HOMENAGEM DE ALCIR PÉCORA AOS 400 ANOS DO PE. VIEIRA + LLANSOL POR VANIA BAETA + DANIELA ARAGÃO OUVE SUELI COSTA + CONTO DE ADRIANO BITARÃES NETTO + POEMAS ANA ELISA RIBEIRO + MÁRCIA MATOS + RONALDO WERNECK LIDO POR ALEXANDRE FARIA. BELO HORIZONTE, FEVEREIRO DE 2008, N°. 1309, SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA DE MINAS GERAIS
ALCIR PÉCORA
PADRE ANTONIO VIEIRA APÓS 400 ANOS Há exatamente quatrocentos anos nascia, em Lisboa, o Padre Antonio Vieira, homenageado nesta edição do Suplemento Literário com uma análise do Sermão da Sexagésima, escrito em 1655 e inspirado na “Parábola do Semeador”.
VIEIRA:
Com apenas sete anos, chega à Bahia em companhia da mãe para, em 1623, entrar como noviço no Colégio dos Jesuítas, um ano antes da esquadra holandesa atacar e ocupar Salvador. Por esta razão, é obrigado a refugiar-se na aldeia do Espírito Santo, próxima da cidade ocupada, onde se dedica à catequese e estuda as línguas nativas. Antes de retornar a Salvador, em 1626, dedica-se ao ensino da Retórica e aos poetas latinos Sêneca e Ovídio, textos que infelizmente se perderam. Contudo, é a prática da pregação que o torna célebre, pelo profundo conhecimento de Teologia e da utilização da Retórica, uma das importantes disciplinas da Idade Média, cujo objetivo era atingir, pela eloqüência, o público leitor ou ouvinte. Apesar de Vieira ter sido duramente criticado por censurar o estilo culto dos pregadores dominicanos da Corte e defender um estilo mais espontâneo contra a retórica do barroco, Alcir Pécora esclarece que não há na “arte sem arte” pregada pelo padre nenhuma recusa ao gênero da oratória sacra e a seus procedimentos técnicos estabelecidos no Sermão aqui estudado. Tanto o aspecto “culto como o anticulto” elucidam a retórica de Padre Vieira em seus Sermões, que, após centenas de anos, ainda provocam espanto e admiração em todos os que apreciam a língua portuguesa e suas transformações no tempo.
CULTO/ANTICULTO
Além desta justa homenagem ao mestre do nosso barroco, o Suplemento traz resenhas e poemas de escritores contemporâneos capazes de conduzir o leitor a outros universos da escrita (e mesmo da música, em seu encontro com a literatura). Ou, como diz Vania Baeta, ao nos apresentar Os cantores de leitura, o mais recente livro da também portuguesa Maria Gabriela Llansol: “Deslizo e leio o texto como lugar que viaja, assim ele há de nos transportar sempre à paisagem do diverso e ao encontro do inesperado.”
Camila Diniz {Editora}
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Paulo de Andrade {Assessor Editorial}
Capa: Nydia negromonte. Da série LIÇÃO DE COISAS III, 2008.
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Como é sabido, no Sermão da Sexagésima, de 1655, o Padre Antonio Vieira (1608-1697) produz a sua célebre censura ao uso do estilo culto pelos pregadores dominicanos da Corte. Bem menos sabido é o que essa crítica quer significar exatamente. Não poucos autores, no Brasil e em Portugal, a interpretaram em chave pré-iluminista, como se Vieira antecipasse o gosto por um estilo mais simples e de mais bom-senso, próximo de certo neoclassicismo setecentista; ou em chave pré-romântica, Fevereiro 2008
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como se Vieira defendesse um estilo mais sincero, mais espontâneo, menos obediente às prescritivas retóricas engenhosas do chamado barroco. Ambas as observações, favoráveis em princípio a Vieira, costumam levar, muito rapidamente, a comentários contrários a ele, no sentido de que ele próprio não teria seguido de maneira coerente os conselhos que dava, deixando-se muitas vezes arrastar pelo gosto estragado de seu próprio tempo e se entregando, também ele, aos jogos asiáticos dos ornatos que se encontram em tantos de seus sermões.
Gostaria de deixar aqui minha posição sobre o caso. Já digo logo que não acho, de modo algum, que Vieira critique a ornamentação discursiva enquanto procedimento retórico inadequado a priori. Em primeiro lugar, porque figuras e ornatos são recursos próprios da oratória e conhecê-los bem faz parte do domínio abrangente dos seus meios disponíveis. Isto significa que um orador profissional, como Vieira, não poderia considerá-los um mal senão quando seu usos e efeitos particulares resultassem mal sucedidos, isto é, quando fossem empregados de maneira inadequada ao decoro particular do gênero da oratória sacra. Apenas assim, como crítica da ruptura do decoro, deve ser interpretada a acusação que faz aos pregadores da corte de que andavam trocando o púlpito em palco de comédia, por conta de pôr a perder a gravidade que lhe é própria: Uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente, era acabarem-se as comédias em Portugal, mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se, passaram-se do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareço em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Sêneca, e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros e muito mais sólidos do que hoje se ouvem nos púlpitos. É fundamental notar que tais palavras não pretendem negar a arte do sermão, nem censurar qualquer sermão por ser efeito de tal arte. O terrível ataque aos “estilos modernos” é baseado tanto na arte retórica, quanto no que admitia como ciência teológica. Quando Vieira recomenda que a oratória sacra seja praticada como uma arte sem arte, não há, nessa fórmula, recusa do ornato dialético, ou conceito engenhoso, como procedimentos técnicos adequados. Trata-se de acentuar um ponto importante do decoro específico da parenética, isto é, o da conveniência de pessoa, lugar e tempo prevista no gênero da oratória sacra. Assim, a composição da investidura grave ou solene é parte importante da produção de argumentos éticos para que um sermão obtenha efeitos adequados no ouvinte cristão. Com base na parábola do semeador, que fornece o tema do Sermão da Sexagésima, Vieira especifica as regras da arte sem arte que propõe para o gênero da oratória sacra. E não o faz absolutamente de maneira estranha à arte, e sim estabelecendo concordância entre os termos da parábola e as partes tradicionais da retórica. É assim que refere, respectivamente, as “coisas” da invenção, as “palavras” da elocução e o “caso” da disposição: O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu: para o sermão vir nascendo, há de ter três modos de cair. Há de cair com queda, há de cair com cadência, há de cair com caso. A queda é para as coi-
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VIEIRA: CULTO/ANTICULTO ALCIR PÉCORA
VIEIRA: CULTO/ANTICULTO ALCIR PÉCORA
sas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para as coisas, porque hão de vir bem trazidas, e em seu lugar; hão de ter queda. A cadência é para as palavras, porque não hão de ser escabrosas, nem dissonantes; hão de ter cadência. O caso é para a disposição, porque há de ser tão natural e tão desafetado que pareça caso e não estudo. A aplicação conveniente das partes da arte oratória ao ato de pregar visa a que nada no sermão fira a dignidade de que se reveste a pessoa do orador eclesiástico, cujo valor público interfere na eficácia da pregação junto ao auditório. Desse modo, Vieira retoma a passagem aristotélica relativa às provas que incidem sobre o caráter do orador, elaboradas com base na imagem dos costumes de quem produz o discurso. Tendo em vista o auditório cristão, a lembrança acentua o compromisso estrito da elocução do sermão com a imagem moral do pregador: Pouco disse S. Paulo em lhes chamar comédia, porque muitos sermões há que não são comédia: são farsa. Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos ásperos, são de penitência, e todos, desde o dia em que os professamos, mortalhas); a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio. E quando este se rompeu, que é o que se ouve? A passagem é conhecida e, em si mesma, bem poderia ser dispensada. Mas penso ser interessante acompanhá-la em seu andamento argumentativo, a fim de notar o quanto Vieira, na composição das partes de seu próprio discurso, se aproveita de um tipo de ornato altamente engenhoso, o da dificultação, tal como proposto na conhecida Agudeza y Arte de Ingenio (1642), do jesuíta aragonês Baltasar Gracián (1601-1658): De ordinario se va cortando a los principios de los discursos, y al fin se ata. Va con suspensión el auditorio aguardando en qué ha de venir a parar, que es más arte que el declararse luego al principio, y así de más gusto, como sucede en los empeños, que cuanto más se van dificultando, se goza más de la acertada salida. Ou então: Es gran eminencia del ingenioso artificio llevar suspensa la mente del que atiende, y no luego declararse; especialmente entre grandes oradores, está muy valida esta arte. Comienza a empeñarse el concepto, deslumbra la expectación, o la lleva pendiente y deseosa de ver dónde va a parar el discurso, que es un bien sutil Fevereiro 2008
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primor, y después viene a concluir con una ponderación impensada. Tornando, pois, ao Sermão da Sexagésima, está claro que Vieira se aplica a compor a expectativa de uma cena grave, coroada com a admiração muda e respeitosa do auditório. Essa mesma admiração suspensiva, no entanto, bem de acordo com a técnica referida da dificultação, dilata ao máximo o tempo de seu desfecho, adiando também o desatar do nó argumentativo: Se neste auditório estivesse um estrangeiro que nos não conhecesse, e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajos e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do céu, que cada palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto, e com as ações havia de fazer em pó e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. E nós, que é o que vemos? Apenas então, quando as expectativas honestas do cristão já estão bem nítidas na imaginação do auditório, Vieira dá o passo seguinte, que as quebra violentamente. O efeito produzido é de indignação e patetismo, a que não falta, entretanto, o comentário ferino: Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajos, uma voz muito afetada e muito polida, e logo começar com muito desgarro, a quê? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras, e outras mil indignidades destas. Não é isto farsa a mais digna de riso, se não fôra tanto para chorar? Aqui justamente bate o ponto, pois o que Vieira julga suficientemente demonstrado não é a inutilidade do ornato, do qual ele faz esplêndido emprego, e sim a exigência de um decorum próprio do gênero, que é a base da sustentação e eficácia do sermão particular: Na comédia o rei veste como rei e fala como rei, o lacaio veste como lacaio e fala como lacaio, o rústico veste como rústico e fala como rústico, mas um pregador vestir como religioso e falar como... não o quero dizer por reverência ao lugar. Já que o púlpito é teatro e o sermão comédia, sequer não faremos bem a figura? Não dirão as palavras com o vestido e com o ofício? Isto posto, há ainda um segundo aspecto dessa discussão, o qual igualmente demonstra a improcedência da interpretação da crítica vieiriana do estilo culto como sendo um ataque genérico contra os recursos retóricos, e não exclusivamente contra seus empregos indecorosos. Para conceber este segundo ponto, deve-se ter .
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em mente que os ornatos discursivos, considerados na necessária chave analógica de seu emprego católico, são entendidos como atos de revelação de relações ocultas entre as coisas criadas, e, enquanto tal, são parte da natureza e da razão providencial que orienta a criação inteira. Dessa perspectiva, o foco do ataque de Vieira, de que a falta de decoro é evidência, está precisamente na ruptura, que supõe mais freqüente nos sermões pregados na Corte, entre o ornato e a sua base natural. Para ele, os sermões do Paço correm, mais do que os pregados fora dele, o risco tremendo que é, entretanto, de todos: o de perder o nexo essencial entre os conceitos engenhosos e os sinais divinos no mundo, entre as figuras da técnica discursiva e as da economia salvífica da criação. Os pregadores-cortesãos, duramente repreendidos por Vieira, não são, portanto, culpados de empregar tropos ornamentais, não são culpados do pecado da retórica, pois esta, enquanto domínio técnico, mostra propriedade e pertinência, senão piedade na eficácia de seu mover em direção ao bem. Eles são culpados de um ato de conseqüências muito mais graves: o de romper o vínculo fundamental entre a dialética controlada dos ornatos e os signos livremente dispostos por Deus. São pregadores sem vontade hermenêutica de encontrar a substância oculta nos sinais sensíveis, a orientação transcendente que os dispõe e justifica no mundo, até o fim do mundo. Tendem assim a reduzir os signos do Verbo a matéria verbal autônoma, contentam-se em toucá-los como enfeites, descuidando-se do mistério da presença divina ou permitindo que se dissolva na aplicação exclusiva das regras cultas em uso. Ou seja, a censura de Vieira é dirigida contra os sermões que produzem uma separação entre a retórica das analogias e a finalidade teológico-salvífica que lhe dá fundamento: Nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É isso o sentido em que os entendem os Padres da Igreja? É esse o sentido da própria gramática das palavras? Não, por certo, porque muitas vezes as tomais pelo que soam, e não pelo que significam, e talvez nem pelo que soam. Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus. E se não são palavras de Deus, que nos queixamos de que não façam fruto as pregações? Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer dizer o que elas dizem! Perdido o decoro e autonomizada a forma no exterior de seu sentido inspirado, o aplauso do auditório equivale a uma condenação, pois, a rigor, nada poderia ser mais condenável do que o esvaziamento da palavra de Deus, fundamento exclusivo da sua glosa pelo sermão no presente: Verdadeiramente não sei de que mais me espante, se dos nossos conceitos, se dos vossos aplausos. Oh! Que VIEIRA: CULTO/ANTICULTO ALCIR PÉCORA
bem levantou o pregador! Assim é: mas que levantou? Um falso testemunho ao texto, outro falso testemunho ao santo, outro ao entendimento e ao sentido de ambos. Então que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus?
Uma reflexão análoga poderia ser feita em relação ao sentido da celebração eucarística, clímax do desenvolvimento da missa, atingido no momento em que a memória atualizada das palavras de Cristo, produzida pela pregação, encontra a sua presença real transubstanciada nas espécies visíveis do pão e do vinho. A pompa litúrgica – assim como a ornamentação retórica, pompa discursiva – participa da construção da consagração e, por isso, está ajustada ao teatro católico da fé. Como aplicação de critérios doutrinários adequados, a magnificência da cerimônia não se concebe fora de sua integração na liturgia do ato persuasório total de que o sermão faz parte. Exatamente como no caso da retórica dos ornamentos, a discretio que organiza o espetáculo da missa articula-o ao modelo sacramental da presença divina nas espécies. A dissociação entre a pompa e a finalidade litúrgica, ou entre esta e o Ser da presença divina, implica o fracasso da cerimônia inteira, e, em particular, da inteligência do mistério eucarístico. Enfim, penso que os dois aspectos mencionados elucidam de maneira mais conveniente ao conjunto do sermonário de Vieira o suposto anticultismo do padre. ALCIR PÉCORA é professor livre-docente e diretor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, onde leciona desde 1977. É autor, entre outros, de Teatro do Sacramento: a unidade teológico-retórico-política nos Sermões de Vieira (Edusp/Editora da Unicamp, 1994), editor de várias obras de Vieira e organizador das Obras Reunidas de Hilda Hilst e das de Roberto Piva (Editora Globo).
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ANA ELISA RIBEIRO
HI-FI
PLANO DE MÍDIA
Eu estou sempre na sua área de cobertura: beijando outro, em roaming; na cama, reloading.
Que bom que você não me namora, meu bem. Fico curtindo a sua namorada namorando você. Meus ciúmes são mais vingativos. Se eu fosse essa moça, eu publicaria um poema escancarando para o mundo que você é meu. Eu, se fosse ela e se fosse poeta, faria isso. Mas eu sou só poeta. E ela não passa dela mesma.
NYDIA NEGROMONTE. Da série LIÇÃO DE COISAS III, 2008. .
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ANA ELISA RIBEIRO é belo-horizontina, nascida em 1975. Desenvolve tese de doutorado sobre ler e navegar, no Poslin (UFMG). É professora do CEFET-MG e atua em cursos de projetos editoriais. Publicou Poesinha (Poesia Orbital, 1997), Perversa (Ciência do Acidente, 2002) e tem outro livro no prelo, para 2008.
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Vania Baeta
AVE LEITURA Aos leitores, comunico que, após a justa atribuição do prêmio da APE (Associação Portuguesa de Escritores) ao livro de Maria Gabriela Llansol, Amigo e Amiga — Curso de Silêncio de 2004, chega, agora, em nossas mãos, sua última criação: Os Cantores de Leitura (Assírio & Alvim, 2007), dedicado à memória de Eduardo Prado Coelho, e prosseguindo, em um movimento ondulatório de nostalgia e alegria (nostalgria), o curso anterior. Aos legentes desse texto, que torna uma única vida improvável, digo-lhes, ainda no impacto, no pacto de inconforto: eu leio assim este livro. Entro, com ele, na Casa da Saudação. E saúdo: Ave, Gratuita, tu que me acolhes na ombreira da porta sem pedir nada em troca (o dom?), e me levas a ver, partícula a partícula, a voz. A voz de uma variedade 10.
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de seres para nomes nascentes. A ave, vejo, é a metamorfose da luz, seu movimento quase em flor; e o anjo, a mensagem da cor. Sim, estranhos são os nomes dos convidados a entrar na casa, mas assinto ao ato de suas letras sinfônicas; ofereço-me ao aprendizado, absolutamente novo, de um canto mais anônimo. Vêm de tão longe, com o sol. Lós é seu nome, escrito da direita para a esquerda, o que se dá a ver na leitura — lograda — do próprio nome Llansol. Roland Barthes, em sua Aula, nos diz que a literatura é um logro magnífico, o único saber dos saberes capaz de burlar, dentro da própria língua, a legião dos poderes recorrentes em todo e qualquer discurso. Reviro teu nome, abro-o, em nome de um certo amor. O desbelo. Transito, assim, entre a floresta do alheamento e a clareira do entendimento. Eu sei que as figuras deste livro adquirem uma imensa, porém simples, claridade. Entro, e peguntas: já aprendeste a ler a luz? Em seguida, recebo uma partitura, as partículas deste livro, enumeradas, com seus respectivos duplos e contextos. Ensinas, enquanto atinjo o tópos, onde o dom poético toca a liberdade de consciência. Agradeço. E penso: há um mundo de mundos; uma única vida é realmente improvável. Ave, Cirilo, o tocador de leitura. Saúdo tua capacidade de ler a revelação de um trabalho de calígrafo. Sim, porque tocas — em sensualética — a letra e seu movimento: os arabescos em que as margens das folhas novas dos vegetais se enrolam para a página superior. Elevo-me ao acompanhar teu transporte de alegria na recordação das folhas da oliveira. E vejo aí o percurso daquilo que, com Llansol, aprendi a chamar pulsão da escrita, luz preferida. A luz inscrevendo, milenarmente, nervuras nas folhas; o insondável compasso d’amorte, amor e morte, sexo-de-ler do vivo; vegetalizar o texto: clorofila no pergaminho de nossa inteligência. Então, lembro-me aqui de tua prece secular: “bem-aventurado sejas tu, ó texto, porque nos abres a geografia dos
mundos / bem-aventurada sejas tu, ó Terra, porque tua será a explosão que levará o vivo a todo o Universo”. Ave, Tual, Mestre de leitura. Tu que ousaste pôr em causa o velho testamento de leitura. O que significaria a vara que floriu? O que significaria essa vara como um mastro do tecido camoniano, flamejando ao vento? O barco, a embarcação. Deslizo e leio o texto como lugar que viaja, assim ele há de nos transportar sempre à paisagem do diverso e ao encontro do inesperado. Então, a imagem que figura, em metonímia, é, do mastro ao maestro, a imagem de sua batuta. A regência aqui, distante dos príncipes e ao rés do chão, faz cantar a leitura, cantá-la literalmente, muito longe de qualquer hermenêutica, também distante da arteriosclerose dos conceitos. Continua. Viajo nesta água de escrita; leio seus começamentos: o tempo volta a abrir suas portas... o pássaro de asas abertas... perto de Tual... uma harpa e uma guitarra... movia-se sem visibilidade... aí cantores e animais comunicam... a aranha... a oscilação desce... há realidades que nunca entenderei... Instinto... escrever em folhas grandes..... a olhar livros e madeira... ensinar, dar testemunho por escrito.... Aprendo de cor — de coração, guardar-te-ei. Ave, Angelikos, voz do raio de luz cromática, cruzamento melodioso de cores. És Angelo / azulado, do árabe lilak; nome destinado ao vivo; bálsamo curativo da dor das distâncias. Trazes contigo O Livro dos afectos, a interrogar o que é o corpo, o que é a luz, o que é a força, o que é o afecto, o que é o pensamento, o que é a figura. Vejo em ti uma práxis do Curso de Silêncio de 2004 : a prática do luar libinal sobre nós. —Amor meu, a invenção constante é uma ave plena.
VANIA BAETA é psicanalista e Doutora em Literatura Comparada pela UFMG, com tese sobre a obra de Maria Gabriela Llansol e Teresa de Lisieux. Recentemente organizou com Lucia Castello Branco o Livro de asas — para Maria Gabriela Llansol (FALE/UFMG, 2007).
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Nydia Negromonte LIÇÃO DE COISAS III 12.
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NYDIA NEGROMONTE é graduada pela Escola de Belas Artes da UFMG, com especialização na Faculdad de Bellas Artes, Universidad de Barcelona, Espanha. Entre 1999 e 2001 foi artista residente no HANGAR – Centre de Producció d’Arts Visuals i Multimèdia, Barcelona, Espanha. Recentemente [2005/2006] foi contemplada com a Bolsa Artista Visitante na Escola de Belas Artes da UFMG. Participou, ainda, de importantes mostras e exposições, sendo premiada no Brasil e no exterior.
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ALEXANDRE FARIA
HOJE QUEM PAGA SOU EU
RONALDO WERNECK (CO)MEMORA A NOITE (AMERICANA)
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WERNECK, Ronaldo. Noite americana/ doris day by night. Rio de Janeiro/Cataguases: IbisLibris/Poemação Produções, 2006.
Ronaldo Werneck viveu seu big bang poético nos agitados anos 70. Trinta anos depois da estréia, seu mais recente livro transpira a inquietude e a insubmissão da poesia daquela década e, como tal, também não abandona o rigor do acaso. O jogo verbal fundamentado na espacialização e nos achados em que o corpo das palavras se desmontam e se remontam, além do teor pontual e cotidiano (melhor seria cotinoctâmbulo) dos temas são aspectos que contribuem para dar leveza à poesia e causar essa impressão de que o poema foi um presente do acaso. Mas há, nessa aparência, um rigor poético e um compromisso vital que, também sendo uma marca geral da poesia que surgiu com os pós-tropicalistas e a geração mimeógrafo, precisam ser bem compreendidos. Contrariamente ao que se pode pensar de uma poética de vocação menos formalista, o verso que está à mercê do acaso pode ser a forma mais original, porque primeira, de realizar aquela utopia poética do distante Beneditino bilaquiano: a trama que disfarça o emprego do esforço. (Paradoxalmente, para alguns poetas do período, este propósito realiza-se como o fingimento da dor pessoana, ou seja, alguns poetas disfarçam tanto o esforço que de fato não o empregam). Formas (e não fórmulas) constituem o diferencial que faz com que a poesia dos anos 70 reate com o modernismo de 20, unindo as duas pontas de um período que, então, apontava para o esgotamento. Depois disso, a poesia brasileira irá experimentar o ascetismo acadêmico – o poeta abandona as ruas e vai direto para as Faculdades de Letras do Brasil. É em boa hora, portanto (não só para se reler aquele período, mas também para se pensar a poesia de hoje), que Werneck dedica-se a revisitar e a relançar seus poemas, bem como a compor novos. Já saíram Minas em mim e o mar esse trem azul (1999), que contém a republicação do livro Pomba poema, de 77;
Revisita selvaggia (2005), mais do que uma revisão, uma recriação do livro Selva Selvaggia, de 76; e este Noite americana/ doris day by night (2006), que, em 1a. edição, reúne, não cronologicamente, poemas que datam de 1971 a 2006. O auxílio luxuoso de fotografias do acervo pessoal do poeta, de que essas edições se valem, dão ao projeto, mais do que o sentido da revisão, certo teor do que poderia ser lido como uma autobiografia poética em que, no lugar de os poemas recontarem a vida, esta é reinaugurada a partir deles. O projeto que estes três livros indicam é o de uma visão retrospectiva que permite realizar com plenitude e maturidade a idéia de colar poesia e vida. Não por acaso, em seu texto apresentado no colóquio Relendo a poesia dos anos 70 aos dias atuais, na UFJF, em 2005, Werneck defende: O objetivo do poema é fazer poesia. Ele é o condutor, o meio (no jargão dos “vasos comunicantes”) de “passar”, de “comunicar” poesia. Então, o poema só existe para produzir poesia. Se ele não produz... babau, “Seo” Nicolau. Já no cinema, no teatro, nas artes plásticas, na alta costura artística, o babado é outro. Assim, vamos esclarecer: poesia é meta; o poema, veículo.1 Este rigor poético de quem quer colocar programaticamente o poema colado à poesia, o verso colado à vida, não poderia prescindir do olhar para o erotismo e para a boêmia, como há em Noite americana/ doris day by night. O erotismo cola-se à poesia como origem e fim; e talvez seja a melhor evidência de que o discurso poético não se submete às regras da representação literária. O poema não tem como finalidade mostrar/representar a vida, mas ser, constituir-se como inteireza e suplemento para a vida. Isso pode até deixar dúvida em outras temáticas, mas, na do erotismo, vida (origem) e existência (fim) são as próprias peças do jogo fingir/ ser, tanto para o poeta, quanto para o leitor. Fevereiro 2008
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Até que o livro de Werneck brinda algum possível leitor-voyeur com deliciosas imagens, mas esse voyeurismo é cindido: a noite, o gozo e o prazer dramatizam-se no limite do ser. No percurso de suas páginas, “umas cavavam a dor / outras matavam de amor // umas eram um achado / outras apenas melado” (“Umas & outras”, p.119). Forjamos nesse trecho uma relação metalingüística a fim de dar exatamente o tom do que parece ser o livro: um convite ao leitor para que, com o poeta, (re)visite boates e bares da noite, carioca sobretudo, mas também de outras cidades do Brasil e do mundo. Gozo, riso, beijos e cheiros noturnos se sucedem pari passu com a fruição da leitura poética, em indas e vinda dos versos e das datas, que aparentemente se forjam ao acaso dos lugares e dos trocadilhos. Nelas, poeta e leitor quase viram companheiros a compartilhar mesas e moças em ruas da Lapa, galerias de Copa. Digo quase porque um detalhe tensiona essa troca entre o leitor e o poeta: o acaso é urdido num profundo jogo referencial e imagético. É como se o poeta convidasse o leitor ao balcão e exigisse: “Hoje quem paga sou eu!” (lembro um sucesso de Herivelto Martins e David Nasser, na voz de Nelson Gonçalves, mas fico apenas com esse verso, pois a canção antiga contém o moralismo da dor de cotovelo, o que Werneck evita com habilidade). O resultado poético é a curtição que desloca a perspectiva moralista, ao fundir a opção pelo jogo verbal (muitas vezes poliglota) com a vocação lúdica para a vida. Assim, a voz daquele que (co)memora é capaz de produzir imagens poéticas como quem segmenta e reordena fotografias. Isso presentifica tudo no espaço em branco/preto dos poemas (e das fotos). Espaço que, a despeito das referências à poesia concreta e à práxis, vanguardas com que Werneck dialoga, remete também ao efeito day by night, ou à Noite americana de Truffaut, mecanismo cinematográfico através do qual lentes específicas criam um efeito de 16.
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noite numa filmagem diurna. É esse espaço, também, que acaba se instaurando entre a boemia (poesia) e a escrita (poema), tornando o leitor um neófito, se não na vida noturna, “entre putas & putos, travestis & rufiões & patéticas strippers” (p.160), com certeza na “puta palavra puta” (p.25), que é introduzida com a inteligência de quem, na lição oswald-machadiana, não divorcia o amor do humor. (...) hamlet’s try again – meter ou não me ter
(“Pérolas e porcos”, p.66)
Tal estratégia, neste caso emblematizada pela dúvida de Hamlet, realiza com tenacidade o objetivo maior da poesia, que é redimensionar o humano via linguagem. A opção pelo erotismo reforça e radicaliza essa conduta, ao desqualificar a experiência do dilema existencial e moral (seja humanista ou cristão), deslocar o ser da profundidade essencial para a superfície dos sentidos e, finalmente, afirmar, com radicalidade de procedimentos e de princípios, a vida. É dessa forma, então, tomado pela surpresa do acaso, poeticamente construído por Ronaldo Werneck, e em contato com metafísica forjada na pele da vida, que o leitor vai melhor gozar a Noite americana/ doris day by night.
1. FARIA, Alexandre. (org.). Poesia e vida: anos 70. Juiz de Fora: UFJF, 2007. (no prelo)
ALEXANDRE FARIA é escritor e professor de literatura da Universidade Federal de Juiz de Fora.
NYDIA NEGROMONTE.
Da série LIÇÃO DE COISAS III, 2008.
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DANIELA ARAGÃO
EXPEDIENTE ADRIANO BITARÃES NETTO
Eu só sei que, na hora H, eu não dei conta! Solta duas fritas e uma carne de sol aí, ô irmão! Não, porque pra mim poesia é outra coisa, entende? Se aquela vadia ali deixar, eu meto a noite toda! “Eu não sou cachorro não/ pra viver tão humilhado...” Mas por quê? O quê que aconteceu com você? Me dá uma Coca-light, chegado! E aí princesa, você não quer sentar aqui com a gente pra tomar uma cervejinha não? Dizem que quem matou foi a própria mulher, que colocou remédio de rato na comida, aí, como ele tava tonto, nem percebeu nem nada. Até que aceito a cervejinha sim, mas só a cervejinha, hein! O que eu não concordo é como que deixaram o Waldemar no banco, ôu, num dá pra acreditar! Truco! Vale seis, ladrão! Pois é, eu não entendo o quê que me aconteceu, foi a primeira vez... Cadê meu tropeiro, rapaz? Já tá chegando! Eu gosto bem daqui sim, é bem animado, né, por isso eu venho sempre, ainda mais porque sempre tem gente fina pra oferecer uma bebidinha e um dedo de prosa. Mas os meninos vão ficar com quem, se ela for pra cadeia mesmo? É sempre assim, sô, a gente nunca acha que vai acontecer com a gente, aí, quando a gente menos espera, é com a gente mesmo que acontece. Acho que tinha era que ter deslocado o Leandro pra lateral e enfiado o Tunico pelo meio de surpresa. Eu? Casada? Que casada que nada! Não tolero macho achando que manda em mim não! Traz mais guardanapo, por favor. Cê tá roubando?! Dizem que vão levar os garotos pra casa da avó. Tá me chamando de ladrão, é? É, você tá certa, mas de vez em quando é bom ter a segurança de um homem do seu lado na hora do aperto. Mas o que eu sei é que eu nunca passei tanta vergonha na minha vida. “Um dia, vivi a ilusão de que ser homem bastaria...” Vá te fudê! Não preciso de roubar não, seu corno! Pra mim, mas isso é a minha opinião, a poesia tem que ter rima, tem que rimar amor com flor, isso pra mim é que é poesia, mas isso é o que eu acho, entende? Tenho necessidade de homem do meu lado não! Preciso deles é em cima! Coitada da avó, mal a aposentadoria dá pra comprar os remédios. Mas também isso acontece com todos os homens, fazer o quê? Cá entre nós, eu acho que a culpa é toda do técnico que é um idiota! Me dão licença, um instantinho, que vou lá no toillete. “De tanto levar, frechada do teu olhar/ meu peito até parece sabe o quê/ talbua de tiro ao Álvaro...” Se não precisa, por quê que rouba? Ô garçom, manda outra loirinha aí! Você viu? Primeiro chega falando “só aceito uma cervejinha, hein!”, depois, toda descarada, fala que não precisa de homem de lado, só em cima; é uma vadia mesmo, né!? Vá pra puta que te pariu! E quantos anos ela deve ficar em cana? A sorte de mulher ser mulher é isso: não corre o risco de brochar. Acho que o problema maior nem é o técnico, é que o time não tem grana pra contratar jogador de peso. Tá aqui sua caipirinha caprichada! Porque no meu modo de ver o mundo, a poesia poética deixa a vida mais ética, entende? É meu chapa, pelo visto já tá no papo! Ela é safada assumida. Será que eu não posso ir junto não? “Eu quero ser sua canção/ eu quero ser seu tom/ me esfregar na sua boca ser o seu batom...” Não sei pra quê que esse povo joga valendo grana. Só dá confusão! Realmente, mulher é só abrir as pernas e fingir que goza. De quem que é esse hambúrguer? Mesa 4! Prontinho, já voltei, sentiram minha falta rapazes! Daqui a pouco a gente vai é pra segunda divisão. Eu tenho dó é dos meninos: pai morto e mãe assassina. Filho da puta! Rouba na minha cara e ainda finge de égua! É melhor você esquecer isso tudo, deixar pra lá, já passou mesmo, você devia estar muito cansado, chega uma hora que o corpo da gente pára de funcionar mesmo. A morena não quer ir com nós dois pra outro lugar não? Fecha a conta pra mim ............................................................................................................................................... ................................................................................................................................................................................... .................................................................................................................................................................................. ....................................................................................Companheiro?! Ô companheiro?! Acorda! Já acabou o expediente.
ADRIANO BITARÃES NETTO é mestre em Teoria da Literatura na UFMG, ensaísta, poeta e autor de livros infantis. Obras publicadas: Antropofagia oswaldiana; um receituário estético e científico (Annablume), Asa da palavra (Mazza edições), Par ou ímpar? Escrita ou tinta? (Edições Muiraquitã).
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SUELI COSTA TOTALMENTE
BLUE Recebi o cd Amor Blue, de Sueli Costa, enviado pela própria. É luxo só, já dizia Ari Barroso. Coloquei logo o álbum para tocar e fui folheando o encarte, tomando um primeiro contato/impacto com as letras, os músicos, as fotos. Um clima de leveza e plenitude criativa/existencial já se anunciava na foto da capa, onde Sueli sorri feliz e vislumbra o todo-presente-futuro: “Vê de longe a vida/ nunca a interrogues/ a resposta está além dos deuses” (Fernando Pessoa, musicado por Sueli). Uma das maiores compositoras da Música Popular Brasileira, Sueli Costa segue a linhagem
gloriosa de nomes como Chiquinha Gonzaga e Dolores Duran. Nascida no Rio de Janeiro, mas criada em Juiz de Fora, essa filha de Dona Maria Aparecida Costa, uma exímia pianista de ouvido absoluto, aprendeu a tocar piano antes mesmo de se alfabetizar.
Música pura, pura música: Dona Maria Aparecida dizia qual era a nota que a chaleira emitia quando o café estava bem quente. Sueli herdou da mãe o talento e a garra. Recordo-me de Dona Maria, já idosa e com brilho nos olhos, tocando “Summertime” de Gershwin e me falando de cada nuance de suas composições.
Tal mãe, tal filha. As canções de Sueli Costa trazem tons jobinianos e ares villalobianos. Parceira de Cacaso, Paulo César Pinheiro, Fausto Nilo, Abel Silva, Ana Terra, Aldir Blanc, entre outros, a sua trajetória demonstra um compromisso irredutível com a qualidade. “Por exemplo você”, gravada por Nara Leão em 1967, foi a primeira composição de Sueli Costa levada ao grande público. Em seguida vieram clássicos como “Vinte anos blue”, “Jura Secreta”, “Face a Face”, “Amor Amor”, “Coração ateu” e “Dentro de mim mora um anjo”. Fevereiro 2008
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Elis Regina, Alaíde Costa, Ângela Ro Ro, Gal Costa e tantos outros grandes nomes já gravaram suas canções. Mas Nana Caymmi, Simone e Maria Bethânia são as mais constantes intérpretes de Sueli. “Coração ateu” ficou conhecida nacionalmente na voz de Bethânia, ao fazer parte da trilha da novela Gabriela, em 1975.
Amor Blue é uma exaltação à beleza. Comemorando quarenta anos de carreira, Sueli Costa lança este trabalho independente, sob o patrocínio da Lei Municipal Murilo Mendes, de Juiz de Fora. Em plena maturidade e frescor criativo, a compositora assina as doze composições do cd. Algumas somente de sua autoria, outras com Paulo César Pinheiro, Luiz Sérgio Henriques, Abel Silva e outros parceiros. Este é o cd “mais pra cima” de Sueli – e pela primeira vez a artista assume o piano em todas as faixas. Um piano preciso, minimalista, jobiniano. Embora não se considere uma intérprete – “Não, não sou cantora, não. Deus não me deu essa graça. Mas mostro as minhas músicas. Não pretendo ser mais do que sou” – neste Amor Blue Sueli Costa canta muito e muito bem, com a emoção e a sabedoria de quem se sabe dona de cada fraseado. Sempre achei que o compositor, qualquer compositor, é aquele que melhor sabe interpretar suas próprias canções – não importa se não possui timbre bonito ou grande extensão de voz. Vale a emoção e a verdade. Prefiro ouvir Cartola por Cartola e Tom por Tom, com seu timbre grave e sua respiração ofegante.
e baixos”, sua parceria com Aldir Blanc: “Foram discos demais/desculpas demais/ já vão tarde essas tardes e mais/tuas aulas, meus táxis/ Uísque, dietil, dienpax”. LITERATURA: PARCERIA DE AFETOS Desde o início de sua carreira, Sueli Costa mantém uma relação de afeto com a alta literatura, tendo musicado poemas de Fernando Pessoa e praticamente todo o Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. O projeto do disco em homenagem à poeta do Romanceiro permanece inédito há mais de três décadas, devido a problemas com o espólio. Fico imaginando que disco maravilhoso seria esse, com Chico Buarque, Milton Nascimento, Edu Lobo, Maria Bethânia, Caetano Veloso e outros mais dando vida e singularidade a cada nota de Sueli, a cada verso de Cecília. Vale destacar ainda em Amor Blue a bela música composta para o poema “Sim, sei bem”, de Fernando Pessoa. Um arranjo minimalista, onde somente o piano da compositora acompanha a voz vigorosa de Maria Bethânia. O timbre grave de Bethânia imprime força aos versos do poeta, enquanto o piano de Sueli segue suave, perfeito: “Sim, sei bem/ Que nunca serei alguém/ Sei, de sobra,/ Que nunca terei uma obra/ Sei, enfim,/ Que nunca saberei de mim/ Mas agora/ Enquanto dura esta hora/ Esse luar, estes ramos/ Essa paz em que estamos/ Deixem-me crer/ O que nunca poderei ser”.
Em Amor Blue predomina uma atmosfera romântica e poética, muitas vezes nostálgica, como em “Outra vez, nunca mais”, que tem letra de Abel Silva: “Outra vez/ Eu me sento aqui neste bar/E o piano inicia a sessão/ Como um filme que vai começar/ Outra vez/ A canção diz que eu vou te amar/ E a bebida recria a ilusão/ Nunca mais, coração/Nunca mais/ Quem levou/ Seu perfume na brisa do mar/ Seu sorriso acendendo o verão/ Como tudo acabou...”.
Uma das parcerias mais férteis de Sueli Costa se deu com o poeta e letrista mineiro Antônio Carlos de Brito, o Cacaso (1944-1987). O lirismo das letras de Cacaso fala de amores em suas várias instâncias. Amor inquieto, instável, perturbador como na consagrada “Amor Amor”, gravada pela própria Sueli em seu segundo disco: “Quando o mar/ Quando mar tem mais segredo/ Não é quando ele se agita/ Nem é quando é tempestade/ .../Quando o amor/ Quando o amor tem mais perigo/ Não é quando ele se arrisca/ Nem é quando ele se ausenta/ Nem quando eu me desespero/ Quando o amor tem mais perigo/ É quando ele é sincero.”
Composta para o filme Apolônio Brasil, de Hugo Carvana, a canção revisita o tom boêmio das noites enfumaçadas, regadas a muita bebida e promessas de amor. E passa um clima de “Altos
O que mais impressiona nas composições de Sueli Costa é o depuramento, aliado à simplicidade. Quando faz letra e música dificilmente se encontra um refrão: seus desenhos melódicos são elabo-
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rados, mas enxutos, sem excesso. A compositora mira o futuro em Amor Blue, apostando em três talentos da nova geração: Fernanda Cunha, Daniel Gonzaga e Celso Fonseca. A carioca Fernanda Cunha é a grande revelação do cd ao interpretar “Luz da esperança” (Sueli/ Carlinhos Vergueiro). Ela é uma cantora com um pé no jazz e outro na MPB, e sua divisão faz lembrar muitas vezes a grande Áurea Martins. Daniel Gonzaga é filho de Gonzaguinha, o timbre é idêntico ao do pai, mas a emoção é única. Ele interpreta “Calma”, parceria com Paulo César Pinheiro. Salta aos ouvidos a beleza da guitarra e do violão de Zé Carlos, fazendo contraponto com o piano de Sueli e o baixo de Jorjão Carvalho. Falar dos músicos que acompanham o cd daria um texto à parte. Jorjão Carvalho (baixo), Robertinho Silva (bateria), Gabriel Grossi (guitarra), Carlos Malta (sax), Zé Carlos (violões e guitarras), Yura Ranevski (cello). É tocante também o arranjo elaborado por Sueli para a canção “Sem mistério”, parceria inusitada com Ana Maria Bahiana. Entre as doze composições do cd, tenho essa como a minha favorita. A letra de Ana Maria Bahiana, repleta de sugestões imagéticas, é um convite ao mergulho no eu profundo: “O meu coração/ É um aquário claro/Sem nenhum mistério/ Para você ver/ O meu corpo todo/ É uma retina/ Coisa cristalina/ para o amanhecer/ (...) E eu te chamei/ Para vir comigo/ E abrir as asas/ E molhar os pés/ E te convidei/ Para o jogo todo/ De cristal e prata/ Do nascer do sol”. A abertura de “Sem mistério” é pungente: Robertinho Silva com a vassourinha, suave, cool, dialoga com o peso do baixo de Jorjão Carvalho e a guitarra à la Toninho Horta de Zé Carlos. Amor Blue é um convite à paixão, a ficar apaixonado, sofrer por amor, acender mais um cigarro e pedir, quem sabe?, a derradeira dose. Sueli Costa é daqueles tempos felizes e “politicamente incorretos” – quando se cantava fumando e se bebia cantando. Um brinde então a Amor Blue. Tintim, Sueli!
DANIELA ARAGÃO é mestre em Literatura Brasileira pela UFRJ e gravou o cd Face a Sueli Costa Face a Cacaso.
NYDIA NEGROMONTE. Da série LIÇÃO DE COISAS III, 2008. Fevereiro 2008
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LIVROS E LEITORES
A TÉCNICA DO LIVRO SEGUNDO SÃO JERÔNIMO Dom Paulo Evaristo Arns
ANDRÉA COSTA LANNA
As palavras e as imagens configuraram em minha vida o lugar dos interlocutores. Era com os livros de figuras, como a coleção O Mundo da Criança, ou, mais tarde, com O exorcista, que nas acinzentadas tardes de uma inquieta adolescência eu me equilibrava entre leituras e lápis, na construção de um universo.
São Paulo: Cosac Naify, 2007
Na história familiar minha mãe contava sobre os maus pedaços que teve de enfrentar para ler Machado de Assis. Gesto que depois ela repetiu, quando escondeu entre colchas, quase definitivamente de meus olhos, aos 16 anos, O encontro marcado, de Fernando Sabino. Ai de mim, se não fossem os livros! Ainda hoje são tantos autores...
Penso nos livros que marcaram minha vida e vêm logo à lembrança os de papel bíblia que ganhei aos quinze anos: as poesias completas de Cecília Meireles e Vinicius de Moraes. Fernanda Pessoa, Carlos Drummond, Mario Quintana, junto com cinema, música e as artes plásticas sustentaram-me na paralela, quando a emoção me tomava por inteiro e — tive sorte — me entregava completamente a eles.
Quando leio recentemente Alberto Tassinari, no seu claríssimo O espaço moderno, vem à nossa mente, a linha de onde surgiram as fases da arte moderna, os porquês e os ondes, de quase todo este movimento que estamos vivendo e que designa a arte e a contemporaneidade.
Rainer Maria Rilke, com suas Cartas a um jovem poeta, afirmava as circunstâncias que me fizeram começar a criar um espaço para minha existência. Tábuas de salvação!
Rodrigo Naves, na sua explicação mais sábia, em seu A forma difícil, com Guignard, Volpi e Amílcar, refaz um percurso na história da arte que, enquanto aprendemos a ler, elaboramos o entendimento da nossa própria razão e existência.
Doris Lessing, com O carnê dourado, Clarice Lispector em Perto do coração selvagem, A maçã no escuro, A paixão segundo GH, Virginia Wolf em Orlando, As ondas e Um quarto que seja seu, encorajavam-me nas considerações sobre o meu lugar no mundo, a alma feminina, sobre o que fazer quando repleta de dúvidas — aprendi a relativizar desejos e aspirações artísticas. Agir para tornar realidades possíveis a partir de uma experiência, sem que estivessem sempre atadas a algum modelo previsto.
Agradeço bem o refúgio que as artes, a poesia, o romance, a prosa me proporcionam: do Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde, às apostilas sobre consciência e movimento, de Angel e Klauss Viana, que construíram em mim, com exercícios para um corpo livre, a tentativa do ser saudável, com todas as suas emanações, sem a culpa de nossos recalques burgueses.
Os comentários que poderia tecer a respeito de cada um destes textos congregam liberdade de expressão do pensamento do ser, independente de seu gênero ou classe. Lia mesmo sem entender direito, somente para estar ali, ancorada!
Realmente, esta geração de 1957, construía-se em uma Belo Horizonte que se reunia na Cantina do Lucas, no Edifício Maleta, na sala Humberto Mauro, no Cine Pathé, na livraria Van Damme, no teatro Marília e buscava para além destas montanhas concêntricas um pensamento que, por aí, acreditava-se mais alado.
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PHILOBIBLON OU O AMIGO DO LIVRO Ricardo de Bury Tradução e notas de Marcelo Cid Cotia: Ateliê Editorial, 2007
Escrito em 1345, esta obra peculiar é uma mistura de tratado sobre livros, autobiografia e testamento do autor, dono de uma notável biblioteca. Possibilita ao leitor apreciar a riqueza expressiva de seu estilo e compartilhar de seu grande amor e respeito pelos livros. Marcelo Cid é diplomata formado em Latim pela USP.
O SIMBOLISMO DOS PADRÕES GEOMÉTRICOS DA ARTE ISLÂMICA Sylvia Leite Cotia: Ateliê Editorial, 2007
Uma discussão sobre as referências filosóficas que estão por trás das tessituras dos padrões geométricos da arte islâmica. Com base na língua árabe e seu sistema de derivações, que permite variações de sentido dentro de um mesmo campo semântico, a autora trabalha analogias sobre a multifacetada cultura moura.
MICHELANGELO – CINQÜENTA POEMAS Tradução de Mauro Gama Cotia: Ateliê Editorial, 2007
Um interessante trabalho de tradução que traz a público uma das várias linguagens artísticas utilizadas por Michelangelo. O gênio renascentista, mais conhecido por seus trabalhos de escultura (Pietà), e pintura (teto da Capela Sistina), é também o responsável por inúmeras obras em palavra escrita, e cinqüenta delas estão nesta edição bilíngüe, traduzida por Mauro Gama.
A PLUMAGEM DOS NOMES – GILBERTO: 50 ANOS DE LITERATURA Eliane Vasconcellos (organização) Goiânia: Kelps, 2007
Simone de Beauvoir, com o seu Memórias de uma moça bem comportada, e, mais à frente, Guimarães Rosa me faziam mergulhar, entre lúcida e louca, por paragens úmidas, quase em outros dialetos. Claro que não posso me esquecer de Meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcellos, ou os teatros no colégio, com textos que nem recordo.
Arcebispo Emérito de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns é também estudioso dos livros e da literatura, com passagem pela Sorbonne, onde desenvolveu a tese que dá título a este já clássico livro. Um estudo sobre a técnica – ou arte – da confecção de livros antes de Gutenberg, numa belíssima edição da Cosac Naify, prefaciada por Alfredo Bosi.
ANDRÉA LANNA é artista plástica, professora da Escola de Belas Artes da UFMG.
Homenagem ao escritor Gilberto Mendonça Teles, que em 2007 comemorou 50 anos de poesia. O livro traz poemas dedicados (a Drummond, Alphonsus de Guimarães Filho, Hugo Pontes, entre outros), poemas traduzidos para diversas línguas, depoimentos, estudos, entrevistas, cartas e fotografias, percorrendo seus 50 livros lançados, sua vida acadêmica (mais de cem teses orientadas) e pessoal.
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MÁRCIA MATOS
EMBARCAÇÃO
CENTRAL
Avisto na praia
O sol vermelho já é das 3
O cão que me aguarda na areia
E ferve o asfalto da calçada
Com patas frias caminha no escuro da água
Sentada à sombra do prédio abandonado
Longe de deuses e espinhos
A menina suja rasga um bagaço, e coça a cabeça
As cabeças dos homens dispersam o ar
(Os gomos se misturam nos cabelos)
E temperam a Terra Venho pelo mar, debaixo de estrelas Trago na mala ecos e objetos Que foram embrulhados na véspera Alguns deles se quebraram, outros resistem
Do seu lado outras meninas Rolando no chão aos palavrões (Um passante dispensa uma bituca) Ela se afasta com um passinho de bunda E chupa forte o suco da fruta que escorre pela mão
A maresia tinge o ar dos pulmões Mas não reluto contra a ferrugem da viagem Aprecio a umidade nas mochilas Eu mesmo sou muito úmido O cansaço me ascende um cigarro E sento na outra ponta do barco Nuvens carregam discussões Que os homens não terminaram Transbordam as ruas e retornam ao mar Até a luz do outro dia Lanço a âncora no sal E aguardo o fim da madrugada Os cães sempre nos esperam Molhados ou feridos
MÁRCIA MATOS nasceu em São Paulo (1978) e graduou-se em Psicologia (2000). Cursou Psicanálise Lacaniana (IPLA) e por 4 anos trabalhou em ONGs, desenvolvendo projetos de arte-educação em escolas públicas. Cursou Criação Literária na AICinema-SP (2007) e hoje é assistente do curso.