CAPÍTULO 2
“EXPERIMENTAÇÕES E INOVAÇÕES NO ENSINO DE ARTE E TECNOLOGIA”
A ARTE DE ENSINAR ARTE E TECNOLOGIA AO ASSUMIR O DESAFIO DO ENSINO de arte e
tecnologia para jovens, o Programa Oi Kabum! vem construindo ao longo dos anos um modo particular de conceber essa proposta. A partir da permanente escuta dos jovens, artistas, acadêmicos e educadores, foram alinhados conceitos e consolidadas metodologias que guiam o fazer do Programa. As Escolas Oi Kabum! possuem como conteúdos programáticos de seus cursos o conhecimento das artes gráficas e digitais em consonância com conteúdos transversais como história da arte, , dimensões do ser e conviver e construção de narrativas (o que chamam de oficina da palavra). Nas quatro unidades escolares são utilizadas linguagens artísticas e midiáticas (computação gráfica, fotografia, design gráfico, vídeo, design de som, webdesign) como meios pelos quais os jovens podem, ao passo que se especializam tecnicamente, ampliar seus conhecimentos sobre arte e cultura. Uma das principais diretrizes do trabalho educativo consiste em conceber a arte escapando do senso comum. A arte é frequentemente entendida como algo que está à parte, separada de nossa existência cotidiana. Ou ainda, como se fosse destinada somente aos apreciadores e confinada a espaços privilegiados como museus e galerias. Para a maioria das pessoas, uma obra de arte é uma escultura, uma pintura ou um desenho autêntico e único, realizados por um grande artista. A tarefa das escolas é transformar essa perspectiva, tão sedimentada no imaginário social. Para isto, a ação dos educadores é norteada pela articulação entre os contextos de vida dos alunos e um panorama mais amplo da História da Arte e de outras áreas de conhecimento, incorporando a tecnologia ao fazer artístico. As propostas educativas vão se alimentando da experimentação estética presente nas incursões diárias
PARA ALÉM DA VISÃO TECNICISTA E DO SENSO COMUM SOBRE ARTE E TECNOLOGIA A concepção de arte da Oi Kabum! incorpora as manifestações e estéticas do cotidiano dos jovens, agregando a cultura popular e a arte marginal às possibilidades produtivas da arte contemporânea. High Tech e Low Tech: o trabalho com a tecnologia não se restringe ao manejo de equipamentos e softwares de ultima geração. A Oi Kabum! propõe refletir e experimentar usos não convencionais da tecnologia, valorizando igualmente a alta tecnologia, como a digital, e aparatos simples, como papel, tesoura e tintas.
da vivência humana, seja mobilizando um novo olhar para uma obra exposta em uma galeria, um produto midiático ou cenas que povoam as cidades. O objetivo é ressaltar o que há de valioso nas coisas cotidianas e desenvolver a sensibilidade e a percepção estética e crítica dos estudantes. Em particular, o que se estimula é uma aproximação e um entendimento mais amplo dos jovens em relação ao tema, de forma a agregar a cultura popular e a arte de periferia às possibilidades produtivas da arte contemporânea. O fazer artístico é trabalhado a partir da valorização do processo, e não apenas dos resultados finais. Isso envolve constante estímulo à criatividade, pesquisa e muita experimentação. Um problema solucionado aqui, outro desafio que surge ali e o conhecimento vai sendo construído com ações impregnadas de reflexões e de significado. O percurso criativo pode ser observado sob a perspectiva do conhecimento gerado. Dessa forma, é estabelecido o elo entre o pensamento e o fazer: a reflexão está contida na práxis artística.
High Tech e Low Tech Outra diretriz do Programa Oi Kabum! consiste em ampliar a noção de tecnologia, concebendo-a para além dos dispositivos e manejos de softwares. O consumo e o emprego da tecnologia têm sido assimilados de forma tão rápida que parece não haver reflexão sobre o impacto de sua utilização. Com isso, surgem restrições para as possibilidades criativas que emergem da tecnologia, como a premência de uso de equipamentos de ponta, por exemplo. Dessa forma, nas Escolas Oi Kabum! busca-se refletir sobre os usos convencionais da tecnologia, sobre a sua relação com a história do pensamento e com a engenhosidade
humana. Os estudantes são provocados a estender as possibilidades de aplicação tecnológica para contextos e cenários não previstos. Afinal, a tecnologia está em tudo. Compreende-se que ela influencia as diversas arenas do fazer humano, entre elas a política, a arte e a economia. A própria criação da escrita pode ser considerada uma invenção tecnológica, pois viabilizou uma nova maneira de compartilhar e registrar informações. E ainda, trouxe novos recursos de expressão para a imaginação e a inventividade humana. Ou seja, é possível produzir grandes obras a partir de procedimentos muito simples, desde que exista uma abertura para a experimentação das mais variadas técnicas, manuais e digitais. O uso de ferramentas e materiais rotineiros, tais como papel, lápis, tesoura, tinta e pincel, podem também garantir resultados estéticos muito interessantes. Nesse sentido, há um cuidado das Escolas para que não haja a valorização excessiva de softwares ou ferramentas tecnológicas. O Programa associa a alta tecnologia (em inglês, high tech, que refere-se à tecnologia considerada de ponta) e as mais recentes inovações tecnológicas ao low tech, que é o uso criativo de tecnologias acessíveis ou a aplicação de qualquer tipo de tecnologia em contextos não previstos inicialmente e que gerem soluções criativas. Mas como equacionar a flexibilidade da proposta educativa com a rigidez imposta pela técnica? É exatamente essa contradição que permite infinitas possibilidades criativas quando a tecnologia é associada à arte, e isso não é de agora. Dos artefatos rudimentares da pré-história à tecnologia digital, o surgimento e a difusão de novas tecnologias e seus entrelaçamentos com a arte sempre promoveram deslocamentos no modo como o homem percebe o mundo. No campo das artes visuais, por exemplo, a invenção dos tubos de tinta, na primeira metade do século XIX, propiciou mudanças significativas no modo como os pintores desenvolviam seu ofício, pois facilitavam o trabalho fora dos ateliês. A mobilidade para pintar ao ar livre fez com que as paisagens se tornassem temas comuns e os artistas passaram a explorar melhor as potencialidades de luzes, cores e movimentos nos diferentes momentos do dia. Essa invenção foi fundamental para que o movimento impressionista pudesse florescer.
É verdade que muitos dos estudantes talvez optem por trabalhar com demandas mais técnicas ao terminar os cursos da Oi Kabum!. Isso não significa que as experiências vivenciadas por eles a partir de processos educativos em arte tenham sido em vão. Mesmo que aparentemente não tenha uma aplicação direta e imediata nos trabalhos profissionais que venham a desenvolver, a formação em arte é bastante significativa para que os jovens desenvolvam habilidades importantes para as relações sociais sociaisque tecem cotidianamente, a postura profissional e seu olhar sobre o mundo. O casamento entre arte e tecnologia se desdobra em combinações entre as artes tradicionais, as artes gráficas e as novas mídias, dilatando as possibilidades criativas e produtivas. O resultado são manifestações culturais singulares e uma ressignificação das práticas sociais de forma positiva na vida dos jovens.
A técnica em função do pensamento Roberto Almeida
Em uma escola de Arte e Tecnologia, que assume formalmente a missão de se configurar como um espaço de formação técnico-profissionalizante, a reflexão sobre a natureza e o papel da técnica assume dimensão importante. No Programa Oi Kabum!, atuamos inspirados no respaldo oferecido pela reflexão do geógrafo brasileiro Milton Santos, entendendo a técnica como “um conjunto de meios instrumentais e sociais com os quais o homem realiza sua vida, produz, e, ao mesmo tempo, cria espaço” (Santos, p. 16, 2004). A técnica, nessa abordagem, diz repeito a um domínio da experiência conectado ao saber e ao fazer humanos. Ou seja, ela é aquilo que medeia e conecta a ciência (conhecimento) à produção de bens e serviços (Unesco, 2011). Por meio dela, os aprendizados deságuam nos processos criativos empreendidos pelos estudantes, conformando discursos, linguagens e os mais variados produtos. Além de se referir à ideia de meio, a técnica existe também como suporte, materializado em objetos tecnológicos (máquinas, ferramentas ou instrumentos) que permitem ao homem transformar e atuar sobre o mundo. No dia a dia das escolas Oi Kabum!, as chamadas tecnologias da informação e da comunicação ocupam um papel central, bem como os demais aparatos técnicos. Contudo, o aprendizado a respeito da operação de tais instrumentos (câmeras, programas de computador, circuitos, etc.), isoladamente, é insuficiente para fomentar o fazer criativo. Há um intervalo muito grande entre possuir uma boa câmera e produzir um bom filme porque a “a técnica não se resume ao equipamento nem à forma de fazer, e ambos devem operar em função do pensamento” (Melo et. al., 2006, p. 42). De fato, como afirma Paulo Freire em Pedagogia da Autonomia, “transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que existe de fundamentalmente humano no exercício educativo: seu caráter formador” (Freire, 1997, p. 33).
Assumir a técnica em função do pensamento significa tratála como motor de reflexão e não apenas como um conjunto de instrumentos voltados para a realização de tarefas pré-formatadas. Nos processos pedagógicos adotados pelas Escolas Oi Kabum!, o aprendizado a respeito dos usos da tecnologia cria condições para que os jovens façam mais do que repetir padrões ou reproduzir usos cristalizados no mercado e nos meios de comunicação tradicional.
“No ensino técnico oferecido pelo Programa Oi Kabum! o fomento à pesquisa e à inovação assume dimensão central.” É por meio da apropriação desses instrumentos, em sala de aula ou nos laboratórios, que os estudantes podem se envolver em uma dinâmica de jogo e experimentação, capaz de testar e reinventar o papel e o potencial expressivo do aparato tecnológico disponível. Os jovens são incentivados a forjar novos produtos novos, a elaborar novas imagens, novas narrativas e discursos, refletindo e reconstruindos possibilidades abertas pela técnica durante o próprio exercício de explorá-la. No ensino técnico oferecido pelo Programa Oi Kabum!, o fomento à pesquisa e
à inovação é um eixo norteador. De fato, pensar e utilizar os instrumentos tecnológicos apenas como suporte para a realização de tarefas é desconsiderar sua própria natureza. Já na primeira metade do século passado, Walter Benjamin (2000) afirmava que a técnica não é neutra: ela é capaz de renovar nossa percepção sobre o mundo e de transformar a experiência que fazemos dele. Pensemos no efeito de câmera lenta. Por meio dele, o espectador consegue enxergar aspectos do movimento humano que são invisíveis a olho nu. Há também o light painting: a luz deixa rastros que apenas o aparato usado pelo fotógrafo acessa, tornando sensíveis aspectos do real que escapam ao nosso olhar. A técnica, dessa forma, permite aos sujeitos desvelar ou construir novas imagens sobre o mundo, dando visibilidade a sentidos que não estariam disponíveis sem o seu intermédio. Assim, ela amplia e transforma a capacidade de percepção humana. À serviço do pensamento, os objetos tecnológicos podem ser apropriados para inventar novos sentidos, para desestabilizar crenças compartilhadas, para colocar em crise aparências vistas como imutáveis. Ampliando nossa capacidade de dizer e perceber o mundo, a técnica permite ao sujeito transformá-lo. Daí, conclui-se que guarda em si forte potencial político e desalienante, já que pode desestabilizar preconceitos e ideias prontas. Mais do que apenas um conjunto de instrumentos utilizados para a realização de procedimentos pré-conformados, em uma lógica fordista, as técnicas servem aos propósitos de pesquisa e exploração do real, em uma dinâmica que permite reinventá-lo e, dessa forma, reinventar e transformar aquele que o experimenta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN,
Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: ADORNO et al. Teoria da Cultura de massa. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 221-254.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997 MELO, Aléxia et al. Metodologia: o Jogo e a Invenção. In: LIMA, Rafaela (org.) Mídias Comunitárias, Juventude e Cidadania. 2ª edição. Belo Horizonte: Autêntica/ Associação Imagem Comunitária, 2006. P. 36 – 65. SANTOS, Milton. A natureza do espaço - técnica e tempo, razão e emoção. 4a edição. São Paulo: Editora da USP, 2004. UNESCO. Protótipo curricular de ensino médio orientado para o trabalho e as demais práticas sociais. Disponível em http://unesdoc. unesco.org/
PROPOSIÇÕES PARA OUTRAS EDUCAÇÕES, PELO PROFESSOR NELSON PRETTO É importante criar oportunidades para dar vazão à criação, à inventividade, à explosão de ideias que emanam dos jovens e a seus turbilhões criativos. Processos formativos não podem perder de vista o mundo do trabalho, mas sem permitir que seja o mercado de trabalho a pautar a criação dos jovens. O espaço escolar não pode estar voltado à reprodução, ao consumo de informações, aos conhecimentos já estabelecidos. A escola tem que ser espaço de criação livre e de crítica, inclusive ao mercado. Ela deve formar cidadãos e não meros reprodutores de conteúdos, levar à realização profissional, mas também existencial. A escola tem que ser mais centrada no caos do que na ordem. É preciso subverter a ideia de que o espaço escolar tem a função de adequar os jovens ao mundo dos adultos, ao universo culto. Cabe à escola dar oportunidade que os
sujeitos se sintam capazes de intervir no mundo, de reinventá-lo. As tecnologias de informação e comunicação – operadas pela juventude de forma impressionante – possibilitam, mesmo a contragosto dos gestores, que as escolas percam seus muros, ampliem seus limites. É fundamental levar para interior da escola a dimensão coletiva e colaborativa das dinâmicas instauradas ao redor do mundo pelos criadores e inventores de tecnologia. O diálogo entre o conhecimento da comunidade escolar local com o universal, através dos meios de tecnológicos, pode promover uma remixagem da escola. O saber local passa a dialogar com o conhecimento instituído e, a partir disso, passa a ser reconstruído, e vice-versa. Instalase círculo virtuoso de produção de culturas e conhecimentos.
Arte, tecnologia e os desafios de ser escola na contemporaneidade COMO A ESCOLA TEM REAGIDO À EMERGÊNCIA DAS TECNOLOGIAS DIGITAIS E DAS REDES TELEMÁTICAS QUE REVOLUCIONARAM A CIRCULAÇÃO DE CONHECIMENTOS E SABERES? NOVAS PRÁTICAS, NOVAS LINGUAGENS, NOVOS TEMPOS, NOVAS FORMAS DE SE RELACIONAR COM A INFORMAÇÃO: TUDO ISSO PARECE EXIGIR QUE A ESCOLA NA CONTEMPORANEIDADE SE ATUALIZE E SE REINVENTE. O PROFESSOR NELSON PRETTO , EM SEU LIVRO UMA ESCOLA SEM/COM FUTURO: EDUCAÇÃO E MULTIMÍDIA , DESTACA ESSES DESAFIOS, AS POSSIBILIDADES E AS POTENCIALIDADES DO USO DAS TECNOLOGIAS NAS ESCOLAS. O PROFESSOR É PARCEIRO DA ESCOLA OI KABUM! DE SALVADOR E FOI CONVIDADO A COMPARTILHAR SUAS PROPOSIÇÕES SOBRE A ESCOLA CONTEMPORÂNEA NESTE LIVRO.
1. PROFESSOR DA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
2. EDITORA
EDUFBA, 2013