JAÍNE CINTRA
Nº 123 - Maio 2016 - www.suplementopernambuco.com.br
dOSSIÊ INVESTIGA OS AUTORES QUE FICARAM DE FORA DO NOSSO CÂNONE LITERÁRIO
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C A RTA DOS E DI TOR E S
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grande romancista que faltou.” São com essas palavras que o escritor Fernando Monteiro registra o nome de Lúcio Cardoso, autor brasileiro que “faltou” naquela lista dos melhores romancistas dos últimos tempos, que “faltou” no destaque da prateleira dos cânones nacionais, que “faltou” na memória coletiva da literatura brasileira. Ainda este ano, Lúcio Cardoso será traduzido para o mercado literário norteamericano pela editora Open Letter Books, em mais um projeto que leva a mão do pesquisador americano Benjamin Moser, o biógrafo de Clarice Lispector e pessoa responsável por ter introduzido no ano passado uma forte onda de interesse na obra da escritora por parte da crítica literária de língua inglesa. As chances de que a obra desse escritor mineiro, tão pouco lembrado pelas bandas de cá, ganhe a projeção internacional que ele merece, nos alertam para essas grandes sombras que, como bem pontua o texto de Fernando Monteiro, “obscurecem nomes misteriosamente
E X PE DI E N T E Governo do Estado de Pernambuco Governador Paulo Henrique Saraiva Câmara
fora dos epicentros rotatórios”. Quem são e por que foram esquecidos esses romancistas, contistas e poetas “laterais”? Essa é a pergunta-guia desta edição, e é a partir dela que surge uma tentativa de mapear alguns dos nomes que foram, por motivos diversos, apagados das listas, prateleiras e memórias. Para tanto, além do texto de Fernando Monteiro, chamamos pesquisadores e escritores que indicaram os pontos dessa cartografia. Ainda este mês, destaque para uma revisão, em forma de diário, dos relatos de Ricardo Piglia que foram transformados no documentário 327 cadernos. O texto é de Mariana Sanchez. E ainda: uma leitura do nosso colaborador Kelvin Falcão Klein sobre os pontos de contato entre os mais recentes livros de Janet Malcolm e Patti Smith, em duas narrativas que atravessam elementos de crítica e autobiografia, e uma entrevista com o poeta Ricardo Aleixo, que não será aqui rotulado de nada, posto que ele costuma correr para longe dos mantos com os quais tentam vesti-lo.
Vice-governador Raul Henry Secretário da Casa Civil Antonio Carlos Figueira Companhia editora de Pernambuco – CEPE Presidente Ricardo Leitão Diretor de Produção e Edição Ricardo Melo Diretor Administrativo e Financeiro Bráulio Meneses
Uma publicação da Cepe Editora Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife Pernambuco – CEP: 50100-140 Redação: (81) 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
Superintendente de produção editorial Luiz Arrais EDITOR Schneider Carpeggiani
Uma boa leitura a todas e todos.
EDITORA ASSISTENTE Carol Almeida
COL A BOR A M N E STA e diç ão Fernando Monteiro, romancista e poeta, autor de livros como Aspades, Ets Etc. e A cabeça no fundo do entulho
Jaíne Cintra, designer responsável pelo projeto visual da nossa matéria de capa deste mês
DIAGRAMAÇÃO E ARTE Hallina Beltrão, Janio Santos e Maria Luísa Falcão
Mariana Sanchez, jornalista brasileira, atualmente residente em Buenos Aires
Luis Henrique Pellanda, escritor, autor de Nós passaremos em branco, finalista do Jabuti em 2012. Angélica Freitas, poeta, autora dos livros Rilke Shake e um útero é do tamanho de um punho. Kelvin Falcão Klein, crítico literário e autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas. Robert Louis Stevenson (1850-1894), novelista e poeta escocês.
TRATAMENTO DE IMAGEM Agelson Soares ReVISÃO Maria Helena Pôrto colunistas José Castello, Marco Polo, Mariza Pontes e Raimundo Carrero Produção gráfica Júlio Gonçalves, Eliseu Souza, Márcio Roberto, Joselma Firmino e Sóstenes Fernandes marketing E vendas Daniela Brayner, Rafael Chagas e Rosana Galvão E-mail: marketing@cepe.com.br Telefone: (81) 3183.2756
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BASTIDORES HALLINA BELTRÃO
O cronista como investigador da sua cidade
Prestes a lançar novo livro de crônicas, escritor se coloca no lugar de um detetive que não é pago para desvendar coisa alguma, pois a praia da literatura não é a lógica
Luís Henrique Pellanda Não é de hoje esta relação estreita, íntima, entre o flâneur e o detetive. Para nossa alegria, Walter Benjamin já tratou dela naquele seu monumental bloco de notas chamado Passagens. Citou Baudelaire, Poe, Dumas, Balzac, Dickens, Hugo, índios moicanos e homens-sanduíche. Falou em “caçadores no cenário urbano” e “observadores implacáveis”. Assunto velho, mas inesgotável em suas implicações. Um pouco antes de Benjamin, João do Rio, em sua clássica conferência A rua, também ensaiou uma analogia policialesca, dizendo que o flâneur era “uma espécie de secreta à maneira de Sherlock Holmes, sem os inconvenientes dos secretas nacionais”. Bem, acredito que o cronista é um cortejador de coincidências. E por isso nunca pude deixar de reparar nesta, em especial: minhas primeiras leituras, na infância, foram os cronistas e os autores policiais. Não sei se na época eu já notava entre eles algum parentesco, além do fato de que ambos os grupos pareciam escrever diretamente para mim, ou para os leitores em geral. Mas sei que somente ao finalizar meu novo livro de crônicas, Detetive à deriva, é que me bateu a certeza de que o cronista é, ou deveria ser, uma espécie inapetente de investigador. Um detetive inverossímil e quase metafísico, sem caso e sem cliente, condenado a rondar a cidade, atrás de um enigma que valha a publicação e lhe cubra os honorários. Ainda bem que ele não é pago para solucionar nada, pois sua praia não é a lógica. Seu forte é o seu desempenho cardiorrespiratório, a parceria entre suas pernas e seu coração. Andar e amar, suporiam os mais românticos. Então estamos falando de crimes? Pode ser. Não à toa, para o meu primeiro volume de crônicas, Nós passaremos em branco, de 2011, escolhi uma epígrafe de Alberto Mussa. Uma frase curta que pesquei de seu surpreendente romance policial O senhor do lado esquerdo: “O que define uma cidade é a história de seus crimes”. A ideia já estava lá, mas creio que apenas em Detetive à deriva — uma continuação natural de meu trabalho anterior, Asa de sereia, de 2013 — é que fui assumir conscientemente este papel, não de historiador, mas de narrador de mistérios. É que as cidades se tornaram casos insolúveis. O que não nos dá o direito de arquivá-las.
Aos que não me conhecem, já passou da hora de contar que a cidade que me persegue é Curitiba. E de Curitiba, neste texto, isto é tudo que direi: que nasci nela, em 1973, num típico subúrbio subtropical, o Capão Raso, e que ainda vivo por aqui, só que no Centro, perto da Boca Maldita. Do bairro à Boca são 30 reais de táxi, ou 30 minutos de biarticulado. É a distância que cobri no mundo em mais de 40 anos. Na verdade, tentei evitar, mas há outra coisa que preciso dizer sobre Curitiba: foi ela quem engendrou meu livro, não eu. Embora o livro não seja dela, e ela, na maior parte das vezes, nem se reconheça nele. Aliás, aproveito a deixa para declarar: não é tarefa dos cronistas promover, entre eles e os leitores, qualquer tipo de identificação. É certo que é isso que se espera deles, mas não, está errado. Muita gente quer que seus cronistas pensem como elas, que corroborem suas opiniões e idiossincrasias. Mas não, os cronistas não têm que corroborar nada, e até lhes falta poder de definição. O ideal, para um cronista, é favorecer a identificação entre seus leitores e as pessoas que retrata, entre eles e a cidade que julgam conhecer. É essa a ponte vital, e é o que tento construir enquanto escrevo, apesar de não planejar muito bem o que faço — e por uma razão evidente. Um cronista, ao escrever, não pensa no livro que porventura vá nascer daquele borrão apressado, e,sim, no prazo que lhe deram para entregá-lo. Cada crônica é um livro inteiro, uma obra fechada que, por acaso e com sorte, poderá conversar com outras crônicas, anteriores ou posteriores àquela. A função de compor um livro, para ele, vem depois do trabalho de escrevê-lo. É, antes, um trabalho de seleção, um serviço de leitor, e aí está outra coincidência que merece menção: o cronista, ao preparar um livro, é mais leitor que escritor. Assim, quando escrevia os 69 textos que integrariam Detetive à deriva, eu não pensava num livro hipotético. Nem sequer planejei qualquer uma daquelas crônicas. Elas me surgiam de acordo com o que ia vivendo, na correria dos fechamentos, naquela obrigação de produzir uma peça literária decente da noite para o dia. E é por isso que elas retratam, ou talvez deformem (como acontece em meus outros livros), o meu dia a dia. Estão lá, nessas crônicas, o nascimento de minha segunda filha, a nossa busca por um apartamento novo, os assassinatos cometidos na minha quadra, brigas de rua que presenciei, acidentes de trânsito, vendavais noturnos, dramáticas visitas à padaria, viagens ao litoral, sonhos e insônias, lembranças suburbanas, reminiscências de leitura. Estão lá prostitutas, bispos, malandros, urubus, travestis, onças, cães, papagaios, sabiás, peixes, faxineiras, crianças, bailarinas, vagalumes, loucos, baleias, mortos, cegos. São os personagens que vêm se apresentar ao cronista, sem querer, de modo desordenado e, num primeiro momento, impossível de se apreender como literatura. É somente na hora de escrever que o cronista vai ponderar — e improvisar — sobre o sentido de cada encontro. E somente na hora de escolher os textos que vão entrar num livro, é que ele terá a oportunidade de conectá-los, de ler e editar o que sentiu e investigou durante tantos anos. Foi nessa fase final, a da edição, que detectei, em minha narrativa, certo tom detetivesco. Sim, o cronista é o investigador que ainda não chegou à conclusão alguma, que vaga por aí em busca de clareza, mas só vê aumentar, desgraçadamente, o seu fraco pela dúvida. Um cronista deverá representar, talvez, a confusão de seu tempo, e todos os tempos foram confusos à sua maneira, todos se debruçaram sobre o seu próprio poço sem fundo, sua escuridão particular, sua ideia de caos. Por isso, na epígrafe de Detetive à deriva, roubei uma frase de Raymond Chandler: “Parecia uma boa vizinhança para se cultivar maus hábitos”. É uma fala de Philip Marlowe, em O sono eterno. Marlowe era espirituoso, divertido, durão, sentimental, confuso. E um grande frasista. Era um ótimo narrador, mas, ao fim de suas aventuras, estávamos todos tão perdidos quanto ele. É por aí. Como alguns detetives, o cronista nos serve de guia e lembrete. É dele a mão que nos é estendida no labirinto, e é dele a voz que nos diz: “Calma, estamos perdidos”.
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RESENHA
Os diários que um certo Piglia pode inspirar Um dos mais importantes livros do ano é tema de documentário em espiral Mariana Sanchez
DIA 30 DE MARÇO, QUARTA-FEIRA Finalmente, assisto ao filme de Andrés Di Tella sobre os míticos diários de Ricardo Piglia. 327 Cadernos estreou em setembro do ano passado, logo que cheguei a Buenos Aires, mas voltou a passar essa semana no Cine Gaumont. Em abril, o documentário estreou na competitiva internacional do É tudo verdade. Minhas primeiras impressões: acho esperto e delicado como o diretor problematiza questões de alteridade, memória, ficcionalização do real e os modos como a história (o público) nos afeta como indivíduos (o privado). Conceitos que também atravessam a obra de Piglia. “Às vezes - e isso é um segredo - tenho a fantasia de publicar estes diários como os diários de Emilio Renzi. Dar minha vida a um personagem que construí em meus livros. Não sei se terei coragem”, reflete o autor, tomando “ao vivo” a decisão editorial que depois leva a cabo. Usar imagens de arquivo de anônimos para narrar a leitura de um diário assinado por seu alter ego, portanto, me parece uma solução perfeita. É como se a autoria não importasse, e, justamente, é o que mais importa. “A autobiografia como colagem (de outras autobiografias)”, lê-se na caligrafia do escritor. Ressignificar imagens alheias, como fez Di Tella, tem o mesmo peso de atribuir a própria vida a um personagem, como fez Piglia. No fim, o documentário adquire uma forma e uma poética similar à de seu tema, transformando-se no diário cinematográfico de um diário literário. Saio do cinema e ainda é dia. Um café cortado enquanto rumino o filme e uma tostada. DIA 4 DE ABRIL, SEGUNDA Ofereço ao Suplemento Pernambuco uma pauta sobre 327 Cadernos. Parece que conseguimos espaço na edição de maio. Tenho anotações soltas, mas pretendo rever o filme, entrevistar o diretor e, se der, ler Anos de formação, o primeiro volume dos diários publicados. Essa história começa quando o autor de Respiração artificial tem 16 anos e é forçado a deixar Adrogué para viver com a família em Mar del Plata. O pai, peronista, era perseguido por defender o general em 1955, e a mudança se dá meio clandestinamente. “Naqueles dias, em meio à debandada, em um dos aposentos desmantelados da casa, comecei a escrever um diário”, conta, no filme. Piglia se manteve fiel ao hábito por mais de meio século. Em 2011, quando planeja voltar à Argentina após 15 anos lecionando em Princeton, Estados Unidos, decide olhar pela primeira vez para o conjunto desse material, encaixotado em 40 caixas de papelão. Afirma que são 327 cadernos, mas nunca os contou. Nada mais pigliano que dizer a verdade a partir de uma mentira - ou o contrário. DIA 5 DE ABRIL, TERÇA Descubro que os filmes anteriores de Di Tella estão disponíveis na íntegra no Vimeo. Assisto à sua cinebiografia sobre Macedonio Fernández, narrada justamente por Ricardo Piglia, quem percorre galerias subterrâneas, cafés e outras geografias macedonianas, reais ou imaginárias. Curioso é que Macedonio, assim como Piglia (e Di Tella), também utiliza o método dos cadernos-diário para compor sua obra-prima, Museu do Romance da Eterna (no Brasil, editado pela já saudosa Cosac Naify). “Um romance que é ao mesmo tempo diário pessoal, tratado sobre a arte, plano de vida e uma experiência do irreal em sua forma mais perfeita”, define, em voz off. “Ler Macedonio é ler sobre o futuro”, diz, enquanto Di Tella encerra o documental com o mesmo travelling in com que começa (só que agora não mais em reverse), criando uma ponte entre passado e futuro. Em alguma medida, Piglia também fala de si quando fala de Macedonio Fernández. DIA 7 DE ABRIL, QUINTA Buenos Aires tem cerca de 470 livrarias, mas nenhuma parece ter à pronta entrega o primeiro tomo de Os diários de Emilio Renzi. “Esgotado na editora”, me dizem os livreiros. Como pode, se saiu há poucos meses e ganhou logo a chancela de livro do ano na Argentina? Vou até a Biblioteca Nacional. Os elevadores e paredes do edifício estão cobertos de cartazes exigindo a reincorporação dos 240 funcionários demitidos pelo presidente Mauricio Macri. “Não sobram trabalhadores, faltam políticas públicas”, lê-se num deles. No quinto andar, a
atendente diz que a biblioteca pode levar até três anos para adquirir um novo título – prazo que converte qualquer lançamento em velharia. Por sorte, encontro no catálogo um livro fino de capa dura intitulado Fragmentos de un diário. Foi lançado pela Galeria Jorge Mara - La Ruche em 2012 e acompanha imagens do artista plástico Eduardo Stupía. Eis uma passagem interessante: “Quinta-feira Depois de tantos anos escrevendo nesses cadernos comecei a me perguntar em que tempo de verbo devo situar os acontecimentos. Um diário registra os fatos enquanto acontecem, não os recorda nem os organiza narrativamente. Tende à linguagem privada, ao idioleto. Por isso, quando alguém lê um diário, encontra blocos de existência, sempre no presente, e só a leitura permite reconstruir a história que corre invisível ao longo dos anos. Porém, os diários aspiram ao relato, e neste sentido estão escritos para ser lidos (embora ninguém os leia).” Os trechos são todos saborosos. Fico lendo até a biblioteca fechar, à meia-noite. Um luxo, uma biblioteca aberta até a meia-noite.
“Somos fantasmas para nós mesmos. Às vezes é mais fácil olhar-se no espelho do outro do que no próprio”, reflete diretor Di Tella 8 DE ABRIL, SEXTA Escrevo para Andrés Di Tella com um pedido de entrevista. Fico sabendo que está em Cuba, com pouco acesso à internet, e que terei de esperar até semana que vem. O editor de Suplemento me dá um tiquinho mais de prazo. 10 DE ABRIL, DOMINGO Não para de chover em Buenos Aires. Fico em casa tomando vinho e relendo o ensaio O documentário e eu, assinado por Di Tella e incluído no livro O cinema do real (Cosac Naify, 2005). Em dado momento, ele cita o documentarista Nick Broomfield para falar de atuação como o oposto de falsificação. “O que ele faz se exibindo e contando seus problemas é uma forma transparente de prestar contas, uma atitude mais honesta e talvez a mais acreditável.” Para Di Tella, Broomfield mostra o que os documentaristas costumam esconder, ou seja, fracassos. “Seus documentários tornam-se um manual de tudo aquilo que não deveria haver num documentário.” Penso se não será também um fracasso meu não conseguir o livro de Piglia e a entrevista exclusiva com Di Tella. No Vimeo, assisto ao seu documentário Hachazos e tenho uma aula sobre fracassos, franquezas e escancaramento de um processo narrativo em curso. À noite, saio para comprar ibuprofeno e medialunas. 11 DE ABRIL, SEGUNDA Revejo 327 Cadernos, agora na tela do computador, com senha enviada pela produtora Gema Films. É interessante quando Piglia diz que só há restos no diário e Di Tella constrói uma narrativa com descartes de noticiários antigos. O desimportante se torna essencial, significativo. Há ainda essa transferência de tempos - passado, presente -, de geografias - Buenos Aires, Princeton, Mar del Plata, Adrogué - e de narradores - Di Tella, Piglia,
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maria luísa falcão
alguns amigos do núcleo mais íntimo do escritor. Um palimpsesto polifônico tremendo, esse filme. DIA 12 DE ABRIL, TERÇA Minha amiga jornalista Malena Rey, que escreve para a revista Inrokuptibles, me empresta Os diários de Emilio Renzi. Agradeço com um pacote de café brasileiro que perfuma minha mochila. Malena conta que um incêndio destruiu recentemente o depósito da Anagrama, editora do livro. Agora entendo a dificuldade de encontrá-lo nas livrarias portenhas. Curioso é que Piglia aparece incinerando um dos diários no filme, as chamas refletidas nos óculos redondos de aro preto, o riso irônico no canto da boca. Profético. 13 DE ABRIL, QUARTA Converso quase uma hora com Andrés Di Tella por Skype. Pergunto sobre a construção imagética do filme. Ele conta que os cadernos do autor eram recheados de papeizinhos: uma foto, um recorte de jornal, o canhoto de um guarda-móveis. Cada um com uma história por trás. “O que fiz foi buscar um equivalente no audiovisual para reproduzir essa espécie de caos.” Uma sequência mostra um halterofilista deixando-se atropelar por um caminhão, uma menina de maiô brincando num balanço, uma nave espacial de um filme em preto e branco. “O que busco? Lembranças alheias. Metáforas da memória”, me diz. Usar imagens anônimas como ilustração da vida de Piglia (ou de Renzi) corrobora o discurso da alteridade. Andrés filmava seu próprio diário cinematográfico, quando surgiu a ideia de filmar os do escritor, dando um novo rumo ao projeto. “Somos todos fantasmas para nós mesmos. Às vezes é mais fácil olhar-se no espelho do outro do que no próprio”, reflete. Em Buenos Aires, Andrés ministra uma oficina de documentarismo intitulada Caderno de Anotações. Pergunto sobre a função desse objeto como laboratório criativo. Ele garante que só o mecanismo de sentar com alguma constância para escrever “já te tira um monte de coisas que de outro modo
não sairiam”. “Um caderno tem algo mágico, não importa tanto o que você escreve, mas o momento compartilhado com ele.” Para além do método, Andrés valoriza o caderninho também como forma: um texto com total liberdade, sem obrigação de estrutura, inconcluso, escrito no presente. “Fui percebendo que meus próprios trabalhos conservam esse elemento, como se fossem um caderno de anotações de um filme, em que aparecem os rastros do processo. Me interessa dar a sensação de que o filme está sendo feito ao mesmo tempo que você o está assistindo. O desafio é dar essa experiência de diário, mas com uma estrutura narrativa forte por trás, uma viagem emocional”, diz. Conversamos sobre a cena do caderno em chamas, que descubro ter sido ideia de Piglia. No filme, ele diz que, se um autor não deseja publicar algo, a única saída é queimá-lo. Queimar e publicar parecem gestos contraditórios, mas não, se pensarmos que Piglia vê o próprio diário como o material bruto de sua obra, a partir do qual pode experimentar, editar, cortar, incluir novas cenas, mudar o ponto de vista. O fogo, então, simbolizaria seu desejo de manter algum mistério quanto à natureza do texto manuscrito (o que estava originalmente nos diários?, o que entrou depois?, como se o artifício não fosse, à sua maneira, também uma verdade.) Dividir o filme em duas partes foi uma decisão estética para marcar o antes e o depois do diagnóstico da doença de Piglia (Esclerose Lateral Amiotrófica), recebido durante as filmagens. Di Tella conta que, na segunda parte, o escritor começa a experimentar com o texto, passando-o para a terceira pessoa, e o teor das imagens de arquivo acompanha essa mudança. “Elas passam a descolar do que ele narra, ficando mais arbitrárias e plenamente metafóricas, até culminar com esse plano dos cachorros caindo de paraquedas na Antártida.” Enquanto me explica o trabalho sonoro de Felipe Otondo - pontuado por sons de sinos que carregam ainda mais o filme de um sentido temporal -, percebo que, durante toda a entrevista por Skype,
ouço notas musicais de fundo. “É meu filho Rocco ensaiando no piano”, revela. No andar de baixo do apartamento em que estou, alguém toca o mesmo instrumento, criando uma sincronicidade absolutamente imprevista. 14 DE ABRIL, QUINTA Por fim, há sol, mas passo o dia sem sair de casa, mergulhada nas 360 páginas de Os diários de Emilio Renzi. Anos de formação se concentram na primeira década de escritura do diário, começando numa quarta-feira de 1957 e terminando numa terça de 1967, ano de sua estreia literária. A obra intercala pequenos ensaios, o diário em primeira pessoa e trechos em terceira, com o narrador contando o que teria ouvido de Emilio Renzi certa tarde em um bar na esquina da Arenales com a Riobamba. Há recortes da vida pública argentina (a queda de Perón, a notícia da morte de Che Guevara num dia chuvoso), fundindo-se à sua vida mais íntima (“comprar pasta de dentes, carga de caneta e um caderno preto”). Estão lá as primeiras vivências políticas, amorosas, cinéfilas (“o cinema é mais rápido que a vida, a literatura é mais lenta”), intelectuais, literárias. Mas seria um erro ler Os diários como mera autobiografia. Porque, como diz no sugestivo texto intitulado Quien dice yo (Quem diz eu), ao final do livro, “já não se trata da experiência vivida, mas da comunicação dessa experiência, e a lógica que estrutura os fatos não é a da sinceridade, mas da linguagem”. 15 DE ABRIL, SEXTA Uma frase de Piglia (assinada por Emilio Renzi): “Não existe procedimento narrativo que não seja artificial, que não se imponha à linguagem cotidiana com seu uso inusual”. Penso que uma reportagem também pode ser um procedimento narrativo - logo, um artifício. Depois de duas semanas de trabalho, envio ao editor um texto que ainda não sei o que é - mas que não terei coragem de assinar com um alter ego. Olho minhas olheiras no espelho, passo um café bem forte e saio (chove, como sempre) para comprar um caderno novo.
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entrevista
Ricardo Aleixo
“O que eu posso perceber, mas não posso definir” Em visita a Pernambuco para performar e discutir a presença da voz e do corpo na criação poética, escritor fala do seu interesse por aquilo que foge dos enquadramentos Timo Berger/ DIVULGAÇÃO
O corpo é uma dimensão muito presente no teu trabalho. Seria possível afirmar que produzir a presença dos corpos estaria no cerne da tua poesia?
Tem menos a ver com produzir presença, mas tem a ver com aceitar presença. Posso dizer que tudo que eu chamo de minha poesia, que tanto pode ser livro, performance, música ou objeto tridimensional, tem sempre menos a ver com a tentativa de produzir algo e mais com a aceitação de um tipo de encontro que não pode ser premeditado porque é da ordem da relação fenomenológica. Lido com esta garrafa d’água como se fosse a primeira das garrafas e, portanto, eu o primeiro homem a tocar uma garrafa. É preciso que eu faça dessa forma pra poder ter sempre essa primeira idade que me devolve a curiosidade real pelo objeto e pela relação que se instaura ali.
Entrevista a Carol Almeida “Existe e/faz supor que/por situar-se/ entre duas coisas, tudo/ se resume ao intervalo/ entre elas”. Em seu mais recente livro publicado, Impossível como nunca ter tido um rosto (2015), Ricardo Aleixo nos coloca nesse essencial lugar de desconforto que é viver entre. Habitar o intervalo, como o poeta esclarece. No entanto, esquadrinhar sua poesia em qualquer espaço, ainda que seja nesse intervalo, ou mesmo nos rótulos que com tanta frequência o vestem - “mineiro”, “negro”, “periférico” -, é reduzir o alcance e a potência do que propõe Aleixo em seu trabalho, algo que, tantas vezes, foge da página, escorre por seu próprio corpo e desliza para fora de
sua voz. Mesmo porque, como diria James Joyce, Aleixo se funde na ideia de tudo aquilo que é verbivocovisual. Ao ler a entrevista a seguir, considerem, portanto, o não dito. Aquilo que, em lugar de definir, ele sugere. Em suas provocações, achamos as pistas de sua formação, de como pela aceleração de seu pensamento passam referências de artistas plásticos, poetas concretistas, filósofos que usam a literatura como uma ferramenta fundamental para tensionar o mundo. Autor de livros como Modelos vivos (2010), Máquina zero (2004) e Festim (1992), performer, artista visual e pesquisador dedicado a questões do corpo e da voz poética, ele conversou com o Suplemento Pernambuco sobre elementos centrais desse seu entrelugar. A conversa se encontra na íntegra em nosso site.
O processo pelo qual o poema fala só deve ser conduzido por uma intenção de sentido, da cognição? Uma coisa sou eu ter me aproximado na adolescência do que é convencionalmente chamado de poesia, outra coisa é perguntar: que forças são essas que me puxam pra isso? Não é possível explicar. Fiz dessa impossibilidade uma chave de relação com todo e qualquer poema. Preciso ser atraído por algo ali, ter interesses despertados por aquele universo complexo e muitas vezes excessivamente aberto no plano cognitivo. Se não for assim, prefiro ler um ensaio. O poema terá que se apresentar a mim como coisa estranha que me lança questões possivelmente sem respostas. A comparação que mais gosto de fazer é entre poema e a filosofia. No tratado filosófico, a busca de uma verdade está enunciada em textos que, por mais abertos que sejam, te prometem algo. Nada disso aparece no poema. O poema me parece um jogo perverso, às vezes, de escavação para o alto. Quanto mais te falta chão, mais você procura escavar para cima, onde as pontas estão soltas.
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O poema terá que se apresentar a mim como coisa estranha que me lança questões possivelmente sem respostas Quem são as pessoas na formação do teu pensamento? Posso falar de um teórico que me interessa muito e que a sua leitura me levou a buscar as referências dele e tentar ultrapassá-las, que é o Mario Pedrosa. Ele me ajuda a organizar o pensamento em função dessa atenção da materialidade do signo como parte indissociálvel do processo criativo e o quanto isso, o jogo formal da obra, já é pensamento. Posso citar também a Lygia Pape, que foi também uma grande interlocutora do Pedrosa. Incluiria também alguém que, além de fazer como a Lygia, que traçava seus princípios composicionais, produziu muitos textos sobre isso: o Hélio Oiticica. Isso tudo me deu um lastro maior pra lidar com questões com as quais eu já lidava na adolescência, pela minha própria contradição de base que é nascer numa família pobre, vivendo na periferia de Belo Horizonte e ter esse tipo de interesses, conhecer a poesia concreta e entendêla como algo que, mais do que me permitir viver num ambiente criativo e reflexivo, poderia me ajudar a montar um programa de estudos sobre o passado da poesia. Quando avisei aos meus pais que eu não concluiria o segundo grau, fiz questão de apresentar a eles um programa de estudos baseado no que um poeta precisaria aprender. Então, desde esse momento já sabia que queria ser poeta? Sempre tive muito respeito
pela minha intuição. Ao mesmo tempo, sou virginiano, e virginianos são desconfiados da intuição. O que essas leituras fizeram, e vivendo na periferia sem ter interlocutores, era provocar em mim quase um sonho inatingível. Mas eis que minha irmã fez Letras e eu terminei, por tabela, fazendo o curso junto com ela. A poesia é, com frequencia, protagonista nos teus poemas. Desmembrá-la é preciso? Eu, de fato, não sei o que é poesia. O que eu sei é que algumas das melhores definições de poesia que conheço e que remetem à ideia de linguagem concentrada dão o que pensar para além da convenção poesia. Porque, se é linguagem concentrada, uma pergunta que precisa ser feita é: somente a poesia lida com concentração de linguagem? E: em que momento histórico isso se deu enquanto um atributo a ser destacada dentre muitos? Outra questão: em que medida a atenção a esse aspecto da ordem da materialidade do signo me ajuda a entender o desenvolvimento da poesia, não somente dentro da tradição do Ocidente europeu, mas em relação às culturas extraeuropeias? Durante muito tempo, essas perguntas me bastaram. Até que entrei em contato com as poéticas ameríndias, africanas e afrodiaspóricas, que muitas vezes nem têm palavra para isso que chamamos de poesia. Mas está lá a concentração, o tensionamento da linguagem e, em graus desenvolvidíssimos,
a relação com a voz, o corpo como um modo de instauração do espaço em que a poesia vai se dar e que não está, portanto, em algo que é fetiche para as poéticas do Ocidente, que é o livro. Surgem outras perguntas: Como é que eu posso chamar de poesia isso que não partiu do texto escrito? E que na verdade está fundando uma outra ideia de texto que se define pela impossibilidade de reprodução? Percebo em alguns momentos do teu trabalho uma ideia das coisas que vivem entre polos, mas tu te atens ao que vive entre elas. O que te interessa é o que habita nesse intervalo? Isso que chamo de intervalo em um poema é me valer de um termo que torne possível a mínima apreensão de algo que vai escapar sempre, é o que eu posso perceber, mas não posso definir, mas que tem a ver com as temporalidades com as quais a gente lida todo tempo. Quando você fala de polos, esse termo responde a uma necessidade de fazer uma demarcação que só atende a fins de uma tentativa de apreensão de algo que, creio firmemente, não tem começo ou fim. Pensar que habito intervalos, mesmo que não consiga identificar o momento em que ele se instaura, é uma percepção que me acompanha desde muito cedo e que o contato que eu passei a ter, desde os 21 anos, com a cosmovisão africana me deixou mais à vontade com isso, porque essa cosmovisão tem a ver com a ideia de tempo
Percebi cedo que a cama (do ‘poeta negro’) estava feita. Eu seria aceito tanto pela Casa Grande quanto pela Senzala circular. Gosto de ilustrar isso com o oriki de Exu: Exu acertou ontem o pássaro com a pedra que só hoje atirou. Isso dá um nó na razão. Ser um poeta negro no Brasil é ainda correr por fora do “oficial” no mercado editorial? Eu corro dos rótulos como o diabo corre da cruz. Agora mesmo declinei de participar de uma antologia de poesia mineira pelo simples fato de não saber o que é isso que se chama de poesia mineira. Assim é minha postura em relação à poesia negra. Já tem alguns anos que sou malvisto por todos os setores por fazer a mesma anedota sempre: sou poeta e sou negro, mas não sou poeta negro. É uma ilusão de ótica e um automatismo de linguagem achar que sou um poeta negro. “Ah, mas você escreveu orikis, você denuncia a chacina do Cabula.” Mas eu não sou gay e posso tematizar isso na poesia. A questão das mulheres trans, por exemplo, vai aparecer em algum momento na minha escrita sem que eu tenha que reivindicar uma identidade trans. Do ponto de vista da casa-grande, eu deveria estar no mesmo lugar em que ela colocou, por exemplo, Cruz e Sousa. De forma que o termo “poeta negro” me parece totalmente tutelado, é uma permissão que o sistema literário dá. Percebi muito cedo que a cama estava feita pra mim e que eu poderia muito bem deitar nela. Seria aceito tanto pela casa-grande quanto pela senzala. Mas aí decidi
tensionar isso. Por exemplo, sempre que me convidam para algum evento sobre literatura brasileira, provoco a discussão sobre questões raciais. Mas se me chamam pra discutir literatura negra, falo de várias outras coisas que não passam por essa questão. Tu estás escrevendo um livro de memórias, gostaria que contasses um pouco desse projeto. É uma tentativa de entender qual foi, de fato, o percurso que fiz nas minhas leituras. Comecei a colaborar com a imprensa muito cedo, aos 27 anos eu já tinha uma coluna fixa em jornal, e desde então eu me cobrei o máximo de rigor e conhecimento e passei a ler muito livros. Será uma tentativa de repertoriar isso, bem uma tentativa de escapar de um estereótipo que aqui e ali aparece pra mim, que é o do sujeito que se fez sozinho, negro, pobre, morador da periferia... O título provisório é Salvo pela imaginação e remete a um momento em que começo a escrever poesia entendendo já que é um caminho que eu queria seguir. Eu jogava futebol e essa era minha razão de existência. Mas, numa daquelas peladas que, segundo Nelson Rodrigues, podem ser de uma complexidade shakesperiana, levei uma bolada no olho e, entre os 18 e 21 anos, fui submetido a cinco cirurgias. Havia dores intensas o dia inteiro. Então, só sobrou a poesia, que foi também uma forma de aprender a lidar com a dor.
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Maria Luísa Falcão
CARRERO O espaço que o tempo ocupa para Ruffato Novo romance do escritor mineiro revira as memórias da ditadura brasileira
Marco Polo
MERCADO EDITORIAL
POESIA
Pedro Américo reafirma em novo livro sua coerência como escritor: idêntico a si mesmo, isto é, mutante Pedro Américo de Farias (foto) é um poeta à parte dentro da constelação de escritores locais. Vê-lo dizendo seus poemas é um espetáculo, no melhor sentido da palavra: ele consegue ao mesmo tempo ser enfático e contido, dramático e cerebral. Na verdade, ao “encenar” seus poemas, ele recria a estética que os norteia, permeada de consciência crítica e humor – tópico ressaltado por Lourival Holanda, em
prefácio ao livro Coisas poemas etc (Linguaraz Editor), em que Pedramérico (como se assinou algum tempo) reúne poemas e textos variados, nos quais a materialidade e a concretude dominam, daí o coerente título. Aliás, este livro é uma prova de que “o poeta permanece idêntico a si: mutante”. Para quem ainda não conhece a excelente obra de Pedro, Coisas pode ser um bom começo.
foto: divulgação
Raimundo
O tempo literário é uma técnica permanente na obra de Luiz Ruffato, cujo romance recente, De mim já nem se lembra mais, chega ao leitor com a força de um escritor que se renova sem perder o contato com os seus temas mais caros. Nele, o tempo ocupa um espaço vigoroso, pesando mais do que encantando, sem que o leitor seja forçado a acompanhar discursos eloquentes e enfadonhos. Ele, o tempo, está ali na prosa densa sem drama, carregada de lembranças e sentimentos, de situações e consequências. Para realizar esta técnica, Ruffato cria uma “narrativa de fora”, que contempla mais do que conta, através de cartas dolorosas, inquietantes, sofridas, para além do convencional, como se viessem de um tempo distante, sopradas pelo vento e não só pelas palavras. Tudo isso porque as cartas são testemunhos e confissões, não exatamente histórias, naquele sentido literário que estamos acostumados a ler. Uma cena e mais uma cena e outra cena – assim acontece nos romances, novelas e contos. Às vezes, cenas e mais cenas cortadas por um diálogo ou por um cenário, uma digressão ou um monólogo. Nada disso. Os acontecimentos pulam para o primeiro plano, mas estão na memória ou, quem sabe, nas lembranças. Não chegam a criar um elo de dramaticidade., Nem precisa. A técnica de Ruffato é assim mesmo: deixa que Célio se lastime e se engrandeça, registre, ressalte ou negue, construindo essa passagem do ser humano pelos dias. Ruffato criou uma linguagem epistolar que questiona sem perguntar, com um detalhe magnífico: nem tem resposta. Querer a resposta, ele quer. Sem dúvida. Mas ela está nele e com ele, ninguém poderá entender essa inquietação: nem mesmo a mãe de Célio, a quem são dirigidas as cartas. Assim é que as cartas, cheias de sentimentos dolorosos, lembram crônicas domingueiras, de quem lê o jornal do domingo somente para soluçar. A nostalgia dos líricos, meu Deus! E dos românticos, claro. Mesmo assim, as cartas são também cartas de baralho, que vão desmontando o destino e criando outros destinos, feito quem confia a vida a uma cartomante. A uma cigana, sem dúvida. É assim que leio os romances deste escritor que consolida seu nome na literatura brasileira com uma obra exemplar. Como a leitura de cartas-crônicas nas mãos de uma cartomante que narra o passado – se é verdade que há passado aí. Um passado que revela o futuro. Vejam como a imagem é forte: embora as cartas falem do passado/presente de Célio, o que elas mostram é o futuro. O tempo tríbio, na expressão de Gilberto Freyre. Até porque a carta conta o presente de José Célio que, para a mãe – querida mãe, querido pai –, já é passado, alimentando o futuro, que nos virá – a nós, leitores, na próxima carta. É assim que o tempo se manifesta na obra de Ruffato Em relação ao protagonista, ele também deixa de ser José Célio para tornar-se Célio
ou ainda seu filho Célio. Técnicas de aproximação e distanciamento que representam mais do que dizem. Pode-se afirmar, com certeza, que Célio é mais íntimo do que José Célio. Concordo e não discuto. Mas é por isso mesmo, que o filho se desarma diante dos pais. Apenas uma variante do que foi dito antes.
A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:
CRITÉRIOS PARA RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO DE ORIGINAIS PELO CONSELHO EDITORIAL I
Os originais de livros submetidos à Cepe, exceto aqueles que a Diretoria considera projetos da própria Editora, são analisados pelo Conselho Editorial, que delibera a partir dos seguintes critérios: 1. Contribuição relevante à cultura. 2. Sintonia com a linha editorial da Cepe, que privilegia: a) A edição de obras inéditas, escritas ou traduzidas em português, com relevância cultural nos vários campos do conhecimento, suscetíveis de serem apreciadas pelo leitor e que preencham os seguintes requisitos: originalidade, correção, coerência e criatividade; b) A reedição de obras de qualquer gênero da criação artística ou área do conhecimento científico, consideradas fundamentais para o patrimônio cultural; 3. O Conselho não acolhe teses ou dissertações sem as modificações necessárias à edição e que contemplem a ampliação do universo de leitores, visando a democratização do conhecimento.
II
Atendidos tais critérios, o Conselho emitirá parecer sobre o projeto analisado, que será comunicado ao proponente, cabendo à diretoria da Cepe decidir sobre a publicação.
III Os textos devem ser entregues em duas vias, em papel A4, conforme a nova ortografia, devidamente revisados, em fonte Times New Roman, tamanho 12, páginas numeradas, espaço de uma linha e meia, sem rasuras e contendo, quando for o caso, índices e bibliografias apresentados conforme as normas técnicas em vigor. A Cepe não se responsabiliza por eventuais trabalhos de copidesque. IV Serão rejeitados originais que atentem contra a Declaração dos Direitos Humanos e fomentem a
Perceba-se, também, o tratamento: no princípio, querida mãe, querido pai; em seguida, querida mãe; por fim, apenas mãe. E o personagem deixa de ser José Célio para se transformar em Célio. Mais do que uma questão psicanalítica – deixo de falar em psicanálise porque sou
um escritor, não entendo nada de psicanalise e posso dizer besteira -, uma técnica literária. Na técnica literária, o filho não perde o sentimento filial mas se distancia. Fala ou escreve com menos cerimônia porque já está contaminado pela ausência, pela distância.
violência e as diversas formas de preconceito. V
Os originais devem ser encaminhados à Presidência da Cepe, para o endereço indicado a seguir, sob registro de correio ou protocolo, acompanhados de correspondência do autor, na qual informará seu currículo resumido e endereço para contato.
VI Os originais apresentados para análise não serão devolvidos. VII É vedado ao Conselho receber textos provenientes de seus conselheiros ou de autores que tenham vínculo empregatício com a Companhia Editora de Pernambuco.
SAÚDE
REVISTA
Criança autista é tema de livro de Katia de Carvalho
Novo número da Poesia & Cia faz homenagem ao vasto leque de poetas agrupados sob a marca Geração 65
A criança autista revela, quase sempre, duas características: dificuldade de se relacionar com os outros e apego feroz à rotina. Mas, às vezes, é capaz de apresentar qualidades excepcionais em algumas áreas, como a matemática, por exemplo. O autista e seus objetos, de Katia Álvares de Carvalho Monteiro (7 Letras), aborda o tema (hoje bastante divulgado) em suas diversas dimensões.
Saiu o novo número da revista Poesia & Cia. Literatura e Arte (Edições Maturi), editada por Bráulio Brilhante, Glauco Guimarães e Philippe Wollney, este último responsável pelo projeto gráfico, por sinal de muito bom gosto. Aliás, a revista, que tem como tema a Geração 65, está muito boa. Poemas de, entre outros, Alberto da Cunha Melo, Severino Filgueiras, José Mário Rodrigues, Ângelo Monteiro, José
Carlos Targino, Tereza Tenório, Domingos Alexandre, Deborah Brennand e Lucila Nogueira, ao lado de contos de Marco Polo Guimarães e Arnaldo Tobias (também presente com um poema curto e outro visual), estão ao lado de uma entrevista com o poeta Almir Castro Barros. A única restrição é a falta da presença de um poeta como Esman Dias, recentemente falecido.
Companhia Editora de Pernambuco Presidência (originais para análise) Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro CEP 50100-140 Recife - Pernambuco
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Pontos invisíveis da cartografia literária Chegada de Lúcio Cardoso no exterior nos faz buscar escritores que “faltaram” Texto: Fernando Monteiro Imagens: Jaíne Cintra
Há uma zona de sombra – injusta – na literatura brasileira. Variável de densidade no tempo, ela se abate sobre nomes que vão do gaúcho Dyonélio Machado ao baiano Sosígenes Costa, sem “preferência” por prosadores ou poetas, nomes do antigo mainstream ou nomes que eu chamo de “laterais” (na deliberada construção de obras que não intentaram se firmar sobre o tapete vermelho de honra das letras). Não são poucos os que se encontram sob essa pesada nuvem – imerecida, tantas vezes – de ostracismo, esquecimento, “exílio” na própria literatura pátria, de um romancista de primeira classe como Cornélio Pena, ou de um refinado poeta lateral como Tomás Seixas, igualmente “premiados” por não terem buscado o foco dos holofotes, ainda em vida, com a fúria e o som do autoelogio entre as frases espirituosas (?) ditas para os ouvidos daquele crítico literário recepcionado no aeroporto ou daquele editor convidado para jantar e mimoseado de muitas maneiras. Deveria ser feita uma vasta pesquisa de tudo o que um forte Breno Accioly NÃO fez nesse gênero de habilidades que também nunca mostrou um poeta da altura de Emílio Moura (que Drummond considerava – sinceramente, eu creio – muito melhor do que ele próprio). Na areia das praias preguiçosas de Pindorama, guarda-sóis de sombra obscurecem nomes misteriosamente fora dos epicentros rotatórios por efeito da atenção em alguns “mantras”, digamos, hipnotizantes em torno de Bandeira-Drummond-Cabral na poesia, e, na prosa, Lispector-Lispector-Lispector, modernamente falando. MODELOS à MACHADAS? Bem, talvez isso corresponda ao monocórdio campo de uma literatura que se inaugura com um gênio chamado Machado de Assis, mestiço brasileiro (Joaquim Nabuco, seu amigo, pedia que se evitasse referir Machado pela cor da pele que, para Machado, seria “como se fosse branca”) a se benzer – desnecessariamente – pela ilusão de raça e até pela inauguração de uma Academia imitada da francesa no trópico onde as filhas dos portugueses se abanavam entre as pernas, quando ninguém estava olhando (e, uma vez ou outra, talvez quando havia alguém olhando, sim, ó bela Capitolina dos “olhos de ressaca”)… Estou tentando falar do berço de ouro (Machado) de letras douradas bordadas sobre as poltronas ou sobre as espreguiçadeiras modernosas daquilo que às vezes se pretende passar por crí-
tica antiacadêmica. Na cronologia que eu uso – e que não diz respeito somente ao tempo que passa –, esses “começos” evidentemente não se referem a um José de Alencar (o escritor que Ariano Suassuna, enquanto professor de Estética na Universidade Federal de Pernambuco, ensinava ser “mais importante do que Joyce”), e também tentando buscar um nexo do esquecimento que alegremente praticamos a respeito de obras, à margem, de nomes que quase nos incomodam, talvez por serem próprias, “autóctones”, no reino das sombras. Não há dúvida de que começamos bem: Machado de Assis foi um criador (como poucas literaturas tiveram) de modernidade atemporal no início desse “primeiro tempo”. Ele foi goleador, goleiro e gandula, simultaneamente, e se tornou a divindade tutelar do jogo que ainda não terminou, entre pés descalços e mãos enluvadas, no começo de tudo. E não se trata só do carioca que nos legou a especial herança da sua prosa (a poesia dele é ruim) como quem abandona um guardanapo usado, num fim de tarde de Mata-Cavalos. Fetiches à parte, vamos com calma, e reconheçamos que as águas primaciais do pendor para os “modelos” receberam Euclides da Cunha e Raul Pompeia – grandiosos –, um por sua obra-prima (tão seminal que já acolheu como afilhados o peruano Vargas Llosa, o húngaro Sándor Márai e mais dois argentinos enfiados no mesmo camisão do Conselheiro de Canudos – o que soa quase pornográfico) e o outro por ter produzido uma espécie de Le Grand Meaulnes que é bem melhor do que o do francês Alain Fournier (ambos especialistas na imaginação transida pela febre dos primeiros anos). Os “pais fundadores”, que se juntaram a Machado Academia, fornecerão, junto com o presidente, algo como um pattern que supostamente poderia nos ajudar naquela questão da identidade cultural brasileira, ainda em aberto. Mais de 400 anos depois de surgirem as primeiras vilas no borrão da paisagem, permanecemos à roda dessa Galileia que não se resolve. Do “indianismo” – para o qual encontramos um nome, mas não um gênero verdadeiro –, será necessário esperar, de fato, pelo olhar particular de Machado, pela epopeia barroca de Euclides e pelo Pompeia antecipador do Le Grand... para firmamos alguma originalidade. Ou não? – como perguntaria “o Gil”. Porque logo depois “o Afrânio Peixoto” será visto a copiar diluidores de Balzac ou, pior, ao modo daqueles dois anões (na época) festejados: Paul Bourget e Marcel Prevost. Os dois foram as tu-
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telares “divindades” de cartório que Afrânio escolheu para si, enquanto pelo menos o inquieto Monteiro Lobato – inquieto demais – começava a sua caminhada de articulista de jornalecos até se tornar no bravo editor e criador de literatura infantojuvenil docemente rural, em nossas letras. (Esqueçamos que Lobato correu o risco de ser “rifado” pelo Ministério da Cultura, recentemente, em desrespeito ao seu legado fundamental para as crianças: um cândido mundo rural de sítios cheios de cores e gentes candidamente caipiras, enquanto o espírito sombrio de Lima Barreto naturalmente olhava para além daquela cerca, vendo a estranheza dos destinos adultos, nos subúrbios do mesmo Rio de Machado.) Mas isso é antecipar as coisas. Quando assim aparece Barreto, no seu “deslocamento” (ou descolamento?), estamos falando de um escritor que não só está querendo fugir a um modelo nascente, mas que planeja escrever a partir do seu mundo pessoalmente perturbado demais para encontrar lugar entre as cadeiras de espaldar reto e almofadas douradas de quem já escreve segundo o receituário da época. Prossigamos, longe da sombra de Lima, por ora. Outro Barreto (Paulo), escrevendo sob o pseudônimo de João do Rio, enveredaria por dentro das noites – elegantes e deselegantes –, em busca de novas estranhezas como que captadas através de espelho art-nouveau, até morrer, como Lima, às vésperas do Modernismo que só modernizaria a nossa poesia, inicialmente (de 1922 a 1928). O PEIXE LÚCIO DAS ÁGUAS TURVAS O que eu estou querendo ressaltar é que, desde o brilhante começo, a nossa ficção foi perden-
Nas praias de Pindorama, guardasóis de sombra obscurecem nomes misteriosamente fora dos epicentros rotatórios do a força inicial da raiz “psicológica” (vá lá a palavra!), e isso, apesar dos esforços díspares – em tantas e tão diversas direções – de Dyonélio, no Sul, de Cornélio em São Paulo e do mineiro Lúcio Cardoso. Se o arco desta nossa volta caprichosa “estiver a ser” não lusamente acompanhada, peço às vertigens que demorem a “tirar-me” autoridade para escrever sobre a história da nossa literatura tramada com “modelos exemplares”, para que se compreenda o que aconteceu depois do mulato criar o seu universo urbano e ir fundar um Trianon literário para abrigar gigantes, Getúlios e anões deliciando-se com bolinhos, empadas e biscoitos. O fato é que, na obra que vai publicando de forma quase sequenciada (1935, 1936), o que
esse escritor “à margem” vai operar, é a passagem de volta para o futuro da literatura que perdemos (se é que me faço entender, no curso sinuoso que estou antecipando). Ao introduzir, afinal, o assunto “Lúcio Cardoso” no esquema de análise que o vê como um “elo” meio perdido, o que pretendo é alinhá-lo como herdeiro daquela lente da intimidade – vista obliquamente – instaurada por Machado na fase inicial da nossa literatura. Para a ótica mais ortodoxa, em se tratando do que apenas parece “linear” na evolução da narrativa brasileira, certamente que eu acabo de dar alguns saltos mortais, ao propor uma espécie de elipse do regionalismo do qual só recentemente fomos nos emancipando. No meio dos saltos, acho que, de algum modo, eu atropelei Octávio de Faria – e lamento-o. Ele tentou escrever o seu ambicioso roman fleuve – a “Tragédia Brasileira”, hoje esquecida –, e não incentivo ninguém a perder tempo com o projeto literário do católico investigando o Mistério sem a maliciosa modernidade de um Greene da linhagem de The end of affair, está claro. Entretanto, abramos parêntese para o registro de uma pequena obra-prima: “Tragédia Brasileira”, que Octávio escreveu fora da receita da fé religiosa e, talvez, até olhando diretamente no olho do diabo que “mora no detalhe”. São novelas mais que primorosas – e igualmente colocadas na sombra do seu fracasso como um Balzac fundamentalista reciclado. Fecha parêntese. Lúcio Cardoso é, para mim, o grande romancista que faltou, o Faulkner que esperávamos e que não veio, à brasileira, na obra de passagem para a modernidade pós-30. Daquele “pontapé” inicial – e seus desdobramentos – é ele, com
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brasileira do pós-guerra. A luz no subsolo é ainda um texto indeciso entre as duas pulsões – a solar e a noturna, para ecoar a palavras de Lêdo –, porém já trazia uma força nova, que Mário de Andrade de imediato reconheceu: “Seu livro é um forte livro. Artisticamente me pareceu ruim. Socialmente me pareceu detestável. Mas compreendi perfeitamente a sua finalidade de repor o espiritual dentro da, digamos, ‘materialística’ literatura de romance que estamos fazendo agora no Brasil. Deus voltou a se mover sobre a face das águas”.
certeza, um criador mais ambicioso do que Cornélio Pena e sua literatura de rendas e bordados (“romances de antiquário”, na visão de Mário de Andrade), na sala onde a menina morta nos olha desde algum pálido retrato. O vento sopra as cortinas das grandes janelas e, no Sul, traria a voz de Veríssimo, que pensava que era um romancista argentino educado em campo de neve americana. Estava enganado. Ninguém, atualmente, irá se impactar, com romances escritos ao estilo morno de um Fernando Namora, sobre dilemas amorosos de médicos vacilantes que serão depois trocados por jagunços farroupilhas – em tom épico forçado –, quando o vento forte da literatura latino-americana vier a soprar, nos ouvidos de Érico, com trompa rouca demais para se fazer ouvida onde gritam todos os diabos da casa sem cortinas de renda e sem trancas nas portas da fronteira, a casa arrombada, a casa de doentes e demônios, a casa assassinada. A literatura dos interiores enlouquecidos já se acercara pela mão do olhar pontilhista de Luiz Jardim – com vocação de voyeur (em As Confissões do Meu Tio Gonzaga) que recuou um passo do tema do incesto – e, assim, é Lúcio mesmo o único semiFaulkner que temos, virado para dentro e para fora, perseguido pelo difícil amor de Deus e se sentindo, na carne, a morada do diabólico Outro. É Antonio Gala quem afirma: “o corpo guarda sem saber a marca dos desejos consumados, e também talvez dos que não se consumaram e dos que nunca poderão se consumar”. Somente em Lúcio o leitor de verticalidades enxerga – no romance pós-regionalista – o portador daquela angústia que passou de moda porque perdemos o sentido de transcendência do ato de viver,
É preciso ressaltar que desde o brilhante começo, a nossa ficção foi perdendo a força inicial da raiz ‘psicológica’ (vá lá a palavra!) não só misterioso, mas danação que cumpre “decifrar”. Quando o poeta Lêdo Ivo (que, nos anos 1940, dividiu apartamento com o escritor) afirma ser Lúcio “o grande emissário da noite, da sombra e do silêncio numa literatura que sempre foi solar e tropical”, ele situa bem o escritor que, de início, rendeu tributo à camisa de força regional (tão forte ela era), ao estrear com um romance que pauta a trajetória do seu pai aventureiro, Joaquim Lúcio Cardoso, fundador de Pirapora. O romance Salgueiro – de 1935 – seguiria ainda a mesma receita, mas A luz no subsolo, do ano seguinte, e principalmente Dias perdidos (1938) e a novela Mãos vazias, fariam desviar a sua ficção para o intimismo avant-la-lettre que Lúcio vai representar – mesmo “fora de lugar” – na prosa
PARA ALÉM DA AVALIAÇÃO EQUIVOCADA DE ANDRADE Mário não poderia imaginar que, anos mais tarde, Lúcio daria início justamente à sua Trilogia do mundo sem Deus – focado na terra desolada do mesmo Rio de Janeiro a que se devotou o já citado Octávio de Faria sem a coragem do mergulho de Lúcio no submundo das modernas cidades ornadas dos colares de prostitutas, alcoólatras e assassinos. As novelas Inácio e O Enfeitiçado fazem parte do projeto de investigação que Cardoso não chegou a completar com relação ao universo carioca. Sob a pele das coisas, seu olhar não se deixa fascinar pelo “Rio exterior” – ao contrário da insustentável leveza da literatura do amigo Aníbal Machado, por exemplo. O próprio Lúcio explica a diferença, abismal, de atitudes: “Para quem não desdenha os grandes saltos na inquietação e no obscuro, tudo é bom para ser visto de perto. Digo TUDO: as casas cheias de sombras e promessas aliciantes, os grandes becos da necrose, o tóxico, os olhos insones do ciúme, o inimigo subterrâneo que nos saúda, a prostituta que nos recebe sem suspeita, a conversa que pode decidir o futuro, tudo”. A “lenda urbana” da vida do escritor dá conta de que, nesse período, ele teria chegado a contratar um matador de aluguel para persegui-lo, de modo a sentir na pele a sensação do seu personagem jurado de morte. O que há de certo é o que Lúcio escreveu em cartas como as destinadas a Cornélio Pena, que merecia toda a confiança do mineiro profundo: “É impossível a alguém viver como eu vivo, sem explodir ou morrer um dia. Estou aqui sem coragem de atravessar o dia, de reunir as minhas numerosas máscaras…” Clarice Lispector também manteve correspondência com Lúcio, e comprova essa tormenta interior (ou a “máquina infernal da mente que Deus me deu”, nas palavras do próprio escritor), ao mesmo tempo em que testemunha a respeito também da influência que exerceu sobre os autores da sua geração, a partir de quando o seu caminho (para a interioridade e para a aceitação da sua homossexualidade) se esclareceu para ele. Tanto quanto detestou o título O Lustre, foi Lúcio quem batizou Perto do Coragem Selvagem (nunca achei esse título “parecido” com Clarice; sempre achei que deveria ser de uma Carson MacCullers ou de um… Lúcio Cardoso!) e, segundo ela, foi o seu “muito querido amigo” quem a ensinou “a conhecer as pessoas através das máscaras”. Alguns amigos da Lispector dão como certo que a admiração da escritora chegaria a resvalar para o terreno amoroso, num sentimento impossível de ser correspondido por Lúcio, homossexual apaixonado pelas mulheres apenas como criador capaz de instilar vida em personagens como a Nina de Crônica da casa assassinada – que Wilson Martins tem certeza de que “ficará como uma das grandes mulheres do romance brasileiro. Sua personalidade imperiosa e despótica, seu enigma secreto dominam não somente a chácara e a família dos Menezes, mas, ainda, e sobretudo, o próprio leitor”. Resta que essa assombrada casa seja visitada pelos leitores tantalizados por lustres, siderados pelos mesmos nomes repetidos nas escolas, sejam pendentes do regionalismo que ainda nos magnetiza ou seja desse ambiente urbano, impreciso, que ainda não deciframos por inteiro, na indefinição de quem somos entre os terraços iluminados e os quartos de sombra.
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Os que não podem ser esquecidos Escritores e pesquisadores lembram autores que precisam ser resgatados
Poucas obras ficcionais em língua portuguesa encerram de maneira tão verticalizante as contradições e a violência do seu tempo como os romances e os contos escritos por Hermilo Borba Filho (1917-1976) entre os anos 1950 e 1970. Neles, encontramos um autor que transige com os seus inúmeros narradores, fazendo da sua obra uma espécie de autobiografia ficcionalizada. Ao transigir com os seus narradores, Hermilo não poupa do seu olhar de lince as suas próprias contradições políticas, religiosas, afetivas e sexuais; por extensão, as contradições dos homens e do conjunto das ideias e dos comportamentos que definiram a sua contemporaneidade. Entre a violência e o afeto, as certezas ideológicas e as crises religiosas, o sexo homossexual e o amor das mulheres, o cosmopolitismo e o provincianismo, sua obra não é apenas um mergulho radical sobre o seu tempo, mas também matéria fabulatória que explica a violência, a intolerância e a ressurgência das ideias reacionárias que povoam o nosso tempo Anco Márcio Tenório Vieira, professor do departamento de letras da UFPE e pesquisador.
Um grande autor brasileiro que deve ser lembrado e traduzido para muitas línguas é Cornélio Pena, autor de A menina morta, publicado em 1930. Trata-se de um alentado romance de mais de 500 páginas que narra a história de uma menina, filha de família do período áureo do café no Brasil. Cornélio é um estilista minucioso a mover palavras, cenas e personagens com incrível habilidade. Está justamente na linguagem a sua principal característica, embora a estrutura narrativa seja tradicional. O fino tecido narrativo de Cornélio Pena pede, por isso mesmo, leitores cuidadosos e inteligentes, que não se contentam apenas com enredos mirabolantes. Raimundo Carrero, escritor.
Elisa Lispector (Ucrânia, 1911 – Brasil, 1989) chegou ao Brasil com a família em 1922, fugindo da perseguição aos judeus e da miséria deixada pela Primeira Grande Guerra. Parte de sua produção, como os romances Além da fronteira (1945) e No exílio (1948), aborda esse não lugar do imigrante. Aqui, confundem-se, sempre privilegiando a investigação psicológica dos personagens, a necessidade de adaptação a terras estranhas e o esforço pelo não apagamento das origens. Infelizmente, com exceção de Retratos antigos, livro póstumo organizado por Nádia Gotlib, a obra de Elisa Lispector só é encontrada em sebos. Mesmo tendo sido uma autora premiada e bem-recebida pela crítica, parece, ainda hoje, só haver espaço para Clarice, a filha mais ilustre dos Lispector. Sem a reedição de seus sete romances e três livros de contos, perdemos não só uma parte da literatura judaico-brasileira, mas a presença de uma voz narrativa enredada pela solidão e pela passagem do tempo. Giovanna Dealtry, pesquisadora
Uma das alegrias literárias que tive foi a de ter conhecido Moreira Campos (1914-1994). Encontrei-o na casa da artista plástica Badida, sua filha, levado por um amigo, o pintor Leonardo Duch. Eu havia lido anos antes um de seus contos, da antologia Maravilhas do Conto Brasileiro, livro de uma coleção editada pela Cultrix, nos anos 50. Desde então, fui tocado pela excelência da escrita do autor de As vozes do morto. Tanto que, uma de suas narrativas, As corujas, serviu-me de inspiração para escrever um de meus poemas (*). Curiosamente, o mesmo conto deu origem a um curta do cineasta Fred Benevides (https://www.youtube.com/ watch?v=wAnEyUy-Hu4), que me foi apresentado pelo crítico e poeta Manoel Ricardo de Lima. Manoel, Fred e eu fazemos parte dos admiradores de Moreira Campos, cuja obra, infelizmente, pouca gente conhece. (*) As corujas: Elas penetram/pelas claraboias:/anunciam a noite./Bicam os olhos dos mortos/e de todos os vivos:/os enforcados/de Villon./Elas projetam suas asas/à revelia dos equinócios:/são sempre curtos os lençóis/para ocultarem nosso fado./Elas violam/as vigias da casa/e anunciam a tempestade/Chegam pela véspera da luz,/sob abóbadas entristecidas./Planam/sobre nossas cabeças./Bicam, bicam.../Depois se vão. Everardo Norões, escritor.
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A crítica literária brasileira permite, com frequência demais, que bons escritores desapareçam por entre os furos nas malhas da armadilha das “linhas de força” e das “escolas literárias”. Hegemonias que são escolhas, muitas vezes ideológicas, decidindo quem será ouvido, ou silenciado. Na Modo de Usar & Co., discuti autores como Henriqueta Lisboa, Patrícia Galvão, Paulo Colina, ou minha Cesárea Tinajero pessoal: Hilda Machado. Mas, para esta série, gostaria de falar sobre Adão Ventura. Nascido em Minas Gerais, em 1946, o poeta tem uma obra compacta, mas extremamente versátil em suas escolhas formais, da exuberância imagética em um livro como Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul (1970) a algo que eu chamaria não de concisão – como foi moda, que no entanto apagou os nomes de alguns de nossos melhores minimalistas –, mas de incisão, em livros como A cor da pele (1981) e Litanias de cão (2002). A obra de Adão Ventura é um momento de equilíbrio, em que consciência política na escrita não significa descuido formal. Ricardo Domeneck, escritor.
Um autor que merece ser reavaliado é Otávio de Faria, hoje completamente démodé. Católico conservador, foi na juventude próximo do fascismo, do qual se afastou com o correr dos anos. Num autor assim reacionário, a obra surpreende pela crítica demolidora da burguesia. O.F. é autor praticamente de uma única obra de ficção, Tragédia burguesa, que abrange 15 volumes escritos entre 1935 a 1979. São romances densos, intimistas, melodramáticos. Alguns são muito bons, outros menos. Seus personagens incluem padres em crise, adúlteras, suicidas, loucos, solteironas, adolescentes revoltados, assassinos, pederastas. E Deus. E o diabo. Uma frase terrível resume tudo: “A única saída para a burguesia é o suicídio, mas este é um pecado mortal”. Um Nelson Rodrigues sem o barroquismo e o humor, Otávio escreve estranho, sem descrições de personagens e ambientes, apenas ação e reflexão, poucos diálogos. Não há nada parecido na literatura nacional. Chegou a hora de lê-lo sem preconceitos. João Carlos Rodrigues, jornalista e pesquisador. Autor de João do Rio: vida, paixão e obra e O negro brasileiro e o cinema.
É cada vez mais urgente repensarmos aquele momento sombrio da virada entre os anos 1970 e 1980 no Brasil. Assim, edições mais competentes da obra de Márcia Denser se fazem essenciais. Junto com Caio Fernando Abreu, Márcia decifrou/perfilou aquela manada de jovens que não sabia o que fazer, como cuspir e seguir em frente após duas décadas de ditadura. Sua personagem célebre, a tigresa Diana Marini, é uma urbanoide cínica e perdida numa São Paulo que se reconhece e se orgulha - às vezes até em excesso - de ser o centro da modernidade bêbada e periférica do país. La Denser - e todos nós - estamos esperando! Schneider Carpeggiani, editor do Pernambuco.
Antonio Callado (Niterói, 1917 – Rio de Janeiro, 1997) me disse certa vez, em entrevista, que um escritor podia inventar tudo, menos uma revolução que nunca aconteceu. A frase me parece definir sua produção literária, um extenso e brilhante conjunto de romances que têm como centro a angústia de personagens que lutam em todas as frentes – contra a opressão política, econômica, social – e fracassam. Livros como Quarup (1967), Bar Don Juan (1971), Reflexos do baile (1976) e A expedição Montaigne (1982), por exemplo, falam dessa frustração diante de forças reacionárias que se reorganizam rapidamente após cada ataque. Mas falam também da necessidade de se continuar lutando, e do valor das pessoas que acreditam nessa luta. Os romances de Callado estiveram esgotados por muito tempo, e voltam agora, com um novo projeto gráfico, pela José Olympio. O problema é que, nesse intervalo, o autor meio que desapareceu das salas de aulas, dos projetos de tese, dos artigos, das vistas do leitor especializado. Um erro – como se vê pelos últimos acontecimentos no país, ele permanece absolutamente atual. Regina Dalcastagnè, pesquisadora.
Durante mais de meio século, entre 1940 e 1990, Tomás Seixas, foi um dos mais atuantes escritores pernambucanos. Poeta, jornalista, ficcionista, crítico, publicou crônicas no Jornal do Commercio e em outros importantes jornais brasileiros.. Sua obra, esgotada, lembrada por amigos ou colecionadores de belos textos, só pode ser encontrada em bibliotecas particulares. Entretanto, a Biblioteca Estadual de Pernambuco possui três de seus livros: Adeus à adolescência, (16 crônicas, edição do Diário da Manhã, Recife, 1941, 84 páginas); Sonata a Lilian ou As sombras no espelho, longo poema com prefácio de Cesar Leal e ilustração de Francisco Brennand (42 páginas, edição do Governo do Estado, 1984); Casa dos sonâmbulos, critica, notas de leitura, e memórias pessoais ( 180 páginas, edição da Fundarpe,1990. Luzilá Gonçalves, escritora e pesquisadora.
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RESENHA
Obras entre a crítica e a autobiografia
Manuela dos santos
Os fios a conduzir os novos livros de Janet Malcolm e da diva punk Patti Smith Kelvin Falcão Klein
Na “Supersticiosa ética do leitor”, breve texto que Borges desenvolve em 1931 nas páginas de Azul, há espaço para a credulidade e para a devoção aos livros, além de uma tendência à sobrevalorização do “estilo” dos escritores. Talvez seja possível acrescentar essa compulsão mais recente, fruto da vastidão de títulos disponíveis, que é a de procurar pontos de contato entre livros postos lado a lado em uma mesa de trabalho. Ou ainda, um fio narrativo que dê conta de uma costura possível entre livros e autores diversos. Percebo que tal compulsão não tem nada de recente, pois é a própria força motriz do gênero ensaio, que trata, em grande medida, de criar percursos criativos entre textos e tempos. Vejamos o primeiro livro em minha mesa, 41 inícios falsos, de Janet Malcolm – 16 ensaios dos mais variados tamanhos, organizados por uma obsessão comum: a lógica tortuosa das “vidas dos artistas”. Há um paradoxo constante na escrita de Malcolm: ao mesmo tempo em que recusa ocupar a linha de frente da escrita – é apenas uma jornalista, uma repórter, relatando palavras alheias, diz ela –, traz continuamente à superfície de seu texto a autorreflexão, a consciência muito aguda de que o observador sempre interfere naquilo que é observado. O paradoxo está também no estilo, pois o esforço de manter certa contenção, certo trabalho dos bastidores, terminam por chamar a atenção a um estilo que se engrandece no próprio desejo de desaparecer (“Suas justaposições desarmônicas de imagens e estilos incongruentes”, escreve Malcolm sobre David Salle, “destacam com nitidez especial o paradoxo sobre o qual repousa sua arte de materiais apropriados: sua aparência misteriosa, quase sobrenatural de originalidade”). Quando escreve sobre Virginia Woolf e o grupo de Bloomsbury, por exemplo, Malcolm lá pelas tantas quebra a quarta parede e declara: “No que
escrevi até agora, ao separar minhas heroínas e meus heróis austenianos de minhas personagens planas gogolianas, eu, como qualquer outro biógrafo, esqueci convenientemente que não estou escrevendo um romance e que não cabe a mim dizer quem é bom e quem é mau”. A vida, conclui ela, “é muitíssimo menos ordenada e mais desconcertantemente ambígua do que qualquer romance”. Essa digressão autorreflexiva já é produtiva por si só, mas é aprimorada na última página do ensaio, quando Malcolm comenta a autobiografia rancorosa da sobrinha de Virginia Woolf, Angelica. Apesar do rancor, a sobrinha ajudou na manutenção do legado da família, especialmente da Chesterton Farmhouse, casa de campo de sua mãe, “em cuja restauração”, escreve Malcolm, “Angelica teve uma participação ativa, tal é a confusão da vida: em um romance, ela nunca mais teria olhado para o lugar”. Se buscarmos encaixar forçosamente a lógica dos romances na vida, parece dizer Malcolm, perderemos as complexidades dos personagens – ainda assim, é algo que não conseguimos deixar de fazer, vide o exemplo de Emma Bovary e do Quixote (a ética supersticiosa do leitor sempre nos aguarda na próxima esquina). O último texto da coletânea de Malcolm, um fragmento intitulado “Reflexões sobre autobiografia de uma autobiografia abandonada”, mostra seu desconforto quando escapam as ferramentas da repórter. “A memória não é uma ferramenta de jornalista”, escreve ela. “Percebo que meus hábitos de jornalista inibiram meu amor-próprio”, continua. “No que se segue, tentarei me ver com menos frieza, ter menos medo de escrever um texto de autoelogio. Mas pode ser tarde demais para mudar de pele”, e assim termina não só o texto, mas o livro.
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Ainda sob o encanto desse final abrupto, antecipo o encontro com o livro seguinte, quando recorro a outro elemento da ética supersticiosa do leitor: um livro sempre começa no ponto onde outro livro (outros livros) foi abandonado (porque, se acreditarmos em Paul Valéry, quando comenta seu poema Cimetière Marin, um livro nunca se finaliza, sempre se abandona). Consideremos Linha M, de Patti Smith, e sua facilidade diante do autobiográfico e da memória, sua dependência irrestrita do “eu”, o mesmo “eu” que tanto desconforto gera em Janet Malcolm. Mas o confronto só vai até certo ponto, pois Smith e Malcolm dependem em igual medida de seus discos, livros, artistas, notas, objetos, percepções, dúvidas e superstições. Smith – cantora, compositora, poeta, artista visual – se apresenta em Linha M sobretudo como leitora e é a partir de suas leituras que dá forma ao seu relato autobiográfico. Também ela persegue livros, justapondo vida e ficção nesse percurso memorialístico. “Nem sequer entrava naquele mundo e era transportada a uma miríade de outros universos”, escreve ela depois de retirar da estante e reler trechos de After nature, o livro de poemas de W. G. Sebald. O encontro com a ficção de Roberto Bolaño leva a própria Smith à escrita: “Quando li seu Amuleto”, escreve ela, “percebi uma referência passageira à hecatombe – um antigo abate ritualístico de 100 bois. Resolvi escrever uma hecatombe para ele – um poema de 100 versos”. Versos e universos se multiplicam, à medida que ela retoma volumes de Jean Genet, Albert Camus, César Aira, Bruno Schulz, William Burroughs, e assim por diante. O ritmo de Smith, comparado àquele de Malcolm, é mais calmo e homogêneo. Por estar voltada aos outros, seus dizeres e experiências, a narrativa de Malcolm é cheia de detalhes, de infor-
Smith e Malcolm dependem em igual medida de seus discos, livros, artistas, notas, objetos, percepções e dúvidas mações, de análises. Smith, pelo contrário, leva o leitor em direção à sua rotina cotidiana – acordar, dar comida aos gatos, olhar pela janela, visitar seu café favorito do bairro, sentar à “sua mesa” e lá rabiscar nos guardanapos (rabiscar aquilo que estamos, agora, lendo). Aquilo que Malcolm deixa de lado em seus ensaios é a matéria-prima da escritura de Smith, e vice-versa. “Eu tinha um itinerário diversificado de leituras, performances, concertos e conferências”, é tudo que Smith oferece no que diz respeito ao mundo prático das informações e das análises. “O Café’Ino estava vazio, por isso me sentei feliz para ler O jovem Törless, um romance de Robert Musil”, continua ela, em uma passagem típica. “Fiquei refletindo sobre o parágrafo de abertura: ‘Era uma pequena estação na longa estrada de ferro para a Rússia’, fascinada pelo poder de uma frase comum que despercebidamente leva o leitor
a intermináveis plantações de trigo se abrindo em um caminho que conduz ao covil de um predador sádico contemplando o assassinato de um garoto imaculado”. Aqui está outro ponto que aproxima Smith e Malcolm, o fascínio pelo “poder de uma frase comum”, que ainda assim transporta e transforma o leitor - por isso que Borges diz em seu texto que a tradição é mais uma questão de leitura que de escritura. Quando escreve um ensaio sobre Salinger em 2001, Malcolm dá um bom exemplo dessa dinâmica. Começa seu texto citando críticos que, em 1961 e 1965, atacaram intensamente os contos então recém-publicados de Salinger. “Até o sadismo do cordial John Updike foi despertado”, escreve Malcolm, e completa adiante: “Os ‘erros’ e ‘excessos’ de que os primeiros críticos se queixam são com frequência as inovações que deram à obra a sua força”. Em seu método recursivo característico, Smith mostra que, em seu caso, a escritura é sempre precária, dependente dos pontos de referências que a leitura oferece – por exemplo, o cultivo de um projeto do atraso e da escansão infinita da ficção: “De vez em quando eu voltava para o meu poema de Bolaño, ainda pairando entre 96 e 104 versos”. Ou um exemplo ainda mais eloquente, quando Smith está entediada em uma viagem de avião e anota: “Decidi escrever sobre Sylvia (Plath). Escrever para ter alguma coisa para ler”. Percebo a dificuldade de abandonar os dois livros, Linha M e 41 inícios falsos. Retomo trechos, separo citações, noto uma série de correspondências que já não tenho espaço para mencionar. Tenho uma lista das referências a revisar – as fotos de Diane Arbus, Edward Weston e Julia Margaret Cameron; as vidas de Mishima, Fred “Sonic” Smith e Alfred Wegener –, referências que me levarão a uma miríade de outros universos, mas sempre ligadas ao campo gravitacional desses dois livros. Patti Smith também apresenta uma dificuldade semelhante: ela não consegue aceitar o fim da série The Killing. “A temporada de The Killing terminou”, escreve ela. A detetive “Linden perdeu tudo e agora eu a estou perdendo. (...) não estou pronta para abandonar Linden e não quero seguir em frente”. Em seu desespero estético, em seu desamparo diante da perda, Smith relaciona a detetive Linden a “um personagem da pena de Emily Brontë”, a uma “Madona flamenga com os olhos de uma mulher do mato que dormiu com o demônio”, tudo para tê-la por perto por mais tempo. No fim das contas, a vida dos artistas – e daqueles envolvidos com suas obras – se resume a esse incessante trabalho de prolongar o contato com essas entidades que geram curiosidade, desconforto ou transformação. “Atravesso o oceano com o único objetivo de possuir em imagens únicas o chapéu de palha de Robert Graves, a máquina de escrever de Hesse, os óculos de Beckett, o leito onde Keats esteve doente”, anota Smith já nas últimas páginas de Linha M. O procedimento é o mesmo em Malcolm, somente mais rebuscado, indireto. Em várias das pinturas de David Salle, escreve ela, “aparece uma mulher misteriosa de cabelos escuros, levando aos lábios um copo cheio pela metade”, bebendo o que pode ser veneno ou uma poção do amor. Ela tem um “aspecto renascentista”, quase como a Madona detetivesca de Patti Smith. “A mulher nos perturba e nos emociona”, continua Malcolm, “do modo como o fazem nos sonhos pessoas que sabemos que conhecemos, mas não conseguimos identificar”. Para Malcolm, o artista se confunde com sua criação e ela, a repórter, se confunde com esse sonho: “Depois de muitas entrevistas com ele, acho que não passo de quase conhecê-lo, e o que escrevo sobre ele terá a vaga e vaporosa qualidade que os nossos sonhos mais indeléveis assumem quando os pomos em palavras”. Eis o instigante paradoxo de uma escritura, entre a crítica e a autobiografia, que deseja apenas desaparecer – mas desaparecer no interior de um sonho alheio, sempre ambíguo e desordenado.
HUMOR, AVENTURA E HISTÓRIA EM LIVROS PARA ADULTOS E CRIANÇAS
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Coletânea de pensamentos soltos, poemas e pequenos ensaios escritos por Daniel Lima. Esta é a quinta obra do poeta publicada pela Cepe Editora, que revelou seu talento em 2011, quando publicou o livro Poemas. Do meu tamanho traz criações que transmitem emoção sem deixar de lado a reflexão filosófica.
Bus é um ônibus construído com peças de outros carros, mas que nunca ganhou um motor. Vivendo em um salão com outros ônibus, ele sonha com aventuras, estradas, viagens... Até que um dia ele é mandado para um ferro-velho. Mas o que parecia ser o fim de Bus é o começo das realizações dos seus sonhos.
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Conspiração no Guadalupe Marco Albertim
A MENINA E O GAVIÃO – 200 Crônicas escolhidas Arthur Carvalho
pernambucânia: o que há nos nomes das nossas cidades? Homero Fonseca
A história acompanha um grupo de revolucionários guiados pelos pensamentos marxistas, que se reúnem em Olinda. Misturando religião e romance o livro traz lugares pitorescos, como o Maconhão, bar em que os companheiros vão comemorar. A crença nos orixás se confunde com a idolatria a Marx, em comparações constantes.
Arthur Carvalho conversa com o leitor de múltiplas maneiras através de suas crônicas. Dominadas pela oralidade e por imagens sutis da vida, tudo é tema para suas reflexões, das partidas de futebol às grandes e improváveis amizades, aliando o gosto pelas coisas populares e a literatura mais erudita.
Versão infantojuvenil do livro Pernambucânia: o que há nos nomes das nossas cidades, trazendo os significados dos nomes das cidades que fazem parte do estado de Pernambuco. O formato didático e a linguagem clara são acompanhados por ilustrações, além dos dados informativos das regiões e algumas curiosidades.
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COMO POLPA DE INGÁ MADURO: POESIA REUNIDA DE ASCENSO FERREIRA Valéria T. Costa e Silva (Org.)
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Magdalena Arraes: A dama da História Lailson de Holanda Cavalcanti e Valda Colares
Tomando como inspiração temas de variadas naturezas, como a fome e o tédio, João Paulo Parisio utiliza seu olhar criador em poemas que transmitem as diversas proporções das coisas. Os versos uma hora expandem e em outra introjetam. São esculturas fluidas carregadas da essência do autor.
A publicação acontece no 120° aniversário de nascimento do poeta Ascenso Ferreira, reconhecido por sua figura, seu vozeirão e suas referências populares. Ascenso consegue mesclar o erudito com o popular em suas criações modernistas, abusando de referências ao Nordeste com críticas, reflexões e metáforas.
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Primeiro volume da Coleção Memória, o livro escrito pelo cartunista Lailson de Holanda Cavalcanti e a historiadora Valda Colares aborda passagens políticas e pessoais daquela que foi por três vezes primeira-dama de Pernambuco. Magdalena Arraes concedeu depoimentos que trazem uma visão inédita sobre ela.
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À FRANCESA: A BELLE ÉPOQUE DO COMER E DO BEBER NO RECIFE Frederico de Oliveira Toscano Um mergulho histórico no século 20, quando a França era o centro de irradiação da cultura para o mundo. Recife também se deixou influenciar pelos francesismos, com destaque para a gastronomia, na elaboração dos pratos, confecção de cardápios, criações de armazéns importadores de ingredientes e restaurantes.
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A Década 20 em Pernambuco Souza Barros O livro explora aspectos políticos, socioeconômicos e culturais da década de 1920 em Pernambuco. A partir da experiência do autor e de pesquisas, o leitor mergulha no cenário da era que precede a Revolução de 1930, passeia pelas grandes obras, sente a influência da crise de 1929.
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Angélica Freitas
INÉDITOS
PERNAMBUCO, MAIO 2016
Em algum café de Rosário, Argentina, 25 de setembro de 2015
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Robert Louis Stevenson
INÉDITOS
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SOBRE O TEXTO Esse trecho faz parte do livro Viagem com um burro pelas Cevenas, que será publicado este mês pela editora Carambaia
O burro, a carga e a albarda Num lugarzinho chamado Le Monastier, num afável vale montanhoso a 24 quilômetros de Le Puy, passei um mês de dias agradáveis. Monastier é famoso pela produção de rendas, pela bebedeira, pela liberdade da linguagem e pela inigualável divergência política. Nesse pequeno povoado montanhês, há seguidores de cada um dos quatro partidos franceses – legitimistas, orleanistas, imperialistas e republicanos –; e todos odeiam, aborrecem, condenam e caluniam uns aos outros. Exceto para fins comerciais, ou para desmentirem um ao outro numa briga de taverna, deixam de lado toda a polidez da conversa. É a própria Polônia das montanhas. No meio dessa babilônia, vi-me como um ponto de convergência: todos estavam ansiosos para serem gentis e prestativos para com o estrangeiro. Isso não apenas por conta da hospitalidade natural do povo montanhês, nem mesmo pela surpresa com que me encaravam por ser um homem que morava de livre vontade em Le Monastier quando bem poderia morar em qualquer outra parte deste vasto mundo; deu-se em boa medida por causa dos meus planos de excursão para o sul através das Cevenas. Um viajante do meu tipo era coisa até então inaudita naquele distrito. Olhavam-me com desdém, como um homem que planejasse uma jornada à lua, mas ao mesmo tempo com um interesse respeitoso, como alguém que partisse para o polo inclemente. Todos estavam dispostos a ajudar-me com os preparativos; uma multidão de simpatizantes apoiou-me no momento crítico de um regateio; não dei um só passo que não fosse acompanhado por brindes e comemorado num jantar ou café da manhã. Já era quase outubro e eu ainda não estava pronto para partir. E nas altitudes elevadas pelas quais se estendia a minha rota não havia veranico que esperar. Eu estava determinado, se não a acampar ao ar livre, a pelo menos ter à disposição os meios para acampar ao ar livre. Pois não há nada mais molesto a uma mente tranquila do que a necessidade de chegar a um abrigo antes do anoitecer, e aquele que viaja penosamente a pé não deve dar como suposta a hospitalidade de uma estalagem de povoado. Uma tenda, sobretudo para um viajante solitário, é complicada de armar e complicada de desmontar; e ainda confere um traço extravagante à bagagem durante o trajeto. Um saco de dormir, por outro lado, está sempre pronto – basta entrar nele; presta-se a uma dupla finalidade: cama de noite, valise de dia; e não anuncia a intenção de acampar a qualquer transeunte curioso. Isso é fundamental. Um acampamento que não é secreto não passa de um dormitório conturbado: você se torna uma personagem pública; o camponês sociável janta mais cedo e vem visitar o seu leito, e você precisa dormir com um olho aberto e estar de pé antes do amanhecer. Decidi pelo saco de dormir, e, depois de repetidas visitas a Le Puy e uma boa dose de vida regalada para mim e meus conselheiros, conseguiu-se que um saco de dormir fosse projetado, fabricado e triunfantemente trazido para a casa. Esse filho do meu engenho tinha quase 2 metros quadrados, sem contar as duas abas triangulares que serviam de travesseiro à noite e de topo e fundo do saco de dia. Chamo-o de “o saco”, mas o considerava assim por mera cortesia: estava mais para uma espécie de baguete ou salsichão, com lona de carroça verde impermeável por fora e lã azul de ovelha por dentro. Formava uma valise cômoda e um leito quente e seco. Havia um espaço régio para uma pessoa virar-se; no limite, dois podiam usá-lo. Eu podia enterrar-me nele até o pescoço. Confiava a cabeça a uma touca de pele, com um manto que eu podia desdobrar por cima das orelhas e uma faixa que eu podia passar sob o nariz como uma máscara. No caso de chuva forte, eu planejava construir uma pequena tenda, ou tendilha, com a minha capa de chuva, três pedras e um galho curvo.
Logo se perceberá que eu seria incapaz de carregar esse embrulho enorme sobre os meus ombros meramente humanos. Faltava escolher uma besta de carga. Ora, o cavalo é a dama requintada dos animais: volúvel, tímido, delicado no comer e frágil de saúde; é valioso demais e irrequieto demais para ser deixado só, de modo que ficamos acorrentados a essa criatura como a um companheiro de escravidão nas galés. Uma estrada perigosa o faz perder o controle. Em resumo, trata-se de um aliado incerto e exigente, que multiplica por trinta o trabalho do viajante. Eu precisava era de algo barato e pequeno e robusto, de temperamento impassível e sereno. E todos esses requisitos apontavam para um burrinho. Havia em Monastier um velho, de intelecto bastante prejudicado segundo alguns, que costumava ser seguido pelos meninos de rua e era conhecido por todos como pai Adão. Pai Adão tinha uma carroça e, para puxar a carroça, uma diminuta jumenta, não muito maior do que um cão, de cor cinzenta, com olhos gentis e um maxilar determinado. Havia na malandra algo de gracioso e nobre, uma elegância puritana, que atiçou o meu gosto de imediato. O nosso primeiro encontro foi na praça do mercado de Monastier. A fim de provar o bom temperamento do animal, puseram-se sucessivas crianças no seu lombo para uma volta, e elas sucessivamente ficaram de pernas para o ar. Isso até a falta de confiança começar a reinar nos peitos juvenis e a experiência ser interrompida por escassez de voluntários. Eu já tinha o apoio de uma comissão de amigos, mas, como se isso não bastasse, todos os compradores e vendedores vieram rodear-me para ajudar na barganha; e a jumenta, eu e o pai Adão fomos centro de uma algazarra por quase meia hora. No fim, ela passou ao meu serviço pela importância de 65 francos e um copo de conhaque. O saco já tinha custado 80 francos e dois copos de cerveja, de maneira que Modestine – como eu a batizei de imediato – era em todos os aspectos o artigo mais barato. De fato, foi como deveria ser, pois ela era apenas um acessório do meu colchão, ou um estrado semovente sobre quatro rodízios. Meu último encontro com pai Adão foi numa casa de bilhar à sinistra hora do poente, quando lhe administrei o conhaque. Ele declarou-se profundamente comovido pela separação e professou que muitas vezes comprou pão branco para a burrinha enquanto ele próprio contentava-se com pão preto. Isso, porém, segundo as melhores autoridades, devia ser um voo da sua imaginação; ele era famoso no vilarejo por abusar brutalmente da jumenta. Contudo, é certo que ele derramou uma lágrima, e a lágrima lhe traçou uma marca clara bochecha abaixo. Por conselho de um falacioso seleiro local, fizeram-me um coxim de couro com argolas onde pendurar a carga. Aprontei conscienciosamente minha bagagem e organizei minha toalete. Quanto a armas e utensílios, tomei um revólver, uma pequena lâmpada de álcool, uma lanterna e algumas velas de meia pataca, um canivete e um frasco grande de couro. A carga principal consistia em duas mudas completas de roupa quente – além do meu traje de viagem de veludilho rústico, meu caban e meu spencer de tricô –, alguns livros e o meu cobertor de viagem, que, também em forma de mala, me possibilitava um segundo castelo nas noites frias. Os mantimentos permanentes eram representados por bolos de chocolate e mortadela bolonhesa enlatada. Tudo isso, com exceção do que eu carregava comigo, cabia facilmente na bolsa de pele de ovelha. Por sorte, também lancei dentro dela a minha mochila vazia, mais pela conveniência do transporte do que por algum pensamento de que poderia querê-la na jornada. Para as necessidades mais imediatas, levei um pernil de cordeiro frio, uma garrafa de Beaujolais, uma garrafa vazia para carregar leite, um batedor de ovos e uma quantidade considerável
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de pães pretos e brancos, como o pai Adão, para mim e a minha burrica, só que no meu esquema de coisas os destinatários invertiam-se. Monastienses de todos os espectros de pensamento político entraram em acordo para assustar-me com muitas desventuras absurdas e com muitas e surpreendentes formas de morte súbita. Frio, lobos, ladrões, sobretudo o pregador de peças noturno, eram diária e veementemente impostos à minha atenção. Contudo, o perigo verdadeiro e patente ficou de fora desses vaticínios. Como cristão, foi o meu fardo que me fez sofrer pelo caminho. Antes de contar os meus infortúnios pessoais, permitam-me relatar em duas palavras o que aprendi da minha experiência. Se a carga é bem atada nas pontas e dependurada inteiriça – não dobrada, pelos céus! – de través sobre a albarda, o viajante está seguro. A sela por certo não ficará justa, tal é a imperfeição da nossa transitória vida; seguramente penderá e tenderá a tombar. Mas há pedras em qualquer beira de estrada, e um homem logo aprende a arte de corrigir qualquer tendência
ao desequilíbrio com uma pedra bem encaixada. No dia da minha partida levantei-me um pouco depois das 5 horas; pelas 6, começamos a carregar o burro; e dez minutos depois minhas esperanças estavam no chão. O coxim não permanecia sobre o lombo de Modestine sequer meio instante. Devolvi-o ao seu criador, com quem tive momentos tão injuriosos que do lado de fora a rua ficou recoberta de um muro ao outro com mexeriqueiros querendo ver-nos e ouvir-nos. O coxim trocava de mãos com muita vivacidade; talvez seja mais preciso dizer que o atirávamos um na cabeça do outro; em todo caso, estávamos muito abrasados e pouco amistosos, e falávamos com bastante liberdade. Obtive uma albarda comum para burros – uma barde, como a chamam – que servia em Modestine e a carreguei mais uma vez com os meus pertences. O fardo dobrado, meu caban (pois fazia calor e eu caminharia de colete), uma grande barra de pão preto e um cesto aberto contendo o pão branco, a carne de cordeiro e as garrafas: tudo foi amarrado junto num sistema muito elaborado de nós, e olhei
o resultado com um contentamento fátuo. Num arranjo tão monstruoso – toda a carga posta sobre os ombros do burro sem nada embaixo para a contrabalançar, com uma albarda que ainda precisava ser lasseada para servir no animal e atada com cinchas novas em folha de que se poderia esperar que esticassem e afrouxassem pelo caminho –, mesmo um viajante muito incauto deveria ter enxergado o desastre que se desenhava. O elaborado sistema de nós foi também obra de simpatizantes demais para ter sido pensado com engenhosidade. É verdade que eles apertaram as cordas com vontade; até três ao mesmo tempo apoiaram o pé contra os quartos de Modestine e puxaram trincando os dentes. Mas aprendi depois que uma pessoa atenta, sem nenhum emprego de força, pode realizar um trabalho mais firme que meia dúzia de cavalariços acalorados e entusiasmados. Eu não passava de um novato então; mesmo depois do infortúnio com a bagagem, nada podia abalar minha segurança, e cruzei a porta do estábulo como um boi que vai ao matadouro.
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resenhas ARTE SOBRE FOTO DE DIVULGAÇÃO
Segundo livro da tetralogia de Elena Ferrante traz o afeto enquanto ato de resistência
Carol Almeida
Mariza Pontes
NOTAS DE RODAPÉ
no verão é um ato de resistência. A saga de Ferrante é, portanto, uma ação de defesa e combate a muitas coisas, sendo o machismo um dos mais centrais inimigos. Se na Amiga genial, elas, ainda crianças e adolescentes, não dispunham de muitos meios para fugir da violência difusa numa Nápoles pós-Segunda Guerra Mundial, em História do novo sobrenome, elas, agora jovens mulheres, procuram essa via de saída a qualquer custo, o que também implica uma fuga entre elas mesmas. À primeira vista, Lila sabe ser cruel, Lenu sabe ser vítima, mas essas máscaras caem com muita facilidade. O fato é que todo atrito e inimizade que surge entre as duas é testemunho apenas da cumplicidade que ambas criaram ao longo dos anos. Elas se ferem na mesma medida em que se protegem. Se isso já se fazia claro no primeiro livro, nesse segundo romance se torna ainda
CLISERTÃO 2016
Evento se consolida em Petrolina com aval da Universidade de Pernambuco-UPE De 2 a 6 de maio, o 3º Clisertão, promovido pela UPE-Campus Petrolina-Colegiado de Letras, em parceria com a Secult e Fundarpe, realiza debates, troca e doação de livros, minicursos, apresentação de trabalhos, recitais, filmes e outras atrações, com a participação de escritores como Marcelino Freire, Xico Sá, Bráulio Tavares, Cida Pedrosa, o argentino Washington Cucurto, a francesa Veronique
Bulteau, a chilena Mónica González, e as professoras Idália Morejón (USP) e Marisa Lajolo (Unicamp). Serão homenageados o escritor baiano Antônio Torres (foto) e a crítica literária Elisabet Moreira. Os debates contemplam temas como formação de leitores, cenário da crítica e o rompimento com o imaginário pré-estabelecido sobre a produção literária no Sertão.
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O verão acaba e, sobre a areia, caem as máscaras
“Somente ela e eu sabíamos escrever daquele jeito.” A implicação do “ela e eu” como duas pessoas cujos modos de pensar (e, portanto, de escrever) se tornam uma coisa só, é uma linha muito fina tensionada ao máximo durante todo o livro. Fala-se aqui do segundo romance da chamada “série napolitana”, a tetralogia centrada nessa pessoa que são duas: Lila e Lenu. História do novo sobrenome é o título que dá sequência à Amiga genial e, nas suas 470 páginas, lemos sobre o ocaso do verão, aquele momento em que a brisa fria sopra inadvertidamente e as cadeiras de praia são recolhidas, o guardasol é fechado e os corpos são contraídos. Lila e Lenu vivem, ora indivisíveis, ora distantes, esse momento em que se reconhece que, na verdade, nunca houve verão. Mas como mulheres que são dentro de um contexto que subjuga suas mentes e corpos, acreditar
mais latente. Afinal, para além dos rancores entre as duas, existem os homens lá fora, maridos, namorados, pais e irmãos, quase todos educados nas melhores escolas do patriarcado. Ambas reagem a essa paisagem com diferentes tipos de violência. Lila faz isso para fora, ferindo todos ao redor (incluindo ela mesma), e Lenu, a narradora, faz para dentro, sublimando a dor com literatura. Nesse arco que começa com uma ruptura e se encerra com uma potente conciliação, a narrativa mais uma vez parte do tempo presente - toda a história é um flashback - em que o fantasma da amiga (a lembrar que o primeiro livro só acontece porque Lila, já senhora, desaparece) surge novamente. Elena/Lenu mais uma vez escreve, ora em primeira pessoa, ora suspensa em um tipo de narração onisciente, o que se passou naquele verão em que ela, solteira, e sua amiga, casada, se apaixonaram pelo mesmo homem. Mas
esse é um relato marcado por uma entidade maior que as personagens. Para escrever sobre mecanismos de defesa, Ferrante faz uma narrativa deliciosamente novelesca, quase como uma atualização politizada de Jane Austen, e cria uma mulher conceitual que se funde nas suas protagonistas: “de repente, o que eu tinha tirado dela me pareceu muito mais do que ela jamais pôde tirar de mim”.
ROMANCE História do novo sobrenome Autora - Elena Ferrante Editora - Biblioteca Azul Páginas - 470 Preço - R$ 44,90
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prateleira MONTEIRO LOBATO, LIVRO A LIVRO – OBRA ADULTA
Famoso como um dos principais autores infantis brasileiro, Monteiro Lobato escreveu 28 livros destinados ao público adulto, que são pouco conhecidos. Nesta obra, a pesquisadora Marisa Lajolo dedica-se a analisar cada um, interpretando o pensamento estético, social e político do criador do Sítio do Picapau Amarelo , que, ao relacionar-se com o leitor adulto, revela-se visionário, polêmico, empreendedor, inovador, nacionalista e militante.
Autora: Marisa Lajolo (org) Editora: Unesp Páginas: 544 Preço: R$ 82,00
Havana antes de tudo Uma coisa é certa: o Brasil precisa acertar as contas com Guilhermo Cabrera Infante (1929-2005), um dos maiores inventores das língua espanhola do século 20. Obras incontornáveis como Três tigres tristes se tornaram difíceis de encontrar. A notícia alentadora é que a Companhia das Letras lança agora Corpos divinos, escrito autobiográfico que acompanha o percurso de Cabrera por uma Havana pouco antes da revolução (e com esse lançamento, ele volta às livrarias com outros títulos). A obra tem um começo espetacular: “Fit as a fiddle, que é exatamente o oposto de pronto para a festa. Fit as a fiddle, que é vivo como um violino e não violento como um violão. Fit as a fiddle and ready for love, riddle for love que é vole, volé (ve olé), randy for love and feet as two fiddles musicais, e o destino se fez desatino porque o fado é pior em organizar as coisas do que a sorte, que se ordena melhor do
que uma frase, Fit as a pit”. Mas ao contrário do que se pode imaginar a partir dessa largada, não espere um relato com muitos malabarismos com a palavra. O importante aqui é narrar uma história triste. Corpos divinos não é o centro da produção de Cabrera, mas é fundamental para entendermos o DNA da sua genialidade. (S.C.)
AUTOBIOGraFIA Corpos divinos Autor - Guillhermo Cabrera Infante Editora - Companhia das Letras Páginas - 624 Preço - R$ 74,90
Dos corpos de delito Quem diria que em 2016 o Brasil estivesse envolto numa bruma de literatura judicial... Nunca fomos tão kafkianos, que o diga a escritora e fotógrafa brasileira radicada na Alemanha Adelaide Ivánova. Seu segundo livro de poemas, O martelo, é uma coleção de textos corrosivos sobre corpos de delito, escrivães curiosas de um mundo amordaçado e delegadas que lembram “Janus, o rei romano com duas caras”. Para Adelaide, o problema da justiça não é bem a cegueira, mas a paralisia, fazendo-nos lembrar de que em sua obra anterior, Polaróides, ela advertiu que o problema do inverno não é bem o frio, mas o silêncio. Ou seja: chegue mais perto de algo ou alguém e perceba que seu cadafalso nunca é
o mais evidente. Mas, antes de ser uma arma em busca de sua presa, O martelo é sobretudo um “mecanismo de defesa”, como afirma o poema batizado por essa expressão: “passo frio/ na sua cama/ de propósito/ em sublimação/ para desfilar/ a carne/ da qual não te serves/ em negação.” (S.C.)
PARA ALÉM DO CÓDIGO DIGITAL: O LUGAR DO JORNALISMO EM UM MUNDO INTERCONECTADO
Obra que reafirma a importância de jornalistas intelectualmente bem-formados e eticamente responsáveis, revê criticamente valores tradicionais, como a imparcialidade e a objetividade, e afirma que o Jornalismo se torna necessário quando amplia as narrativas humanas e cria um espaço público em que possa existir o diálogo. Sandano defende a importância de se perseguir o que a tecnologia não está capacitada para oferecer, reformulando o entendimento sobre a prática jornalística e reafirmando a sua importância para a sustentação da democracia.
Autor: Carlos Sandano Editora: UFSCar Páginas: 190 Preço: R$ 38,00 ESTA TERRA SELVAGEM
POESIA O martelo Autores - Adelaide Ivánova Editora - Douda Correria Páginas - 40 Preço - (não disponível no Brasil)
Estreia da autora, que consegue prender os leitores até à ultima página com um fôlego eletrizante. O triller policial é conduzido pela investigação de um repórter em busca de ascensão profissional, que se depara com um caminho de ódio explícito contra imigrantes, negros, homossexuais e qualquer pessoa considerada diferente, em plena São Paulo dos dias atuais. A narrativa ágil e violenta joga o leitor numa realidade que muitos preferem ignorar. Autora: Isabel Moustakas Editora: Companhia das Letras Páginas: 120 Preço: R$ 39,90 ANNA E O HOMEM DAS ANDORINHAS
CLISERTÃOZINHO
LITERATURA
CENTENÁRIO
Atrações para crianças e públicos diversos
Nova programação dos laboratórios do Sesc
Cepe Editora lança novo livro de Daniel Lima
A versão infantil do evento traz teatro e contação de histórias em escolas afastadas do centro de Petrolina. Haverá as Ecoleituras, que exaltam as riquezas naturais da região, como a Ilha do Rodeadouro, o pôr do sol no Serrote do Urubu, o recital musicado Ai Se Sêsse, do poeta Maviael Melo, uma homenagem pelos 50 anos de carreira de Geraldo Azevedo; e De repente poesia, com o repentista e escritor Geraldo Amâncio.
O Sesc-Pernambuco intensifica a programação dos seus Laboratórios de Autoria Literária. Os laboratórios Ascenso Ferreira (Recife), Luzinette Laporte (Garanhuns), Gilvan Lemos (Belo Jardim), José Rabelo de Vasconcelos (Arcoverde), Cyl Gallindo (Buíque) e Marcelino Brígido (Sertão do Araripe), estão promovendo cursos de narrativa, recitais de cordel, palestras e outros eventos.
O lançamento do livro Daniel Lima visto por ele, pela Cepe Editora, comemora o centenário do autor, nascido em 2 de maio de 1916, em Timbaúba. Organizado por Zildo Rocha. o livro apresenta em uma longa entrevista um resumo autobiográfico da vida do padrepoeta, que relata episódios de seu comportamento anticlerical, avesso a regulamentos, ao mesmo tempo que reafirma sua crença na Igreja e sua relação com Deus.
Savit estreou com o pé direito na literatura, conquistando as grandes editoras de Nova York. Seu primeiro livro, traduzido por Elisa Nazarian, é ambientado na Polônia ocupada por russos e alemães, onde o universo de uma menina de sete anos é alterado drasticamente, quando os nazistas detêm seu pai, professor na Universidade de Cracóvia. Anna aprende a sobreviver num cenário de guerra, ajudada por um homem misterioso, que conversa com pássaros. Autor: Gavriel Savit Editora: Rocco Páginas: 272 Preço: R$ 29,50
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José
ARTE SOBRE FOTO DE DIVULGAÇÃO
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A face alquebrada O século 21 me apresentou um autor – um filósofo contemporâneo – de quem não me afasto mais: o catalão Rafael Argullol (Barcelona, 1949), que é também romancista e poeta. É, antes de tudo, um artista. Depois de ler vários de seus livros, sempre editados pela Acantilado, da Catalunha, não largo mais um dos menores, mas igualmente, ou por isso mesmo, um dos mais densos deles: o Breviário da aurora, de 2006. Trata-se de uma espécie de dicionário pessoal, contendo 360 “verbetes”. Sempre em ordem alfabética, eles começam com “absoluto” e terminam em “zôo”. Através de suas definições – podemos pensar em aforismos -, Argullol faz não só uma síntese de seu próprio pensamento filosófico, mas um resumo da sensibilidade de nossa época. A idéia da aurora é muito inspiradora, já que remete para a claridade (do nascer da manhã) e para o princípio (de um novo dia). Esbarro, ao acaso – gosto de ler o Breviário da aurora ao acaso, sem me deter em nenhum tipo de seqüência, ou ordem -, no verbete “infinito”. Em palavras cortantes, o filósofo assim o define: “Qualquer fragmento do mundo quando vamos disfarçados de deus”. O infinito é algo de que só um deus pode falar; de que só um deus pode dar conta. Para nossos restritos olhos mortais, ele é invisível e se torna sinônimo do impossível. Ao defini-lo como “o que não tem limite”, o dicionário nos lança frente a frente com algo que não podemos abarcar e que também não podemos abraçar. E que só nomeamos por insistência e teimosia. Argullol gosta dessas palavras difíceis – embora simples, talvez banais – que nos colocam diante de nossas próprias impossibilidades, que nos levam a esbarrar em nosso destino humano. Logo na página seguinte, encontro outra delas: “instinto”. A definição que o filósofo catalão nos dá é igualmente mortal: “O lobo antes de ser obrigado a levar a pele do cordeiro”. O instinto também é “infinito” – também pode tudo e deseja tudo. Fôssemos guiados só por ele e nos igualaríamos às bestas, que não obedecem a princípios, tampouco cultivam tabus. Só quando decidimos carregar uma pele de cordeiro (um manto civilizado) conseguimos, enfim, viver. Mas a
que sacrifícios! O instinto, em sua essência, também aponta para o que não tem limites. Ele nos lança no inferno do infinito, onde nosso próprio Eu se desmancha. É assim Argullol: agarra as palavras justamente pelo que elas têm de mais violento. Exibe as palavras sempre como freios que ajudam a nos conter e, assim, nos ajudam a viver. Sem elas, nos dissolveríamos na grande borra do silêncio. É nesse estado de espírito que pulo para a letra “V” em busca de uma das mais difíceis das palavras: “verdade”. De novo, Argullol não adoça as coisas, não facilita, tampouco barateia. Vai direto ponto – direto ao coração do pensamento que tem pela frente. Sobre a “verdade”, ele nos diz: “O matiz minúsculo que evita que sejamos sepultados pelo peso da Verdade maiúscula”. Toda verdade que temos – que tocamos – é apenas passageira, e é, sobretudo, limitada e pessoal. Pensar nas pequenas verdades, se não serve para muita coisa, nos ajuda pelo menos a escapar do peso da grande Verdade, essa sim, mortal. Mas é preciso contrabalançar. Mesmo em meio aos imprevistos da verdade, é preciso buscar algum ponto de equilíbrio. De sobrevivência. Pulo uma página e chego à palavra “violência” – de que falávamos ainda pouco. Aqui Argullol nos defronta com o perigo do ilimitado. A vida exige limites, exige um desenho. Um dia, um amigo definiu: “Viver é editar”. Isto é, é delimitar, é circunscrever, é desenhar. O verbete “violência” nos coloca justamente diante dessa necessidade imperiosa. Anota Argullol: “A vida desgarrando-se pelo temor de viver”. Curioso pensar que a violência inclui, necessariamente, um grande medo. Medo de que? Da vida. A violência é uma espécie de reação sem direção. É um estrebuchar – um agitar-se em convulsão, sem nenhum objetivo, sem nenhum pedido ou busca. Nada. Agitar-se por agitar. Isso sim é jogar a vida fora. Vou procurá-lo, mas, curiosamente, Argullol não lista o verbete “vida”. Por que será? Recuo um pouco, contudo, e chego a “vergonha” – o que talvez explique um pouco essa ausência. Descreve: “Dispositivo de alerta pelo qual nos vemos como realmente somos”. A idéia de vida – ampla, irrestrita,
quase onipotente – parece grande demais para aqueles segundos cósmicos que cabe a cada um de nós viver. Somos um suspiro no infinito – um soluço? A vergonha, Argullol nos diz, vem para nos proteger. Do mesmo modo em que escondemos as “vergonhas” com nossas precárias roupas, temos muito mais ainda a esconder. Que precisamos esconder, para sincronizar com nossa pequena humanidade. Salto para trás e voltando à letra “E”, esbarro em duas palavras cruciais. A primeira é talvez a mais importante em toda a obra de Rafael Argullol: “enigma”. Ele está no centro de tudo. O enigma arrasta tudo, contamina tudo – é o próprio coração do ser. Assim o filósofo o define em seu dicionário: “O véu que oculta aquilo que, como deus, já sabes”. Sim: já sabemos, mas não ousamos dizer. O enigma é aquilo que nos puxa para a frente. É o que nos põe de pé. Ocultando, ele nos faz avançar. Repetindo aquilo que já sabemos, ele envolve a existência com o manto protetor do segredo. No parágrafo anterior, outra palavra chave: “enfermidade”. Argullol a define: “O estado natural quando desaparece o espelhismo da terra firme”. Quando perdemos as ilusões de firmeza – quando perdemos o chão – “adoecemos”. O que isso significa? Que chegamos (outra palavra crucial para o filósofo) à nossa imperfeição. A “doença” não passa disso: consciência dolorosa dos limites e das imperfeições. Dói, mas salva – porque nos defronta com o que realmente somos. Não: Argullol também não ousa definir a imperfeição. Ela é tão complexa, tão fundamental, tão definidora, que não parece caber no território aconchegante de um dicionário. Aqui chegamos a duas outras definições essenciais para o filósofo. A primeira: a idéia de rebeldia. Ele define: “O amor pela verdade prevalece sobre o temor à verdade”. A rebeldia se associa, assim, à coragem. Coragem de ser. Outra palavra, logo acima: “realidade”. A definição nos coloca frente a frente com o osso da verdade: “A atualidade em processo de erosão”. É assim, alquebrados, limitados, até um pouco tristes, que devemos viver a alegria.