dizia-se na época.
Para os de hoje, que nunca viram, tinha de tudo
um pouco: fumo de rolo aos metros, doce, querosene no litro, arroz e feijão na medida, bebidas e a groselha, que minhas irmãs Julieta e Josefina surrupiavam furtivamente e eu saboreava (isso era o que elas diziam). O porco Esse bichinho, sucumbia no fundo do quintal com certeira punhalada no coração. A maquiagem era criteriosa e longa – sapecado, raspado e lavado; aberto do peito à barriga, retirava-se as vísceras e ainda quentinho, ia para o balcão onde os fregueses ansiosos o esperavam. Dele nada se perdia, aproveitava-se tudo, da cabeça aos pés.
Informação aos que não sabem – as vísceras:
fígado, baço, pulmão, e rins, tudo picadinho e acebolado; os miolos mexidos com ovo; a língua recheada diz tudo – hummm... que delícia! Sangue, imaginem na tripa 13
grossa, é de dar água na boca o delicioso chouriço.
Finalmente a festejada linguiça defumada de
tripa fina; só o expert Aziz, nosso irmão, sabia fazer e era disputada pelos fregueses.
Dessa árdua tarefa nosso pai tirava o sustento da
família, completava com o trabalho de Maria e minha mãe, exímias costureiras da sociedade. O destino é imprevisível
Bom Jesus do Manhumirim, esse pedacinho de
chão, aos pés do imponente Pico da Bandeira, no cafundó do mundo, sem luz, água, sanidade e sanitários, onde as febres tropicais faziam vítimas. Foi aí que o casal Ackel – empresário bem sucedido do Líbano – e Ássima, a fina flor de Damasco, educada no Sacré Coeur de Marie, fincaram a bandeira de sua pátria, iniciando a nova vida, diferente, muito diferente, da que deixaram para trás, de luxo, conforto e cultura – heróis de si mesmos! 1918 - A guerra continua A família nem bem aclimatada ou adaptada foi surpreendida com a notícia: João, com apenas 16 anos, 14
alista-se voluntário de guerra. Parte para a Europa, deixando a família desolada e em suspense. A mãe tristonha, cabisbaixa, nada dizia, nem um ai, mas seu olhar distante revelava quanta angustia. O enlevo Fevereiro de 1918 – Deus é prudente – fez uma troca, e levou as tristezas e iluminou a casa dos Bracks com uma nova luz, o sorriso de uma criança. Minha mãe dava a luz a última descendente, a própria, que de caneta em punho procura de lá e de cá as lembranças do passado – sua filha de nome Olga, o complemento da família.
15
Da direita para esquerda em pé: Josefina, Nicolau, Aziz, Maria, João, José e Julieta. Sentados: Meus pais Ackel e Ássima e eu ao centro
Agora somos 8 filhos e a vida continua... Felizes os que podem dizer: “Somos Felizes” No afã do trabalho, o entrosamento complicado com os da terra foram melhorando.
Nosso pai não esquecia a essência da vida, a educação dos filhos, que precisavam aprender o novo idioma. Dona Carolina Pereira, a professora, a única, se desdobrava em uma pequena sala. A mestra (como 16
diziam), verdadeira malabarista, acumulava 2 classes muito diferentes; o importante eram os excelentes resultados. Admirável e santa professora, admiráveis pais, com tantas adversidades ainda davam o melhor. Com conselhos salutares de “amor e respeito ao Brasil”, todos se naturalizaram cidadãos brasileiros. A guerra inclemente A guerra continuava e as notícias eram raras: só telegrafo Morse, por cabo submarino (internacional) e telefone a manivela, que em Manhumirim nada se entendia. A telefonista Cotinha, nossa vizinha, cochilava até completar a ligação. O conflito não tinha prazo para chegar ao fim! Felizmente, minha mãe com a nova filha, cuidados e desvelos, não tinha tanto tempo para pensar no filho João. Os sinos repicam Enfim, com o cessar dos canhões e o repicar dos sinos, a paz e a tranquilidade reinaram. A guerra acabou. O regozijo contagiante: beijos, abraços, lágrimas. Os moradores se confraternizavam em festividades para 17
a recepção aos combatentes. Voltam os ganhadores, os perdedores e os que jamais voltam, os heróis, ficam na memória. Felizes, os familiares recebem de braços abertos seus filhos. Em nossa casa meus pais e irmãos também ansiosos, aguardam o combatente. Mas a guerra é imprevisível... e... ele não veio. Apenas uma carta: “Ficarei na França por mais dois anos, a serviço do governo”. Dois longos anos de saudades, preocupação e angústia. Dizem que após a tempestade vem a calmaria, mas não foi desta vez que meu berço natal recebeu bons ventos. Triste e escabrosa notícia! Os porões dos navios infestados de ratos transmissores da peste bubônica espalham-se pelos lugarejos. Contam que o terror foi tanto, que portas e janelas eram lacradas e os mortos foram transportados em carroças e eram enterrados em valas comuns. Instituto Oswaldo Cruz Em Manhumirim não haviam médicos nem conhecimento da peste. Meses se passaram de terror 18
até a chegada de uma equipe de médicos e sanitaristas do Instituto Oswaldo Cruz. A febre se foi e o sossego voltou. E a vida continua... O dia a dia é uma roda-viva. Pai e Aziz na árdua tarefa da vendinha; nossa mãe duplamente atarefada, com a costura e os carinhos a filha novinha; Maria com as clientes; Josefina, com apenas oito anos, iniciava na profissão de mestre cuca (era necessário um banquinho para alcançar o fogão, mas ela se esforçava); e os rapazes José e João comerciários e o melhor, a responsabilidade. A paz na família era alento para o novo dia. A obrigação e a obediência Era um preceito na casa dos Bracks. Josefina – o cabo de guerra ditava as leis: eu e Julieta refazíamos as camas, enxugávamos as louças e a triste e a execrável tarefa de recolher e lavar os pinicos! Desde novos aprendemos a cumprir tarefas. Meus pais faziam valer, de um lado, o carinho e atenções e de outro, exigentes e severos. As filhas tinham liberdade 19
vigiada, com horário para sair e chegar e distrações selecionadas. Com todo rigor, reinava a paz em nossa casa. 1922 Em cada coração palpitava o amor à pátria, Independência ou Morte, 100 anos. Não só o Brasil comemorava a grande data. A repercussão mundial atraiu visitantes, indústrias e empresário expunham seus produtos. O movimento no Rio de Janeiro era de euforia, atrações e grandes negócios. Circos, fanfarras e parques alegravam o povo. Nossa mãe, após 9 anos de Brasil, de trabalho intenso físico, mental e maternal, necessitava de umas férias. No Rio de Janeiro, com os filhos Aziz, Maria, Nicolau e eu, divertia-se. Os reluzentes e coloridos produtos chineses e japoneses –: origamis, bijuterias e outras quinquilharias – ofuscavam aos olhos cobiçados de uma criança.
20
“ Nicolau no Pão de Açúcar – Rio de Janeiro”
21
A moeda Coincidência ou previsão? Meus irmãos divertiam-se nas barracas. Por acaso, uma moeda cai no pé de Nicolau e um observador ao lado lhe diz: — “É um amuleto, põe no bolso, pode ser um presságio de bons negócios”. Vidente, charlatão ou brincalhão?! Veremos... Guardo ainda dessa data uma significativa lembrança chinesa — uma caixa de segredo em forma de dado, tão perfeita, que sua abertura é um desafio. Foram dias maravilhosos! E o melhor, minha mãe se refez. Ainda hoje me emociono com as lembranças. Meu pai saudoso ao nos receber: – Vocês estão aqui! – Allah akbar.
22
Novos Tempos No
cenário
mundial
grande
agitações.
Conferências, tratados, retaliações e decisões, mesmo assim houve confiança e progresso entre as nações. Meus irmãos João e José, animados inauguram o Barateiro, loja de tecidos. Toda a família estava em ritmo de trabalho. A mãe e a filha Maria, modistas famosas e as pirralhas Josephina (assim se escrevia) (12 anos) credenciada com os serviços do lar, auxiliada por mim (6) e Julieta (10). O descanso Meu pai, com mais de 60 anos, sentindo-se cansado, fecha a bitaca. Para se distrair, pela manhã, no quintal cultivava flores, hortaliças e frutas. Sentia-se feliz em oferecer violetas e amoras na própria folha – seus olhos brilhavam. A tarde caminhava até a loja, O Barateiro, para observar e opinar no negócio dos filhos.
23
O sarau Com os amigos, em casa dos anfitriões AbiSamara e Dona Matilde, a colônia libanesa se divertia. Naquela sala... o longo sofá em semicírculo, o narguilé de mão em mão... a fumaça em espiral e o delicioso aroma do fino tabaco! A vitrola a um canto, o disco em lamentos, olhares tristonhos, opiniões, saudades; e do lado B, ao som do atabaque, enxugam-se as lágrimas, batem pés e palmas, alegram-se. É hora, o cafezinho aromático servido por Odete (filha do meu saudoso padrinho) prenúncio da boa noite, despedem-se. Jogatina As partidas inesquecíveis de gamão, eram de praxe aos domingos entre meu pai e o padrinho AbiSamara. Ainda ouço o tilintar dos dados e as palavras xis-beck (marcação). Por vezes se estranhavam, vozes acalouradas e faíscas voavam, levantavam-se. O bom senso lhes dizia: acalmem-se, e sorrindo continuavam. No final, o 24
cafezinho por mim servido, uma obrigação prazerosa. Por longos anos meu pai cumpriu esse ritual. Depois meu querido padrinho se foi e a saudade ficou. A comunidade libanesa A colônia libanesa, se bem me lembro, não era grande. Famílias Khede, Mansur, Assad, Maluf, Tanus, Mussi, Duarte, Elias Jorge e outros mais. Destaco a de Abi-Samara e Semi com quem tínhamos uma convivência especial por serem meus padrinhos. O descanso de minha mãe na “pedra”. Aos domingos, socava o quibe no pilão de pedra trabalho demorado e cansativo. “Pobre mãe”— mas ficava delicioso! Os filhos em volta, de mãos estendidas recebiam uma bolinha e ela gracejando dizia: “os filhotes ciscam e os velhos ficam a olhar”. — Que amor de mãe!
25
O cupido O arqueiro ronda a casa dos Bracks, são tantos alvos e o audacioso num lance certeiro! Maria foi a vítima! Ficam noivos: Maria e Melhim Abi-Ackel. Alegria para muitos, tristeza para mim, que perdia os afagos e beijos da irmã-madrinha. Revolteime e ao noivo detestei, com amor ferido de criança, o chamava de “o cara preta de minha vida!”. Para me consolar e conquistar, o noivo deu-me um lindo bebê de celuloide (novidade na época). Adorei o meu Zuzu, que tenho até hoje, porém ao cunhado a mágoa perdurou por longos anos. Maria casada, sua falta era evidente. Companheira, confidente e auxiliar de minha mãe, a menina que aos 13 anos lhe serviu ao nascer a filha Julieta. Zuzu
26
Perdemos e ganhamos Um ano depois, chega Ibrahim. Meu pai sorriu pelo primeiro neto “macho”, orgulho da raça que levava o selo Bracks. Enfim todos regozijamos, tínhamos um sobrinho e eu tornei-me babá aos 8 anos apenas. Minha mãe, com seu puro amor, tornou-se auxiliar da filha, que em sete anos consecutivos deu a luz sete vezes – Ibrahim, Anacer, José, Haydée, Judith, Cário e Clarice. O pai alheio a tudo, fazia e viajava para São Geraldo onde tinha uma farmácia. Saudoso, de quando em quando visitava a família. Maria, a batalhadora, tinha 7 bocas para alimentar, vestir e educar. Desafiava o cansaço, pedalando as máquinas de costura até a madruga. Mãe ardorosa e ideal irrevogáveis! Não só deu o necessário, mas muito mais: o brilhante curso superior para seus herdeiros. Nunca
é
tarde
e
Melhim,
anos
depois
conscientizou-se do dever de pai, abriu uma farmácia em Manhuaçu e tranquilo viveu junto à família.
27
O êxodo O vazio da casa se fez sentir, Maria casada, João nem sei o que fazia, talvez fosse freelancer; José cursando Academia de Comércio em Juiz de Fora e, ao se formar, seguiu para o Rio de Janeiro e na AngloMexican se empregou. Em casa agora somos 7 Como as pombas, assim também voam os filhos: “Na mocidade, ruflando as asas, sacudindo as penas eles se vão mas aos pombais as pombas voltam...” e não demorou muito, o alarido, a peraltice dos netos, veio para quebrar o silêncio. A beleza e graça das crianças, contaminam e alegram os velhos, jovens e os avós. Meus pais saudosistas lembram-se da terra natal, dos bens deixados com o bispo e escrevem-lhe incessantemente e só recebem respostas evasivas, o que muito os aborrecia. Em terra desconhecida, de clima, costume e cultura aversos ao seus, febres, guerras, boom financeiro, os pais tinham muito o que pensar. Minha mãe silenciosa e resignada nada dizia. 28
O pai audacioso, como o beduíno ao enfrentar os vendavais do Saara, de cabeça erguida dizia: “Vim, vi e venci!”. Meu velho pai! Que coragem e orgulho. Infelizmente, só não venceu o idioma que continuou “tutuzando”. Dizia aos netos “Nun banha fruit in dá” e para as visitas “cómi, cómi nu pude juga fora” e os netos riam muito. Apesar das falhas, ele adorava as visitas. Diz o provérbio: “quem cedo madruga”... Nicolau, o filho e irmão admirado pela família, desde pequeno revelava criatividade, construía seu mundo de ideais. Com sucata, latas, rodinhas, caixas, ele fabricava os próprios brinquedos, cobiçados pelos amiguinhos. Aos 13 tirava seu “ganha-pão” consertando bicicletas na porta de casa, depois fazia a niquelagem, vulcanização de pneus, montava tambores com carboneto e levava para iluminar fazendas. As inovações brotavam, as ideias se atropelavam. Preocupado e ansioso, meu pai dizia “Nula so precisa so de diner! Allah akbar (Nicolau só precisa de dinheiro! Deus é grande). 29
Casamento de Maria e Melhim Abi-Ackel - 1925
30
Da direita para a esquerda: Anacer, José, Ibrahim, Cário, Judith, Clarice e Haydée - 1948
31
Nicolau avançava ao seu tempo, queria realizar, não importava como, onde ou pra quem! Em 1927 inaugurava uma academia de ginástica e boxe e em um pequeno espaço de tempo arrendava o Cine São Pedro. Para sacudir os moradores, a propaganda de filmes de longa metragem (Jesus Rei dos Reis, BenHur, etc.) era feita em um outdoor acoplado ao veículo que percorria as ruas da pequena vila. Toda essa parafernália, construída com suas próprias mãos, tinha o formato de carro de corrida, homenagem a Pintacuda, o melhor corredor italiano da época e que Nicolau tanto admirava. Companhias de teatro com luxo e beleza eram contratadas (Miramar, Pin Pan Pun, etc.). A sociedade apática, preconceituosa, escandalizava-se com a seminudez das artistas, mas Nicolau não desistia. Em seguida, inaugura anexo ao cinema, uma sorveteria e confeitaria, sem luxo, porém, do bom e melhor. Quitutes e sorvetes naturais, tudo fabricado por minha mãe e irmã Josefina. Ainda era cedo demais para tanto progresso, mas o temor era em vão. Construir e realizar eram um frenesi e Nicolau não podia parar.
32
1928 – Momento histórico: Os missionários Chega em Bom Jesus um grande missionário, emérito catequista e evangelista Padre Júlio Maria. Um homem de grande cultura, polêmico, e de grande potencial de trabalho. Líder nato, logo arrebanha as ovelhas e aglomera os fiéis em associações como Filhas de Maria, Sagrado Coração, etc. Dá início a grandes obras como igrejas, capelas, hospitais, seminário, orfanato, a grande Escola Normal Santa Terezinha, bibliotecas, tipografia, editora de livros e o jornal “O Lutador” de abrangência nacional. Manhumirim se transforma, veste-se de roupa nova. Investe na cultura: ensina o bem viver, apreciar o belo, alimentar e vestir com arte e gosto. Minha cidade natal deve ao Padre Júlio esse grande legado — a cultura. Além das benesses, infelizmente a missão doutrinária teve momentos conflitantes com protestantes e espíritas. Os debates impressos, a viva-voz em praça pública, com grande assistência e aplausos calorosos. O clima tornou-se tenso. A justiça interveio por precaução e pôs fim aos debates. A religião ilumina a mente – Crer em Deus, todo 33
poderoso, abre o coração dando amor ao próximo e a si mesmo. O pastor das almas sentiu-se gratificado em ver brotar e florescer nos fiéis a fé firme e duradoura. Em nossa casa, a família confortada com a missão religiosa cumpria as obrigações com assiduidade. Padre Júlio, entusiasta de obras de artes, idealiza uma cúpula na catedral e Nicolau, o arquiteto improvisado, constrói a minicúpula, réplica da catedral de São Pedro em Roma. Pronta, pela beleza e brilho, tornou-se ponto de referência em Bom Jesus de Manhumirim. A maior festividade na paróquia era o Jubileu de 07 a 14 de setembro e o programa extenso atraía muitos visitantes. Os exploradores aproveitavam o jogo que corria livre; roleta, dados, buzios, em mesas iluminadas com bico de gás-carbono ao longo da rua.
A anta O mais bizarro – anunciante de animais exóticos em vozeirão gritava: “Venham ver a anta das margens do Rio Doce!” e numa barraca de saco de estopa lá estava ela e o ingresso custava 20 réis. 34
Ássima e Padre Júlio Maria - Filhas de Maria
Morávamos em frente a principal praça, bem no centro. Local de circo, parques e assassinatos! Julieta à janela, por infelicidade, assistiu a um crime violento. Muito nova, traumatizada, dava gritos de pavor durante a noite. Esse trauma perdurou até sua morte.
35
Aconteceu! A felicidade não tem limite, por vezes extrapola. O “diner” — A moedinha volta à história Obsessão do pai, providência divina ou a moedinha? Quem sabe... E o imprevisível acontece! Nicolau ganha 30 contos de réis na Loteria Federal! Meus pais e irmãos não se contiveram, festejaram e agradeceram! Allah akbar! Nicolau não podia parar, tinha pressa. O bate estaca inicia: serraria, fábrica de móveis, depois um posto de gasolina, auto peças, concessões, etc. Manhumirim se agita, operários num vai e vem – a vila toma aspecto de cidade. Mais tarde, a extração da madeira arregimenta operários, tração animal e motorizada. A madeira bruta e industrializada segue seu destino, Rio de Janeiro, no único meio de transporte, o trem da Leopoldina. Deixou lembranças... O movimento lento, o chiado nos trilhos, o apito melancólico e prolongado até a última curva. Sinto saudades da mocidade e dos passeios ao Rio de Janeiro naquele trem.
36
O sucesso Meus pais se emocionavam, acompanham ávidos o sucesso dos filhos – se pudessem poriam também a “mão na massa”. O irmão José, sempre cauteloso, dizia: — Nicolau, toma fôlego, os ideais podem lhe atropelar. — Tenho muito por fazer, retrucava. 1930 – A revolução Getúlio, o novo presidente, — o “ditador” fecha o congresso e instala a ditadura. O novo regime “Estado Novo” preocupa. Nosso pai sempre prudente aconselha: — “Em movimento político respeitem, o estrangeiro no Brasil não é bem quisto”. Mesmo longe da capital não faltaram os arruaceiros fardados como milicos (adeptos) invadindo as casas, — a nossa foi uma delas, reviravam todos os guardados. Na velha arca do Líbano, bem aquecida no meio dos refs (cobertores) uma enferrujada espingarda se encontrava. Com ela no ombro, os garbosos soldadinhos de chumbo se foram. Recordo-me bem, entre eles estava 37
José Canuto, amigo de João e da família. A prepotência do ditador e atos desumanos não tinham limites. Felizmente não afetaram os negócios de Nicolau, que iam de vento em popa. Deus ouviu meu pai – sua exaltação - Allah akbar. Para dissipar tanta preocupação, em 30 de outubro de 1930, nascia mais uma neta, Judith, trouxe muita alegria a família. Não há bem que sempre dure... A morte ronda nossa casa... A notícia alarmante. José, no Rio de Janeiro, estava muito mal. Internado no sanatório de Paty de Alferes, um petardo! A família silencia como aves feridas. Meu pai estimula – “A fé e a esperança movem montanhas” e nos momentos de tristeza dizia: — descruzem o braços! Coração de mãe não mede sacrifícios nem riscos de vida. Com Nicolau e Josefina, vai ao encontro do filho. Enfrenta chuva e estrada de terra junto a Santa Terezinha e com fé, promessas e orações, espera. Caminha pela casa cabisbaixa, olhar tristonho, oito longos meses, até que José volta, mas ainda em risco. 38
Josefina, a irmã, “nosso cabo de guerra”, assim como boa enfermeira, com carinho, profilaxia, a alimentação necessária, cuida com desvelo e desejo de ver o irmão recuperado. José não podia faltar, sua vida era imprescindível. Leitor contumaz de grandes escritores nos distraía com sua leitura metódica. Vestia-se como um lorde. As preces da minha mãe foram atendidas, José restabelecido assume a gerência da empresa, como o braço forte do irmão. Para a nossa felicidade, viveu até os 91 anos. O desencanto de viver
Dois anos se passaram. Ano de 1936. A família
como sempre reunida e os negócios em ascensão davam tranquilidade aos velhos pais. Minha mãe nada dizia, mas sofria fortes dores. Debilitada, vai para o Rio de Janeiro e é internada no hospital Beneficência Espanhola. Não havia mais tempo e nada a fazer. Úlcera perfurada e peritonite aguda. Nossa querida mãe se foi... E com ela os afagos quentinhos, estímulos, abraços e beijos. 39
Em nossa retina, para sempre, seu olhar a nos olhar, a boca a nos sorrir. Posso vê-la a pregar miçangas, ouvi-la na suavidade de um rolê, na surdina, cantar a Marselhesa ou Ave Maria de Gounod e a dizer com carinho “Meus filhos”. Que saudade mãe!
Nosso pai sem a companheira querida, andava a
esmo pela casa, dizendo palavras murmuradas, frases de amor e saudade.
A leveza do ser
Quando
o
“eu”
se
fere,
temos
ímpetos
inexplicáveis, assim, nossa irmã Josefina, nesse mesmo ano (1936) toma a decisão e se casa com Agenor Silva. Viúvo com dois filhos, 10 e 11 anos. Deram-lhe muito trabalho. Não tiveram filhos.
Esposo
irascível,
Agenor
não admitia a
religiosidade da esposa e os atritos eram constantes. Josefina, de fé inabalável, não se deixou subjugar. Ele, sentindo a hora da morte, pede por um padre. Arrependimento ou temor a Deus?
40
Casamento de Josefina - Judith dama de honra - 1937
41
A crise do vazio
Logo no ano seguinte, Julieta segue o mesmo
caminho, numa cerimonia singela, casa-se com João Furtado Campos e teve uma vida bem diferente da irmã Josefina.
Viveu cercada de carinho, uma deusa para o
esposo. Para maior felicidade, tiveram três filhos: João Ronaldo, Nicolau e Fernando. 1937 – E no casarão agora somos seis
Pai, Aziz, João, José, Nicolau e eu. Meu pai, na casa dos 80, sentia-se saudosista, os
saraus e amigos se foram.
Deus escreve certo por linhas tortas. Os
netos crescidinhos roubavam-lhe as frutas e lhe alegravam com suas estripulias. Em compensação, Nicolau progredia, era sua distração. Na maratona de negócios, nosso irmão ainda tinha tempo para organizar lazeres, passeios em lugares pitorescos, piqueniques, e em casa disputávamos animados pingue-pongues.
42
Casamento de Julieta e JoĂŁo Campos - 1939
43
Enfim cheguei com um canudinho na mão, professorinha. Também recebi a grande herança de minhas irmãs -“Governanta da Família Bracks”.
Atordoada, não sabendo o que fazer, embora
com idade, 20 anos, mas pouca experiência. Deus é providente e colocou uma luz a brilhar no espaço e me deu um anjo — Isolina, que deu-me as mãos e passo a passo caminhou comigo. Sorriso esgarçado, roliça, andar lento. Rapidamente passei-lhe o cargo de governanta. Ela não era apenas governanta, mas também grande amiga. Ensinou-me deliciosos quitutes, saborosa comida árabe e outros.
Livre das responsabilidades da casa, tornei-me
companheira de viagem de Nicolau em negócios no Rio. Nas folgas, os passeios paradisíacos, visitas a museus, cassinos, shows, beleza e encanto. Retrospectiva 1918 – 1938
Nesse espaço de tempo, a família conviveu
com alegrias e tristezas – guerras, febres, mortes, desenvolvimento social, cultural, casamentos, netos, ideais realizados, sucessos. Expectadores audaciosos diziam: “Vim, vi e venci”. 44
1939 – Os bons tempos duram pouco – A segunda grande guerra
Hitler, o grande estrategista surpreendeu o
mundo com sofisticado e moderno poder bélico. Aviões supersônicos, com ogivas e mísseis de longo alcance e esquadra mais veloz e o grande exército disciplinado. Vaidoso, sonhava com a dominância do mundo e a raça ariana bonita e perfeita. Aos judeus impôs a morte nos campos de concentração. Em hora marcada sua voz fazia-se ouvir e as bombas “dum-dum” a cair, dizimando cidades inteiras, matando velhos e jovens inocentes. Esse mundo é muito irônico. Desgraça para uns e distração para outros. Nicolau, sempre ele, comprou um rádio. À noite, família reunida, silenciosa, ouvia as noticias da guerra no rádio roncador, — não sabíamos se era ele ou as dum-duns de Hitler.
Para a tranquilidade de nosso pai, os negócios do
filho não foram afetados, pelo contrário, tiveram maior alcance por falta de intercâmbio.
E no Brasil, o ditador Getúlio continuava traindo
e sacrificando opositores, a pátria e amigos. A execrável 45
Formatura em magistĂŠrio de Olga
46
deportação de Olga Benário Prestes, esposa de Luís Carlos Prestes (seu corregionário), para morrer no campo de concentração.
Nessa ocasião, Maria lembrava a advertência do
pai – “Nós estrangeiro não somos benquistos no Brasil – sejam prudentes.
Nesse caldeirão efervescente, nosso pai mesmo
ouvindo pouco, porém com a mente aguçada, muito se preocupava. Em 7 de setembro de 1940, João, o segundo filho casa-se com Maria de Lourdes Maia. Felizes, tiveram 3 filhos: Antônio Edmundo (que perdeu a vida ainda jovem, aos 20 anos, em um acidente de carro) Lúcia Helena, e Maria de Lourdes. Novos tempos
A novidade no mercado — folhas de compensado,
entusiasmou Nicolau. E a fabricação inicia: fabrica a máquina e a caldeira de 90 cm e, não satisfeito, construiu outra com 120 cm para acompanhar o mercado. Obcecado pelo moderno, era um moto-contínuo nesse caldeirão efervescente. Não esmorecia.
Impaciente, aguardava do Banco do Brasil, o 47
empréstimo para realizar o maior desejo, seu sonho! — O Instituto Profissionalizante Juvenil. Sentia-se penalizado com crianças abandonadas de 10 a 15 anos.
O projeto estava pronto, o local — sítio Major
Lopes, negociado; fábrica de palitos a ser montada, porém faltava-lhe “tutu”, grana, para o chute inicial – meu pai: Allah akbar! Enquanto esperávamos… a família divertia-se
Em Manhumirim as noites de inverno eram bem
geladas. O aquecimento era precário na boca de fogão e na sala o fogareiro a carvão. Para dormir usávamos os benditos cobertores (refs) trazidos do Líbano. Divertíamos jogando pingue-pongue e baralho, as gozações — um prato cheio.
Aziz, o “repórter” cedinho de jornal na mão, aos
vizinhos dava as notícias; José “Big Ben” organizado e com horário preciso; O “glostorado” João, que abusava da brilhantina, dizia: — Chispa pra casa! Implicando com Julieta e ela se escondia e retrucava : — Lá vem o feitor. O “sonâmbulo” Nicolau levantava de cobertor 48
nas costas: Vara vira tripa, dizia ele à Josefina, (ela era tão magra que parecia uma vara que se usava para virar as tripas de porco para lavá-las). O “bigodudo”, meu pai. As crianças fugiam das espetadas do seu bigode. O “amor incondicional” Maria por toda a família; A “ternura” – minha mãe, com olhar terno, vara de marmelo na mão, nos esperando. Finalmente “ tetéia”, a madrinha Maria me dizia. As
piadas,
críticas
de
humor
surgem
espontaneamente, alegram, às vezes aborrecem, mas não deixam de ser um bom entrelaçamento. Meus pais contavam aos filhos um pouco de tudo que deixaram: rebanho de carneiros; a beleza do fio de seda nas mãos; floresta de amoreiras. Com lágrimas... O luxo de nossa casa... A vista do Zahlé até o mar! Juntos a emoção tomou conta. E o bispo com tudo ficou. Ambicioso e irresponsável esqueceu-se os votos de pobreza, a exemplo de seu mestre “Dai a César o que é de César...”. E a lembrança puxa... meu querido padrinho AbiSamara, digno e honrado, bondade personificada. Quando pequena e anos depois, por ocasião do Ano Novo, levava-me um presente, sempre contido no 49
bolso do paletó, que ao recebê-lo, inibida, até encolhia, com voz sumida dizia: — Obrigada. Hoje sinto vergonha da minha vergonha. Como é bom reviver! Quem espera sempre alcança Enquanto esperava a decisão do Banco do Brasil, entre idas e vindas do Rio, Nicolau fica conhecendo uma linda moça filha de Moysés e Maria Amélia. Indecisa diz: – Acho muito cedo para me casar. Para não perder o estímulo, nada melhor do que um canto de amor: “Uma mulher me disse: Vem comigo! Fecha os olhos e sonha, meu amigo! Sonha um lar, uma doce companheira que queiras muito e que também te queira... Um telhado... penachos de fumaça... Cortinas muito brancas nas vidraças, Um canário que canta na gaiola, Que linda a vida lá por dentro rola!”...
50
1943 Não demorou muito, fica noivo de Afiza Haddad Mergh e o casamento foi marcado para setembro. Devotado ao trabalho desde novo, construiu um patrimônio louvável. Deu a família o conforto, tranquilidade, amor e carinho. Digno e merecedor de um futuro feliz, esposa e filhos queridos (as crianças eram seu enlevo). Num momento exato de usufruir o que plantou, exultando de prazer, inicia a reforma da casa. Móveis modernos comprados no Rio Grande do Sul, cortinas e adornos, etc., tudo com muito requinte. A família compartilhava de sua felicidade. Deus me põe a pensar...Num relâmpago e deixamos de ser merecedores?!!!
Maktub (estava escrito) Como sempre. esperávamos Nicolau chegar para o almoço. Ele surge sorridente e exibe o tão esperado empréstimo aprovado – Cr$200.000,00 (200 mil cruzeiros). 51
A felicidade foi contagiante! Nosso pai: Allah akbar. O “diner”, seguido por todos nós. 15 de julho de 1943 Meio-dia, Nicolau almoça rapidamente com dois funcionários e numa “baratinha” Ford vai em busca do empréstimo. “No caminho havia uma pedra”, no caminho um cachorrinho, alheio e displicente, atravessa a pista. Nicolau freia para não feri-lo, dá um golpe na direção e vai de encontro ao morro. No impacto, o carro tomba por terra... Seus funcionários saem ilesos, mas ele se vai para sempre. E com ele o filho, o irmão, o ídolo e seu grande sonho, o Instituto Profissionalizante Juvenil. Seus funcionários choram, silenciam-se em profundo respeito e tristeza. Não tinham mais o seu chefe. Aquele sorriso que ao chegar dizia: “Bom dia a todos!” Em sua simplicidade, vestia-se de igual para igual – macacão azul, o mesmo tecido e modelo de todos. Não se sabia quem era o chefe, o empresário e os empregados. De coração aberto, acolhedor, sem discriminação, recebia quem o procurasse. 52
As homenagens de seus familiares e funcionários continuaram por muitos anos. Seu busto em bronze foi entronizado na empresa. “Nicolau, você está presente dia-a-dia conosco” Seus funcionários. A cortina se fechou. Agora somos 4: Meu pai, Aziz, José e eu A casa fria, sombria, o sol se foi. Nas noites silenciosas não se ouve o tiquetaque do pingue-pongue, as cortadas audaciosas e provocantes sorrisos. Quanta graça e amor e a saudade ficou. Um ano depois… Que incógnita, que mistério é esse? Pergunto novamente ao meu Deus. Um ano apenas sem o querido e saudoso Nicolau, em acidente de carro, morre as vésperas de Natal, o gênio carismático Padre Júlio Maria. Manhumirim cobre-se de luto novamente e durante três dias os fiéis desfilam diante de seu corpo, com respeito e profunda tristeza, para o último adeus. A cidade perde dois ícones, duas máquinas percursoras do progresso, economia e cultura. Ficam para sempre as obras, o exemplo de trabalho, o altruísmo, mãos benfazejas de amor e caridade. 53
Assim Deus quis! E o tempo se vai... a vida continua. Meu pai aos 87 anos caminha... Cabeça erguida, olhar em frente, coração amargurado. Nota: Enquanto escrevo essas lembranças o Papa Francisco noticia o processo de Padre Júlio (junho de 2015). Por certo, toda sua vida de sacrifício, obras e evangelização, fé e amor a Deus, farão jus a santificação. O inventário Nosso pai, herdeiro universal, organiza a nova firma. Seus três filhos homens e ele. Confere a cada um deles 250 mil cruzeiros, como capital inicial. A mulher, como sempre, era a escória. Nem a sua filha Maria, que mais trabalhou desde os 13 anos para o sustento da família, por exceção, foi escolhida, recompensada... Por algum tempo ficamos magoadas. Refletimos o tabu. A preferência aos homens.
54
1944 Em Manhuaçu, em visita à irmã Maria, fico conhecendo um jovem dentista, Darcy Mendes Domenici. Estabelecemos um namoro. Ficamos noivos e marcamos a data do casamento para 1945, mas o querido noivo, por motivo alheio a sua vontade, fica um ano em Garça (SP), liquidando os negócios de seu irmão Marinho, falecido em um acidente de carro. O casamento tem que ser adiado. As férias Os sucessivos transtornos deixaram José com estafa. Convidou-me para umas férias. Partimos para Belo Horizonte. Admiramos obras de três grandes mestres da modernidade – Portinari, Niemeyer e Burle Marx. O cassino da Pampulha, luxo, poder e arte. Tivemos uma bela oportunidade. O show com a esfuziante orquestra Tabajara, a grande atração da noite. Eros Volusia, sua voz, a sedosa cobra a deslizar e contorcer-se sob a nudez sensual de seu lindo corpo. Noite de belas atrações!
55
56
Seguimos para o Rio de Janeiro no confortável e luxuoso trem Vera Cruz. José conhecia bem a Cidade Maravilhosa o que facilitou. Entre tantas belezas naturais, monumentos históricos e modernos, visitamos alguns cassinos: Urca, Atlântico; a Igreja da Candelária e o majestoso Cristo Redentor para nos abençoar. Nesse mesmo ano o presidente Dutra, por decreto, pôs fim aos cassinos – uma lástima! 1945 - Fim da Grande Guerra Hosana! Os sinos repicam festivos. E o ditador sanguinário orgulhoso — Hitler, covarde, não suportando a derrota, suicida-se. A Europa dizimada, arrasada, inicia a recuperação. Estava escrito José, já sazonado, quase a cair do galho, no trajeto do trabalho observa a assiduidade de uma jovem sempre a janela. Curioso, coincidência ou marcação? Aproxima-se. Não deu outra, o amor arrebatou José e Zulmira. Ansioso para se casar, aguarda o meu enlace.
57
Feliz meu pai diz: Allah akbar! Finalmente, o enlace de José e Zulmira em janeiro de 1946. Na renovada casa, com meu pai e Aziz, o casal passa a morar. Apesar das dúvidas da família, meu noivo volta e em 9 julho desse mesmo ano nos casamos, em cerimônia singela, entre familiares e testemunhas. Após o almoço nos despedimos. Isolina, meu anjo negro me aguardava. Os olhares se cruzam, lágrimas, sem palavras, emocionadas, o abraço de amor e gratidão. Em Manhuaçu, o novo lar me espera. Ai tivemos a primeira filha, Ângela. Natalina, Solange e Márcia nasceram em Caratinga para onde nos mudamos em 1951. O problema Meu pai se preocupa. Todos os filhos tinham um lar e viviam felizes e Aziz, o primogênito, o braço forte do tempo da bitaca, não podia ficar só. “Deus tarda mas não falta” e Ele atendeu às preces de meu pai. No Rio de Janeiro, em visita aos primos Calil e Jorge se dispuseram a ajudar. Como num passo de mágica surge a bonita moça 58
Zarife. Em tempo recorde, ficam noivos, um ano depois (1947), eles se casam. Tiveram 5 filhos: Maria Amélia, Ássima, Márcio, Maria de Fátima e Armando. O trio No casarão agora são somente três: José, Zulmira e o velho Bracks. Nessa casa, onde naturalmente reina o silêncio, em pouco tempo o burburinho volta. Nova remessa de filhos de José, Aziz e Olga. Meu pai sorri:— “sejam bem vindos!”
O tempo se vai... O clã descansa. Nessa tranquilidade espera a visita dos filhos e netos. A leitura era o grande lazer. Recorda e exclama: “Vim, vi e venci”, com todo garbo napoleônico.
59
Aziz e Zarife com as filhas Maria AmĂŠlia e Ă ssima
60
Questionando a vida Meu pai: “De tudo? — guardo sempre o prazer; Do passado? — ter vivido ao lado da esposa maravilhosa e de qualidades excepcionais. Do presente? — o sucesso dos filhos, orgulhome; sentir o calor dos netos junto a mim - alegria; O futuro? caminho alheio, Deus dirá!”. Emociono-me:— Que linda revelação, meu pai! Ele caminha, passos lentos, cabeça erguida e o olhar a frente. O velho barqueiro Por ventos e tempestades, mão firme ao leme, chega glorioso ao seu porto. Caminha em casa. O destino prepara-lhe uma surpresa. Escorrega num declive e fratura a bacia. No Rio de Janeiro é operado com sucesso. Quinze dias após o acidente, pronto para voltar, anda pelo quarto. O corpo humano também tem armadilhas. Embolia pulmonar lhe rouba a vida. 61
Nosso pai se foi... Sua presença nos dava força, coragem e intuição. O amor de pai não se substitui. Ficou porém um pequeno sentimento — a distância; o carinho aconchegante, o calor de suas mãos, não tivemos, mas compreendê-lo foi possível. O homem, o respeitável senhor oriental não se inclina, nem para a sensibilidade do coração - altivo e orgulhoso, sempre. Não seja por isso, nosso pai foi o melhor pai do mundo. Todo o nosso amor. Esteja em paz. Somente dois... E no casarão? José e Zulmira a sós, mas por pouco tempo. Ao longo dos anos, uma ninhada, cinco amores: Maria das Graças, Nicolau, Ackel, Maurício e Norma. Comércio Indústria Nicolau Bracks A empresa seguia sólida, crescendo com a competência de seu sócio e diretor, nosso irmão José. Coube-nos como herança, as descendentes, filhas mulheres, 100 mil cruzeiros para cada. 62
Casamento de JosĂŠ e Zulmira - 1946
63
Casamento de Darcy e Olga - 1946
64
O casarão Muitos anos se passaram, volto a casa em Manhumirim. Saudades da casa paterna! Vesti-me de coragem, fortaleci meu coração para emoções. Ouvir vozes, sorrisos, beijos e abraços, sentir o calor de cada um e o casarão não estava mais ali. Só uma grande cratera. Fui ao fundo e voltei nos braços da saudade. Minha terra natal, quem te viu... meu pequeno e humilde Bom Jesus, quem te vê... minha terra, cidade florescente, muito me orgulha. Manhumirim 100 anos, festiva data. A última descendente Só, no meu banquinho a sombra dos cedros entrelaçados, nesse mosaico cheio de recordações, insiro o último quadrinho, a homenagem aos meus admiráveis país, construtores da harmoniosa família Bracks. Aventureiros, audaciosos ou temerários? Uma incógnita. Vieram de longes mares. Viram o 65
Família de Olga: Solange, Natalina, Olga, Ângela, Darcy e Márcia
66
grandioso país, venceram com o árduo de trabalho. Aqui fincaram a bandeira do Líbano. Fizeram do Brasil a sua pátria. Meus velhos pais Ackel e Ássima, que altruísmo! Com profundo respeito e amor, beijo-lhes as mãos. Meu desejo Que todos, meus queridos pais, irmãos, filhas queridas Naná e Solange, Darcy, parentes e amigos, estejam reunidos em que galáxia for, felizes cantando ao som e ritmo de uma batucada “Brasil, meu Brasil brasileiro, meu mulato inzoneiro...”, com muita alegria e saudades. Com 98 anos chego ao topo, nessa caminhada vislumbro o passado, o presente, olho o fiel da balança, e posso dizer:
67
A VIDA É BELA, VALE A PENA VIVER!
68
Aos jovens familiares e descendentes Meus caros, Neste prisma de raro brilho e transparência mirem, sigam as pegadas de Ackel e Ássima e no futuro por certo encontrarão o velocino de ouro. O relicário Para construir esse pequeno relicário, pequeno em sua forma, grandioso em realizações, sondei a consciência, atravessei mares e cidades, estradas de ferro e de terra, subi montanhas, passei por guerras, mortes e núpcias, alegrias, perdas, sucessos e vitórias. Nessa gloriosa jornada, colhi pedras, pedrinhas e cavacos. Juntei tudo a mim, guardo tudo com muito amor. Em
síntese,
procurei
dar
autenticidade
expressiva imagem de minha inesquecível família.
69
e
Aziz - 1944
70
João - 1948
71
Maria - 1924
72
José - 1946
73
Nicolau
74
Josefina - 1946
75
Julieta
76
Olga - 1944
77
JosÊ e Zulmira com os filhos: Maria das Graças e Nicolau - 1951
78
Aziz e os filhos Maria Amélia, Ássima, Mário, Fátima e Armando
79
Julieta, Olga, Maria (sentada) e Josefina
Da direita para esquerda: Maria, Judith, Clarice, Julieta, Josefina, JoĂŁo Ronaldo, Nicolau, Fernando e Natalina - 1957
80
Da esquerda para direita Josefina, Julieta, Olga e Maria - 1978
Natalina, Angela e Solange - 1957
81
1919 / 1920 - Praça Central em Manhumirim, depois chamada de Praça Artur Bernardes, e hoje Praça Getúlio Vargas. A família Bracks morava na primeira casa à esquerda.
M BN
82
83
84