Suplemento Literário de MG número 0001

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APRESENTAÇÃO

Cumprindo mais uma etapa de seu atual programa de renovação, o «Minas Gerais» lança hoje o «Suplemento Literário», de publicação semanal e que circulará regularmente cora a edição de sábado. A função prccipua de "Órgão Oficial dos Poderes do Estado» em nada contraria o propósito de apresentar este jornal caráter mais amplamente informativo como os outros.-, Essa foi a orientação mantida durante vários decênios da história do «Minas Gerais», tradição interrompida temporàriamente e que ora se procura retomar. Melhor ainda se insere na presente fase renovadora o lançamento de um suplemento dedicado à literatura e à arte em geral, providência que se compreende também no plano cultural do govêrno. Justo, portanto, que neste primeiro número se faça menção dos nomes do Governador Israel Pinheiro e do seu digno auxiliar, o jornalista Raul Bernardo Nelson de Senna, ex-Diretor da Imprensa Oficial que, na

sua profícua gestão, teve a esclarecida Iniciativa de criar o «Suplemento Literário». Na sua simplicidade, o título escolhido para esta nova secção do «Minas Gerais» contém Q essencial de um programa consciente. Deliberamos reivindicar a importância da literatura, freqüentemente negada ou discutida. Para começar, tomamos o têrmo na acepção mais ampla,! Nessa ordem de idéias, o «Suplemento Literário» vai inserir não só poesia, ensaio e ficção em prosa, mas também a critica literária, a de artes plásticas, a de música. Sem negligenciarmos os aspectos universais da cultura, queremos imprimir a estas colunas feição predominantemente mineira, assim no estilo de julgar e escrever, como na escolha da matéria publicável. A fidelidade à Província nos termos que a situamos, até conjura o perigo do provincianismo. O anseio de atingir a esquiva perfeição configura a chamada mineiridade, na opinião de

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alguns., Porque dentes e conscientes dos lados negativo e positivo de semelhante intenção, pepmitimo-nos a coragem de aspirar ao melhor que nos seja possível. Para tanto, a Comissão de Redação dará o máximo de sí mesmo, para poder exigir igual esforço dos demais escritores da equipe responsável. O trabalho solidário há de superar fraquezas e deficiências. Esperamos reviver significativa tradição deste jornal, que a história das letras era Mina» não deixou de registrar. Alguns entre os mais influentes escritores de hoje publicaram no «Minas Gerais» as primeiras manifestações de seu^ talento, cm poesia e prosa. Ombrearan» então com autores já consagrados pela critica e pelo público. De maneira idêntica procederemos agora, em relação a novos e a colaboradores de conceito firmado. Valham as intenções dêste programa^ Assim nos seja dado cumpri-lo.i i ,.

MINAS

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GERAIS

suplemento

% literário

BELO HORIZONTE — SÁBADO, 3 DE SETEMBRO DE 1968 AN0 1

N. 1 — Preço Cr$ 150

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LATICÍNIOS Bueno de RIVERA

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Õ país dos úberes, região da paz bovina!

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Aqui as árvores amamentam aves, bichos e crianças.

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A nossa lua é um seio branco:; chove leite sobre os campos..

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Verdes vales longos pastos onde os trilhos dão no córrego. mrnmm

Mansas casas de varandas açucenas e quintais.

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Muro de rosas juritis tardes de aboio laranjais. ÁLVARO APOCALYPSE:

Aguadas de sol c sombra, porteiras da solidão.

do folclore ao surrealismo

Depois de pesquisar muitos temas, principalmente tolcloncos, Álvaro Apocalypse — primeiro prêmio de desenho no último Salão da Prefeitura e professor de desenho no Curso de Belas Artes da ÜFMG — dedica-se agora a uma fase surrealista, que é mais uma conseqüência de seus trabalhos anteriores do que pròpríamente uma descoberta de hoje.

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Neste descampado reina a vaca mãe do touro mãe do ouro mãe dos homens.

Nos seus mais recentes trabalhos, notamos um artista participante, intelectual e inventivo; um profundo conhecedor da técnica do desenho que a domina e a usa para uma melhor comunicação. Em Álvaro Apocalypse, há o gosto pela fábula do futuro que se mescla com uma leve ironia e notações de grande sutileza.

Neste descampado sofre o boi boi de carro boi de corte sonso boi.

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2 — MINAS GERAIS

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(Suplemento Literário)

Missão FUNÇÃO

de DA

POESIA

Minas RENOVADORA

João Cãmillo de Oliveira TORRES Fábio LUCAS

Muitos equívocos perturbam a atividade artística numa nação jovem, em vias de translormaCões, como a nossa. Se tivéssemos de e?iumerá-los, começariamos pela parte maior, o público, o destinatário da criação estética, ai compreendendo os diferentes níveis de opinião — desde o homem comum das ruas até os mais altos responsáveis pela vida social organizada; depois, partiríamos para acentuar os enganos dos próprios agentes da elaboração artística, que, seduzidos pelo êxtase da glória fácil, se deixam estrelar no brilho fugaz dos primeiros aplausos, os menos importantes, desdenhando as imensas oportunidades de colaboração com o esforço coletivo que a arte oferece aos que se identificam com os objetivos da nacionalidade. Mencionemos de modo particular a poesia. Os consumidores, regra geral, deixam de indagar da sua importância e, se investigam a sua função, não conseguem Ir além de sua tarefa mais superficial, o entretenimento, mostrada nas evidências de uma teoria lúdica qualquer. Mas a poesia, além de jôgo agradável, constitui, ao mesmo tempo, forma humanizadora, técnica de disciplinação e estimulo à capacidade de criação do homem. Tolstoi já pôs &n} relêvo a propriedade da arte em conter a agressividade do ser humano, tornando-o mais apto ao convívio harmônico; de outro lado, Cassirer demonstrou com bons argumentos que, enquanto a linguagem e a ciência são abreviações da realidade, a arte é uma Intensificação da realidade. Oi», a ordem social e a disciplina não passam de intermediários eficientes que a humanidade procura para tornar mais prolongado o seu domínio sóbre o mundo. A espécie humana no seu conjunto e o indivíduo na sua singularidade desconhecem outra meta viável na transitória existência, que não seja a Intensificação da vida ao paroxismo. Fora dai, a ciência é vã e a arte, um desperdício. Sob êsse prisma, a literatura 6 uma realidade. Constitui um dos elementos da realidade, um segmento da totalidade. E verdade que na essência da literatura vibra ura anseio de comunicação. Ela põe sensibilidades em contato e estas perquirem e se entendem a propósito da realidade circundante. Ora, o homem pretende permanentemente transformar essa realidade, operar sóbre ela, adaptá-la aos seus objetivos. Dai, tudo que lhe sai das mãos, sob a forma de um artefato, ser participante, transformador da realidade. Se se levantam barreiras à sua atividade criadora, temos um represamento de energia que ràpidamente se transforma em revolta e o labor humano se torna revolucionário. Deseja abater e aniquilar tudo que lhe veda a

citação e impede a sua generosa tarefa agregadora. O poeta, como todo artista, é um produtor, um mtenslficador da realidade, um fabricante de utilidades. Êle sempre acrescenta algo à natureza, contribui para que a humanidade se torne mais rica a partir de sua atividade. Certos artistas, incapazes de penetrar a essência de sua função, atiram-se à busca. insofrlda do sucesso, palmilhando um caminho da restrição à sua personalidade; entregam-se ao culto infrutífero do passado ou à imitação redundante do trabalho alheio. Do ponto de vista individual, temos uma limitação, um estreitamento de horizontes; do ponto de vista coletivo, uma inutilidade, uma paráfrase do existente, uma repetição vazia e impotente. A autonomia literária de uma nação é conquistada através do esforço criador de seus escritores, que prescinde das formas antigas, se quer ser nôvo, e das formas importadas, se deseja ser original. A tradição é útil como ponto de partida, marco de um processo que se desdobra e continua; a arte estrangeira é importante para o conhecimento das etapas no terreno da expressão artística. De qualquer forma, o importante é tentai e conseguir a conquista de um estilo próprio, a agregação de um produto nôvo aos já existentes. Assim, o passado não pode ser considerado como um depósito no tempo, sóbre o qual se fazem retiradas para o êxito atual, assim como a contribuição estrangeira não pode constituir um depósito no espaço, sóbre o qual se fazem retiradas para a contemplação deslumbrada dos inocentes. A poesia é sempre renovadora. Assim, como definiríamos a função conservadora? As fôrças da preservação constituem negação do propresso. A arte revolucionária é negação dessa negação, afirma o mundo real e as possibilidades de mudança que lhe são inerentes. A arte tradicional, peregrina, canonizada, não passa de um elo da cadeia de adaptações humanas às fugitivas contingências do mundo em perpétua transformação. O espirito conservador é sujeição ao passado, aprislonamento do espirito a entidades pretéritas: o espirito Imitador é a servidão ideológica, a subordinação das propriedades criadoras ao cativeiro da fórmula feita. Para a conquista de uma arte legitimamente nacional, temos de libertar o artista apresado no tempo e no espaço e estimulá-lo ã conquista de uma forma autônoma — crítica e afirmativa. A renovação, neste ponto, é sinônimo de independência.

Muitas e importantes transformações conheceu a minha geração, que tem presenciado tôdas as modificações estruturais do Brasil, nêste último trintênio, quando se transformou radicalmente a vida em nosso pais — quantas instituições que hoje parecem normais e, para nós, surgia com ares de novidades sensacionais . Gostaria de considerar um tato social muito importante e que parece, não tem sido devidamente caracterizado, e que precisa ser expressamente pôsto em evidência, pois. disto depende talvez o futuro de nosso país. Estou convencido de que, se tomarmos consciência do fato que pretendo analisar aqui, teremos eleme tos para apresentar de nosso pais uma imagem perfeitamente clara e, assim, fixarmos as bases de nossa vida futura, como nação, isto é. como realidade histórica viva e consciente. Ninguém desconhece hoje que se verificou, do fim da década de vinte até agora, uma profunda transformação na vida brasileira, com efeitos radicais na estrutura social do pais. Entramos na era industrial, com todas as suas conseqüências, descobrimos novas dimensões na nossa própria realidade, componentes étnicos novos entram na vida brasileira, etc. Bastam certos exemplos simples; até 1930 a política brasileira era comandada, com um ou outro Lauro Muller de parte (que de certo modo era considerado uma anomalia) por brasileiros de estoque tradicional. Hoje, quer na composição do eleitorado como dos corpos legislativos, filhos de sírios, de italianos de alemães, de polonêses, de japonéses estão de par com o que se poderia considerar brasileiro de feição tradicional (descendente de português com os povos de côr). Nomes não lusitanos e feições diferentes dos mulatos e caboclos tradicionais integram todos os setôres da vida brasileira. Quando, em 1936, Gustavo Barroso procurava implantar o anti-semitismo no Brasil, foi observado que o único descendente de Jacob a ocupar cargo importante no Brasil era o simpático e meio inevitável sr. Herbert Moses. Hoje a situação é diversa e podemos dizer que as idéias econômicas do Pe. Vieira acêrea da conveniência de atrair a «gente de nação» para fazer o progresso do pais estão sendo brilhantemente confirmadas... Paralelamente com a presença, em todos os postos da vida nacional, de indivíduos fora dos grupos tradicionais, um fato nôvo e de certo modo concorrente se verifica: o isolaclonismo e inter-reglonal desaparecem — os nordestinos no Rio e S. Paulo, os mineiros em Goiás, S. Paulo e Paraná, etc., de alguma forma eliminam as barreiras tradicionais. Dentre as várias revoluções ocorridas no Brasil modernamente, gostaria de destacar uma, multo importante — a da Rio-Bahia. Feita a ligação rodoviária norte e sul, em plena guerra, um rio humano se escoou através do território mineiro, completado, aliás, com as ligações ferroviárias entre Minas e Bahia. Os efeitos foram radicais. Temos, assim, a presença de um fato nôvo na vida brasileira, que, além de outras transformações, veio dar um colorido diferente à sociedade: a ascenção aos postos de influência, de brasileiros que de certo modo não descendem fisicamente dos súditos de D. Pedro II. Disse, «fisicamente», pois, por fôrça de identificação sentimental ao passado brasileiro muitos terminam descendentes espirituais dos brasileiros antigos. S possível que a maioria dos habitantes do Brasil de origem não tradicional se considere perfeitamente identificada com o passado brasileiro e se entusiasme com histórias de Bandeirantes e com a Guerra Holendêsa. O escritor João de Scantlmburgo (que tem um livro notável sõbre a América Latina a sair dos prelos) dizia-me certa vez que, sendo, então, um paulista de quarenta anos (seus pais eram ambos europeus), se sentia perfeitamente identificado com o passado brasileiro. E não fazia frase; eu poderia assinar tranqüilamente qualquer trabalho dêle, como êste que acabo de mencionar, que II cm MSS e por vêzes me esquecia de que estava lendo obra alheia... Se o Brasil conhece, em tão pouco tempo, tamanhas e tão profundas transformações, que atingem,

Inclusive, o conjunto da composição étnica do seu povo, não se talando nas meras transformações na estratificação social (o Brasil, hoje, não é mais um país essencialmente agrícola...) um fato precisa ser devidamente considerado, que nem todos sentem Minas Gerais assiste a um fenômeno de concentração e não de transformação. Há um «fenômeno mineiro» na vida nacional e, nós, mineiros que ficamos fiéis à província e daqui não salmos, e que procuramos, bem ou mal, fazer a nossa carreira no ambiente modesti da província, por vêzes, temos a sensação do fato, quando, no Rio, ouvimos comentários acêrca de «Minas», como uma realidade distaote e remota, um mundo meio fantástico, no qual acontecem fatos singulares. É visível, para o mineiro fiel â província, mas que tem contatos íntimos com a vida carioca, sentir que, no Rio, as pessoas sentem que. nós. aqui, vivemos em mundo aparte. Sinto em face de pequenos fatos como certas restrições a filmes, por motivos morais e outros (e a respeito deste: fatos, tive contatos pessoais com elementos da grel cinematográfica do Rio), que reagen por lá, como se fôssemos habitantes de outros planêtas. Outro aspecte importante: o nosso corpo político, eleitorado e eleitos, não sofreu radical transformação, além do fenômeno natural da capilaridade social, que sempre existiu. Em Minas, como na Idade Média, como em qualquer época, há casos de mobilidade individual — pessoas que conseguem ser incorporadas aos grupos dominantes, Se, por vêzes, os cargos eletivos costumam conhecer casos Isolados de saltos espetaculares nas barreiras de classes, por fôrea da influência da popularidade de indivíduos sôbre o eleitorado flutuante, a Administração é mais conservadora, e os elementos dos velhos clãs se acham mais numerosos nos postos-chaves, por fôrça dos recursos de educação e know-niaking das elites tradicionais .

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O grande acontecimento social de Minas não fêz senão confirmar o fato. Minas concentrou-se, não se expandiu — cresceu para dentro, eis a surprêsa. A lei geral da mobilidade do povo mineiro é extremamente curiosa. Na primeira metade do século XVTI1 as Minas Gerais tornam-se a região mais densamente povoada de todo o Império Português. No fim do ciclo do ouro, com a exaustão dos filões aurlferos, veio a decadência mineira, compensada, logo, com o inicio do ciclo do café, que garantia uma prosperidade nova para a velha província, principalmente nos vales férteis do Sul e da Mata. Estas regiões novas foram povoadas com gente vinda das velhas cidades decadentes. No século XX, o zebu e outros íatôres de produção provocaram a ascencão do Triângulo e, depois de 1930, o rush industrial ocasionou a restauração das velhas cidades do ouro, agora interessadas no ferro e outros metais, menos nobres que o ouro, mas bem lucrativos... Lateralmente, a Rio-Bahia e a VItória-Mlnas (esta para exportar o minério de Itabíra, ligando, assim, o mar dc Espirito Santo à Zona de mineração) produziram novos surtos, como de Governador Valadares. üm fato, porem, deve ficar perfeitamente claro: tôdas as modificações na paisagem mineira fizeramse com a mesma gente — novos ciclos que surgiam, graças a um efeito de transbordamento dos antigos. Houve ura efeito de brassage — as novas regiões povoadas com pessoas vindas das antigas. Na mudança do século XIX para o XX, Afonso Pena surge com uma idéia revolucionária — construir uma metrópole em Minas. O velho conselheiro imperial verificou que, por falta de grande centro urbano que fôsse o fator de aglutinação e congregação de talentos, os mineiros bem dotados, quer nas atividades culturais, quer nas atividades econômicas, saíam para outras terras em procura de campo maior para as suas atividades. Esta a idéia que deu origem a Belo Horizonte, tendo, aliás, sido escolhido um local simbôlicamente na faixa de transição entre a zona de mineração e o sertão. O sonho de Afonso Pena (que fundaria ao mesmo tempo a Faculdade de Direito, para criar o centro inicial da Universidade de Minas Gerais) tornar-se-la realidade em nossos dias, apenis. Mas, Juiz de Fora, capital da zona da Mata, quase que realiza êsse desideratum. Quando velo a era industrial e as profundas transformações de nosso tempo começaram a dar resultados, Belo Horizonte torna-se um centro industrial, ligado por vários meios de comunicação ao interior, O crescimento de Belo Horizonte, porém, seguiu o mesmo ritmo dos anteriores fenômenos demográficos — mineiros de outras cidades vieram para cá, surgindo uma cidade que reúne em si gente de tôdas as partes e cujos contatos com o interior, aumentando sempre, fazem desaparecer as barreiras, verificando-se um fenômeno de concentração e recolhimento. O resultado disto ê que Belo Horizonte é uma cidade moderna e povoada por uma espécie de precipitado de tôdas as modalidades tradicionais da população que Minas tem conhecido, o núcleo inicial, aliás, da população da capital, convém recordar, veio de Ouro Prêto e Sabará. Assim, quer na política, quer nas letras, quer na administração pública, quer nas atividades econômicas (um pouco menos, nestas) os grupos dirigentes em Minas são descendentes diretos dos mesmos que dominaram Minas Gerais no passado, mesmo no passado mais remoto... Por isto, enquanto por toda a parte as mudanças de nosso tempo apresentam-se em parte de ruptura coro o passado, em Minas, surgem dentro de um quadro geral de continuidade entre passado e futuro.

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Talvez seja êste o papel de Minas na hora presente — a permanência da continuidade nas transformações do momento histórico...

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3 — MINAS GERAIS

RODA

(Suplemento Literário) Laís Corria de ARAüJQ

GIGANTE

INFORMAIS Reexame

de

Alencar

em atitude de bazófla literária, considerando-o leitura da adolescência apenas. É o que Cavalcanti Proença, o excelente ensaísta responsável por uma das melhores exegeses da obra de Mário de Andrade e de Guimarães Rosa, demonstra nessa edição critica, em que são abordados e examinados com a sua reconhecida acuidade todos os aspectos de «Iracema»; o temático, o lingüístico, a filiação romântica, a brasilidade como expressão literária, a repercussão e a monumentalidade de seu projeto.

A EDITÔRA Oomemorou-se. em 1965, o cenf teiUrio da publicação do famoso romance de José de Alencar, «Iracema». Desde 1865, essa obra teve mais de cem edições, o que é uma verdadeira consagração do público. Entretanto. faltava a êsss mesmo público algo além da simples receptividade que o livro encontrava em seu espírito, faltava uma informação, um estudo de profundidade, que lhe possibilitasse maior compreensão para a análise do texto e julgamento do autor. Foi o que íêz a Livraria José Olympio, ao lançar a edição critica de «Iracema», convocando, para êsse trabalho, o nome de um ensaísta da categoria de Cavalcanti Proença.

O LIVRO «Iracema» é obra facilmente encontrável em todos os lares e em tôdas as bibliotecas escolares. Lembro, a título de simples ilustração, que adquiri o meu primeiro exemplar de «Iracema» aos doze anos, pelo prêco de dois mil réis. Trata-se de um romance lírico, uma interpretação romântica do homem americano, um poema em prosa que pretende ser a visão da gênese da nacionalidade, fundado em elementos de lenda, que primeiro nos comove por sua estória melancólica e cuja ambiciosa contextura só mais tarde descobrimos. A sua penetração popular se justifica pela repercussão espiritual que o romantismo, ainda hoje, encontra na alma brasileira, pela poesia da natureza descrita por Alencar com requintes que se coadunam bem com o ufanismo natural de um povo que se conserva adolescente, pela nostalgia da linguagem e do tema, que servem ao mito edênico que persiste em nós.

0 AUTOR

José Martlniano de Alencar nasceu em Mecejana, povoado dos arredores de Fortaleza. Sua biografia é conhecida de todos, já que seu nome e o estudo de sua obra fazem parte de todos os currículos escolares, razão por que parece-nos desnecessário repetila aqui. Sua importância no quadro da literatura decorre de seu nativismo, de sua posição pioneira e ambiciosa de criar o autêntico romance nacional, num contexto de sensibilidade e imaginação populares, elaborado em têrmos brasileiros. Essa tomada de consciência estética, que coincide com o advento do romantismo, possibilitou a Alencar obter não Só a imediata aceitação de sua obra pelo grande público como, para a posteridade, o lugar de- ■» COMENTÁRIOS finido e precursor dentro da formação cultural do Brasil. Dai No trabalho de Investigação não ser possível renegar Alencar, que é esta edição de «Iracema»,

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ALIEM[ISTA

DE

COSIMIE

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T 1 Paulo SARAIVA nos espantamos de que tenha conseguido levá-la a têrmo, tais os obstáculos dal decorrentes. Machado de Assis, não obstante as crises convulsivas, com perda inicial de consciência. que periodicamente o acometiam, era perfeitamente equilibrado. Tão equilibrado, que não se deixou abater por elas e conseguiu, apesar da desvantagem que representam para qualquer pessoa, levar a cabo a realização da única obra que, na ilteríatura brasileira, tráz verdadeiramente a marca do gênio. Só podemos considerá-lo anormal se admitirmos, com Schneider. o critério, não de normalidade ideal, mas mediana. Sob êsse aspecto sim. Machado, como Goethe, não era normal, simplesmente por se afastar da média adotada para a distinção, na prática, entre a normalidade e a anormalidade psiqúíca.

Mt tachado de Assis tem despertado o Interêsse dos estudiosos de assuntos de psiquiatria, principalmente como caso clinico. São conhecidas as tentativas de explicar sua obra, pelo menos em parte, em função da sua doença. Não vamos discutir se o criador de Dora Casmurro era ou não epiléptico. Admitamos que o fôsse. Ora, isso não explica nada, ou muito pouco. Em primeiro lugar, a alegada relação entre comiclalldade ou insanidade e genialidade não passou de uma hipótese sem fundamento. Pode-se afirmar que os casos citados de gênios que eram Portadores do chamado mal sagrado (muitos sem confirmação^ não a sancionam, pelo contrário, êles o foram apesar da doença e não por causa desta. Isso transparece de modo bem claro no estudo de Jaspers (5) sôbre Strindberg, Van Gogh e outros doentes mentais que se destacaram como escritores e artistas. O filosofo alemão gasta páginas e P S nas procurando demonstrar que êles eram esquizofrênicos. Wo caso de Strlndberg, o diagnóstico nos parece correto, embora alguns sintomas exibidos pelo autor de Senhorita Júlia, e enumerados por Jaspers, não perten<luadro ^ Psicótico alegado. Mas perguntamos: e dai' A esqu.zofrenm de Strlndberg não

Nosso objetivo, porém, é focalizar o autor de Brás Cubas como escritor que teve, como em outros assuntos, intuição aguda de vários problemas de psiquiatria, Em dois de seus trabalhos mais conhecidos — Quincas Borba e O Alienista, para citar apenas êsses — a loucura comparece como personagem importante. No primeiro, que Barreto Filho (1) considera a única tragédia genuína que o trágico Machado de Assis pôde compor, não se sabe o que mais admirar, se a descrição final do delírio de Rublão ou as nuances com que a evo-

Apenas ter T.rt sl,io do ter Sle doente - mental,

podemos, agora com consciência critica, discenir os verdadeiros fundamentos da obra de Alencar, yamos localizar então o trabalho de pesquisa lingüística, o plano grandioso de erigir um monumento à nacionalidade, a tentativa de chegar a uma realização épica, a plasticidade da expressão literária, o tratamento e p conteúdo ideológico encontrados no tema romântico do «bom selvagem». «Iracema» ressurge, então, numa atmosfera de genialidade, apesar das limitações naturais da formação romântica de Alencar, sob novas perspectiva» que nos apresenta o exame da consistência do texto, colocado em suas reais proporções de concepção e feitura, em consonância com as exigências estéticas de seu tempo e com as tendências de temperamento de nossa gente, DescobrlmoS que não se contentou Alencar em fixar-se nas sensações, nos sentimentos, mas que desejava ir além, penetrar no âmago do fenômeno que é o surgimento de um povo, a realidade do «eu» brasileiro, A tentativa é válida, dentro dos postulados da época, em plena florescência da inovação romântica, e pelo fervor com que o artista a ela se entregou, com paradoxal profundidade e ingenuidade. Dal que o reexame de Alencar se faz, mais uma vez e sempre, necessário e nessa edição critica de «Iracema», que a responsabilidade de Cavalcanti Proença nos entrega impecável, temos uma excelente colheita de material para atender às exigências das gerações universitárias ciosas da cultura, bem como ao interêsse do leitor desejoso de penetrar mais intimamente no envolvente mundo de Alencar.

AUVttU ua UCJ. JDOIG-VDC tas através do livro. Todos se lembram de uma passagem ocorrida muito antes da eclosão das manifestações francamente psicóticas do personagem. Este, ao ser cumprimentado pelos amigos que o esperavam para jantar, teve subitamente o impulso de estender-lhes a mão. para que êles a beijassem, numa atitude prenuncíadora de suas Idéias megalomaníacas. O ritmo de desenvolvimento do Alienist» evidencia também o poder de penetração Com que Machado aborda o problema até hoje insolúvel dos limites entre o normal e o patológico em psiquiatria, se bem que o já citado Barreto' Filho tenha visto na novela uma sátira admirável às concepções positivistas, incompatíveis com o humanismo xnachadiano e o seu desdém pelo racionalismo cientifico « a doutrina da ditadura. Outro trabalho de Machado de grande interesse psiquiátrico, e sôbre o qual, portanto, vamos falar mais demoradamente, é o conto o Espelho. Nêsse «esbôço de uma nova teoria da alma humana», encontramos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, que debatem, uma noite, várias questões de alta transcendência, numa sala pequena, alumiada a velas, cuja luz fundiase misteriosamente com o luar que vinha de fora. Q ambiente era estimulante e «m dos cavalheiros — Jacobina, que não discutia nunca e se mantivera calado e pensativo durante todo o tempo — resolveu expor sua teoria sôbre a natureza da alma, contando-lhes um caso de sua vida. Jacobina começa por afirmar que cada criatura humana traz duas almas consigo; uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo.

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Nao podemos deixar de citar aqui, como outro empreendimento expressivo para o conhecimento de Alencar, a edição crítica de «Iracema», feita embora com menor pretensão, de responsabilidade da Universidade do Ceará. O excelente estudo introdutório e as nota» ao texto são de Braga Montenegro, ensaísta e contista cearense de renome nacional, que dá sua contribuição abalizada para a análise da obra do ficcionista romântico.

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* O livro de Eduardo Frleiro «Angú, feijão e couye», que breve nos será entregue em edição do Centro de Estudos Mineiros da Universidade Federal de M. Gerais, vem despertando já o maior interêsse, não só pelo estudo sociológico que é da alimentação mineira, como pela bela abordagem do tema, tratado com aquê1c nrprut o e irônico espirito de observação do escritor e mitofago, que faz de cada obra sua uma deliciosa leitura.

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★ O poeta paulista Domingos Carvalho da Silva, agora acumulando as funções de professor em Brasília e de contista — publicou recentemente «A véspera do» mortos» — passou por Belo Horizonte, tendo nos informado que lançará nôvo livro de poemas intitulado «Vida prática». O conhecido poeta da geração de 45 esta, portanto, desenvolvendo grande atividade, pois. além dêsse nôvo livro, promete-nos uma «Antologia da poesia brasileira moderna» e um ensaio sôbre o tema «Poesia e Poética de Mário de Andrade». ★ Também estará pronto em breve o nôvo número da revista de poesia de vanguarda — «Vereda» —, com _ novos trabalhos do grupo constituído de Henry Corrêa de Araújo, Libério Neves, Ubirasçu Carneiro da Cunha, Elmo de Abreu Rosa e de nova aquisição — Maria do Carmo, jovem proíessôra universitária, que contribui com excelentes poemas para o esperado sucesso do 3» número da publicação. ★ André Carneiro, poeta paulista, reaparece na» livrarias com uma belíssima edição de sua nova coletãnea de poemas, a que chamou «Espaçopleno». O planejamento gráfico e as xilogravuras de Luiz Dias valorizam as produções do autor, que se mostra agora em consciente aprimoramento da forma, buscando atingir o essencial da experiência criadora. ★ Vivaldl Moreira reúne em «Figuras tempos foi'mas» diversos ensaios, frutos de sua dedicação ã cultura, sobre temas diversos, revelando a sua brilhante e lúcida inteligência, a feição enciclopédica de seu temperamento de escritor e a limpidez de sua expressão literária, para « Cristina, rP?Í?TêQ0~1.300 remessa de livros—■e Minas. publicações: Rua Belo Horizonte

em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa. As duas almas, cujo oficio é transmitir a vida, completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma larpnja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência: e casos há. não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira, como no caso de Shyloclt, para quem a alma exterior eram os seus ducados, perdê-los eqüivalia a morrer. Prosseguíndo, esclarece Jacobina que a alma exterior não é sempre a mesma; muda de natureza e de estado. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos. foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de Irmandade. Finalmente, após essas considerações, o narrador resolve relatar O episódio de sua vida que lhe permite demonstrar sua teoria da alma humana. Tinha êle vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado. com grande orgulho e alegria para os seus, alferes da guarda nacional, quando uma tia, que morava num sitio escuro e solitário, desejou vê-lo, e pediu que fôsse ter com ela e levasse a farda. O entusiasmo da tia Marcolina pelo sobrinho, ao vê-lo fardado, foi tal, que mandou pôr no quarto dêle um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples. Os carinhos, as atenções, os obséquios acabaram por provocar no «senhor Alteres» uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. O alferes eliminou o homem. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Tia Marcolina recebe então a noticia que uma filha estava ã morte e resolve ir vê-la, deixan-

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que ficou sú, com os poucos escravos da casa. Desde logo sentiu êle uma grande opressão, como se tivesse sido sübitamente encarcerado. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos bocais. O alteres continuava a dominar nêle, embora a vida fôsse menos Intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a Intimidade doméstica interrompida, mas uma noite resolveram fugir. Q alferes achou-se só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Sua solidão tomou proporções enormes, Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa, As horas batiam de século a século, no velho relógio da sala, cuja pêndula, tic-tac, tic-tae, feria-lhe a alma interior, como um piparote contínuo da eternldade. Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada.

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O característico daquela situação é que nem sequer podia ter mêclo, o mêdo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável, Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Levantava-se, passeava, tamborllava nos vidros das janelas, assobiava. Tentou escrever alguma coisa, mas nada conseguiu. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar a papel. No fim de oito dias, deu-lhe na. veneta olhar para o espêiho. Olhou e recuou, pois o vidro não lhe estampou a figura nítida s Inteira, mas vaga, esíumada, tilfusa, sombra de sombra. Para o trabalho que nos Interessa escrever, podemos Interron». per aqui êsse resumo do EspêUw», feito quase sempre com as pvA* prfas palavras do autor.

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MINAS GERAIS

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(Suplemento Literário)

O relançamento da obra poética fie Sousàndrade, na admirável edigão critieo-antológica de Augusto e Haroldo de Campos (1), coloca em debate um problema literário que nos parece fundamental e que é o da crítica e suas limitações como atividade avaliadora e judicativa da obra de criação numa perspectiva de contemporaneidade. Até que ponto o jlizo dela emanado pode adquirir instância decisórla diante de valores estéticos que apenas começam a ser impostos e sõbrc os quais o crítico ainda não se encontra apto a exercer o seu trabalho mensurador? A deficiência e a defasagem da informação têm sido, sem dúvida, os fatores responsáveis pela reserva e mesmo timidez rormatívas da critica, que prefere assim julgar a partir sempre de padrões estabilizados do que correr o risco de acompanhar a obra literária na aventura de seu processo dinâmico e criativo. Foi talvez essa incapacidade de sincronização da crítica que levou Sartre à sua impiedosa invectxva; «Temos que lembrar que a maioria dos críticos são homens que não tiveram muita sorte e que, no momento em que estavam nos limites do desespero, encontraram um modesto pôsto tranqüilo de guardião de cemitério». (2) O sarcasmo sartreano não nos impede, todavia, de reconhecer o esforço honesto de alguns críticos, quando frente ao autor excepcional ou à arte inovadora. Ocorre apenas que êsse esforço está ccmumente neutralizado pela carência informativa, pela falta de abertura ao sentido do nõvo, do que foge ao convencional. E o resultado é o equlvlco de julgamento, a contraíração valoratlva. A sanção do critico de ofício, quase sempre mtangíve no seu mandarlnato, não fica, porém, adstrita ao seu pronunciamento pessoal, pois nêle se baseará o historiador das letras e neste o professor de literatura. Verifica-se, então, êsse fato lamentável que é a institucionalização do êrro, da distorção critica. £: certo que uma nova mentalidade surgiu com o criticismo, com a implantação da análise estrutural, mentalidade que jiassa a imprimir, também no Brasil, uma direção de maior rigor ao exercício da crítica. Porque nossos críticos' e historiadores literários, â falta de um critério diretivo, vinham até agora elegendo como método a impressão subjetiva e o veredlto do gosto fácil, reiterando e consagrando com isso uma opinião sem apõio nos dados estéticos, insensivel e alheia ao teor criativo de que se reveste a verdadeira obra de arte. O caso Sousàndrade representa o mais flagrante exemple de autor marginalizado,, em decorrência ao mesmo tempo da desatualização da crítica que lhe foi contemporânea e do espirito acomodatíclo de nossa história da literatura. Realmente, a crítica dos períodos romântico e parnasiano, durante os quais se desenvolveu cronologicamente a peripécia criadora do poeta maranhense, não estava equipada para apreender aquilo que fugisse aos estereótipos, à mediania das escolas. Quando muito, logravam os críticos mais avançados manter-se alertás com relação às últimas idéias filosóficas em voga na Europa, sem que isso, entretanto, trouxesse rendimento e atualidade mais efetivos à sua, consideração do trabalho literário em si, como ocorreu com os nossos cultores do germanismo e do cientificismo da segunda metade do século. Subordinando-se passivamente à índofe? retórica e impressionista que caracterizou a maioria de nossos autores da época, a critica representativa do romantismo foi ainda mais acanhada em suas incursões e postulações, consoante se depreende dos recentes levantamentos procedidos pelo ensaísta e pesquisador José Aderaldo Castello (3). Natural, portan-

SOUSÀNDRADE:

0

A

POETA

CONSCIÊNCIA

E

CRÍTICA

I

Affonso

AVILA

penetrada de profundas radicacões filosóficas, ora agudamente aberta a conscientização de problemas morais e políticos, outras vêzes marcada de surpreendentes reverberações líricas, O Guesa e as demais composições incluídas na antolog1? não se comunicam pelos canais comuns à nossa poesia anterior ao símbolísmo, não se entregam a uma fruição fácil e imediata. Dai a importância do trabalho analitleo-lnterpretativo de Augusto e Haroldo de Campos, que, num esforço de apUcaçãc hermenêutica, vão decompondo e revelando cada aspecto singular da obra spusandradina, para a nossa final inteligência e apreensão totaiizadora dos contextos, tarefa complementada no mesmo nível critico pelo ensalo-posíàclo de Luiz Costa Lima. O método comparativo, de que os dois antologlstas se valem em seu estudo, tem o mérito não só de situar o nosso poeta numa perspectiva de evolução criativa da linguagem, como também de evidenciar a significação inovadora de sua poética èm relação a autores estrangeiros que lhe fêram contemporâneos ou aos quais se antecipou em pesquisas e soluções. A posição de vanguarda assumida por Sousàndrade no panorama de nossa poesia do século XIX êle a deveu, certamente, â sua formação européia e ao eontacto de muitos anos com o lá então movimentado centro de progresso e cultura que era Nova York, fatores sem dúvida de sua atualizada informação artística e ciara visão dos fenômenos históricos e sociais. A consciência crítica que faltou aos seus coetâneos brasileiros, Inclusive àqueles que deveriam ser os avaliadores de sua obra, êle a deixou implícita no seu processo poético ou a explicitou nos depoimentos acêrca de suas criações. Será difícil, todavia, delimitar em Sousàndrade aquilo que, em sua textura formal, se deve creditar a um talento inventivo realmente privilegiado e o que surgiu em conseqüência de ura trabalho redutor de constantes aquisições, leitor e estudioso que se mostrava das letras clássicas e da poesia em línguas modernas. A verdade é que Augusto e Haroldo de Campos reconstituem, em sua antologia, um poeta de estatura universal, em quem se completam a intuição criadora e o lastro de cultura sôlidamente assentado. E no seu estudo introdutório, ao lado de outras afirmações em aue salientam a individualidade do nosso poeta, chegara a sustentar, na apreciação do confronto Sousândrade-Baudelaire, que, na obra do brasileiro «aporta uma contribuição original, que não se confunde com a do pai do simbolismo francês» (7). Isso depois de anotarem que as Harpas Selvagens.

to, que a poesia de Sousàndrade acontecesse em seu tempo como um fenômeno insuspeitado um «terremoto clandestino». Ao reoensear a produção poética do terceiro período romântico, o historlaaoi das letras Sílvio Romero, lúcido tantas vêzes, apenas registrou o sev espanto diante da poesia de Sousàndrade, assinalando-lhe a exeepcionalutade da temática e da linguagem, embora negando nêle «a destreza e a habilidade da forma» (4). Mais atilado talvez, José Veríssimo retira-o da faixa de marginalidade, identificando-o no processo de evolução de nossa poesia como um dos possíveis antecessores e mestres brasileiros do slmbolismo (5). Quanto a Ararlpe Júnior, o terceiro nome da tríade principal de nossa critica de fim do séêle que mostrava um interêsse maior para o tato estetlco novo e uma intuição menos tímida da natureza íntima da obra de arte, como o comprovam idéias surpreendidas em trabalhos seus como Estética e eletricidade s A arte como função (6). Assim, o autor de O Guesa Errante, não obstante a sua coetaneidade com experimentadores e experiências dos mais ousados da poesia universal (Sousàndrade faleceu em abril de 1902, quatro anos após a morte de Mallarmé), não Xog"OU em vida o estudo e a receptividade que a importância de sua obre Impunha. Faltaram aos homens do tempo nível Informativo e perspectiva critica para íulgá-ia adequadamente. O trabalho de Augusto e Haroldo de Campos repõe, portanto, em circulação um poeta e uma poesia pràticamente omitidos por nossa história literária, mas o faz numa dimensão de modernidade estética que realça a significação premonitória da obra de Sousàndrade e a projeta como marco brasileiro de uma linha poética realmente criativa. Confirmase déste modo, -om um pouco de atraso, a previsão do próprio poeta de que sômente seria compreendido cinqüenta anos depois. A introdução assinada pelos seus relancadores constitui, nas setenta páginas de texto, análise de estrutura das mais ocmpletas e fundamentada ■ do gênero da nova critica nacional e na qual se indicam, com mestria, os caminhos de acesso ao munde raultxfário do poeta. O comportamento do artista diante da realidade de que emergem seus temas, as implicações de ordem social e vivencial que condicionam a sua atitude criadora, a linguagem e seu desdobramento nos estratos semântico, sintático e sonoro, enfim tudo que compõe a estrutura poética e denuncia o seu processo foi atentamente estudado em Sousàndrade. Poesia de complexa elaboração intelectual e lingüística. ora

1. LIVROS

MAIS

VENDIDOS

2. 3. 4.

DA

SEMANA

5.

«Levanta-se o fantasma

1 2

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S

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dos ne[voeiros Entre a coroa dos astros dos es[paços!» (Guesa. canto VH) xXx Augusto e Haroldo de Campos — Revisão de Sousàndrade, Edições Invenção, São Paulo, 1964. Jean Paul Sartre — Que é escrever-, IV, tradução de Laís Corrêa de Araújo, Suplemento Dominical do «Estado de Minas». Belo Horizonte, 22 de dezembro de 1963. José Aderaldu UastelJo — Textos que interessam à história do romantismo, l e U, Coleção Textos e Documentos, Conselho Estadual de Cultura, Sã' Paulo, 1961 e 1963. Silvio Romero — História da Literatura Brasileira, voi. 4, Coleção Documentos Brasileiros, 24-c, Livraria José Olympio Editõra, Rio de Janeiro, 1949, pâg. 80. Cit. Andrade Murícy — Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, vol 1. Instituto Nacional do Livro, Rio dt Janeiro. 1952, pâg. 60. Obra Crítica de Araripe Júnior, vol. I, Coleção de Textos da Língua Portuguesa Moderna, Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 1958, pâg. 499; idem, vol. n, Idem, 1960, pág. 189. Augusto e Haroldo de Campos — Ob. cit., pâg. 76. 8 Cf. André Ferran — Introduction, in Baudelaíre, Poémes, Hachette, Paris, 1951: «Le ler Juin 1855, la Bevue des Deux Mondes publiait dlxbult poémes de Charles Baudelalre, sous le titre colletíf Les Fleurs du Mal». (pâg. 14) «Divers poémes avaient paru, de 1845 à 1852, dans L'Artlste, Le Oorsaire, Lo Magasin des Famílles, Le Messager de 1'Asscmblée, La Semalne Xheatrale, La Kevue do Paris», (pág 15).

Estrangeiros

Nacionais

OS

primeiro livro do maranhense, são de 1857, o mesmo ano da publicação das Flcurs du Mal. Neste passo, porém, somos conduzidos a discordar dos antologistas, porquanto podem-se assinalar, na poesia sousandradina. vários pontos de aproximação com a de Baudelalre, evidentes não só na Harpa XXXIV, mde notas de mórbido lirismo lembram claramente Une eharogne, como em outros fragmentos. A simples arguicão da simultaneldade de lançamento de Harpas Selvagens e Les Fleurs du Mal não auxilia a tese do antagonismo absoluto de feição lírica de características de linguagem entr< os dois poetas, nem desautoriza a hipótese de ter Sousàndrade conhecido por antecipação poemas reunidos mais tarde no livro do poeta francês. Durante o período de sua formação em Paris, que, segundo a síntese biográfica incluída na Revisão, se desdobrou em duas estadas consecutivas, não teria o brasileiro tomado conhecimento de poemas que, desde 1845, Baudelaire vinha publicando na imprensa parisiense, apresentando-os mesmo sob o título coletivo jâ de Les Fleurs do Mal no número de 1.» de junho de 1855 da Kevuc des Deux? (8) De qualquer maneira, pode-se supor ter sido essa ressonância ou consonância baudelaireana que induziu José Veríssimo a descobrir no poeta maranhense um precursor do simbollsmo. Aliás, com bem fundadas razões, pois nâ em Sousàndrade, além do clima Irlcc que sugere as Fleurs du Mal, versos que antecipam concretamente, em eus estratos musicais e semânticos, soluções bem ao gôsto dos nossos simbolístas. Alphonsus de Guimaraens não subscreveria um verso como êste de nítida índole mística: «Eu só medito, a Deus só me alevanto»? (Harpa XXVI). Por outro lado, colhemor ao acaso um dístico que é autêntico fêcho de soneto de Cruz e Souza:

1.

D. FLOR E SEUS DOIS MARIDOS — Jorge Amado. Livraria Martins. TEMPOS IDOS E VIVIDOS — Benedito Valadares. Edit. Civilização Brasileira. BANDEIRANTES E PIONEIROS — Vianna Moog. Edit. Civilização Brasileira. INVENTOR DE DEUS — Nelson Coelho. Liv. Francisco Alves. PAIXÃO E CRIME — Carlos Lacerda. Edit. Nova Fronteira.

2. ■C 4. 5.

APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO — John D. Salinger. Ed. do Autor. OS INSACIÁVEIS — H. Robbins. Distrib. Record. FOGO NO CÉU — Pierre Clostermann. Flamboyant. 0 CÊRCO de alcazar de toledo — Cecil D. Eby. Edit. Nova Fronteira. ANTOLOGIA DE PARLO NERUDA — Letras & Artes.

Livrarias consultadas: Itatiaia, do Estudante, Francisco Alves, Cultura Brasileira e Tapir.

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5 •— MINAS GERAIS

(Suplemento Literário) BOSMANSi IA YAl IR BLEtt Nem sempre azul. S verdade. anos ingressou na Escola Naval Nascido em 1908. em Bruxelas, aos de Antuérpia, chegou a tenente, oito anos já sabia o que era a iliventou aparelhos dê navegasãó, guerra e aos 35, dela multo horrodou mundo. ror já provara: via sua terra coConheceu a América Latina, vardemente bombardeada pelos deu uma olhada nas costas brasialemães, muitos amigos mortos. leiras, aportou nos Estados UniLutou. Tornou-se rebelde. Foi dos, viu o Canadá. Viu o Mediterrâneo e tôda a costa da Áfriexilado. Portugal não o aceitou, ca, chegando até ao Mar Vermechegou ao Brasil, sem dinheiro, lho. Estas longas viagens abricom apenas a roupa do corpo; soram-lhe os olhos para o mundo. zinho, sem amigos, comesou vida E êle viu. O mundo entrou-lhe dilicil, muito sofreu. pelos olhos, tocou-lhe todos os Contudo, seus olhos vivos não sentidos. Transformou-se em murefletem êsses tempos sombrios; sica. lembram, sim, o mar que êle Por um problema na vista foi amou muito, cujas águas azuis, obrigado a deixar a marinha e ensete anos navegou. Do mar, êle tão voltou a dedicar-se inteiraguarda nos olhos a côr. Uma cermente á música. Sente-se, por ta melancolia na voz quando fala isso, um pouco frustrado, porque, do tempo de marinheiro: aos 17 embora sua vocacão para a músl-

fôsse mais antiga ■estudar aos S anos . era a sua Verdadeira vocacão. Hoje êle fala do mar com umà profunda nostalgia. «Três Paiaagens», para piano e quarteto ao Cordas e que êle compôs quando marinheiro e «La vie en bleu» são talvez a sua melhor lembrança daquêle tempo. E também sãO qomo um horizonte infinitamente largo que se abriu para èle, são a certeza de que, como compositor, êle conseguiu a dimensão de um verdadeiro artista. Com quase 60 anos, o belga Arthur Bosmans é um mineiro de Belo Horizonte que mora numá casa antiga, na Serra, com sua espôsa, que é também mineira é seu filho Jack, um Jovem e talentoso músico mineiro. RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM: DOS 5 AOS 58 Bosmons comesou a estudar múflete um otimismo sadio e sincesuas músicas gravadas na Eurosica aos 5 anos e ainda menino já ro». Outro critico encontra em pa, em concertos públicos. Destocava piano, violino, violoncelo e sua obra «um cosmopolitlsmo cobrimos os «misteriosos encanclarinete. Compunha pesas romuito particular, o gôsto dos hotamentos» na sua peca «Le Jarmânticas e impressionistas. Do rizontes vastos, dos ambientes indin des Hespérides», o sabor de tempo de marinha, tem algumas sólitos e um agudo senso do colojuventude no «Romance para Viopeças que fazia escondido dos corido. Através de uma notação exlino» a intensidade e o vigor de legas. pois era corrente, entre tremamente sutil, de inquletante «Cymballum» rapsódia para pianq aquêles rudes lobos do mar, que volatilidade. flutuam estranhos e orquestra, da «Sabedoria e a musica fina era coisa pra musortilégios, misteriosos encantaDestino»; a graciosidade da «Jalher. «— Minha prima toca plamentos» . kiana» de «La vie en bieu». a no...» — Êles diziam. Assim, A principio, Bosmans recebeu Bosmans chega ao futuro dos asBosmans tinha .odo cuidado para Influências dos impressionistas, tronáutas «Two Folks-songs írora, que os marinheiros não descoRavel e Debussy. Depois foi Gerthe Planet Mars». brissem a sua tendência para a shwin quem o levou a experimenÉ grande o numero de compomusica. Deixando a marinha pôtar o jazz. Mais tarde interessleões assinadas por Bosmans. de melhor desenvolver suas quasou-se pelo atonalismo schoemSão pecas para piano, violino, violidades de músico, vivendo nas berguiaho, fase -ápldamente supeloncelo, quarteto de cordas, grandes cidades da Europa, em rada, pois via naquilo muito de quinteto de sòpro, música de câcontato com as grandes figuras modismo, embora não negasse, em mera, pecas sinfônicas. tocatas, da musica contemporânea. MulShoemberg, o valor de suas comfugas, suites, músicas para balé, to estudo e pesquisas. Em 1933 posições. Bosmans, porém, sentia filmes, opereta infantil, e comporecebe o prêmio César Franck, de necessidade de expressar de outra sições educacionais. Elas são edicomposição, que representa pam forma, e buscou um nõvo camitadas nos Estados Unidos e na O jovem compositor um grande nho. Europa, e focadas no mundo inincentivo. Lanca-se a composi— Com a multiplicidade de sisteiro. Por elas, Bosmans é Cações mais arrojadas, e seu nome temas e tendências — afirma valeiro da Ordem de Leopoldo XI, vasa fronteiras, suas músicas Bosmans — para não se confunmembro efetivo da Sociedade de editadas são tocadas em progradir, não se emaranhar nesta rêAutores e Compositores, de Pamas onde se incluem pecas de de complexa que é a criacão arris; Prêmio César Franck, Diploma Bach, Vivaldi, Mozart, Haydn, tística contemporânea, o artista, de Mérito do Concurso internaRavel Dvorak, etc. A critica elocional de Composição «JB Viotem um dado momento de sua cargia suas composiecões e sua atuati» (Itáliaj; Membn do Instituto reira, deve tentar andar sozinho. ção como regente. Um critico euInter-amerlcano de Musicologitf Não se preocupar com a maneira ropeu diz de suas músicas: (Montevideo); Conselheiro para como será classificada a sua obra. «A obra de Arthur Bosmans, inMúsica Sinfônica da Alfa AcaO que vale é ter certeza de que tegrada na corrente da música demia Latina Internacional (Veresteja exprimindo o que realcontemporânea, caracteriza-se por sailles) e agora Membro efetivo mente deseja exprimir. Esta atiuma harmoniosa conjugação de tude conduz a uma liberdade comda Academia Internacional Leolirismo e ironia. Moldada nas nardo da Vinci. pleta, não sé permitindo-lhe usar composições polltonalistas, exprios processos mais avançados, coEm Belo Horizonte; Professor me a personalidade de um artismo também os tradicionais. de Composigão e Regência no ta brilhante, de inspiração proBosmans ilustra suas afirmaConservatório Mineira de Música funda e original, cujo vigor reções com exemplos interessantes: da UFMG. ARTHUR

4 BOSMINS

DE

MARilIRO

A CANTOR DO

PIAHEIA MARTE

Reportagem de M, PROCóPIO

29 de abril de 1966, no Salão Acadêmico da Sociedade de Autores, em Bruxelas, Bélgica. A «Academia Interuazionale Leonardo da Vinci — de ScienzeLettere-Arli» — reúne altas personalidades do mundo para uma cerimônia em que se faz a entrega dos diplomas aos seus novos membros titulares. Presentes, além da diretoria e membros da Academia (artistas e escritores de diversas nações): o Burgomeslre de Bruxelas, Lucien Cooremaus; a representante da Casa Real, Princesa de Mérode; os Ministros P. Vigny e R. Van EIsIand; a Senhora E. Goldstein, diretora do Departamento de Cultura do Ministério da Educação, etc. Receberam o diploma de Membro Titular da Academia: o Maestro belga Mareei Pool; o escritor e humanista alemão Josef Varisory; o poeta e escritor francês Jean Groffier; a escritora e educadora Josiane Bollensj o romancista e poeta d® lingua holandesa André Cyselin; e finalmente o compositor mineiro Professor Arthur Bosmans.

BOSMANS E 0 BRASIL A principio muita dificuldade. Juscelino Kubltschek, para orgaEra um asilado, não conhecia bem nizar uma orquestra sinfônica, a língua, não tinha dinheiro, não para o nõvo teatro municipal que tinha amigo, não era coiihecido. estaria pronto em breve. Ele veio para BH, na mesma época em que 1940 foi um ano difícil, pois a par Guignard, também a convite do destas dificuldades, tinha a lementão prefeito, viera criar a Esbrança da guerra que devastava cola de Belas Artes. a Europa, sua família lá, seus amigos lá, tôdas as suas esperanBosmans, durante algum temças e seus sonhos, bombardeapo, esteve à frente da orquestra, dos e arrasados pelo nazismo. O subvencionada, primeiro pela Pregênio, porém, sobrepõe-se ao sofeitura e depois pelo Estado. Pofrimento, às dificuldades. Um dia, rém a política artística municio maestro russo Eugen Szenkar, pal e estadual levou o artista que devia reger a Orquestra da internacional Arthur Bosmans a Rádio Tupi, adoeceu, e teve de abandonar a orquestra e praticaser substituído na última "hora. mente afastar-se das atividades musicais de Belo Horizonte. EnNinguém quis tomar tal responquanto isso, cresceu lá fora. sabilidade. Então, alguém se lembrou de um tal de Bosmans, que, Como maestro convidado, regeu havia pouco, viera da Europa a Orquestra Sinfônica Brasileira, e do qual já se ouvira aigum eloa Orquestra Sinfônica do Teatro gio. Bosmans aceitou, com coraMunicipal do Rio, e a Orquestra gem. Enfrentou orquestra, públiSinfônica de Recife e planejou e co e até um compositor desconheorganizou os cursos do Conservatório de Pernambuco. Em viacido: Alberto Nepomuceno. O congens ã Europa e aos Estados Unicerto agradou. Ele estava saldos, regeu as mais importantes vo. Vieram outros concertos, conorquestras e fêz conferências. vites para compor música de filmes. Finalmente, um convite do Critica; «Bosmans é um dos direentão Prefeito de Belo Horizonte, tores de orquestras mais hábeis

e competentes que tenho conhecido». Opinião de Curt Langes «Bosmans é um diretor experimentado, competente, sóbrio nos gestos, fiei na interpretação; músico completo». Agora êle se prepara novamente para mais uma temporada na Europa. Tem marcados, para janeiro, dois concertos em Bruxelas, outro com a Orquestra Sinfônica de Liége e mais dois com á Filarmônica de Antuérpia, e um grande conoêrto com a Orquestra da Rádio de Luxemburgo. Levará pecas de compositores brasileiros, num excelente trabalho de difusão de nossa música. Ele nos conta que, na Europa, nossos compositores são pràticamcnte desconhecidos, salvando-se Villa Lobos. E êle, naturalmente, que se considera brasileiro. Foi como Brasileiro que ingressou na Academia Leonardo da Vinci. E em uma reunião — conta-nos êle — no encerramento do festival da cancão, promovido pelos novos membros da Academia Leonardo da Vinci, em Bruxelas, êle teve que fazer um pequeno discurso. Fê-lo em português.

UMA CASA NA SERRA Sua casa no Bairro da Serra é um artista que pode ter certeza uma dessas casas antigas, com da alta qualidade de sua criacão. um jardim à frente, abundante Ele chegou a um momento de de verde, portas em arcadas que pienã maturidade artística. Seu dao para uma saia cheia de litrabalho como regente deu-lhe vros, quadros de importantes armaior segurança. Foi uma épotistas europeus e brasileiros, insca importante porque o contato trumentos de música, inclusive diário com as orquestras lhe inuma, citara, pecas de cerâmica, fundiu maior firmeza para compor: esta experiência lhe deu a algumas lembranças da Europa, possibilidade de abordar sem meBosmans é um homem alegre, do qualquer gênero de composivivo, agradável de conversar, e ção, sabendo, a priori, como vai recebe a gente cora visível prasoar com a orquestra. zer. Fala-nos de sua vida, mas Muita gente considera a sua gosta mais de que oucamos a sua música «difícil» de ser executamúsica, que é realmente a sua da. Êle explica: — Quando comverdadeira vida. Enquanto ouviponho, quero têda a liberdade. mos suas gravações, êle «rege» Não me prendo a métodos nem a com pequenos gestos e um sorrimodas. A música vai crescendo so. Embora de extrema tnodésdentro de mim, aos poucos. Às tia, a gente nota nêle um certo vêzes, ela me ocorre num bar, na orgulho. Justificável , orgulho de rua, no cinema, em qualquer lu-

gar. Tenho de arranjar lápis • papel para fazer anotações. Quando ela está realmente amadurecida então escrevo-a em definitivo, As vêzes, não se enquadra nos ritmos tradicionais. Não Importa. Adota uma escrita irregular, em 5 ou 7 tempos, por exemplo. E outras escritas mais complexas. Isto, de uma certa maneira dificulta a sua difusão entre nós, onde os executantes, geralmente, têm uma formação mais acadêmica e não estão preparados para as oriacões musicais mais avançadas. Mas isso não tem nada a ver com o público. Quase tôdas as suas músicas já foram editadas, com tiragens excepcionais, e são tocadas nos grandes centros culturais do mundo. O que significa que têm um público certo.

DEZ ANOS PARA Há dez anos, Bosmans está compondo uma sinfonia. A sua sinfonia. Pois êle acha que não é necessário escrever mais de uma sinfonia. Ele me mostrou uma pasta, onde estão as anotações que fêz durante êstes últimos dez anos. á? milhares de pedaços de paS0?3 08baraíunda signos musicais, uma verdadeira para quem íííi 9, mmlado na escrita musi9ÍL,Fedaços de de papel de embrulho, de maço cigarro, fô-

UMA SINFONIA Ihas pautadas soltas, que trazem ura dia será tudo isso, será K consigo fragmentos de uma obraSinfonia de Arthur Bosmans. prima. E êste maíuã, aos poucos, Simultaneamente, vai fazendo composições curtas. Hoje êle chevai-se ordenando, vai transporgou a úm slntetismo, a uma sotando suâ magia para as grandes briedade que são a marca da folhas de música. A sinfonia vai maioridade de um artista. SuaS tomando forma. Quando estará composições atuais são mais curpronta, não se sabe, não s® sabe tas, sem ornamentos inúteis; são ainda quando será som, acordes, mais simples, do ponto de vista ritmos, quando será realmente dos meios empregados: gie reduz ao essencial, sem chegar ao hermúsica, estranhos sortilégios, metismo. Ao contrário. Ele comisteriosos encantamentos, camunica mais. e melhor valos soltos no ar... Certo é que BLUES, CHORINHOS, E MÚSICA PARA CRIANÇA O maestro Bosmans vai ao plasuas produções, transcrever eritlDepois mostra as «Jakianas», neca a tocar eas saldas nos grandes Jornais que êle compôs primeiro para o a?eae i^?I umalembra múuni do mundo, seria igualmente lonseu filho Jack exercltar-se ao pia' Yí' «biue», -que íllnies no e. posteriormente, transformou go, E já estamos tocando multo ufi 9.0 romantismo americanos, à meiavai crescendo em peca para Orquestra, a pedifundo na sua modéstia. Ele 6 aos poucos e envolvendo a sala. do de seu editor norte-americano. um homem voltado para o traSao rnusieas que Bosmans comEscreveu também uma opereta balho, para s arte, um homem que iá foi levada em Belo Hosimples e bom. kfoicadeira assim, traz a marca edeque, umamesmo granrizonte, nos tempos heróicos, com Deixemo-lo agora para oue nos cenário de Guignard e direção de fale, tôdas as semanas, através de sensibilidade. Depois êle toca Ceschiatti. de sua coluna neste suplemento. um chonnho profundamente bra1 Teríamos muita coisa ainda a Ele tem muita coisa a dizer. Slieiro, numa demonstração de co- ■ dizer de Arthur Bosmans, o hoCompositor, maestro, professor, mo o belga conseguiu captar o mem e o artista. Mas seria proredator-chefe da Revue Musioale espírito brasileiro, como passou a longar demais, e repetir incesBelga (38-39), conterencista noo integrar-se na vida nossa. Ele se santes elogios à sua obra e à sua grandes centros europeus, com s tornou realmente brasileiro. pessoa. Enumerar também as paiavra — ARTHUR" BOSMANS-


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6 — MINAS GERAIS

(Suplemento Literário)

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Reportagem de Zilah Corrêa de ARAÚJO f: < Vf

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«São

muitos

os que

escrevem ■i

e poucos os verdadeiros escritores»

■— De «A Ilusão Literária» — 1932

;;v Logo após o casamento, há 31 anos atrás

homens)

manhã ou à noite?) e como escrevem (a

enxergam longe; de que morreram ou de

possuir e devorar as obras de romancis-

lápis, a máquina, a tinta?); de que gos-

tas, poetas, pintores, filósofos ou cientis-

tam, o que detestam; quais os seus hábi-

que parece vão morrer; se são bons chefes de família, homem de bem ou de bens, cí-

tas:

mais

tos e as suas manias; a mulher ou as mu-

ardem por saber como são os seus autores

lheres que amam ou amaram; se bebem, se

taram alguém; se usam ou usaram pseudônimo» .... (Do prefácio de Abgar Re-

(belos, feios, simpáticos, antipáticos, lou-

fumam, se têm bons másculos, vesícula

nault à 2' edição de «Como era Gonzaga»,

ros, morenos, pretos) .,Quando (pela

bUiar em mau estado; se são míopes oú

de Eduardo Frieiro)

«Não

lhes

quanto

basta,

mais os

Caos

conhecem,

Pois e isto mesmo! A nossa curiosidade é Insaciável e pobres das nossas vitimas... E pana satisíazer mais plenamente essa curiosidade, desta vez não procuramos diretamente o escritor, omos até sua esposa e, com ela, resolvemos pôr tudo em pratos limpos. Que nos dissesse D. Noêmia isto ou aquilo — ou tudo — a respeito de seu marido, EDUARDO FRIEIRO. Prudentemente, porém, com um saibo de remorso antecipado, aconselhámo-la a que ao respondesse o que nâo lôsse motivo de brigas entre o cesal: nada de quebrar a paz do lar, esta piaz que tanto caracteriza o lar dos FRIEIROS — «onde vai a corda, vai a caeamba — como diz nossa entrevistada e é do conhecimento de muitos. D. Noêmia («você vai ver que é uma mulher inteligente» — prevenira-nos Aires da Matta Machado — e explicou: «indo A sua casa pela primeira vez, ela apontou-me o lugar onde o marido trabalha. Veja bem, nâo disse onde êlo lê, mas onde trabalha»), admirou-se de que a quiséssemos entrevistar, perguntandonos com uma ponta de ironia: «Mas justamente eu? Ninguém me chama para nada!» Ironia ou modéstia, não sei algo mais a acres-

centar às qualidades que possui, mais que as exigidas pela «Carta de gula de casados».., E, antes que a censura marital pudesse vir a lançar um cruel anãtema, conduzlmo-nos a simpática moradia da Av. Francisco Salles, 1610, para conversar com a carioca D. Noêmla, mineira, no entanto, mineira de aclimatação, de hábitos, mineira de casamento, tôda uma vida vivida em Minas. Alertados os donos da visita, pelas não menos simpáticas vozes do Panchlto, o terceiro componente da tamilla, propusemos logo nossa «enquete» relâmapo e indiscreta, nos moldes do prefácio de Abgar Renault, Verificamos estar penetrando num clima onde campeava o «buen amor», éste sim, perfeito ideal doméstico, em contraposição e desmentido às palavras de Frieiro, nas páginas 115 de «O diabo na Livraria do Gônego»: «um ano depois (Gonzaga) estava prosaicamente casado com Juliana, jovem, rica e sem letras — perfeito ideal doméstico». Não conferimos se D. Noêmla era «de posses», mas bonita e jovem, sim, de letras, sim (confirmam o retrato e as respostas). Ora, não foi entre livros que se conheceram? No sêbo de «Sêo» Mar-

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ques, junto ao antigo cinema Avenida? Quando Frieiro. não mais era o antigo «cacador furtivo de leituras» e já (1955) autor consagrado? E que especial encontro foi êsse, pois, como Gonzaga, mercê talvez das suas origens portuguesa e espanhola (apesar da máscara de casmurro de que um se reveste), não são os dois «amorosos de puro amor»? Do mal que talam dêle — casmurrão, esquivo, irônico e irreverente, às vêzes mesmo impiedoso, o que lhe tem valido alguns desafetos — nem sombra se vê na palavra quente e entusiasta de sua mulher, que confessa ter, em anos. adaptado o seu temperamento ao do marido — «como um cameleão» (diríamos nôs o mlmetismo conjugai a que se obrigam alguns inteligentemente, para viver bem), e por que dizer-nos que ERA de gênio alegre, extrovertida, tendo-se torcido, fechado, «por artes de bem viver»? Se nos pareceu ainda assim de riso pronto a abrir-se, brlncalhona e espirituosa («temos os mesmos ronchs e os mesmos cabelos brancos — envelhecemos juntos»), de irradiante simpatia e vivacldade, como o

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nicos, rufiões, moedeiros falsos; se já ma-

retrato que Frieiro reproduz da mãe de Goethe: «sabendo conversar com vlvacidade naturalidade e graça e também sensível, dotada de grande fantasia e íncoercivel entusiasmo vital». Por que não também com o seu canto de irreverência, talvez isso pelo aprendizado caseiro daquelas artes, que se ressumam, para ela, na arte mais difícil .de amar? Na de fazer a boa, a gostosa companhia? «Enquanto resolver os meus consultos, tu me farás gostosa companhia»... (Gonzaga, «Marilla de Dlrceu»). Oh. os consultos, o trabalho diário, o estudo constante, as pesquisas incansáveis, o arrastar ia pena (ou da máquina? esquecime de perguntar), horas e horas: «a arte, está entendido, é filha do tempo e da experiência, é vida vivida e sofrida» («A ilusão literária», p. 17), para nos descobrir precloaidades que tais como aquêie delicioso Juan Rulz, goliardo e picaresco — do «buen amor», o alegre arclpreste. Trabalhos êstes do melhor quilate — de verdadeiro escritor —. que, consubstanciados em tantas obras, trouxeram a Minas a maior láurea literária do país, o

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prêmio «Machado de Assis», da Academia Brasileira de Letras. Ainda, Mestre de literatura espanhola, ensaios, romances, livros, livros, revistas, revistas, papéis papéis que fariam a outra — que não ela d, Noêmla — detestar a concorrência desleal dentro de casa. E a influência por ela exercida sobre o marido, o escritor e o homem, também não se conta? Como se penetrar no impenetrável? Do anedotárlo de Frieiro é o fato de acompanhar D. Noêmla à missa, a ler piedosamente o «Mlssal» («Les Essals», de Mootalgne), apreciando, doutro lado. a música religiosa — o órgão, o harmonlum. Temos de repetir ainda Frieiro, que em «O Diabo na Livraria do Cônego» transcreve as palavras da mãe de Goethe fto poeta: «Podes agradecer a Deus que te haja dado por companheira uma criatura sã, encantadora e boa, tão difícil de encontrar». E assim é também D. Noêmla, mulher dotada de espirito, mas sem pedantismo ou pretensão, nem bacharela nem literata... («Nada de bachareias ou literatas» — O alegre arclpreste, p. 46). $e não, vejamos as inteligentes respostas de O. Noêmla:

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.... 1 7 — MINAS GERAIS

(Suplemento Literário)

0 Depoimento

de PASSEIO

Celina FERREIRA Noêmia

Pires

Frieizo

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1) Como é o gênio de seu marido? é o marido perfeito? — Casmurrão de marca maior. Desigual nas suas reações afetivas: ora jovial e comunicativo, ora ríspido e soürancão, ora alegre e bom camarada. Não tom, isso não tem, a pretensão de ser perfeito. 2) Como o conheceu? Quando? — Numa livraria. Cm frequentador viciado de livrarias só podia achar-se de Jeito numa casa de livros, o excelente «sêbo» de «Seo» Marques, junto do antigo Cinema Avenida. 3) Foi atraída pelo escritor ou pelo homem? — Simpatia pelo homem, ünicamento. 4) Quais as suas maiores qualidades como marido? — Lealdade, franqueza, entranhada afeição, devotamento. 5) Como se comporta êle com as suas amizades? Tem multas? — É de poucas, contadas amizades. ãluitas prevenções. Antt< patias gratuitas. Alguns desafetos. 6) Qual a obra que prefere entre as que êle Jâ escreveu? — Gosto de tôdas. Mas a escolher uma, preferiria «Inquietude, melancolia», o romance de Baslleu Prisco, que é um pouco o esquisitão do meu marido, tímido e desconfiado de si mesmo. 7) Gosta de escrever cartas? — Não gosta nada, mas recebe multas © responde a tôdas, deixando cópias. E guarda tudo, bem colecionado. 8) E ordenado, metódico ou dispersivo? — E meticuloso, ordenado e metódico quase em excesso. 9) Esta sempre a assisti-lo, quando êle escreve, ou deixa-o sossegado? — Quando êle se acha trabalhando, no escritório, não gosta de ser interrompido nem de ninguém perto dêle. A única companhia que tolera com prazer é o cachorro.

14) Entende de negócios? Quem cuida dêles? — Tenho a pretensão de ser um espírito bastante prático. Êle também é um espirito realista. Não somos, porém, de negócios. Em nossa casa, a parte administrativa e econômica me pertence quase totalmente. Êle é a receita e eu sou a despesa. Outra coisa: meu marido é incapaz de mudar um fusível ou uma simples lâmpada. Tem até mêdo de mexer com eletricidade, que é para êle • ura mistério indecifrável. Eu, pelo contrário, gosto das 15) Nunca pensou em escrever? — Dm escritor na família € suficiente. 16) Reina no casal a paz doméstica? — Sim, paz doméstica, quase perfeita, cora os habituais intermédios próprios da vida conjugai. 17) Que põe êle em primeiro lugar, a senhora ou o trabalho a que habitualmente se entrega? — Como se há do penetrar no impenetrável? 18) Gosta êle de receber colegas, ou se esquiva? — Raramente recebe visitas de colegas a ésse simples título. De sua parte, nunca as faz.

26) Boa, a saúde de ambos? — Não nos queixamos. Mas as pessoas com saúde são doentes que se ignoram, como dizia certo médico de uma coméldla. 27) Tem agradáveis recordações da infância e da juventude? — Muito pelo contrário, não gosta de se lembrar de uma infância pobre e de uma mocldade insignificante e melancólica. Não ama o passado, não pensa no futuro o sente-se privilegiado por ser oontemporâneo dos maiores acontecimentos de tôda a história humana; as duas grandes guerras e suas extraordinárias conseqüências políticas o econômicas, o fim do imperialismo britânico e o começo do norte-americáno, a grandeza e a ruína do terceiro Reich, a ascenção da Rússia o da China, a descolonização do terceiro mundo, a era da física, a conquista do espaço e da estratosfera, o reerguimento da Europa etc., etc. Ama o presente. Não é como os outros velhos que estão sempre a dizer que o passado era melhor. Detesta até a companhia dos que eaem logo na «hora da saudade». 28) Gosta de livros antigos, livros velhos e raros? — Nem por isso. Prefere sempre as novidades literárias, especialmente as francesas.

19) E grande ledor de jornais? — Incansável leitor, não do jornais (sé iê dois, ültimamente), mas de revistas especializadas, sobretudo estrangeiras. Revistas brancas, sem figuras. Diz êle que as revistas ilustradas são para saião de barbeiro. 20) Como trabalha? Qual 6 o horário preferido? artes mecânicas o de andar consertando Isto e aquilo. — De alguns anos a esta parte só trabalha regularmente de manhã, de 7 ás 11. Raramente, á tarde. 21) Está bem de vida, financeiramente? — Medimos a água para o fubá que temos. 22) Sente-se como companheira perfeita? — Quem me dera! Fazemos falta um ao outro, é tudo o que posso dizer. 23) Se viaja, escreve-lhe com freqüência? — Acontece que sempre viajamos juntos, mesmo quando vamos ali a Sabará. 24) Tem algum «hobby»?"» — Nenhum. Nem êle nem eu. 25) Seu prato predileto? — Bife com batatas fritas e

Algum dia eu teria personagens ávidas de minhas estória», fantásticas personogens insistindo comigo e desgostosas de minha indiferença. Só um poeta, cioso de seu compromisso com as estréias, disfarçaria tão de súbito sua ambição vergonhosa de ser glorifieado. Adeus, amigo», leval-me até o final da ponte e estareis desembaraçados de minha maneira seca d© não vos bajular, porque meu pouco amor multo me obriga a ser demasiadamente amorosa até oom as vossas sombras. De mais a mais, há mii o uma formas de sermos agressivos e a mais presunçoea é o amor.

10) Gosta então de animais? Adora-os. Se eu admitisse, a nossa casa serio uma orca de Noé de fazer inveja àquele francês misantropo que se chamou Léaulaud. Por sinal que sé temos agora um cachorro, o Panchito, terceiro componente da familio.

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11) Acompanha-o sempre nas suas atividades fora de casa? — Tais atividades são raras. Pouco vai a festas e jantares. Não ê de rodas literárias e quase não freqüenta a Academia. Gosta muito de cinema, teatro, e concertos. Estamos sempre juntos. Onde vai a corda vai a caçamba. 12) Como professor, estava sempre a falar de suas alunas? — Quando era professor, falava muito a miúdo de suas alunas melhores. Teve algumas fora do comum, das quais se mostrava muito amigo. 13) Que me diz dos seus sentimentos religiosos? —- Sou católica praticante. Êle d totalmente indiferente a qualquer religião. Nunca pensei em «convertê-lo», mas espero que algum dia, com a graça do Deus, He me acompanhe na fé.

De um certo modo eu ia vivendo. A verdade é que viver Implica muito desgaste, desde o bom-dia atirado á cara do vizinho que não se odeia, mas que, no fundo, é uma lástima ser nosso vizinho. Não fõra uma rosa improvisada na lembrança ou uma serpentina usada em vários carnavais do passado, que seria de nós a de nossos semelhantes? Que seria principalmente de mim, se não fôra minha absurda mania de fantasiar, de economizar minhas verdades que são todas inimigas? Para isto há sonhas, meu senhor? Para isso há sonhos... Então eu continuava caminhando atrás de minha sombra e haver lua não atenuava minha angústia e minha sê,do de conhecer quem seria a figura entre mim e minha sombra. Por certo, um fantasma, conclui apressada, tentando não me preocupar, Essa foi sempre a melhor maneira d© ninguém inquietar-se comigo. Pensei que não deveria mais prosseguir em meu caminho. Ora, ora, ora. Quantos homens e quiçá tristes mulheres já fizeram o mesmo percurso antes de mim e de minha péssima vontade de escrever? Odiei Kafka por ser um pobre infeliz, sem analista que se negasse a analisá-lo. Kafka e sua angústia partida ao meio, metade minha, apenas eu nascesse deveras atrasada. Recomporme? Oriticar-me? Desiludir-me ou tentar assim mesmo o caminho? Eu iria muito além de Taíretá, se os trens não andassem demasiadamente libertos de horário. Por Isso consulto inúmeros relógios dos transeuntes que me poupam a vergonha de estar sempre notificando o tempo, de minha pressa. E qualquer analista diria que isso ê um desordenada amor sem proveito, que é preferível dois pássaros voando a um, inútil, entre o sono e o outono. Depois, meu passeio findara de repente, nas entrelinhas de um anúncio o desviver de tudo jamais seria possível. Restava prosseguir em tom de marcha, empunhando a bandeira apesar de tudo Invicta.

D. Noêmia Pires Fríeiro — segue o preceito: «o marido tenha as vezes de Sol, a mulher as de Lua».

Obras publicadas de Eduardo Frieiro; O Clube dos Grafõmanos, romance, 1927. O Mameluco Boaventura, romance, 1929. Inquietude, melancolia, romance, 1930, O brasileiro não ê triste, ensaio, 1931. A Ilusão literária, ensaios, 1932, O cabo das tormentas. romance, 1936.

Regresso de meu passeio. Que usufruí senão a paisagem que me copia nos menores gesto»? Senão minha volta ou o símboIlsmo das pessoas recolhendo-se ft« caixas do sapato, metôdioamente desarrumadas pelo quarto? Além de tóda fantasia, cuido ainda que a verdade é a melhor maneira de disfarçar-me. Assim ninguém me açulará os cães d» curiosidade e do despeito. Mostrando mfnlia fraqueza, ninguém se negará a propor-me trégua» nem Improvisará guerrilhas desintellgentes e gordas de ambigüidade. Eu ficarei sòzinha oomo sempre me aprouve, a despeita de milhares e milhares de estréia» vigiando minha» doce» reiutftncia». B sózinha poderei construir e desmanchar fantosma» sem a possível agressão d» taámeras perguntas triviais. Baeta O desespero do voltar sempre ao» mesmos prato» diário», anima irrevogável mesa redonda.

Frieiro — Casmurrão, metódico quase ao excesso, de poucas, contadas amizades, entre as quais 9 Panchito

Letras mineiras, notas de critica, 1937. Os livros nossos amigos, reflexões de um amigo dos livros, ensaio. 1941. Páginas de critica e outros escritos, 1956. O Diabo na Livraria do Cônego e outros temas mineiros, 1957. O Alegre Arcipreste e outros temas da literatura espanhola, 1959. O romancista Avelino Fóscolo, ensaio Wo-bibliográfico, 1960.

Obras inéditas: Feijão, angu e couve: Ensaio sôbre a comida dos mineiros — a sair por êstes dias, edieão do Centro de Estudos Mineiros, da UFMG. Gente de Minas (Alguns escritores mineiros). Mundo de papel, motivos literários. O eimo de Mambrino, ensaios. Bocejos de Salomão, aforismos e reflexões. Falando de escritores, ensaios.

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8 — MINAS GERAIS

(Suplemento Literário)

Aires da Mata Machado FILHO

Assim termina João Etienne Filho a introdução ao volume dedicado a Euciides da Cunha, na coleção Nossos Clássicos: «Não conseguiu ser engenheiro, não conseguiu ser militar, lol infeliz no seu iar. Mas a instabilidade de sua vida, transílgurou-a êle na estabilidade de uma obra que. com os defeitos e deficiências que tenha, profundamente humana, vingou-o de seus fracassos e ficou. Bela, Perene, Duradoura». Em verdade, nos quarenta e três anos da breve e atormentada vida que sofreu, entre desilusões e frustrações, numa sõ atividade aicangou a plenitude, naquela que, uo dizer de Carlyle, «6 a mais milagrosa de quantas o homem tem imaginado — a arte de escrever». A engenharia coroalhe a originalidade, em terra de bacharéis e doutores q e escrevem, além de lhe havei ensejado as circunstâncias favoráveis a elaboração de «Os Sertões», pela forma que afinal convinha. Deixou de servir para soldado, na proporção em que nasceu para escritor; mas sem a ciência e a experiência de militar não teria escrito o seu grande livro, nem muitos entre os ensaios avulsos que também o imortalizaram, se chegasse a exercer o magistério, para o qual as -ais vincadas feições do oficio estruturalmente o desqualificavam, reagiria, provavelmente, na criacão de um livro, como em livro remataram as'* missões na Amazônia e o reconhecimento do Purus. E a mesma infelicidade no casamento, deflagrada em trágico ponto finai, encontra parcial explicação em certas qualidades negativas, que às vêzes inquinam a psícoloiga diferencial do artista. Multo para além de «pessoa que escreve», na latitude iexicográíica da simples definição nominal, bem mais que «pessoa que escreve, com imaginação e com talento, livros, folhetos, artigos, autor de obras escritas e impressas». Euc, es da Cunha, fiel e devotado ao extremo, entregou-se ao culto e á prática da arte da palavra escrita, como a verdadeira profissão, no mais alto sentido da palavra. Pe escrever não vivia, que i i Iioj"e, quanto mais naquêle tempo, havia, entre nós, mercado de trabalho para tanto. Como em poucos, nêle se manifestou o conflito entre a prosaica «necessidade aborrecida» e as exigências da vocacão dificultosa: tanto que. a pique de renunciar a prosseguir O concurso de Lógica no Pedro H, O qual lhe proporcionaria condigna situação estávçi, so compareceu à segunda prova, quando Afrãnio Peixoto logrou convencêlo, em compreensiva argumentação de amigo, de que nenhum pronunciamento da comissão julgadora atingiria o autor de «os Sertões», «o livro fundamental da literatura brasileira». Professou na ordem das letras como numa religião. Eeligiosamente, com retidão de caráter, ardor de temperamento, ímpeto de

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imaginação «candente» (o adjetivo é de Araripe Júnior), cumpriu os graves deveres que Ficht aponta ao homem de letras; «amor à verdade, integridade oq caráter, culto invariável ao bem, ao reto, ao belo». Em sumo grau, ostentava os dotes especiais que Saínz 1 Robles Julga imprescindíveis a escritor: «Imaginação, sensibilidade, faculdade de abstrair e generalizar, espírito de observação e de análise, gosto do seleto e do original, fertilidade de idéias, poder de expressão» . Pela minha parte, acrescento outros requisitos, por sinal retintamente euclidianos, ü escritor ama a liberdade sôbre tõdas as coisas, porque sem ela não pode escrever, não pode viver; a ela nunca pretere a ordem a que, sem liberdade, se chama opressão; professa, cultiva e pratica a rebeldia, no ínconformismo de quem desaceita, na ordem social que aspira a reformar, a injustiça e a descaridade. Por deliberada e lúcida rebeldia de escritor, o Jovem republicano que, aos 22 anos. Já rimara versos socialistas, saiu fora de forma e .tentou quebrar no Joelho o espadlm de cadete, ante o ministro da monarquia que lhe repugnava homenagear. Foi o único da Escola Militar com hombridade e coragem para cumprir o resolvido, na hora da conspiração. Pouco valeram provas de compreensão de médicos e amigos; nem a pldedade inesquecível da religiosa, suave enfermeira, fez mais que reconciliar com a humanidade, momentâneamente o mõco revoltado e malferido. Foi excluído das fileiras. De puro escritor, apaixonado da ■verdade e da Justiça, o protesto r iblico, em artigo de Jornal, contra a preconizada violência, para punir, indiscriminadamente, todos os presos da revolta de 93, por via de uma bomba que não explodiu, mas foi encontrada na redação de «O Tempo», Jornal do governo. Tal atitude tornou suspeito â legalidade o oficial que íôra readmitido ao exército. 4 dias depois de proclamada a República. E o autor do perfil do «Marechal de Ferro», que, altivo como qualquer escritor, consciente de si e da profissão abraçada, recusou tentadoras ofertas de Floriano Peixoto, dessa vez deixou a farda para sempre, a requerimento do próprio punho. Tiabalhando no «Estado de são Paulo» chegou-lhe a oportunidade para as correspondências enviadas de Canudos, núcleo da obraprima que escreveu. Engenheiro do Èstado, cumpria-lhe, por 1899, reconstruir, em São José do Rio Pardo, uma ponte que rulra. Na faina de técnico e no sofrido labor da criacão literária, enchia as horas úteis do dia, convivendo com bons afnigos que o acolheram. «Pois êsse homem sempre animado do mais sadio espírito público — escreve Olímpio de Sousa Andrade — êsse homem mais equilibrado diante das lutas políticas,

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parecendo cultivar, como escritor, o desejo de bem compreender o passado, mas apelando para o futuro, é que foi dar em São José do Rio Pardo com um grupo de amigos socialistas, liderados por Francisco Escobar. E ali, enquanto criticava duramente a situação política brasileira, no livro que escrevia, participou, a seu modo, dos ideais do grupo, formado, em sua maioria, de imigrantes italianos que, Jesde 1898, comemorando o T' de maio, acabaram fundando, em abril de 1900, o «Clube Socialista dos Operários» e, em setembro do mesmo ano, o «Clube Internacional Filhos do Trabalho», formado de dissidentes do primeiro». O convívio de Euciides com êsse pugilo de idealistas sugere a idéia de sua filiação ao socialismo. Certos biógrafos chegam a invocâ-lo, em rapto oratório, a falar cm comícios, em meatings, como se dizia nesse tempo. No extremo oposto, há quem lhe negue idéias socialistas. O debate suscitou-o na Sei .na Euclidiana de 1956 o Dr. José Aleixo Irmão que, ao têrmo de aturadas pesquisas, sem negar elementos socialistas no pensamento em estudo, defendeu tese enunciada, no próprio tema de conferência que então proferiu: «Socialista militante Euciides não foi». Joaquim Ribeiro que assistiu a ela e trata do assunto em artigo do «Correio da Manhã», de de setembro de 1956, empreendeu alguma pesquisa pessoal. A propósito de certo bilhete coníirmador da militanca recolheu o depoimento de Rubens Ortlz, a quem se tem atribuído laudo favorável à autoria e que lhe declarou textualmente: «Dei apenas uma opinião pessoal, pois não sou especialista; a letra, embora se pareça com a de Euciides, Julgo que e de outra pessoas». Depois dêsse desmentido e dêsse esclarecimento, restava o testemunho de Fascoal Artese, que1 o saudoso poligrafo ainda pôde ouvir, depois de tantos outros estudiosos de Euciides: «O velho Uder socialista informoume que Euciides participou do Clube «Os Filhos do Trabalho.» Mostrou-me o originai do convite, com o recado escrito, atribuindo-o a Euciides, e ainda me mostrou os originais dos Estatutos do Clube, sustentando que foram elaborados por Euciides da Cunha». Valeria talvez a pena Investigar por que motivo Artese, em cujo testemunho, insistamos, se têm estrlbado os biógrafos, confirma sempre a colaboração de Euciides, sem nunca admitir a exclusividade de Francisco Escobar. Embora o primeiro não estivesse presente à decisiva reunião do Clube, atribui ao segundo, conforme se lê em «História e Interpretação dos Sertões» de Olímpio de Sousa Andrade, estas palavras: «Amanhã eu e o Dr. Euciides vamos redigir o manifesto da significação da festa de 1» de Maio.» No dia seguinte, à noite, encontrou-se com o futuro autor de «Os Sertões» que lhe disse; «Artese, está al o manifesto que eu e o Chico acabamos de redigir». Segundo Oümplo de Sousa Andrade, que dêle trans-

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creve algumas frases, trata-se de cêrca de dezesseis linhas datilografadas. Manuel Casassanta, na sua excelente biografia de Francisco Escobar, Indentiílca-o com o exórdio de um programa dos festejos cívicos, e chega a duvidar de que existisse manifesto prõprlamente dito. Em têrmos Iguais ao da tra 5cricão de Sousa Andrade, vem, na íntegra, na página 56, do seu Francisco Escobar (M e í:', Belo Horizonte, 1966). Ora, para mim, essa Introdução ao programa não é mais do que o próprio manifesto, por êsse meio também divulgado. Defende Casassanta a exclusiva autoria de Escobar. advertindo: «Do cotejo entre as cartas de Eseobar aos amigos mais chegados e o exórdio do programa, ressalta a mesma linguagem simples, direta, acessível a tôda casta de leitores, a léguas de distância do estilo euclidiano.» Sem duvida. Acresce, porém, que redigir é trabalho por natureza individual, principalmente quando se trata de pessoas com estilo inegàvelmente diverso. A colaboração de Euciides, de «simpatizante», no dizer de Olímpio de Sousa Andrade, deve ter-se reduzido, penso eu, ã simples aprovação do texto lido pelo amigo. Manoel Casassanta apresenta uma carta de Euciides a Afonso Arlnos, apresentando a Escobar, a qual parece reduzir a nada o socialismo do nosso autor. Na realidade, não deve ser interpretada ao pé da ietra. Tenho a impressão de que foi escrita em ar de brincadeira, pois, falando ao convicto monarqulsta, alude ao republicano vermelho que acabou no socialismo. Vejamo-la. «São José do Rio Pardo, 5-10-898. Dr. Afonso Arinos: O portador dêste, Francisco Escobar, Intendente Municipal desta cidade — ex-republicano vermelho (infelizmente descambando para outras regiões), é um amigo meu que lhe entregará um volume do Dr. Paulo Couvler e pedirá noticias de um artigo que daqui mandei para a Revista Brasileira. Do seu, etc.» Quanto ás idéias políticas e filosóficas de Euciides da Cunha, conclui Mánoel Casassanta: «Fõrca é concluir que Euclide sob a forte Impressão de Augusto Comte, tendia para, a corrente positivista de Teixoir. Mendes...» Isso não obsta, penso eu. até facliltí dada a natureza do pensamento de Teixeira Mendes, que também adotasse idéias socialistas, que as poesias e outras manifestações documentam, sem embargo do liberalismo e do individualismo que Sousa Andrade aponta, nesse escritor que entoou louvores à iniciativa particular, típica da civilização ianque. Não admira, o ecletismo Ideológico habitualmente caracteriza a atitude dos que fazem timbre de independência Intelectual. Quanto ao mais, participou das atividades e dos Ideais dos socialistas riopardenses, a seu modo, realmente, não só pelas ocupações de engenheiro, aliadas às absorventes preocupações e trabalhos de autor, mas porque, tem o escritor maneira muito sua

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de tomar parte na política, a mesma do ardoroso republicano, do Jovem rebelde e destemido, do Jornalista apaixonado da verdade e da Justiça, do autor do grande livro que nào deixou nada por dizer. De oom grado tomaria para si aquelas palavras de Mauriac: «O escrltoi que se preza é um cidadão como os demais. Experimento o prazer em participar da vida da cidade, mas não posso fazê-lo senão com cautela, inquietude e escrúpulo.» Que acabado político haverá que se embarace com semelhantes «abstrações», principalmente nessas terras onde o têrmo designativo da arte magna Já se contamiou de sentido pejorativo? A cautela que orienta os políticos tem parentesco com a sagacidade, é mostra de habilidade, pontos que deixam de importar para o escritor. O cuidado com que êsse age, Uga-se a preocupação com a verdade, a crenca nas idéias, â fidelidade ao ideal entresonhado. A inquietude não é a de quem teme a rasteira ou procura ensejo para aplicá-la, mas a de quem sente o desnível entre sonho e aeâo. O escrúpulo, êste, são todos os escrúpulos, principalmente os de não se negar a si mesmo. E qual será o dessa gente que entre nós se dedica àquilo a que se convencionou dar o nome de política? Também as desilusões do escritor que se entrega à vida pública diferem das que, às vêzes, salteiam os políticos comuns. São de natureza ideológica. Já que a esperança que depõem nas soluções dêsse gênero se funda num sistema de idéias e Ideais. O escritor, que tem no espirito critico a sua razão de ser, que vê no engajamento a entrega de quanto lhe é mais caro, que sabe a que pode conduzir a euíemlstlcamente denominada «disciplina partidária», nega-se a inscrever-se em qualquer partido, motivo suficiente para o considerarem com reserva em todos êles, para ser mal-visto, nos grupos e faccões que se dlgladiam. Também, o que ihe importa são as idéias, e só as Idéias. Imaginem se não fôsse assim, se até êle, o homem que preza a liberdade acima de tudo, se prestasse a figurar no côro de amenlstas, que respondem submissos ao solo dos ousados! Ê melhor continuar sofrendo as suas desilusões, fundas desilusões porque sem cura, do que renunciar à fé nos altos valôres que o levam a influir, ainda sem querer, na marcha para o aprimoramento ou na direção que contraria as Incansáveis íôrcas da corrupção e do despotismo. «Rei sem corôa — na frase de Lamenaís — o escritor verdadeiramente reina com seu talento e influi na posteridade com os seus escritos». Tal o nosso Euciides da Cunh 1. Para São Jose ao Rio Pardo, onde escreveu «Os Sertões», não levou cultura literária e gramatical proporcionada aos vastos conhecimentos científicos, nem talhada para o grande livro que tinha em mente escrever. Aí, porém, encontrou a rica biblioteca de Francisco Escobar, a seguni

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9 — MINAS GERAIS

orientação desse espirito de eseol, as ligões e as contribuições de outros escritores de valor, como Valdomiro Silveira, os quais também freqüentavam as tertúlias da gloriosa cidade paulista. Compenetrou-se da necessidade urgente de versar os clássicos. Fazia questão de os ler, com espirito de análise e pessoal interpretação. Assimilava-os, sem se submeter; mirava-os e admirava-os sem abrir mão da inata propensão a revolucionário. Excelente escritor, rico de idéias justas, vibrantemente cõnseio do que ia dizer, trabalha a expressão nos antípodas daqueles maus escritores a que se refere P. C. Lichtenberg nas suas Keflexioms, os quais «tentam exprimir as suas fracas idéias na linguagem dos bons». Artista, com o fim de superar os obstáculos à expressão satisfatória, entrava «no conhecimento dos grandes autores para travar relações profundas com as palavras e as expressões que depois manipularia a seu modo, tornando mais sólida e resistente a linguagem que iria inaugurar com seu livro», na certeira observação de Sousa Andrade. Os Sertões deram tom e timbre à literatura nacional. Rasgaram horizonte a pesquisas que ain^ da prosseguem, nas infinitas possibilidades do idioma. Imprimiram direção consciente e cientifica aos estudos brasileiros. Livro por excelência do Brasil, Impõem-se como obra original. Para Chateaubriand, «o escritor Originai não é aquêle que não ' imita ninguém, senão aquêle a que ninguém imita». Dão ha vista a fraqueza dos epígonos, que a singularidade não se deixa captar. Na justa opinião de C. Pronier, «o escritor original não é tanto aquêle que descobre idéias novas, como aquêle que imprime a tôdas as suas idéias o cunho do descobrimento». Ora, na floresta de surprêsas das possibilidades lingüísticas, Euclides da Cunha é um descobridor, com o seu «estilo rompente». na feliz qualificação de Godofredo Rangel. «Os autores mais originais dos tempos modernos consideram-se tais, não por terem criado algo de nôvo, mas Onleamente por serem capazes de üizer algumas coisas, como se nunca tivessem sido ditas daquela maneira» . São conceitos de Goethe que vêm a calhar a propósito de Euclides. A insólita novidade do seu livro sacudiu o marasmo ordenacias letras brasileiras do seu tempo. Enquanto o público mia de entusiasmo, o autor, entre aoabrunhado e assustadlço, en legava-se â faina Impossível de rever os exemplares Já impressos, para os expungir de supostos erros, temendo a censura dos gramáticos. Sacrificava-se ao ideal de pureza da língua, mas desdenhava os puristas que de fato pontificavam em 1902. Poderia repetir-lhes a exclamação irritada que desfechou contra Júlio Bueno, quando êsse fiel parceiro do gamão sem fugir ás normas estabelecidas, o fechara, impedindo-o de mover as suas pedras: «Eu não sou escravo de regrlnhas de jôgo, ouviu? Isto é mera convenção». E, num assomo de individualismo, idêntico ao do renovador da língua e dos processos literários: «Fica para nós estabelecido que não se deve bloquear o adversário, inutilizando-o, deixando-o na atitude vexatória de um lunático». Em lugar disso, espancou as angústias de escritor torturado satirizando os gramáticos, na composição intitulada O Paraíso dos Medíocres. O escritor imaginavase perto do Inferno e guiado por Vergiiio. Mas, de súbito, o guia desapareceu, deixando-o rodeado pelos demônios. Ao gritar-lhe Pelo nome, quem surge é uma figura burlesca e que se propunha guiá-lo até o Paraíso dos Medíocres, dizendo-lhe: «Sou Marceleus Pompônio, o (purista, O Guia que lhe trouxe êste (Vergilio, sta ama-sêca que apelidas tan... (to. me suportarlas; eu sou (capaz mostrar solecismos nas Fê»Z bem («Geõrglcas». ' fugiu, e tu certo o O Gêr,i„ (conheces. Certa !?. Prodiãioso We venceu notável Um êrro - apontando rro d? de gramática nos Au(tos».

(Suplemento Literário)

Mbnte Cristo de Dumas ou Os MisSeria Euclides um escritor petérios do Povo de Eugênio Sue, dante? De modo algum. Não de respiração opressa, sem topertencia ao número daqueles que, mar íolêgo, para só parar na úlconforme Disraeli em Ouriosities tima página e com a dolorosa of Litterature Imaginam que posaudade de quem abandona uma dem suprir, pelos esforços da infesta Inolvldável. Desabituado dústria pessoal, as deficiências dessa emoção única e ininterrupda natureza». Não as tinha, nunta, tive a surprêsa de senti-la, ca as teve e as diligências em que se empenhava eram as de como naquela época, restaurada escritor consciente do oficio. No pelo livro do Senhor Euclides da discurso de recepção na AcadeCunha», Adiante compara o nosmia Brasileira, teve ocasião de so autor a DostoiewsE. confessar, a propósito do esíôrOliveira Lima, representante do co, afinal amplamente compensaBrasil no Japão, estando a vedo, por expressar cahaimante o ranear perto do vulcão fumegandeslumbramento de artista, em te da cidade de Asamaiama, asface do Amazonas; «O que eu, fisim resume a impressão do lilho da terra, e perdldamente enavro que lhe mandaram do Rio: morado dela não conseguira, de«Não sei se iníluída a sugestão masiando-me no escolher vocábudo meio, achei o livro vulcânico. los, fizera êle (um sábio natuIsto é, impetuoso e explosivo». ralista) usando um Idioma estraComo classificar essa explosão de nho, gravado no áspero dos dlcratera? Lê-se com aquela anzeres técnicos. Avaliei, então, siedade a que alude Araripe Júquanto é diíieii uma coisa trivlanior, como se fôsse um romance, lísslraa nestes tempos, em que A emoção porém que põe a íreos livros estão atulhando a termir a sensibilidade é própria ra, escrever». de poema. A escolha de palavras Por simples preocupação prode quem lhes conhece o recôndifissional, além do embevecido to mistério, na ressonância coamor de filólogo, na mais ammo no sentido, é sortiléglo de pla acepção do têrmo, nunca papoeta que prefere a variada amplidão da prosa. O arranjo dos ra emprego despropositado, anovocábulos, a orquestração da frataria no punho da camisa as palavras novas que ia aprendense podem não incluir versos, que do. O mesmo Afrânio Peixoto que a breve trecho, aliás, repontam, refere a anedota, como também mas a subordinação ao ritmo noregistra a frase de Nabuco sôderoso é de poeta verdadeiro. De poeta, ao cabo, é também a probre o «estilo de cipó», conta um caso demonstrativo de que o aujeção pessoal, nesse ensaio lírico, tor de Contrastes e Confrontos ia nesse poema épico de apresentaenriquecendo o seu pecúlio verção ensalstlca. Nenhuma dessas bal, na língua em pleno qualidades exclui a objetividade, funcionamento. «Um dia, em São a exatidão nos informes, a pertiPaulo, ná porta da Livraria Garnência das noções apresentadas, raux — escreve Afrânio — conque a poesia, afinal, a tudo magversava com amigos. Aehegou-se nífica. As próprias criticas ao um homem humilde que se pôs govérno, às «fantasias do poder armado» não deixam de rever a contar façanhas sertanejas. Era por uma trovoada passageipoesia. «Monstruoso poema e ra de verão.., «De repente, o brutalidade e fôrça» chama-lhe céu escampou...» O matuto aino próprio autor. «Poemas da moda não acabara, e já Euclides não cidade musicaram-se nas nuas estava... O verbo se fôra graprimeiras Idéias», escreve Araripe var numa página Imortal feita Júnior, que acrescenta: «Depois talvez para êle... alterou e repartiu os ritmos e sonorldades, variou a métrica e Sempre na pista do têrmo próforam ainda epopéias o que nos prio, Euclides da Cunha evitava legou a sua prosa». Pam Féllx o vulgar. «Pareceu-me que a sóPacheco, são Os Sertões «o pribria e a rigorosa beleza de seu meiro poema sério e realmente estilo — escreveu Monteiro Lobelo da terra interior do Brasil». bato em carta a Godofredo RanFreqüentemente, como nesse cagel — vem de não estar canceso, a obra genial deixa de enrado de nenhum dos cancros do quadrar-se em classificações, inestilo de tõda a gente — estilo contestàvelmente, de acabado que o jornalismo apurou até o poeta é a surpreendente visão ponto de bala acadêmico, tordessa minúcia fugidia, na trama nando-o untuoso, arredondado, e do formoso ensaio O Marechal impessoal». Afina pelo mesmo de Ferro: «...e não prendeu o diapasão Isto de Alberto Rangel, parlamentárlo indisciplinado que o mais aproveitado entre os disao sair adivinhou, adensados no cípulos do grande escritor: «Euescuro, dentro, no vasto pátio inclides da Cunha tinha na verterior, todos os batalhões de indade o culto da imagem e não a fantaria com as espingardas em idiota paixão do vocábulo, em que descanso, e de baionetas calase sacrifica a raridade à prodas, onde se Joelravo, salteaciapriedade, na tecitura de precioslsmente, em súbitos reflexos, o brimos fáceis. O Joaihelro ama a lho das estréias». jóia para dar-lhe destino e não como o avaro, pelo tulgor sêco Euclides da Cunha não é um e o estúpido valor dos fogos diaescritor como os outros. Na litemantinos. O artista adora a paratura nacional, criou o mais lavra para os fins de expressão. vincadamente pessoal dos nossos Não ser ela de uso corrente pode estilos, o mais tipicamente braser defeito; menos se calhar à sileiro, nas excelências que o idéia o têrmo sonoro e estranho singularizam, nos defeitos tão que fôr preciso, que fôr belo e nossos das suas qualidades. que fôr lúcido. Tudo está na es«A vontade revelada pelo tacolha e cabimento, é maneira lento... eis o estilo». Ainda bem de remoçar Idéias e despertar a que na síntese afranlana a mais atenção em tôrno delas, vesti-las elevada faculdade humana prebem e com certo rebuscamento. domina. «O estilo é o próprio Nem todos o poderão fazer...» e homem». Completando a certeium pouco adiante: «Para o prera Intuição de Buffon, sentencia goelro da hasta pública, tôda Emerson, a propósito de Goethe em Kepresentative Men: «Talent mesa é sólida, todo piano haraione cannot make a writer. monioso. A crítica nacional tem There most be a man behind the obtido êxitos anti-nefelibátieos book», o que traduzo diferenteaconselhando adjetivos de leimente do que tenho visto: O talento só não pode formar um loeiro e podando, nos canteiros escritor. Por trás do livro deve de estreantes, as ílôres raras da haver um homem». Este homem estufa giótica». está presente em tudo quanto Euclides escreveu, banhado semPor tudo Isso e com isso tudo, pre de efusivo lirismo. Na auOs Sertões, que foram um destenticidade da sua mensagem, ê lumbramento, até hoje encantam, o mestre e o modèlo do humanismo brasileiro. para sempre hão de fazer vibrar, na perene atualidade das obrasEstudar-lhe, minuciosamente, o estilo eqüivalerá a revelar tudo primas. Araripe Júnior, embora isto, de maneira objetiva. Esse iniciasse a leitura dêsse livro estilo é o homem e. por via descom declarada hostilidade, deisa verdade conhecida, também o xou-se empolgar de tal forma que povo de que se tornou o expoente. E' aplicar os penetrantes já não lia, pois, (são palavras métodos da estilística moderna, suas) «desfilei pelo livro afora, partindo das antecipações de Aradominado pela sensação que se ripe Júnior, de Afrânio Peixoto, experimenta percorrendo paisade pesquisas esparsas já feitas. gens abruptas, alcandoradas de Quem o empreenderá? Seria oupresepes, dentro de um comboio, tro escrito, um livro, que os euem carreira vertiginosa e sem clidianos todos gostariam de esdestino. Lembrei-me, então, dos crever. bons tempos em que. ainda meEuclides da Cunha — escritor. nino, eu lançava-me perdidamente através dos romances como Para que mais?

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O bigode lembrava olhando o conjunto assim um boi chifrudo chifrando a própria palavra

navalha não viu e o todo se deu diferente o boi de repente ficou liso virou gente

arranha o tempo e o homem sempre como sonhava chifrando a palavra.

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10 — MINAS GERAIS

(Suplemento Literário)

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ILDEÜ BHANDAO {Francisco lldeu da Fonseca Brandão) nasceu cm Ouro Fino, a 10-5-13. Filho do escritor João Lúcio, desde muito cedo cultiva as letras, sendo o conto o gênero de sua preferência. Bacharel em direito. Foi Secretário da Prefeitura de Belo Horizonte e atualmente exerce as funções de redator no Palácio do Govêrno do Estado. Exerceu também, durante muitos anos. o jornalismo, tendo mihlado no "O Diário", no "Diário de Minas" e na extinta "Folha de Minas", da qual foi redalor-chefe. Além de autor do livro "Três Contos", esgotado, tem um outro para publicar, "Um míope no zôo". E' casado e tem sete filhos. Apesar de práticamente inédito, lldeu Brandão é considerado um dos principais valores da nova ficção em Minas. Seu nome foi incluído em excelente antologia do conto organizada pelo saudoso escritor paulista Edgard Cavalheiro. E' colaborador do Suplemento Literário de "O Estado de S. Paulo", onde tem publicado alguns de seus trabalhos mais recentes. Um conto de sua autoria deverá aparecer em antologia do conto brasileiro a ser editada na Alemanha. ^

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RODOVIÁRIA

Conto de lldeu BRANDÃO Ilustração de Eduardo de PAULA

Vyhovia desde a madrugada. Chuva monótona, que enchia de tristeza a cidade e diminuía os ruídos e o vozerio das ruas. Uma cortina de finos estalactites ligava o chumbo do céu à terra alagada. O homem caminhava devagar, as mãos metidas nos bolsos das calças. De vez em-.quando diminuía ainda mais o passo e respirava profundamente, ao mesmo tempo em que apalpava o peito com a mão esquerda. • Ao dobrar a esquina da Estação Rodoviária, quase atropelou uma velha alta e magra. Ela estendeu-lhe a mão, depois de passá-la pela testa e afastar os respingos de chuva que a orvalhavam, uma esmola, môço, pelo amor de Deus. Êle tirou a mão direita do bolso, já cora as cédulas, escolheu uma e colocou-a na mão da velha, enquanto lhe dizia, continuando a andar vagarosamente e olhando-a nos olhos mortiços, reza uma Ave-Maria por mira, ouviu? Mas reza mesmo. Ela disse que rezaria, e se desmanchou em ternos agradecimentos ^ . Êle entrou na Rodoviária e, num gesto instintivo, consultou o X'elógio de pulso. Estranhou o pequeno movimento de gente e de ônibus. Um carregador explicou-lhe, solícito, que duas das empresas de transportes haviam iniciado uma grève para obter aumento do preço idas passagens, e perguntou-lhe se não lera nos jornais. Êle respondeu que não lera aquela notícia, apesar de ter visto os jornais. Êsse ai deve dar, disse o carregador, apontando para o jornal que êle trazia no bolso do paletó. Mas agora não interessa, você já me informou, respondeu-lhe, num rápido sorriso, e caminhou para a cabine telefônica. Puxou a porta envidraçada, colocou a moeda no aparêlho e discou com cuidado o número. Após

a quarta chamada, atenderam. — Alô, Sílvia, sou eu... Madrugou, hem?

— Já te disse, você tem razão« Mas eu quero é que você escute.,

— Ora, que bobagem... não é caso para isso, meu bem. Deixe disto... Chorando à toa...

— Nem tanto... Como vai você?

— Não adianta, Jorge. Assim, a gente fica do mesmo tamanho... Escute uma coisa...

— Escute, Sílvia. Tia Amélia não sabe de nada, ouviu? E eu não quero que ela saiba... não vale a pena.. • ~~~* ••• ••• ••• — Já te falei que não é coisa séria, meu bem. Deixe disso...

— Silvia, nada de brigas, ouviu? Eu estou aqui na... — Cadeia? Ora, não brinque... Eu vou viajar. Estou-te telefonando aqui da Rodoviária.

— Estou aqui na Rodoviária, vou viajar e o ônibus não demora a sair. Se você não quiser escutar, então desligue, é melhor..., — Bem, assim é que a gente pode-se entender. Como você sabe, mas eu quero repetir mais uma vez, não tenho medo de você, nem do "Ruivo", nem de ninguém. Está bem claro, não é?

— Òiha aqui, já está na hora da saída do ônibus. Eu quero é que você vá lá era casa sempre que puder, ouviu? Tia Amélia gosta tanto de você... Adeus, meu bem... adeus... Colocou o fone no suporte, bruscamente, e suspirou fundo. Saiu da cabine, acendeu ura cigarro e caminhou, devagar, até a extremidade da plataforma. Olhou demoradamente para o casario amontoado na pequena encosta, depois ergueu os olhos para o alto, onde não havia nuvens destacadas, mas apenas uma abóhada cinzenta. Continuou a andar ao longo da superfície ladrilhada, fumando, a fronte vincada de rugas. O movimento continuava pouco intenso, mas o barulho dos carros que chegavam e saíam, o zum-zura do povo, os gritos dos carregadores e as chamadas pelo alto-falante incomodavam. Agora o outro, murmurou entre dentes, e caminhou novamente para a cabine telefônica. Esperou bastante pelas providências do porteiro do hotel que fôra ver se o Jorge estava. Enfim, ouviu-lhe o alô, quem fala?, naquela voz grave tão sua conhecida. Sou eu, Jorge. Quero esclarecer tudo... — êle falava pausadamente, a voz cansada.

— Qiie bobagem, menina. Nós não temos nada com êles, nada, mesmo. Estamos no maior sossêgo... — Silvia, escute. Eu estou cora pouco tempo, e quero conversar sério. De mais a mais, você acredite ou não, eu abandonei completamente êsse negócio de contrabando. — Òliie aqui, Sílvia, se você continuar assim, eu desligo. Quero te falar sèriamenle. — Eu vou viajar agora e não sei quando volto. — Fugir coisa nenhuma... não seja boba... a policia nem sabe que eu existo... — Ò caso é o seguinte. Sílvia: eu estou doente e o médico me disse que preciso sair um pouco. — Não, o coração está ótimo. é coisa atoa... cansaço... — Üin médico competente. — ••• ••• ••• — Ora, um psiquiatra meu amigo... O nome não interessa. Êle me aconselhou uma viagem de repouso.

— Não, não é provocação. Quero só que isso fique bem claro, ouviu? E, já que você se acalmou, escute: segunda-feira atrasada eu fui ao dr. Ribeiro, pois estava me sentindo mal, mas mal de verdade. Êle me examinou, me mandou tirar um eletro-cardiograma. Voltei ao consultório quarta-feira. Êle, então, me desenganou, pura e simplesmente. Não desenganou com palavras, mas determinou minha imediata hospitalizaçao, e fêz tais e tantas recomendações de repouso absoluto e regime, que eu saí de lá convencido de que estou com os dias contados. — Bem, se você não acredita, azar... mas, continue escutando. Eu sai do consultório absolutamente convencido de que estou liquidado, com ou sem tratamento, com ou sem repouso. E, então, me veio um nojo enorme de tudo; de mim, de você, do "Ruivo", da vida que nós temos levado, do dinheiro que ganhamos, tão sujo, sujíssimo. Pensei em tia Amélia, coitada, que conta só comigo para viver, como você sabe. Ai foi que me veio a idéia de passar a perna em vocês dois e deixar o dinheiro todo para ela. Achei que ela sendo honesta e

— Vá' xingando... vá xingando... você está no seu direito. Mas quando acabar, faça o favor de ouvir. Quero falar sério cora você.

— Eu té telefonei para me despedir. Não sei quando volto

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11 — MINAS GERAIS

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(Suplemento Literário)

ARTES

OUBO

PLÁSTICAS

PRETO:

DOIS

SÉCULOS

DE

ARTE Mareio SAMPAIO

Este é o ano cio 200? aniversário do inicio da construção da Igreja de São Francisco de Assis, de Ouro Prêto, uma das mais belas e mais importantes obras do barroco mineiro. Seu realizador; o arquiteto Antônio Francisco Lisboa, que também £êz as esculturas, entalhou os altares e sua magnífica portada. A pintura do teto e das paredes foi realizada por Manuel da Costa Atalde. Ambos os artistas nascidos, registrados e batizados na província de Minas Gerais. Contemporâneos (o escultor deve ser mais velho que o pintor, mais ou menos 14 anos) êles formaram «o par genial que floresceu em Minas, naquela época». Quase tõdas as igrejas mineiras construídas na segunda metade do século XVin foram decoradas por Aleljadinho e Atalde; ambos se completaram e, Juntos, nos legaram os maiores monumentos artísticos de Minas Gerais. A igreja de São Francisco de Assis, de Ouro Prêto, foi feita por Inteiro pelo admirável par, e é hoje o mais eloqüente testemunho da íõrça criadora dêstes geniais artistas. 200 ANOS DEPOIS Estes dois séculos da Igreja tranciscana de Ouro Prêto ainda não foram comemorados pelas autoridades da antiga Vila Rica. No entanto, parece não ser preciso muito discurso. Esquecemos a omissão dessas autoridades, face à transformação por que passa Ouro Prêto, e a acontecimentos de profundo sentido cultural

inocente, como é, a sujeira do dinheiro desapareceria. Daí, o que aconteceu... — Espera, homem, ainda estou no comêço da conversa... — Nada disso... nada disso... você está enganado. Não fugi, não. Conhecendo a sua esperteza, achei que o melhor seria ficar mesmo em casa, fechado. Disse a tia Amélia que precisava de um repouso absoluto e que, para todos os efeitos, havia viajado sem falar para onde. Não estaria era casa para ninguém, nem para a Sílvia, nem para você, nem para o "Ruivo". Êle foi lá duas vezes, na segunda vez entrou e tomou um café. Você telefonou três vêzes, não foi?

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— Não. Nada disso. Eu estou acompanhando tudo pelos jornais, e sabia que vocês não iriam expor-se muito, pois a policia está agindo. Mas, acontece... " ••• ••• "T • • • acontece que eu tive «ei o temP0 Para pensar, e pennr.„o rr0 ce, a.s coisas, e pensei era nãr, r and0 & Pensou era Deus, a el a eu ntt ^ ' criança? Pois, e con,:inuo muito pensando, e -

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0 n mas contfnuo seuea migo direito... crer.euPara encurtai ' Pode cute: eu **

que vêm ocorrendo naquela cidade. Um exemplo; Ouro Prêto ganhou uma Galeria de Arte, Outro exemplo; gente de fora vai a Ouro Prêto estudar, pesquisar e fazer documentários sôbre a cidade e sôbre os monumentos artísticos. Mais-um: artistas, escritores, intelectuais começam a emigrar para Ouro Prêto. dandonos uma certeza de um futuro próximo: — Ouro Prêto será um dos mais importantes centros artísticos do Brasil. A GALERIA PILSO Junto do Restauranti; Pilão, na Praça Tiradentes. foi Saugurada, durante as festas da Semana da Inconfidência, uma Galeria de Arte, que ocupa uma grande sala, prestando-se, não apenas para exposições, mas também para reuniões, cursos, conferências, concêrtos, e diversas atividades culturais. Não há preocupação comercial. O seu proprietário dá a sua parcela de contribuição, visando trazer a Ouro Prêto o seu antigo prestigio: centro da cultura e da inteligência. HOJE: DOIS (ENTRE MUITOS) ARTISTAS MINEIROS Para marcar o inicio das suas atividades, a Galeria Pilão expôs dois artistas mineiros, que atualmente residem em Ouro Prêto: Anamélia e Nello Nuno. Anamélia mostrou desenhos — paisagens de Ouro Prêto — linha leve e pura a construir extensos e claros panoramas da cida-

de colonial. Desenhar Ouro Prêto, muita gente Já o fêz, com muito ou pouco talento; — lembramos aqui Guinard, que foi o verdadeiro descobridor de Vila Rica para a pintura e para o desenho; há quem afirme que Guignard esgotou Ouro Prêto como tema. Contudo, estão ai artistas como Anamélia que retomaram o tema e o mostram agora, Inteiramente nôvo, como se Jamais fôra antes explorado. O Ouro Prêto de Anamélia é, realmente, nôvo. A linha pura marca o papel levemente, mas com decisão e firmeza e, passo a passo, num ritmo bem marcado faz surgir o casario, cria vegetações, numa modulação — diríamos — musical. As linhas têm a leveza das curvas e se pontuam se se quebram. Por isso alguém Já notou nos desenhos de Ana «a linha chinesa»; não sei se devemos denominá-la assim, mas é certo que existe uma leve influência oriental, nestes claros desenhos, certamente fruto da observação atenta da artista que encontrou vestígios de traços asiáticos na paisagem ouropretana. De tudo Isso há como resultado um desenho sóbrio, conciso, ponderado, certamente qualidades que só se verificam em artistas de verdade. » Nello Nuno — mostrou na Galeria Pilão uma série de aquarelas, um mundo quase infantil que, de repente, se abre para nós e nos leva por caminhos, por veredas misteriosas, mas de um mistério que nunca nos arrepia de temor, sim, de pura e agra-

do "Ruivo" numa caixa de sapatos, embrulhei-a bem embrulhada, entreguei-a a tia Amélia e falei com ela que você irá procurála. Pois é, meu velho, acredite ou não acredite, é só ir lá era casa e pegar o cobre... — Fugir? Não, que bobagem... Será que você continua pensando que eu lenho mêdo? Nunca tive medo, iria ter agora? Estou muito velho para isso... O caso e outro: resolvi me enfiar num ônibus e rodar por êsse mundo de Deus. Nao quero morrer aqui. Nao sei por quê, mas não quero, b, no estado em que estou acho que ate um baque mais forte do ônibus^pode resolver a coisa. Voce tera notícias breve, vai ver. Alem disso... Êle voltou-se de frente para a porta envidraçada da cabine, num gesto maquinai, para mudar de posição, e deu de cara com o "Ruivo", encostado numa pilastra a poucos passos de distância. Os olhos de ambos se encontraram O "Ruivo" estava de chapéu, quê gotejava, e tinha as mãos metidas nos bolsos da capa de gabardine. Durante alguns segundos êle ficou calado, os olhos fixos nos olhos do "Ruivo", enquanto o "alô" de Jorge se repetia no fone. Depois recomeçou a conversa, mas com voz diferente. Falava como que entre dentes, e em tom chocarreiro e ainda mais arrastado. — Alô... alô... Jorge, meus parabéns, você venceu..; O "Ruivo" já chegou, está aqui. — Não adianta fingir, velho... não adianta... Esperto como sempre, bem? E eu fui na conversa... caí como um pato... — Deixe de bobagens, não adianta negar. Eu devia ter des-

dável emoção. Símbolos barrocos que êle simplificou © transformou em beijagiras, umas cidades de pequenas casas em círculos fechados mas sôbre os quais voam formas líricas de uma vegetação nova e mansa; flor é sol. O colorido da aquarela é que serve ao desenho feito com lápis duro, Incisivo. A cõr faz a atmosfera, Inicia-nos no lirismo de Nello, um lirismo bem medido, contido e Justo. O mundo Insólito da pintura — e do desenho — de Nello Nuno. é um mundo de tlôres-pássaros e pássaros-flôres, uma flora e uma fauna que se misturam, que se confundem com outros símbolos, e se abrem em manso colorido e se fazem ouvir como canção antiga, voz de flauta escoando pelos campos da mitologia, da Imaginação. Os dragões de hoje, são tão leves e mansos e graciosos como os beijagiras (beljaflor com girassol) da fase anterior. E não há nêles o sentido kafekeano do absurdo. Assim como os Dragões dos contos de Murilo Rublão, onde o artista encontrou inspiração para sua nova fase de pintura — os dragões de Nello são personagens que aceitamos e amamos, como gente igual a nós. Sêres de um mundo em que nós devemos viver, pois: (Murilo Rubião) — «o sonho, o puro sonho é que é o real, o resto, a vida dura, a guerra, as preocupações do dia a dia, o tédio e a solidão, são puro pesadelo». Assim, vai Nello Nuno construindo sua realidade, sua arte, sua poesia. Uma excelente arte, uma encantadora poesia.

confiado da sua mansidão repentina... fui um bôbo... Era para dar tempo ao "Ruivo", bem? Sabido como sempre, seu Jorge... parabéns. ,;K — Escute, Jorge, você está perdendo tempo... vamos continuar a nossa conversa a sério. A coisa agora mudou de feição. Eu pretendia morrer num ônibus, ou numa cidade qualquer do interior. .. engraçado... vou morrer aqui, varado de balas pelo "Ruivo". Sim senhor, Jorge, você pensou com a cabeça... e agiu depressa. .. ;••• .••• ••• — Não, nada disso, não tenho e nunca tive mêdo, não pense isso. Morrer por morrer, tanto me importa aqui ou em qualquer lugar, já que não posso escolher. Mas eu também penso depressa, e já fiz um plano. Escute... 1 ••• ••• ••• — Ah, você quer me salvar do "Ruivo"? Engraçado... além de sabido, está ficando espirituoso? Essa é boa... — Não, não estou armado. Mesmo que estivesse, como é que eu poderia lutar com o "Ruivo"? Não, meu plano é outro. Vou fazer o seguinte, escute com atenção: quero, principalmente, que você acompanhe, de ouvido, tudo o que vai acontecer. Você merece, pois trabalhou muito bem... Vou deixar o fone fora do gancho, í hora em que eu sair, e... • •• ••• — Fugir coisa nenhuma. Não, meu plano é outro. Aqui perto da porta está um casal de velhos. Eu poderia me proteger atrás dos dois e tentar fugir. Mas conheço bem o "Ruivo", nós o conhecemos, não? Era vez de um morto haveria três. Êle, na certa, está esperando que eu tente fugir e pensa em me fuzilar pelas costas.

ROTEIRO Na Galeria Grupiara: exposicã» de pintura de Maria Helena Andrés; ela volta a uma figuração que se fundamenta no barroco C tem resquícios da sua longa catada no abstrato. Na Galeria Guignard: Artistat premiados no XX Salão da Prefeitura (1965). São êles: Sara Ávila, que mostra sua fase de vegetações fantásticas — (automatlsmo psíquico?). Tinta plástica sôbre papel. (2? prêmio de desenho). Álvaro Apocalypse: desenho em, aquarela sôbre tecido. Figuras também fantásticas, mas intelectualizadas. Dentro da evolução da obra de Álvaro êles marcam a entrada definitiva num nôvo surrealismo. (1» prêmio de desenho) . Nello Nuno — também se enquadra num nôvo surrealismo, embora o artista negue isso. Pelo menos, retrata um mundo de fábula, com animais de formação vária voando numa paisagem onírica, óleo sôbre cartão. (3? prêmio de pintura). * Eduardo de Paula — Pinta (óleo sôbre tela) formas geométricas, com côres puras e composições arrojadas. Não faz abstração. Sim, um íigurativismo essencialmente intelectualizado. (2» prêmio de pintura). No Museu de Arte (Grande Hotel) — Excelentes esculturas do belga Francls Tondeur; Jovem Desenho Nacional (vindo do Museu de Arte Contemporâneo de São Paulo) e reproduções de afrescos e ícones da Iugoslávia.

Mas vai ter uma surpresa. Eu vou sair direto contra êle. " ••• ••• ••• — Quê isso, Jorge, você parece que está nervoso... Você se esquece de que eu já estava condenado antes que o "Ruivo" chegasse? Vou enfrentá-lo só porque êle veio atrapalhar meu planos de morte... só por isso... Estou calmo que faz gôsto... * ••• • • • ••• — São mais ou menos oito passos. Se êle errar os primeiros tiros, eu terei alguma chance. É pouco provável, mas é o que posso tentar. — Jorge, é nútil, não caio em outra sua. Nunca mais, ouviu? Nunca mais. Escute, pela última vez: o casal está saindo, chegou a hora. Preste atenção. Eu vou deixar o fone fora do gancho e vou sair. Que Deus me ajude. E nos perdoe, Jorge, a mim e a você. E ao "Ruivo" também, coitado. E a todo mundo. — Jorge, eu te falo sinceramente, não consigo ter raiva de você, meu velho. E nem de ninguém. É agora. Adeus, Jorge. Êle voltou-se de costas para fora e foi descendo o fone, disfarçadamente, com a mão esquerda, até que o fio se estendeu. Com gestos vagarosos, fingindo sempre que continuava a conversa, levou a mão direita ao trinco da porta da cabine e girou-o até o fim. Então empurrou violentamente a porta e projetou-se para fora, num salto extenso, o maior que lhe permitiram as longas perrias, etíquanto as palavras de Jorge continuavam a limar a ebonite do fone e se espalhavam pelo ladriIho frio e sujo, eu te dou minha palavra.. . te dou minha palavra... não tenho nada com isso... tem dez dias que não vejo o "Ruivo"... eu não tenho nad« com isso...

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GOME»:

CARTA

DE

PRINCÍPIOS

Flãvio MÁRCIO Nome: Jean-Luc Godard Idade: 36 anos Nacionalidade: francesa Estado civil; casado, Marina Vlady Côr: «a segunda, à direita do arco-íris» Religião: «em que sentido?» Compositor: «um russo, não me lembro o nome» Escritor: Joyce Cineasta: Rossellini («Claro»), Chaplin Mulher; a dêle: «loura, importante, frágil» Gôsto exótico: «J'adore le Brèsil» Sentimento: «de profunda inquietação» Profissão: diretor de cinema ©

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Si.,.

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Si. Viver a Vida, Ana Karina: «o melhor é confiar nos próprios instintos profundos»

MINAS

GERAIS

suplementa

literária

BELO HORIZONTE — SÁBADO, 3 DE SETEMBRO DE 1966

FRANZ Encontrei-me com Franz Kafka no dia 3 de junho de 1924, no sanatório de Kierling, lá pelos arredores de Viena. Max Brod, amigo de Kafka, é que me levou até o sanatório. Os olhos de Kafka brilhavam mais que a orancura do lençol, olhos fixos e prontos para não responder, O que eu ouvia não eram exatamente respostas que uma pessoa comum espera. P: — Como você explica a «Metamorfose»? R; — Quero pensar que a natureza pode ser injusta nas suas manifestações vitais. A fragilidade de meu corpo diante do corpo de meu pai e diante dos outros corpos arrasta consigo o primeiro choque contra a família. Minha família me julga um ín-

* A referência ao cinema e à •ua história guiava todos os meus primeiros filmes e principalmente o primeiro, «Acossado». Era pura mania de um fan de cinema. Depois, di«e a mim mesmo: é preciso que sala disto, é preciso que procure mostrar as coisas como são realmente e não apenas como elas «deveriam ser» no cinema. * Eu conto com um público que não se alimenta de nenhuma ilusão, que não se pergunta por que taco filmes. Sabem de uma coisa? Não se importem comigo: eu não sou um sujeito muito sério. * Não se deve fazer filmes porque precisa-se dizer alguma coisa. Deve-se fazer filmes porque é agradável fazê-los. Não cabe ao artista dizer alguma coisa; êase trabalho pertence ao noticiarlsta e ao político. Isto ú: deveria pertencer. * Cinema: talar sôbre as coisas e sôbre os pontos-de-vistas que se tem sôbre as coisas. Olhe bem: eu não falei em expressar ponto-de-vistas. O cinema não deve ser usado para lançar idéias. No máximo, êle aceita, naturalmente, as idéias do diretor e a êste cabe, apenas, comentá-las. Mas de passagem. Não como objetivo. O que importa não são as idéias, mas a sua aplicação. * Mas não diga «você é um formalista», como se tivesse me acusando. * Realismo? Ficcâo? Tudo é realismo e tudo é ficcâo. Meu oficio não é filosofia. Eu não tenho a obrigação de saber, de resignar. Sou um pobre desorientado e a minha missão como cineasta é revelai as Incertezas do mundo moderno. Faço um filme, mas não oriento. Não devo orientar. Quem quiser se orientar qut leia as Seleções Rider Digest. * Na vida todos separam o Instintivo do reflexivo. Mas, quando se age, tudo está junto. * No teatro a gente é sempre obrigado a dizer as coisas de um certo modo. No cinema é possivai sussurrar. * Todos os filmes que fiz não me tomaram multo tempo. Nunca pude refletir multo. Quando reflito, o filme já está pronto. • Como «Viver a Vida», não sabia por nada o que queria fazer. E no fim fizemos qualquer coisa. Portanto, é melhor confiar nos próprios Instintos profundos. * Verdade pessoal, eis tudo: se você consegue expressar sua verdade pessoal, pode esperar o melhor. Não me agrada fazer pesquisas, aperfeiçoar algo que esbocei apenas. Abro as portas, simplesmente. ' O cinema nasceu para registrar o Instante, registrar e conservar certas qualidades do Instante. * Deve-se filmar sem paixão: sem mêdo, sem heroísmo, sem coragem e sem covardia. * O que um artista faz é inseparável de sua vida, em geral. O que diferencia Sartre de Maurois não é tanto o tato de que um escreve mais ou menos bem o francês, ou coisas do srênero. E' que um não separa a vida da literatura, e o outro sim. * As pessoas não se entendem porque as palavras não têm

Luíz Gonzaga VIEIRA (Entrevista que me foi concedida pelo judeu checo, autor de «Metamorfose», «0 Processo», «América» e outras estórias notáveis)

KAFKA

truso e me repudia e me convenceu então de que a morte, escolhida voluntariamente e solltàrlamente cumprida, é a única solução válida. O homem está condenado à morte e deve escolher a própria morte. Depois também, eu transformei meu oalxeiro viajante numa aranha repelente, para que houvesse nisso um sentido mais humano e chocante. Você vê, há homens que são menos do que aranhas e outros que são autênticas aranhas! Eu me servi da coerência para exprimir o absurdo. P; — Você acha possível não escrever? R: — Olhe, o meu único emprêgo era insuportável porque contradizia o meu único desejo e a minha única voeacão, a literatura .

o mesmo significado para todo*. Se a gente se entendesse, todos estariam de acordo. Não haveria mais livros, mais nada. No fundo é isso: a discussão. Em resumo; acredito na dialética. ♦ O presente é melhor do que o passado e o futuro. Porque o presente transforma-se em passado e futuro. ♦ Em arte não há progresso. Cada vez que se vêem velhos filmes, apercebemos-nos de que são muito mais modernos do que js que se fazem hoje. Hà mudanças, progressos técnicos, mas não se pode afirmar que Rembrandt seja um progresso com relação a Giotto. Eles não consideravam as coisas da mesma maneira, não faziam as mesmas perguntas. Mas Rembrandt não pintava melhor do que Giotto. * O que admiro em Rossellini é que êle parte de uma análise exata, de um sentimento global, e êste sentimento global o faz chegar a um sentido do detalhe exato, porque o conjunto é também exato. E' esta a superioridade de um Rossellini. Ou de gente desta espécie. Nóá, ao contrário, partimos de um ponto de vista do detalhe exato. E se às vêzes se consegue chegar bem ou mal ao conjunto, mais freqüentemente falimos. Apegamo-nos aos detalhes porque não conseguimos ter uma idéia do seu conjunto. • A morte não é uma solução, mas pode ajudar a encontrar soluções. Quando os sentidos estão confusos, a morte traz um esclarecimento. Se a gente está perdido numa floresta e corta alguma árvore, isso constitui sempre uma direção na qual se pode ir. ' Creio na ação. E' por isso que faco filmes em vez de faiar de cinema. Há certas coisas que não podem ser mudadas. Mas o cinema pode mostrar pessoas que agem e que fazem as coisas com um certo fervor, em vez de mostrar pessoas que não exis- . tem. * Um ator pode modificar por completo o sentido de um filme. Transformá-lo de comunista em fascista, por exemplo. Ou o contrário. • Detesto a crítica. Ela está falida. Ela determina o principio e o fim e, convenhamos, isto "ÃP fiz critica,ó possível. fêálmehte.Eu Eranunca apenas uma primeira maneira de fazer cinema. • Por que em todos os meus filmes há uma morte violenta? Ora. na vida nós conhecemos pessoas que morrem. * Houve um eclipse no cinema russo. Não se pode construín foguetes e fazer filmes, ao mesmo tempo. • Eu busco uma verdade, não uma Ideologia. Quando se encontra um certo sentimento de verdade, pode-se encontrar uma ideologia, não antes. Antes de se escolher pratos num Restaurante, comeca-se por ver se se tem fome e o que se quer comer, depois do que se pode então fazer uma escolha. ♦ E' preciso dar a impressão de que se faz a coisa pela primeira vez. Tudo que se crê nôvo jà foi feito. Mas quando nos interessamos por alguém é porque descobrimos algo que não havíamos descoberto antes.

P: — Por que os seus noivados fracassaram sempre? R: — Porque sou apenas literatura e não quero nem posso ser outra coisa. Compare-me com êsse ser saudável, alegre, natural e robusto que foi a minha noiva. (Kafka se referia à última vez em que ficara noivo). Ela seria infeliz comigo. Não é apenas em virtude da minha situação social, mas muito mais em virtude da minha própria uatureza, pois sou um ser fechado, taciturno, Insoclável, insatisfeito. Encarno também as relações sexuais com a mancha inevitável do casamento. Se é verdade que o casamento me libertaria da tutela opressiva e imediata de meu pai, isso no entanto poderia originar o na»-

samente pelo corredor trio, pensei, anos mais tarde, na «morte transformando a vida em destino». Pensei em Camus, em Sartre como descendentes de Kafka, Andei assim ao íongo do corredor que não acabava. Sartre, num gesto de conciliação, colocou-me as mãos no ombro e ne disse: «Kafka nos mostra a vida pertuamente perturbada por uma transcendência impossível, porque acredita na existência dessa transcendência. Simplesmente, ela está fora do nosso alcance» . Olhei dos lados, não via nada, tudo era escuro. E o mundo ira um pais estranho e as aranhas repelentes teclara a própria armadilha.

cimento de uma criatura nova, que seria uma existência isolada como é a minha. P: — Você sabe que está tuberculoso e não procura se curar! R: — E' porque eu sou um estranho no mundo e também porque acho que cada homem deve escolher a própria morte, como disse atrás. Eu egcoihl a tuberculose. P: — Por que você não quer que Max Brod publique suas obras? R: — Eu renuncio à posteridade e, por isso, mandei que Max e Dora Dymant destruíssem meus manuscritos. Logo depois, Kafka teve uma crise e Max Brod pediu que eu me afastasse. Saindo vagaro-

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