MICROCEFALIA
Um diagnóstico, muitos caminhos
Edição 1. Jun/2016
(SOBRE) Vivênc ia
Edição Suenia Azevedo Fotografia Ursula Neumann Carolina de Sá Ilustração da Capa Philipe Palmeira Projeto Gráfico Flávio Sales
Revisão e Texto Amanda Eugênia Carolina de Sá Francielle Palmeira Luiza Bessa Suenia Azevedo Talita Barbosa Tatiana Callado Ursula Neumann
A chegada de uma geração especial
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Saúde & Bem-estar
A microcefalia e os desafios para a medicina
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Por Tatiana Callado
Família
A esperança da adoção Por Luiza Bessa
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Perfil
“A microcefalia me escolheu” Por Suenia Azevedo
Ensaio fotográfico
Geração especial Por Ursula Neumann
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Saúde & Bem-estar
Técnicas de relaxamento ajudam bebês com microcefalia
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Por Amanda Eugência e Carolina de Sá
Direitos
Mães de bebês com microcefalia se unem por apoio
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Por Amanda Eugênia e Carolina de Sá
Direitos
Famílias de bebês com microcefalia possuem direitos por lei
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Por Talita Barbosa
Artigo
Quem pariu Mateus que o balance?
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Por Francielle Palmeira
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A CHEGADA DE UMA
geração especial
Em outubro de 2015, o Brasil assistiu a um aumento no número de casos de bebês com microcefalia. Desde o início das investigações, Pernambuco despontou como o estado com o maior número de casos, com 366 confirmados e quase 2 mil notificados, de acordo com o boletim do Ministério da Saúde de junho de 2016. A relação entre a microcefalia e o zika vírus foi reconhecida pelo Governo brasileiro em novembro, quando o vírus foi identificado em amostras de sangue e tecidos de bebês que nasceram com a anomalia congênita. Em abril, pesquisadores do Centro de Controle e Prevenção de Doenças Transmissíveis dos Estados Unidos confirmaram novamente essa relação. (Sobre) Vivência conta a história de uma geração de crianças acometidas pela microcefalia, uma má-formação congênita caracterizada pela diminuição do tamanho do perímetro cefálico. Crianças que ainda vão aprender a lidar com as peculiaridades de suas próprias mentes. Discutir a (sobre) vivência delas obriga a buscar, também, o mundo que as cerca, a luta de seus familiares, os desafios enfrentados pela medicina, as obrigações do Estado, os problemas ligados à saúde pública. A interação de setores diferentes da sociedade é um mecanismo primordial para a sobrevivência dessas crianças. Além das causas da microcefalia, é necessário discutir questões sociais — a adoção, a recepção, os direitos e a preparação dessas crianças — e médicas, estas abordadas nesta edição através de personagens — tanto especialistas quanto as próprias famílias — , humanizando a chegada de uma geração especial.
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SaĂşde & Bem-estar
A microcefalia e os desafios para a medicina
Como os profissionais da SaĂşde estĂŁo se organizando para enfrentar os desafios da epidemia de microcefalia no Brasil Por Tatiana Callado
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O S U RT O As interrogações eram muitas e pairavam sobre a seguinte questão: O que poderia estar causando esse novo quadro de má-formação nos bebês recém-nascidos?
O Brasil vivencia, desde setembro de 2015, um dos grandes problemas de saúde pública: o aumento do número de casos de microcefalia em recém-nascidos. O surto dessa doença teve início em três hospitais de Pernambuco: no Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), no Hospital Barão de Lucena e no Hospital Agamenon Magalhães. Só no Imip foram registrados 29 casos nos nascidos entre agosto e setembro daquele ano, o que representa um índice muito superior à média anual de casos: 12 por estado. A partir de conversas entre as neuropediatras Ana Van der Linden e sua filha Vanessa Van der Linden, surgiu a suspeita de que não se tratava de uma mera coincidência; na verdade, era o início de uma nova epidemia no País Com as primeiras notificações dessa situação à Secretaria de Saúde de Pernambuco, foi determinado, a partir do dia 27 de outubro, que todos os casos suspeitos de microcefalia do Estado deveriam ser notificados. Essa medida obrigatória serviria para o acompanhamento do surto pela Secretaria Executiva de Vigilância em Saúde de Pernambuco. Paralelo a isso, o Protocolo Clínico e Epidemiológico sobre Microcefalia foi desenvolvido pelos profissionais da Secretaria de Saúde do Estado para buscar esclarecimentos sobre esse fenômeno. O leque de hipóteses abrangia desde as infecções congênitas já conhecidas pela medicina, associadas a doenças como a toxoplasmose, a rubéola e o citomegalovírus, até as novas arboviroses, do vírus da chikungunya e da zika.
Com o aparecimento de novos casos nas outras regiões brasileiras, o Ministério da Saúde convocou, em novembro, uma reunião com profissionais da Saúde, incluindo médicos pernambucanos, para formalizar um protocolo nacional baseado naquele já existente em Pernambuco. Nesse momento, o ministério declarou situação de emergência em saúde pública e recomendou cautela a mulheres que pretendiam engravidar. Estudos desenvolvidos indicam que uma das causas do surto da microcefalia pode ter sido a epidemia da infecção do vírus zika, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti. Esse vírus circula em mais de 22 países e possui o grau 2 de emergência, numa escala de 0 a 3. Na Polinésia Francesa, também atingida pela infecção do zika, entre 2013 e 2014, foram registrados casos de má-formação cerebral em fetos e recém-nascidos. Essa preocupante situação levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a declarar, em fevereiro deste ano, emergência em saúde pública de interesse internacional. Situação que havia sido registrada outras três vezes na história, tendo a última delas sido causada pela epidemia de ebola. Esse ato representa um apelo internacional para buscar financiamentos de novas pesquisas sobre a possível relação do vírus da zika e a microcefalia congênita, além de sua gravidade no desenvolvimento neurológico dos bebês.
Saúde & Bem-estar
“Os desafios para a medicina”
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A contribuição de Pernambuco
A coordenadora de pediatria do IMIP, Mônica Coentro, discursa no evento da visita da OMS e da OPAS no hospital. (Crédito: Ascom Imip)
Um dos hospitais de referência mundial no tratamento de microcefalia, o Imip recebeu a visita da diretora-geral da OMS, Margareth Chan, junto à Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), em fevereiro deste ano, com o objetivo de firmar um acordo de cooperação técnica entre as entidades. Para ajudar no enfrentamento dessa epidemia, o hospital criou o Núcleo Central de Monitoramento e Estudo da Microcefalia, que conta com uma equipe multidisciplinar formada por vários profissionais, que se reúnem para discutir os casos e monitorá-los. São atividades que incluem a parte clínica, a pesquisa, os exames, o suporte psicológico e o centro de reabilitação.
Compondo essa equipe, a coordenadora do setor de pediatria do Imip, Mônica Coentro, ressalta a importante contribuição do Estado de Pernambuco no enfrentamento dessa questão, sobretudo dos hospitais tidos como referência: o Hospital Universitário Oswaldo Cruz e o Imip. Hoje, ela conta que o principal desafio a ser enfrentado é a questão da reabilitação: “Essas crianças farão parte de uma nova geração que precisará ser estimulada, e teremos que ver até que ponto esse potencial vai ser estimulado. Para isso, precisamos de mais centros de reabilitação e de recursos”.
A diretora-geral da OMS, Margareth Chan, em visita especial ao Brasil, acompanha o atendimento de crianças com microcefalia no IMIP. (Crédito: Ascom Imip)
Os profissionais de saúde correm contra o tempo para encontrar respostas sobre as causas e consequências dessa má-formação congênita. Vários trabalhos científicos estão sendo enviados para a Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco (Facepe) em busca de recursos e apoio à pesquisa sobre o acompanhamento dessas crianças. O Imip e outras nove maternidades do Estado participam de um estudo de caso-controle sobre a microcefalia, coordenado pelo Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, pertencente à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Esse mesmo centro, junto ao Laboratório Central de Pernambuco (Lacen-PE), recebe os exames dessas crianças, como os de sorologia, numa demanda muito superior à normalidade.
Até o fechamento desta matéria, no dia 26 de abril deste ano, segundo o Boletim Epidemiológico divulgado pela Secretaria Estadual de Saúde, 334 casos de microcefalia foram confirmados em Pernambuco. Esse número representa, em média, 30% dos casos confirmados em todo o País até o momento. Só no Imip, havia 254 crianças notificadas, das quais 117 receberam o diagnóstico da microcefalia.
Saúde & Bem-estar
“Os desafios para a medicina”
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No Centro de Reabilitação e Medicina Física do IMIP, é feito o acompanhamento de crianças com microcefalia e outras deficiências. (Crédito: Ursula Neumann)
Acompanhamento dos bebês
31,5 cm
Saúde & Bem-estar
“Os desafios para a medicina”
Os recém-nascidos com microcefalia, a princípio, não apresentam tantas complicações, segundo a coordenadora de pediatria Mônica Coentro. Os médicos chegaram a se surpreender ao ver que, de início, as crianças conseguiam mamar e tinham boas condições físicas. Porém, a partir dos dois ou três meses de vida, as dificuldades começam a surgir. Problemas com a deglutição, crises convulsivas, déficit auditivo e visual podem aparecer, demandando apoio de todos os lados e com uma equipe médica multidisciplinar, com fonoaudiólogo, neurologista, gastroenterologista e oftalmologista. O desgaste emocional e físico das mães e familiares é enorme diante de tantos exames que os bebês precisam fazer, antes e depois de concluído o diagnóstico. Durante a investigação dos casos, a primeira coisa a ser feita é medir o perímetro encefálico do recém-nascido. Com o aumento súbito do número de casos notificados com microcefalia, os parâmetros utilizados pelos médicos foram reavaliados. “Antes, o ponto de corte era de 33 cm, mas muitas crianças nasciam normais com esse perímetro encefálico. Isso gerou um aumento exagerado de notificações, causando transtornos para muitas famílias. Com novos estudos analisados, seguimos a orientação da OMS em utilizar o perímetro encefálico de 31,9 cm, para meninos, e de 31,5 cm, para meninas”, explica a coordenadora de pediatra do Imip.
Com as alterações tomográficas compatíveis com os resultados dos exames laboratoriais, é possível confirmar o diagnóstico da microcefalia. Porém, a grande preocupação dos médicos e dos pesquisadores é a falta de kits de sorologia, capazes de confirmar se o paciente foi realmente contaminado pelo zika vírus. São exames caros, de manuseio complexo e de treinamento apurado. Sem as condições necessárias para produzir esse tipo de exame em escala nacional, fica mais difícil de confirmar a relação direta entre o zika vírus e a síndrome congênita dessa nova geração de crianças. Outro fator agravante é que a infecção por zika vírus é muito leve, com quase 80% dos casos assintomáticos. Os pacientes que tiveram alguns sintomas alegaram febre baixa e poucas manchas vermelhas no corpo. Porém, em relação às gestantes, os danos podem ser mais severos para seus bebês, que correm o risco de desenvolver a síndrome congênita da doença. As dúvidas são inúmeras: será que todas as gestantes infectadas pelo zika vírus vão gerar crianças com microcefalia? Até quando esse vírus circula no corpo da mulher? Como a placenta permite a passagem do vírus para o feto? E como se explica o caso dos gêmeos pernambucanos, em que um deles nasceu com a microcefalia e o outro não? Questionamentos cruciais que a ciência precisa buscar responder.
Na investigação dos novos casos, notou-se que é a partir do resultado da tomografia computadorizada dos recém-nascidos que se pode chegar ao diagnóstico. Através desse exame, os médicos descobriram que se trata de uma epidemia com um novo padrão de microcefalia. De acordo com Mônica, os achados tomográficos são totalmente novos diante do que já foi visto na medicina, porque foram identificados sinais como “alterações de cerebelo, diminuição do córtex cerebral, acomodação e aumento de ventrículo”.
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Reabilitação: A luta de cada dia
A pediatra Danielle Cruz ressalta que a microcefalia “é uma sequela que vai gerar encargos sociais grandes para o país, mas para as famílias, serão marcas muito mais graves”. (Crédito: Ursula Neumann)
Saúde & Bem-estar
“Os desafios para a medicina”
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Saúde & Bem-estar
“Os desafios para a medicina”
Mesmo com tantas questões ainda sem respostas, essa nova geração de bebês com a má-formação congênita é uma realidade. Eles vão crescer e precisam de cuidados especiais desde os primeiros momentos de vida. A coordenadora de pediatria do Imip, Mônica Coentro, explica que a estimulação precoce é fundamental para o desenvolvimento dessas crianças. Para isso, é preciso recursos, infraestrutura e equipe de profissionais da Saúde qualificados.
Com mais de cem pacientes recebendo acompanhamento médico, a pediatra conta que o nível de gravidade dos casos varia bastante. São necessários estudos científicos para explicar os diferentes casos de comprometimento do cérebro dos bebês. A ultrassonografia fetal realizada entre a 32° e 35° semana de gestação pode avaliar algumas características baseadas no perímetro encefálico do feto; porém, seus achados não são suficientes para determinar o nível do desenvolvimento do bebê.
De início, muitas crianças com microcefalia foram encaminhadas para a Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) do Recife, de acordo com a orientação da Secretaria de Saúde. Como hospital de referência no enfrentamento da microcefalia, o Imip adaptou seu Centro de Reabilitação para dar suporte especial a essas crianças. A pediatra Danielle Di Cavalcanti Cruz é a responsável pelo atendimento exclusivo dos casos que ainda estão sendo investigados e daqueles já confirmados. Ela conta com o apoio de uma equipe multiprofissional, com neurologistas, terapeutas ocupacionais e psicólogos, para ajudar no desenvolvimento neuropsicomotor das crianças.
Para lidar com a angústia causada pela falta de informações sobre o futuro, os cuidados psicológicos são fundamentais para os familiares, sobretudo para as mães. Esse suporte é ainda mais necessário quando se diagnostica a microcefalia no período pré-natal. Mesmo com a oferta desse serviço tanto no IMIP quanto no Hospital Oswaldo Cruz, há certa rejeição em aceitar ajuda. “Muitas mães acham que não precisam de apoio ou então não entendem a gravidade do problema. São formas de negação ou desconhecimento que criam uma barreira para receber esse tipo de suporte”, lamenta Mônica.
Do ponto de vista da evolução epidemiológica, Danielle explica que o surto de microcefalia se iniciou, em agosto de 2015, tendo seu pico entre novembro e dezembro, e, a partir de janeiro de 2016, observou-se o início da queda do número de casos, revelando uma nítida desaceleração das notificações. Ela complementa que o trabalho dos médicos “teve início de trás para frente” e que, na verdade, eles estão “avaliando uma grave sequela de um surto que já aconteceu”.
Além de suporte psicológico, a reabilitação dessas crianças vai muito além de exames, tratamentos e remédios. Para uma estimulação saudável, parece ser unânime a importância dos cuidados paliativos nesse contexto. “Não sou a favor de intervenções acima do que seja benéfico para o paciente, é aí que entra a atuação dos cuidados paliativos que, na medicina e especialmente na pediatria, é muito nova”, comenta Danielle. A coordenadora de pediatria também reforça esse pensamento e completa dizendo que “Através dos cuidados paliativos, é possível oferecer uma boa qualidade de vida a essas crianças”.
Através dos cuidados paliativos, é possível oferecer uma boa qualidade de vida a essas crianças. Mônica Coentro
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Crédito: Ursula Neumann
Família
A esperança da ado Por Luiza Bessa
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Crédito: Ursula Neumann
A E S P E R A N Ç A D A A D O Ç
N A Ã O
Bebês com microcefalia esperam no processo adotivo a chance de encontrar uma nova família e driblar o abandono
O desconhecido, muitas vezes, pode parecer assustador. Lidar com o diferente também. Foi assim, numa mistura de medo e desamparo, que muitas famílias ouviram pela primeira vez a palavra microcefalia. O surto de zika e o aumento de casos de bebês com a anomalia congênita pegou muita gente de surpresa. A desinformação, o temor pelo que não se conhece e o desafio de lidar com uma limitação fez muitas famílias tomarem decisões difíceis, como a doação de crianças para adoção, por exemplo. Para pais e mães, a escolha significa um caminho sem volta. Para os bebês, mais um desafio num mundo que ainda não sabe como vai lidar com todas as suas especificidades. Além das limitações impostas pela microcefalia em seus mais variados graus, a falta de uma família também pode se fazer presente. Maria Victória, de apenas oito meses, viveu na pele esta experiência. Encaminhada para um lar adotivo no Recife quando tinha apenas dois meses de vida, ela está entre os mais de 1.900 casos de microcefalia notificados em Pernambuco, de acordo com o Ministério da Saúde. O destino, felizmente, reservou à menina poucos meses de espera por uma família.
Família
“A esperança da adoção”
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Crédito: Ursula Neumann
Em março deste ano, os caminhos de Maria Victória e Kely Romualdo se cruzaram. Kely, que já era mãe de um menino, Pedro, de 14 anos, havia dado entrada no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) em 2015. Na época, ela conta que tinha o desejo de ter outro filho, mas a preferência era por uma menina, recém-nascida, com doenças curáveis, de preferência.
“Um dia, por conta própria, eu resolvi visitar o Lar Rejane Marques. Na primeira vez que fui, ela não estava lá, mas me falaram que tinha uma criança com microcefalia. No outro dia, eu voltei com meu marido e foi amor à primeira vista.”
Família
“A esperança da adoção”
Do primeiro encontro até ter a criança em sua casa, passaram-se dois meses. Há cerca de 30 dias, Maria Victória passou a viver no município do Paulista, na Região Metropolitana do Recife, junto à mãe, ao irmão, Pedro, e ao pai, Josimar Pereira, de 57 anos. O pai conta que a menina já é a queridinha da família. “No começo, o irmão teve um pouco de ciúmes, mas passou e agora eles já se amam muito”, relata entre risadas. O dia a dia da família mudou bastante desde a chegada do bebê, e a mãe faz questão de comparar a rotina com a de uma outra família qualquer. Nas quartas-feiras, eles vão até a Policlínica Lessa de Andrade, na Zona Norte do Recife, para realizar um acompanhamento com fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional. Nas quintas, a consulta é no Hospital Altino Ventura, na área central da cidade, com terapia visual e fisioterapia para estimular o bebê.
Kely, que é dona de casa, dedica a maior parte do seu tempo ao cuidado da filha. Já Josimar, que trabalha na Receita Federal, contou com a ajuda dos chefes para ser liberado duas vezes por semana para acompanhar a esposa e a filha nas consultas. Todo o carinho e cuidado já vêm mostrando resultados. Sorridentes, os pais contam que já reconhecem o desenvolvimento de Victória, que não apresenta mais convulsões e já demonstra sinais de compreensão de sons e imagens.
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Crédito: Ursula Neumann
Na contramão das estatísticas
A história de Maria Victória vai na contramão do histórico de adoção no País. De acordo com o Cadastro Nacional de Adoção, no Brasil, existem 4.987 crianças à espera de um novo lar. O número de interessados em adotar é muito maior: 35.651 estão cadastrados no CNA.
Diante de uma suposta procura muito maior do que a de crianças e adolescentes esperando um lar, fica o questionamento: por que tantos ainda esperam na fila da adoção? A resposta pode ser encontrada nas muitas exigências feitas por parte das famílias. A maioria dos interessados desejam crianças novas, de pele branca e saudáveis.
A predileção por tais características lembra o desejo inicial de Kely e de tantos outros pelo País: uma menina recém-nascida, com doenças curáveis. A esperança dos que esperam, então, fica a cargo do destino, que pode ser cruel com muitos, mas também é capaz de desfazer preconceitos e surpreender a vida de quem tanto espera por um recomeço.
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“A esperança da adoção”
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A microcefalia
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Perfil
a me escolheu Por Suenia Azevedo
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CrĂŠdito: Ursula Neumann
Fã de Raul Seixas, Danielle Di Cavalcanti dedica, agora, sua rotina aos cuidados de crianças com microcefalia.
As oito tatuagens de Danielle Di Cavalcanti, pediatra do Centro de Reabilitação Infantil do Instituto Materno Infantil de Pernambuco (Imip), surpreendem à primeira vista. Diferente da figura médica tradicional, ela quebra toda a formalidade de uma relação entre médico e paciente com sua espontaneidade ao decorrer da conversa. “Na faculdade, me tinham como alternativa demais, e minhas tatuagens contribuíram para isso. Para eles, eu era diferente por ser tatuada e espontânea”, conta rindo. A decoração ainda inacabada de seu consultório, com objetos místicos e um divã, diz muito sobre quem é Danielle sem a bata e grande fã de Raul Seixas. Formada no curso de Medicina pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no ano de 2012, fez antes Educação Física, Enfermagem e Farmácia. Desistiu de todos. “Depois de tanto desistir dos cursos, vi que o que eu realmente queria era ser médica. Minha paixão era pesquisar e diagnosticar. E tenho me dedicado a isso”, revela Danielle, que dispensa ser chamada de doutora. Com 35 anos, ela já deu aulas em faculdade de Medicina e faz mestrado na área de Cuidados Paliativos.
Em suas consultas, Danielle escolheu proporcionar momentos aconchegantes para as mães e os bebês, já tão sofridos pela realidade da microcefalia. Ao invés de uma maca e cadeira para o atendimento, um divã. Ela costuma pegar os bebês no colo de forma que haja uma maior conexão entre ela e o paciente, apaga as luzes e coloca uma música para acalmá-los. Optou por dar à sua sala um toque pessoal: na mesa ao lado da sua, pôs uma pedra do Himalaia. “Ainda quero deixar mais a minha cara. A pedra do Himalaia é importante, já que equilibra todas as energias daqui, que é um ambiente pesado. Quero comprar algumas pedras para purificar o peso que todo o meu trabalho traz.” Para ajudar mais os seus pequenos pacientes, ela explica que pretende aprender a técnica do shantala, arte de fazer massagem nos bebês, para que eles fiquem menos estressados. “Escolhi todo esse método para o meu atendimento porque não quero uma mesa que me separe da família. Quero tudo da forma mais natural e aconchegante possível, assim como o tratamento, que pretendo focar em remédios homeopáticos”, explica.
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“A microcefalia me escolheu”
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Crédito: Ursula Neumann
“É difícil para a mulher trabalhar quando sua criança é tão pequena e especial, além da questão da amamentação, por exemplo. Não é fácil lidar com uma criança que não está dentro dos padrões da sociedade.”
Ainda segundo Danielle, a microcefalia por zika vírus trará grandes encargos ao País porque reflete a realidade social do Brasil, sendo então um problema muito maior e até básico, ocasionado, em sua maioria, nas famílias pobres devido à falta de saneamento. “Eu converso com meus pacientes porque sei que, às vezes, quando o pai não está aqui é porque está no trabalho. A questão é bem machista. É difícil para a mulher trabalhar quando sua criança é tão pequena e especial, além da questão da amamentação, por exemplo. Não é fácil lidar com uma criança que não está dentro dos padrões da sociedade”, explica.
A difícil realidade social de seus pacientes a fez desempenhar mais do que o papel de médica. Danielle faz questão de entender como “está a vida dela”, questionando sempre sobre a família, onde está o pai da criança ou por que ele não foi à consulta, por exemplo. “Sempre faço isso, já que entendo que o relacionamento é prejudicado pela rotina pesada das mães nos hospitais.” Para ela, o papel da mulher é afetado no relacionamento afetivo e sexual, o que leva a relação de muitos casais a não aguentar todo esse contexto.
Danielle acredita que a gestação de um ser com microcefalia não pode mais ser considerada passível de aborto. Sendo a doença diagnosticada tardiamente, o procedimento é considerado, por ela, quase como uma eutanásia. “O aborto deve acontecer com o feto com menos de 500 gramas, antes de 22 semanas se houver má-formações incompatíveis com a vida. Sei que o corpo é da mulher, mas ali é uma vida. É algo como pedir pra desligar os aparelhos de alguém que está quase morrendo em uma UTI. Não sei até que ponto uma mãe pobre teria acesso a isso”, explica a médica.
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“A microcefalia me escolheu”
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CrĂŠdito: Ursula Neumann
“ ” Tatuei essas faces porque de um lado, sou eu rindo por fora, apoiando, e, do outro, como estou por dentro. Aos pedaços.
A pediatra é casada e não quer ter filhos. Além do ambiente hospitalar, Danielle é aficionada por Raul Seixas e não dispensa a malhação. E todo seu amor pelo cantor foi marcado na pele. Duas de suas oito tatuagens são frases de Raul. “Minha próxima tatuagem será outra de Raul Seixas”, conta. Sobre a possibilidade de suas tatuagens interferirem na sua vida profissional, ela acredita que não, mas conta que sempre há comentários sobre, já que é difícil um médico, profissão formal, ter tatuagens em partes expostas do corpo. “ As pessoas falam e brincam que vou virar gibi ou que tenho um futuro tão brilhante, mas sou alternativa demais. Se me perguntam quantas tenho, quando quero que fique em número ímpar, digo sete, quando não, revelo sobre as oito mesmo”, brinca.
A borboleta tatuada nas costas é tida como símbolo de liberdade, a primeira a ser feita assim que se formou. A flor-de-lótus representa um elemento que, mesmo diante das adversidades, consegue renascer. Ainda tem tatuadas uma bromélia e uma hamsa para afastar as energias ruins, além de outros dois desenhos. No antebraço, a que mais chama a atenção: duas faces dispostas de forma contrária, sorrindo e chorando. “Muitas vezes estamos, aqui, diante do sofrimento de uma mãe nessa gravidez complicada porque ela idealiza um filho, e ele vem como ela não imagina. Além disso, elas veem em mim uma força em meio a essa rotina pesada. Tatuei essas faces porque, de um lado, sou eu rindo por fora, apoiando, e, do outro, como estou por dentro. Aos pedaços.”
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CrĂŠdito: Ursula Neumann
A relação com a microcefalia A rotina de Danielle tornou-se bastante intensa desde o surto da doença em Pernambuco, ocorrido em outubro de 2015. “Eu sempre digo que foi a microcefalia que me escolheu, eu não a escolhi. Tudo aconteceu de maneira muito fugaz”, afirma. E o seu encontro com a doença foi um grande susto. Ao estranhar o fato de que, em apenas uma semana, cinco crianças apresentaram um quadro com o perímetro cefálico, medida da cabeça, menor do que o normal, Danielle suspeitou que algo não estava certo. “Até esse momento, a microcefalia era diferente de todas as outras já vistas. Quando contatei duas outras médicas, já somávamos 50 pacientes”, acrescenta. Ela e as outras médicas, que também acompanhavam o surto, avisaram em reunião com o secretário de Saúde do Estado de Pernambuco, José Iran Costa Júnior, os vários casos de microcefalia que estavam recebendo em seus consultórios. Em decorrência disso, o Ministério da Saúde fez o alerta nacional em novembro de 2015 e, em fevereiro deste ano, a Organização Mundial da Saúde fez o alerta mundial. “Até então já havia tido outros pacientes com microcefalia que se encaixavam em outro tipo. Mas, com o rápido aumento do número de crianças e as poucas condições no atendimento, tivemos que aumentar o tamanho do perímetro cefálico”, complementa. A essa altura, ela e outros médicos atendiam, diariamente, cerca de 30 crianças. Hoje, o número de casos já diminuiu, e o perfil da doença já está melhor definido.
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G Ç E C
E R A Ã O S P E I A L
A bebê Isabella Victória, de sete meses, possui microcefalia causada pelo zika vírus e é paciente do Centro de Reabilitação do Instituto Materno Infantil de Pernambuco (Imip). Sua mãe, Fernanda Maria, a traz regularmente para as consultas, costumando passar o dia inteiro no hospital. Em fotos, Fernanda Maria e Isabella Victória em atividades transversais recorrentes de crianças com microcefalia: idas rotineiras ao hospital, quando sua condição social as permite.
Ensaio Fotográfico
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Crédito: Ursula Neumann
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CrĂŠdito: Ursula Neumann
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Crédito: Ursula Neumann
Ensaio Fotográfico
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Ensaio Fotográfico
“Geração Especial”
CrĂŠdito: Ursula Neumann
Crédito: Espaço Ser Mãe
Saúde & Bem-estar
Técnicas de relaxamento ajudam bebês com microcefalia A enfermeira Rosely Fontoura, 31 anos, sensibilizou-se com o aumento dos casos de microcefalia em Pernambuco e decidiu ajudar as mães e os bebês com oficinas gratuitas de massagem e wrap sling.
Por Amanda Eugênia e Carolina de Sá
Comovida com o rápido aumento do número de casos de crianças nascendo com microcefalia em Pernambuco, a enfermeira obstetra Rosely Fontoura, 31, decidiu que precisava ajudar as mães e os bebês com má -formação de alguma forma. Como não tinha condições de auxiliá-los financeiramente, ela pensou em utilizar a própria experiência para criar o Projeto Acolher e oferecer uma oficina gratuita da massagem indiana conhecida como shantala, banho de ofurô e wrap sling, técnica de amarração para manter a criança próxima à mãe. “Observamos a necessidade de acolhimento dessas mães, de fornecer orientações para que elas pudessem propor um desenvolvimento mais saudável para esses bebês, mais feliz. Eu percebi que poderia ajudar com o meu conhecimento”, relembra. A enfermeira é especialista nas três técnicas e trabalha dando as mesmas aulas no Espaço Ser Mãe, no bairro da Madalena. “Eu já tenho o Espaço Ser Mãe há três anos e trabalho como enfermeira obstetra, acompanhando partos e orientando as mulheres do período de gestação até o desenvolvimento do bebê nos seus dois primeiros anos de vida. O trabalho que eu faço no Espaço Ser Mãe sempre foi um trabalho pago, cursos pagos por pessoas das classes A e B”, explica.
Para conseguir os itens necessários e viabilizar a primeira oficina do Projeto Acolher, em março de 2016, ela entrou em contato com empresas parceiras do curso e arrecadou banheiras, tecidos para confeccionar os carregadores de bebês, materiais de higiene e brinquedos. “A união das empresas fez com que a gente conseguisse, além de ensinar as técnicas de massagem a essas mães, fazer com que elas pudessem levar os materiais para casa e aplicar as técnicas diariamente”, aponta. Os bebês com microcefalia costumam ser mais agitados do que os outros. As práticas ensinadas pela enfermeira proporcionam relaxamento e, sobretudo, ajudam no fortalecimento do vínculo entre as mães e os filhos. “A shantala atua no desenvolvimento neuropsicomotor da criança, trabalha primeiramente um maior vínculo entre mãe e bebê, uma afinidade maior. O contato do óleo com o corpo do bebê vai ajudar no aquecimento, na ativação da circulação, no aumento da imunidade e auxiliar a produção de endorfina, hormônio do bem-estar e da felicidade. A massagem também atua na diminuição de cortisol, hormônio do estresse, e que os bebês em geral produzem muito no início, porque é tudo muito novo, e os que tem microcefalia são muito mais irritadiços”, pontuou.
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Crédito: Espaço Ser Mãe
Durante o banho de ofurô, as crianças passam cerca de dez a quinze minutos imersas em água quente. “O banho de ofurô tem o benefício de prevenir e aliviar as cólicas, também favorece a tranquilidade, liberando endorfina e serotonina, e ajuda a melhorar o sono porque lembra o tempo em que o bebê estava no útero”, explica.
Na terceira parte da oficina, as mães recebem instruções para utilizar o wrap sling. A amarração é um tipo de carregador de bebê feito com tecido que abriga a criança no corpo da mãe de uma forma que ela fique com as mãos livres. “Todos os bebês, com microcefalia ou não, têm uma necessidade muito grande de estar em contato com a mãe nos primeiros meses. O wrap sling favorece a amamentação, o alívio de cólicas e refluxo. A criança fica tranquila ouvindo a batidinha do coração da mãe”, explica. Danielle Santos ficou sabendo da iniciativa pelas redes sociais e é uma das 85 mães que participaram da primeira edição do projeto. Ela segue praticando diariamente as técnicas aprendidas com a enfermeira e notou melhoras no comportamento de Ruan Pedro, de 5 meses. “Ele era muito agitado quando nasceu, só fazia chorar. Inicialmente, a médica passou Diazepam, ele tomava 1 ml toda noite, mas não estava dando jeito. Aí teve a oficina, eu comecei a fazer todo final de tarde, e isso foi acalmando ele, a doutora mudou a medicação para Rivotril e chegou a ponto de diminuir. Hoje ele é uma criança bem mais calma do que era antes”, comemora. Para Rosely, que já atuou anteriormente como voluntária, acolhendo gestantes na maternidade Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), no bairro da Encruzilhada, na zona norte do Recife, a maior recompensa é ver que as práticas ensinadas por ela trazem algum alívio para as mães. “Me sinto muito feliz em poder ajudar, ver o sorriso no rosto de cada mãe, o relaxamento de cada bebê. Eu recebo muitos relatos de o quanto o bebê mudou depois de elas inserirem essas técnicas na rotina, bebês que estão dormindo melhor, que estão chorando menos”, conta. O próximo passo do Projeto Acolher é oferecer uma oficina para auxiliar as mães na introdução alimentar dos bebês. “Vamos continuar enquanto pudermos acolher esses bebês e as mães. A maternidade já não é fácil, e ser mãe de um bebê especial é bem mais difícil, mas a gente percebe que há muito amor, muita persistência”, completa.
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“Técnicas de relaxamento”
Crédito: Carolina de Sá
Direitos
Mães de bebês com microcefalia se unem por apoio Com a formação da União de Mães de Anjos, mães de bebês com microcefalia encontram força umas nas outras para seguir lutando por melhorias na qualidade de vida de seus filhos.
Por Amanda Eugênia e Carolina de Sá
Crédito: Carolina de Sá
As mães de filhos com microcefalia contam com a ajuda da União de Mães de Anjos (UMA) para lidar com várias questões que chegam junto com o diagnóstico da má-formação. O grupo, que foi formado em dezembro de 2015, mobiliza-se para buscar apoio para as mães dessas crianças, seja psicológico, legal ou até mesmo doações. De acordo com Germana Soares, presidente da UMA, a criação do grupo a ajudou muito no processo de aceitação da condição de seu filho, que tem microcefalia causada pelo zika vírus, e na forma de enfrentar as dificuldades desencadeadas por isso. “Antes de entrar no grupo, eu estava em um cenário de solidão, de tristeza, de medo, de angústia, aquela questão do ‘por que eu?’. O grupo foi um divisor de águas na minha vida, o futuro, a fé, tudo isso”, pontuou. Germana explica que, quando a UMA foi criada, no dia 22 de dezembro de 2015, no Hospital Osvaldo Cruz, eram oito mães participando, buscando apoio uma na outra. Hoje, o grupo conta com 296 mães, divididas entre as que moram na capital e as que moram no interior. “O grupo surgiu no Hospital Osvaldo Cruz, na fila do exame de eletroencefalograma. Lá, conheci a Gleyse, que hoje é a vice-presidente do grupo. Trocamos contatos e resolvemos formar um grupo com as mães que a gente conhecia. De terapia em terapia, hospital em hospital, a gente foi conhecendo outras mães”, contou.
Jaqueline Vieira, 25, é umas das dezenas de mães que participam da UMA. Ela conheceu Germana, em dezembro de 2015, em um mutirão voltado para os microcéfalos realizado pela Fundação Altino Ventura, mas as duas não se identificaram imediatamente porque Jaqueline pensou que o filho de Germana não tinha microcefalia como seu bebê Daniel. No início deste ano, foi quando ela conheceu outra mãe, Gleyse, e recebeu dela o convite para integrar a união de mães e o grupo no WhatsApp. “No mês de janeiro, eu conheci Gleyse, aí ela me chamou para fazer parte da UMA.” Para Jaqueline, a sensação de pertencimento, de estar em um grupo com outras mulheres que passam pelas mesmas coisas que ela com seu bebê, foi uma surpresa muito boa. “É uma relação de irmãs, é como se fosse uma família mesmo”, explica.
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ATUAÇÃO - Como parte da militância do grupo, no dia 13 de abril de 2016, a UMA, em conjunto com a Aliança de Mães e Famílias Raras (Amar), foi à Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), na região central do Recife, para levar uma petição visando a melhoria nas condições em que as mães de crianças com necessidades especiais enfrentam, principalmente as mães de microcéfalos. As principais queixas levantadas pelas mães e pelas ONGs eram referentes aos tratamentos dispensados a elas e a seus filhos e nas dificuldades enfrentadas para conseguir dar entrada no Benefício da Prestação Continuada (BPC), no Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). As mães também apontaram dificuldades no momento de conseguir transporte para levar os filhos às consultas e aos tratamentos, além da ausência de equipes adequadas para o atendimento dessas crianças no interior do Estado. Durante a sua fala, Germana disse que muitas mães que moram no interior vêm para o Recife e têm que sair de casa às 3h da manhã, enfrentam horas na estrada em busca de consultas para seus filhos e que, mesmo com esse sacrifício, muitas vezes não tinham sequer um carro da Prefeitura para ajudá-las a cumprir esses compromissos. Germana também contou o caso de uma mãe que não pôde participar de um mutirão para seu filho por não ter tido como chegar ao Recife. “Doeu quando ouvi o relato de que, muitas vezes, o carro que a trazia do interior, simplesmente não passava para buscá-la e não avisava. Ela ficava plantada com o filho todo arrumado para vir ao Recife, às três da manhã, esperando”, afirmou. Além disso, ela criticou a falta de clareza nos casos de descarte da hipótese de microcefalia, uma vez que as mães não sabem exatamente qual é o critério utilizado. Ela ouviu relatos indicando que não houve exames mais aprofundados das crianças, tendo como base apenas o perímetro encefálico delas. Ainda durante a sua fala, Germana destacou que as mães não enfrentam apenas dificuldades para conseguir o atendimento médico para os seus filhos. “Muitas mães são abandonadas pelos maridos, têm que sair do seu emprego para poder cuidar do filho”, explicou.
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“Mães de bebês”
S A I B A M A I S Pleito das mães: • Reconhecimento da condição das mães como cuidadoras através da criação da Lei do Cuidador. • Otimização e aceleramento do processo de aquisição do Benefício de Prestação Continuada. • Implantação de atendimento multidisciplinar nas UPAs. • Implantação de atendimento multidisciplinar no interior do Estado. • Prioridade no acesso às vacinas disponibilizadas pelos Centros de Referência Imunobiológicos Especiais (Cries). • Aceleração da entrega do resultado de exames às famílias. • Clareza no diagnóstico de casos de microcefalia descartados. • Facilidade na obtenção de remédios anticonvulsivantes. • Melhoria na assistência pré-natal. • Acompanhamento psicológico e psiquiátrico para pais de crianças com doenças raras. • Ampliação do quadro de especialistas nos hospitais públicos. • Ampliação na quantidade de vagas para atendimentos multidisciplinares. • Clareza da existência de verba para o enfrentamento da crise de microcefalia.
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Direitos
Família de bebês com microcefalia possui direitos garantidos por lei Baixa renda, longos deslocamentos e falta de apoio familiar aumentam dificuldades das mães de bebês com microcefalia. Por Talita Barbosa
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Foto: Arquivo pessoal
[...]O amor dele me enche de coragem, e eu vejo meu filho como uma bênção na minha vida. O resto a gente vai ajeitando
‘’Que criança feia, parece um ET.’’ Para Milene Ferreira, mãe de Davi, frases como essa, que ela afirma ouvir costumeiramente, doem mais do que a rotina de extremo esforço e privações. O terceiro filho dela foi diagnosticado com microcefalia ainda na maternidade, logo após o nascimento. Hoje, com sete meses de vida, o pequeno sorri, beija e abraça a mãe ‘’O dia todinho, é uma alegria que só vendo’’. Milene vive em um morro em Nova Descoberta, zona norte do Recife. De segunda a quinta, ela enfrenta uma verdadeira batalha pelo filho: vai até o Imip, a AACD, a Fundação Altino Ventura e a Políclinica Lessa de Andrade, locais onde bebês com a má-formação recebem tratamento. São inúmeros ônibus por dia, 105 degraus de escada só para sair de casa, tudo isso com Davi no colo. Milene está desempregada, divorciou-se do marido após uma agressão reincidente e hoje vive com os três filhos na cozinha da casa dos pais, compartilhada com mais seis pessoas. “A gente vai aonde precisa ir. O amor dele me enche de coragem e eu vejo meu filho como uma bênção na minha vida. O resto a gente vai ajeitando’’, sentencia. Protagonistas de um drama nacional, as mães de crianças com microcefalia passam a viver para os filhos de forma praticamente exclusiva, em busca de novos cuidados e descobertas da medicina que ajudem na saúde e no desenvolvimento dos filhos. Assim como Milene, a maior parte delas são de baixa renda, de acordo com um levantamento realizado pela Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude de Pernambuco. O estudo mostra que das 1.203 notificações de suspeitas de microcefalia, 636 envolviam mães inscritas no CadÚnico, cadastro criado para que pessoas de baixa renda possam ter acesso a políticas públicas de distribuição de renda.
Desse total, 77% estão na linha de extrema pobreza, o que significa possuir uma renda per capita de até R$ 47,00. Os dados apontam ainda que a maioria das mulheres que tiveram filhos com a má-formação vive em situações precárias, em locais onde não há saneamento básico e o fornecimento de água é escasso. Conforme o exemplo de Milene ratifica, os deslocamentos são outro fator que dificulta a vida dessas famílias. Mães que vêm do interior do Estado ou residem em bairros periféricos da Região Metropolitana precisam enfrentar longos e onerosos trajetos em busca de tratamento para os bebês. O casal Nicole de Melo (22) e Paulo Portela (21) desembolsa semanalmente, pelo menos, R$ 250,00 apenas com transporte para levar a filha com microcefalia até o Recife, em busca do tratamento oferecido na AACD e no Imip. Eles moram na cidade de Surubim, localizada no Agreste do Estado, a cerca de 132 km da capital pernambucana. Desempregados, ambos precisaram largar a faculdade para cuidar da menina. “Foi surpresa demais, a gente nem sabia o que era isso. Minha mulher teve umas manchinhas quando estava grávida, mas pensávamos que não era nada. No quinto mês, veio a notícia de que a Helena nasceria com microcefalia. “Aumentaram as despesas com carro, alimentação, remédios, além dos gastos normais com um recém-nascido. Vivo de bicos, tenho problemas financeiros e sei que agora o futuro da gente vai ser de muita luta’’, conta Paulo, que trancou o curso de História na UFPE para cuidar da filha. Como exemplifica a história dos pais de Helena, essas crianças precisam de cuidados especiais e de quase todo o tempo deles, que, muitas vezes, têm de abdicar do emprego. Tendo em vista que os bebês acometidos pela má-formação precisarão de atendimentos especiais por um período indeterminado, muitas famílias ficarão desamparadas e não poderão prestar a assistência devida a seus filhos...
Direitos
“Direitos garantidos por lei”
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Foto: Arquivo pessoal
De acordo com o Ministério de Desenvolvimento Social (MDS), famílias de bebês diagnosticados com microcefalia de todo o Brasil terão direito a receber um salário mínimo mensal, como um tipo de aposentaria, desde que a renda mensal familiar seja de até R$ 220,00 — o que equivale a um quarto do salário mínimo — por pessoa. Chamado de (BPC) Benefício de Prestação Continuada, esse complemento oferecido às famílias já é previsto no País para pessoas com 65 anos ou mais e pessoas deficientes de qualquer idade, “com impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, e que comprovem não possuir meios para prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família”. Atualmente, o BPC contempla cerca de 4,5 milhões de pessoas. Em nota, o MDS divulga que também está prevista a inclusão dessas famílias em outros programas sociais, “especialmente as que apresentam sinais de maior vulnerabilidade e risco social”.
As famílias que necessitam solicitar o auxílio devem procurar o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Durante a realização do cadastro, é feita uma avaliação médica e social, que visa comprovar a limitação causada pelo quadro e a comprovação de renda insuficiente. No caso das crianças com microcefalia, a quantia é paga ao responsável pela criança, geralmente um dos pais. Se o menor de idade não tiver um responsável legal, um juiz deverá determinar quem receberá os recursos Apesar do direito garantido, muitas mães de bebês com microcefalia não conseguem a ajuda prometida. A burocracia e a demora na perícia médica são alguns dos entraves para a concessão do benefício. Algumas mães precisam aguardar cerca de quatro meses para conseguir o agendamento da perícia. Tempo demais para quem está precisando tanto, como a cabeleireira Carla Bernardo. ‘’No meu caso, eles negaram porque avaliaram também a renda do pai dele, mas somos separados. Como ele ganha R$ 900,00 fazendo a conta, dá R$ 300,00 por pessoa’’.
Caso o benefício seja negado ou demore mais de dois meses, a Defensoria Pública da União (DPU) orienta que as famílias recorram, comprovando as condições que garantem o BPC. Segundo o órgão, nesses casos, existe a configuração de um deferimento implícito de um pedido que é necessário para garantir a dignidade para essas crianças. A DPU propõe ainda a criação de uma pensão específica para esses bebês. A proposta do Grupo de Trabalho Saúde, vigente no âmbito da Defensoria, é semelhante ao auxílio instituído por meio da Lei n° 9.422/1996, que concedeu pensão especial aos dependentes das vítimas da contaminação do centro de hemodiálise do município de Caruaru, no interior do Estado. De acordo com a Defensoria, a criação do benefício para as crianças vítimas da microcefalia é necessária, especialmente diante das limitações de renda previstas nas condições do BPC, restrição que se revela injusta para muitas famílias, que, apesar de serem pobres, não atendem ao critério de renda previsto na lei.
A Companhia Energética de Pernambuco (Celpe) analisa a possibilidade de incluir famílias de crianças com microcefalia na lista de beneficiários da Tarifa Social de Energia Elétrica. Desse modo, quem for cadastrado e se encaixar nos critérios da empresa terá até 65% de descontos na fatura mensal. A adesão ao benefício se enquadra no critério de pessoas com deficiência identificadas como de baixa renda, com direito ao desconto. O alívio nas contas domésticas que essa medida pode representar abrange todos os municípios pernambucanos, a Ilha de Fernando de Noronha e a cidade de Pedras de Fogo, na Paraíba. Para solicitar o benefício, a criança deve estar previamente inscrita no INSS e ter obtido o Benefício de Prestação Continuada (BPC) na categoria 87 — para pessoas com deficiência. “A Celpe está participando ativamente dessa corrente, levando orientações aos (Cras) Centros de Referência da Assistência Social, às Secretarias de Assistência Social e às ações sociais da empresa”, afirmou em nota a gestora da Unidade de Documentação e Cadastro da Celpe, Ana Cláudia de Oliveira.
Direitos
“Direitos garantidos por lei”
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Q U E M PA R I
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I U M AT E U S
ue o balance? Por Francielle Palmeira
Mariah Oliveira/Flickr
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Artigo
“Quem pariu Mateus que o balance?”
Quando Yhwh (ou Jeová) diz à mulher que “com sofrimento, você dará à luz filhos”, no Capítulo 3 do livro de Gênesis, da Bíblia Sagrada, Ele prenuncia mais que apenas a dor na hora do parto. Essas palavras vêm como resposta ao desejo da mulher de fazer escolhas, de trilhar um caminho diferente daquele que seu tutor — neste caso, o próprio Yahweh — lhe ordenou. No Jardim do Éden, tendo tudo o que supostamente precisava para ser feliz, ela opta por fazer o proibido. Ela faz o que quer. Milhares de anos depois dessa história, o eco das palavras de Yahweh persiste. Em quase todos os lugares do mundo a maternidade ainda é um calvário — um caminho de dor a ser percorrido pela mulher desde antes da concepção e até muito tempo depois do nascimento. Em 2015, os noticiários anunciaram uma epidemia de microcefalia no Brasil, com destaque para o grande número de casos no Nordeste. A doença logo foi associada ao mosquito Aedes aegypt e se torno caso de saúde pública — mas mais que isso, tornou-se um problema das mulheres. Das mulheres pobres. É difícil fazer uma renda sumária suprir as necessidades básicas de comer, beber e vestir. Mais difícil ainda é usá-la para comprar um repelente de insetos para se prevenir das doenças graves transmitidas pelo mosquito, como a zika, que causa a microcefalia. O produto custa cerca de R$20,00 e pode durar uma semana. A metade da renda é revertida em algo que dura um quarto de mês.
Airton Cardim/Flickr
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Artigo
“Quem pariu Mateus que o balance?”
Outra medida para se prevenir dos transmissores é evitar os focos dos mosquitos, que são lugares que acumulam água parada. A dificuldade dessa tarefa para as mulheres pobres e periféricas é sem limites, já que, além de ser necessária a colaboração de toda a comunidade, é preciso considerar o próprio local onde elas moram — que costuma ter péssimas condições de saneamento básico e não ter água encanada. Ora, se a água não chega às torneiras, é preciso armazená-la em baldes, latas e garrafas. Água limpa, parada, acumulada. Foco do mosquito Aedes. Mas e os homens? As crianças não são concebidas sozinhas. Sim, existem pais que cumprem sua obrigação e se responsabilizam pelos filhos com microcefalia. Mas é alarmante o número de mães solteiras que vão cuidar desses bebês — crianças que vão demandar ainda mais cuidado e comprometimento que àquelas que nascem perfeitamente saudáveis. Apesar de não haver pesquisa ou dado que aponte exatamente o número de casos em que homens abandonaram as mulheres que teriam filhos com microcefalia, os médicos que estão acompanhando essas famílias já relatam histórias desse tipo, sobretudo quando os casos envolvem mulheres jovens e gravidez indesejada. No entanto, sendo jovens e também não desejando essa gravidez, essas mulheres estão abraçando a criação dessas crianças. Mais que isso, sem saber com certeza o que esperar desses bebês, já que a microcefalia causada pelo zika vírus é de um tipo novo e diferente das anteriores. Mães e avós ninam, cuidam, acalentam e medicam essas crianças. O envolvimento dessas mulheres é tão naturalizado que os casos publicizados pela mídia vão envolver as mulheres — seja contando a história de uma mãe que venceu as dificuldades dessa doença e afirma que é possível ser feliz e realizada com um filho microcéfalo; seja mostrando iniciativas de instituições de ensino que oferecem graduação a distância para as mães desses bebês; seja divulgando grupos de apoio, como a União de Mães de Anjos, de Pernambuco. Tudo envolve essa mulher, a mãe.
Lima Caju/Flickr
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P O R Q U E O E S TA D O E A S O C I E D A D E NÃO SE INTERESSAM POR ESSA MÃE
mas apenas pelo que ela faz no momento de desespero?
Se por um lado essas histórias veiculadas nos jornais, telejornais e portais de notícias cooperam para criar a imagem de uma mulher heroína — o que de certa forma elas não deixam de ser —; por outro, acabam por demonizar as mulheres que assumem o medo do desconhecido, como um ser humano normal, e abandonam seus filhos. Em novembro de 2015, no auge do pânico do surto da microcefalia, uma jovem mãe abandonou o filho microcéfalo de pouco mais de dois meses em Pernambuco. Previsto no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, no art. 240, o abandono de crianças é crime. Apesar dessa lei e das inciativas de acolhimento, como o Mãe Legal, que visa acompanhar e receber os bebês cujas mães não desejam criar os filhos, essa mulher o abandonou. Por quê? O que leva uma mãe a abandonar seu filho, ainda mais quando é sabido que o bebê terá uma série de dificuldades, sobretudo no início da vida? Mas a pergunta que fica — ou deveria ficar — é: “Por que o Estado e a sociedade não se interessam por essa mãe, mas apenas pelo que ela fez no momento de desespero?”. Não é o objetivo deste texto levantar uma discussão pró/contra o aborto, já que o aborto nesses casos vai envolver a “limpeza” de crianças com deficiência, o que colabora para o já grande preconceito que pessoas com deficiência ou limitações sofrem todos os dias . Mas essa mulher é um ser humano, que tem direito a sentir medo, a sonhar com o seu futuro, a escolher os passos que dará em sua vida. E se ela sente que não pode carregar sozinha o “peso” de um bebê que carrega tantas incertezas, onde estão aqueles que podem ajuda-la? Se ela é capaz de deixar sozinho alguém “indefeso”, é porque sabe, por experiência própria, que os indefesos sobrevivem. Eles precisam sobreviver. E essa mulher não pode ser julgada por responder ao mundo na mesma linguagem que lhe foi ensinada. Quando disse que dariam a luz com sofrimento, Deus, muitas vezes, é interpretado como quem condena as mulheres por escolherem seu próprio caminho. No entanto, sendo onisciente como se supõe que seja, outra leitura é possível para essa mesma passagem — a de que Ele já sabia que era esse o caminho que elas trilhariam na vida. Ele estava apenas informando, no princípio da existência de tudo, o mundo que receberia as mulheres dali para a frente, que as condenaria a parir com dores, não só as dores físicas do momento do parto, mas das feridas que carregariam simplesmente pela condição de poderem ser mães e não terem quase nenhuma escolha sobre o que fazer a partir disso.
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