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E xpediente SUMÁRIO
EDITORIAL
à glória - A ascensão de um motoris03 Rumo ta humilde ao título de rei das drogas
Que importância tem um roteiro do Recife através da voz de Clarice Lispector? Mania de pernambucanidade? Nem tanto. As razões são expostas na edição, porque este é o assunto que se discute a partir da capa deste Pernambuco, nas matérias de Marcela Sampaio e de Paulo Sérgio Scarpa, no Saber +, nas fotos de Alexandre Belém e na diagramação de Jaíne Cintra. Daí a invenção da capa, a partir da feminilidade da escritora: “E então, eu, mulherzinha de oito anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa”.
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Eu sou uma rosa - Memórias e transfigurações de Clarice Lispector
06 Revolução - Memórias revolucionárias da Rússia em plena Cidade Universitária
É claro, portanto, que não se pretende aqui um retrato sociológico, antropológico, psicanalítico, ou de qualquer outra ciência, do tipo documento literário. Não é por aí, estejam certos. O que se deseja, na verdade, é seguir as sensações de Clarice na pulsação da cidade, sem o rigor do documento regional. Visões, sensações, sentimentos. Sem regionalismos. Nada contra regionalismos ou regionalistas. Apenas uma pauta jornalística, tentando sair do lugar comum. A idéia parte da frase de Joyce, corroborada por seus críticos mais valiosos: “Se Dublin for destruída, ‘Ulisses’ a reconstruirá”. Será por acaso uma obra documental? Nada disso. A questão é mais abrangente. Muito mais abrangente. Até porque as sensações do Recife não são as mesmas de outros lugares. É claro que há um tipo especialíssimo de sensação. Sem esquecer, sequer, que “Ulisses”, era o nome do cachorro da escritora e também personagem do “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres”.
Alexandre Belém
A obra da autora pernambucana é universalista. Nada contra e tudo a favor. Mas não se pode falar em universalismo assim sem mais nem menos. Sem critérios. O universalismo de uma obra de arte não parte do nada. Parte dos sentimentos e das sensações do artista. O Recife não é Dublin. Certo. Em Joyce não há uma geografia sistemática.
08 Contra o nutricionalmente correto - Qual o limite da censura ao prazer de comer (muito)?
09 Son cosas del bandoneón - O estilo e a política da nova presidente da Argentina
Não há, sobretudo, uma história sistemática. Mas, e apesar disso, todas as sensações, as visões, os sentimentos, são elementos particularíssimos de cada artista. Têm a sua própria individualidade. Daí a idéia de se fazer um Recife segundo Clarice a partir do sensorial. Que só é universal por causa de suas imensas e contraditórias individualidades. Pela sua maravilha. Interior e única. Talvez se possa falar nas diferenças fundamentais: retrato é documento; fotografia é sensação. Essa diferença sutil, mas básica. Na terceira página, o jornalista Rodrigo Carreiro faz uma análise do filme “O gângster”, favorito para ganhar o Oscar do próximo ano. Nas sexta e sétima páginas, o leitor vai encontrar matéria de Luiz Carlos Pinto e Fabiana Moraes sobre os noventa anos da revolução comunista na Rússia, a partir de uma entrevista com a professora Larissa Chevtchenko, que viveu a ditadura e a democracia. E não faltará ainda mais um texto de Luís Carlos Pinto, abordando a ascensão de Cristina Kirchner na chegada ao Poder de uma Argentina cada vez mais enigmática. Bruno Albertini cuida da “Encruzilhada do sabor”, na décima página. Sem esquecer a décima-primeira página, em que Valmir Costa trata do delicado assunto dos preconceitos sexuais. Em “Inédito”, Cristhiano Aguiar comparece com um conto denso e dramático sobre a vida de Jesus Cristo.
10 A encruzilhada do sabor - Artigo revela o perigo de intrigas surgidas na cozinha
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Boa leitura, Raimundo Carrero (Editor) rcarrero@cepe.com.br
É comigo? - O que há por trás de palavras que denotam preconceitos sexuais
- Christiano Aguiar mostra conto da 12 Inédito sua nova leva
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EXPEDIENTE GOVERNADOR DO ESTADO Eduardo Campos PRESIDENTE Flávio Chaves
VICE-GOVERNADOR João Lyra Neto
SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Ricardo Leitão
DIRETOR DE GESTÃO DIRETOR INDUSTRIAL Bráulio Mendonça Meneses Reginaldo Bezerra Duarte
GESTOR GRÁFICO Júlio Gonçalves
EQUIPE DE PRODUÇÃO Débora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Aluísio Ricardo
Circulação quinzenal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco.
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Distribuído exclusivamente pela Rua Coelho Leite, 530, Fone: (81) 3217.2500 Companhia Editora de Pernam- Santo Amaro FAX: (81) 3222.5126 buco - CEPE CEP 50100-140
EDITOR Raimundo Carrero
EDITOR EXECUTIVO Schneider Carpeggiani
EDIÇÃO DE ARTE Jaíne Cintra
REVISÃO Gilson Oliveira
TRATAMENTO DE IMAGEM Sebastião Corrêa
SECRETÁRIO GRÁFICO Militão Marques
CONSELHO EDITORIAL Flávio Chaves (presidente), Jaci Bezerra, Paulo Bruscky, Nivaldo Araújo, Ivanildo Sampaio, João Monteiro e Lucila Nogueira
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qüenta festas e não esbanja dinheiro em público. É por isso que a polícia demora tanto tempo em identificá-lo como um barão das drogas. Por outro lado, é óbvio que a fotografia em chave escura remete diretamente à estética de “O poderoso chefão”, cuja fotografia de Gordon Willis tornou-se antológica justamente pelo uso dramático do contraluz. As locações reais, situadas em bairros da periferia de Nova York, também são parecidas e reforçam ainda mais a semelhança. Aliás, a reconstituição de época – a maior parte da ação se passa na virada entre as décadas de 1960 e 70 – é meticulosa e detalhista, até mesmo na boa trilha sonora de Mark Streitenfeld, que prioriza fraseados de jazz com bastante percussão, bem na linha dos thrillers policiais daquela época. As menções a diversos personagens reais complementam o trabalho impecável da equipe dirigida por Ridley Scott. Há até um trecho curioso, em que os nomes dos detetives Eddie Egan e Sonny Grosso (os tiras que inspiraram o filme “Operação França”, que versa justamente sobre tráfico de drogas em NY) são mencionados por traficantes ligados a Frank Lucas. “O gângster” se afasta de sua obra de referência, contudo, por ter dois personagens principais com igual tempo em cena. Afinal, em paralelo à trajetória de ascenção e queda de Frank Lucas, acompanhamos também o detetive Richie Roberts (Russell Crowel). Ele é um sujeito tão honesto que até mesmo os demais policiais o desprezam, desde que encontrou um carro abastecido com US$ 1 milhão e preferiu entregar o dinheiro às autoridades do que dividi-lo com os colegas. No ostracismo, ele acaba chefiando uma equipe de investigação para a Promotoria de Nova York, e este trabalho o acaba colocando na rota de Lucas. A montagem de Pietro Scalia, fiel colaborador de Scott, desenvolve em paralelo as histórias dos dois personagens, cruzando-as somente na segunda metade da projeção. Sem pressa, o ritmo favorece a construção dos personagens, mas a necessidade de dar a ambos o mesmo destaque acaba se mostrando prejudicial, já que o filme gasta vários minutos com uma desnecessária subtrama sobre o fracasso do casamento do policial. O enredo secundário não acrescenta nada ao filme, a não ser, talvez, a informação de que Richie Roberts não é um modelo de homem – a excessiva dedicação ao trabalho e a obsessão por sexo são os dramas com que tem que lidar. Há aqui um problema: ambos os personagens são meticulosamente construídos como homens parecidos: inteligência acima do normal, verve afiada, tenacidade, firmeza moral, dedicação ao trabalho e, claro, um defeito – é preciso que algo os torne humanos, certo? Reside justamente neste ponto o maior problema do filme. Apesar das quase três horas de duração e do ritmo relativamente lento para o padrão dos thrillers do século XXI, “O gângster” não exibe a complexidade moral, a riqueza, as nuances e sutilezas que dão envergadura dramática e exuberância a grandes épicos do crime, como “Scarface” (1983) e o já citado “O poderoso chefão”. Se os dois personagens principais são talhados de forma meticulosa (e, ainda assim, rasa), o mesmo não pode ser dito dos coadjuvantes. Não há rigorosamente nenhum personagem secundário que tenha densidade dramática. São todos superficiais. Obedecem às necessidades narrativas do roteiro, mas não possuem vida própria ou tridimensionalidade. Esta característica coloca “O gângster” na galeria dos filmes policiais que são bons, mas não fantásticos. yy
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início da temporada do Oscar, que acontece em meados de novembro, é sempre permeado de tensão. É neste mês que cada grande estúdio de Hollywood começa a lançar suas apostas mais fortes para compor a lista de indicados ao prêmio mais glamouroso do Cinema. Nesta corrida rumo à glória, o desempenho nas bilheterias e o apoio da crítica são dois fatores fundamentais. Com freqüência, pesos-pesados perdem fôlego e azarões se tornam boas apostas. Este ano, o panorama aponta para uma disputa acirrada, pois a maior parte dos favoritos (“Leões e cordeiros”, “O assassinato de Jesse James”) vem obtendo recepções mornas. A rigor, até o momento, apenas um título combinou apelo de público e elogios dos especialistas: “O gângster” (American Gangster, EUA, 2007), épico criminal de Ridley Scott apelidado de “O poderoso chefão negro”. O filme estréia no Brasil em janeiro. O longa-metragem conta a história real de Frank Lucas, um humilde motorista particular que virou barão das drogas na virada dos anos 1960 para os 70. A trajetória representa perfeitamente o sonho americano. Negro e pobre, ele era apadrinhado por um popular líder comunitário do bairro negro do Harlem (Nova York). Enxergou uma oportunidade original de negócio e fez fortuna (o fato desta oportunidade pertencer a um ramo ilegal do comércio não importava muito). Detalhe: ele ficou rico, mas não egoísta. Comprou um casarão para a mãe e trouxe os irmãos e primos para trabalhar com ele. Casou com uma bela mulher e constituiu uma família sólida. Era fiel, discreto e trabalhador. Ainda arrumava tempo para levar a mãe à missa todos os domingos. Só não era perfeito porque o negócio de Frank Lucas consistia em contrabandear toneladas de heroína para os EUA, enchendo as ruas da costa leste com uma droga barata e altamente letal. A produção do longa-metragem data do ano 2000, quando o oscarizado roteirista Steve Zaillian (“A lista de Schindler”) leu um artigo sobre o traficante na revista New Yorker. Sete anos e três diretores depois – Antoine Fucqua (“Dia de treinamento”) e Terry George (“Hotel Rwanda”) trabalharam no projeto – o resultado final estreou com sucesso de crítica e público, justificando com sobra o apelido informal que o projeto recebeu nos bastidores da indústria cinematográfica (“The black godfather”, algo como “O poderoso chefão negro”). Trata-se, afinal, de uma saga sobre mafiosos milionários de grande prestígio, com enredo que cobre vários anos e dedica grande importância à noção de família. Além disso, Scott trabalhou nos aspectos cinematográficos para reforçar a semelhança. Basta observar, por exemplo, a excelente fotografia de Harris Savides, que privilegia tomadas escuras e usa de forma abundante o recurso do contraluz. Há uma razão narrativa para esta opção, já que a utilização deste tipo de iluminação, em que a fonte principal de luz fica na frente da câmera e por trás dos atores, mergulha os personagens dentro da escuridão (aliás, grande parte das locações tem paredes de vidro ou janelas amplas, de modo a facilitar o uso do recurso). As sombras escondem os rostos, reforçam o caráter misterioso dos personagens, ajudam-nos a se misturar ao ambiente e a passar despercebidos – e esta é justamente a postura empresarial de Frank Lucas, que faz questão de manter um perfil impecável de discrição. Ele não usa jóias nem roupas berrantes, não fre-
A saga de um motorista humilde que se transforma no rei da droga é favorita ao Oscar
Rumo à glória
Rodrigo Carreiro
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O Carnaval, as casas, as pessoas e as praças do Recife foram transfigurados por Clarice Lispector omo se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas”. As ruas e praças do Recife foram feitas para formar e emoldurar as percepções e sentimentos de Clarice Lispector que, no trecho citado acima, retirado do conto “Restos de carnaval”, publicado no livro “Felicidade clandestina”, descreve a energia que pairava na cidade durante o carnaval, que lhe contaminava fortemente, lhe deixava em estado de excitação e deslumbramento. O sentimento do Recife era de transgressão, e segue sendo, nesse período; também Clarice experimentou, então, um desejo de ser diferente, mais velha, menos menina, menos pura. Queria usar batom e pintar as bochechas com rouge (blush, para os modernos). A cidade que, apesar das limitações que impunha à menina Clarice, associadas principalmente às condições financeiras de sua família e à saúde precária de sua mãe, era fonte de ingênua alegria, também foi por ela descrita com carinho, cuidado, emoção. O carnaval, as praças, as casas, as pessoas, todas essas referências são imagens que permaneceriam recorrentes em uma obra cujo diálogo com os ambientes exteriores é, na verdade, um caminho para uma construção intimista bem mais significativa. Ambas, a cidade e a artista, trocam experiências e impressões. Ao falarmos de uma escritora que segue tão provocativa quanto sempre, tal qual Clarice Lispector, fica difícil determinar onde o Recife, vivo, tangível, penetra em sua obra, que muitas vezes é isenta de referências materiais, e interage com ela. No entanto, todos os entrevistados para esta reportagem concordam que a cidade está presente em toda a escrita clariceana e que ela a enxergava com uma ótica bem particular (poderia ser diferente?). Os contos, particularmente, merecem um parêntese. Recife vai e volta na vida nômade da escritora, nestes textos curtos, que refletem a aura de uma cidade começando a se transformar, a crescer, a desabrochar, com todos os benefícios e dores que esse crescimento é capaz de trazer. “Sua pátria é aquilo que está dentro de você. Tenho uma teoria que diz que o lugar de uma pessoa é onde ela esteve desde o nascimento até os 10 anos de idade. Recife está nos contos de Clarice, tanto as coisas materiais, o cinema, a sorveteria, os sobrados, as praças, como sua cor, som e tristeza”, acredita Cyl Gallindo, escritor e poeta, que acha que a escritora reflete em seus textos uma melancolia própria da cidade. “Toda a estrutura moral, intelectual e humana de Clarice foi forjada aqui. Depois disso, só se acrescentaram os adjuntos nominais”. Cyl recentemente co-editou uma coletânea de contos bastante abrangente, cujo principal critério de seleção dos autores foi ter nascido ou tido formação moral/intelectual em Pernambuco. Clarice está lá. Para a antropóloga e escritora Fátima Quintas, Clarice Lispector foi uma autora de certa forma desterritorializada, cuja preocupação com o espaço era mínima. “Ela abstraía-se das idéias de localidade, e era uma migrante, no sentido literal e metafórico. Todo o espaço físico da cidade, como a Praça Maciel Pinheiro, os sobrados, os jardins que ela descreve em contos como ‘Felicidade clandestina’, foram sem dúvida importantes para a construção da sua personalidade. O Recife foi a cidade que a estruturou. Mesmo assim, acho que Clarice seria Clarice em qualquer lugar do mundo. A cidade serviu como cenário para a sua eterna busca interior, que nela era muito aguçada”. Fátima, que considera Macabéia,
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de “A Hora da estrela”, uma personagem autobiográfica, diz ainda que o Nordeste é uma referência muito importante para a autora, ainda que ela não seja explícita na tradução desta influência, já que sua escrita é intimista e auto-reflexiva. Tânia Kaufman, historiadora e professora, autora de tese de doutorado sobre a presença judaica em Pernambuco no século XX, identifica uma relação de proximidade entre a época em que a escritora viveu no Recife, entre os anos 1925 e 1935, sua forma de estar no mundo e o próprio ethos da cidade naquele tempo. “Clarice absorveu a cidade, mesmo carregando a carga de imigrante judia, pesada, se formos levar em consideração o período que o mundo estava vivendo. Eu penso que ela tentava administrar a interculturalidade que estava presente na sua vida. Acho que muito da sua sensibilidade tem origem no desejo de libertação característico dessa condição. Recife, nessa época, também buscava romper barreiras, voar, extrapolar limites. Sempre há uma ansiedade em momentos de pós-guerra como os que se viviam então, um movimento reflexivo, de criação de consciência crítica. Era um tempo de mais pensamentos livres e menos pensamentos engessados”, diz Tânia. Ela afirma que o Recife da época era vanguardista e rejeitava rótulos e que Clarice, a seu modo, também fugia à padronização de comportamentos e atitudes. Mesmo não sendo alguém que levantava bandeiras, ninguém pode nunca acusá-la de ter sido convencional. Sobre o Recife na obra de Clarice, o que parece ficar claro, conclusão a que se chega a partir de conversas, entrevistas e leituras, é que a cidade é uma espécie de cenário para as constantes questões levantadas por ela. Como sua obra é recortada por menções à vida que teve por aqui, suas primeiras experiências, infantis e de adolescência, naturalmente serão valorizadas. Porém, quando ela se refere a um sobrado, retrata a sensação que tinha enquanto criança, quando achava que a casa era enorme, altíssima, e o que vê então, depois de adulta. Quando fala da menina feia filha de dono de livraria, sua vizinha, que lhe torturava prometendo emprestar um livro que nunca chegava, descreve uma sensação que é só sua, de expectativa, incerteza, e, em seguida, de júbilo desconfiado. “Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás, escrevia com letra bordadíssima palavras como ‘data natalícia’ e ‘saudade’. Mas que talento tinha para a crueldade”. Esse trecho de texto, retirado do conto “Felicidade clandestina”, descreve sensações vividas no Recife. Poderiam ter acontecido tendo outras paisagens como pano de fundo – ainda assim, foram vividas aqui. E talvez isso faça, sim, diferença. Não temos como saber. O Recife de Clarice é como todo o resto do mundo – uma experiência particular, que algumas vezes pode coincidir com a sua, outras vezes pode ser completamente diferente. Teresa Monteiro, biógrafa da autora, escreveu que “ler Clarice é a possibilidade de viver intensamente o que se é”. A própria Clarice disse ser “um mistério para si mesma”. Imagine para nós. yy
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uase quarenta anos após aquele encontro, tenho a certeza de que Clarice Lispector é essência de vida. Ela está presente em todos nós, mesmo naqueles que não a conhecem, porque, assim como os adolescentes, possui a imensidão do mundo. Rio de Janeiro. Julho de 1969, mês e ano quando o homem pisou na Lua e o mundo ainda não enxergava a globalização e a revolta do clima. Clarice residia no Leme, no apartamento que comprara dois anos antes, onde vivia com a enfermeira Siléa Marchi, que a acompanharia até a morte Telefonei ressabiado, pedi para vê-la por alguns momentos e, generosa, me convidou para um café no final da tarde do dia seguinte. Nervoso, toquei a campainha e ela se assustou com as duas dúzias de rosas amarelas que me antecederam. “Como você sabe que gosto das amarelas?”. Estão na “Paixão”, respondi de imediato. “Na Paixão...?”, retrucou incrédula. Na “paixão segundo G.H”., expliquei como se fosse a coisa mais natural do mundo. “Ah...”, concordou. A sala ampla parecia abrigar todos os livros do mundo. No centro, a cadeira com mesinha ao lado, um copo de água, cinzeiro e a máquina de escrever. Cigarros, fósforos e um pequeno caderno de anotações com lápis ao lado. Enfim, ela estava na minha frente e eu não sabia o que falar, o que fazer com as mãos. O adolescente que ainda não tinha se acostumado com a puberdade estava cara a cara com ela. Entreguei o volume todo riscado de “Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres”, da Editora Sabiá, que comprara em São Paulo dias antes de viajar ao Rio e que lia com devoção. Em cada página, ainda o tenho, círculos, quadrados e linhas sublinhadas e pequenas indicações que só diziam respeito a mim: Isso sou eu, lindo, minha vida... Clarice folheou o volume, deu um tímido sorriso e depositou o livro na mesinha, onde ficaria até o final do dia. Quebrei o silêncio: A senhora é a minha escritora preferida. “É mesmo?”. Tenho um amigo, o Rodolfo, que também gosta muito da senhora. “Foi ele quem me indicou?”. Foi, sim, mas agora já não preciso mais dele, disse, orgulhoso. “Ainda bem”, disse ela, compreensiva. Um dia defenderei uma tese sobre a senhora, juro. Ela soltou generosa gargalhada. “A Paixão” é meu livro de cabeceira, garanti. A partir desse ponto foram muitas as perguntas, os questionamentos, as interjeições e as promessas. Parecíamos íntimos demais para um primeiro encontro, mas a memória não registrou o que Clarice disse. Confesso, falei mais do que ela, me lembro muito bem. Tinha a necessidade de contar-lhe o quanto ela era importante na minha vida. Tudo o que a senhora escreve parece ser escrito para mim, confessei em certo momento. “E isso é bom?”. É ótimo porque me encontro, revelei. Novamente aquele sorriso no canto da boca. E, com voz mais grave do que a normal, a sentença: “Os livros fazem sofrer”. Olhei assustado e admirado. Ela não mais cruzava as mãos como se tentasse esconder as marcas das queimaduras e acendia um cigarro atrás do outro, em pequenos intervalos. Clarice contou que estava só naquele apartamento iluminado. Depois, fiquei sabendo que o filho Pedro estava no quarto, dormindo, tinha sido internado um mês com problemas psiquiátricos. E o outro filho, Paulo, estava com o pai, Paulo Gurgel Valente, nos Estados Unidos. Clarice estava divorciada. Falei sobre a minha família, amigos, estudos e trabalho. Trocávamos intimidades, pensei com certa volúpia. Quis saber como escrevia, pedi para que colocasse a velha máquina de escrever no colo, para eu ver como datilografava, e até que me mostrasse suas anotações. A letra não era mais a mesma desde as queimaduras na mão direita, explicou. Os efeitos do incêndio eram visíveis na mão e perna direitas. Mas, para mim, tudo era muito legível, parecia que sempre fora seu amigo, não havia mistérios entre nós. A vida estava perfeita. A tarde passou rápida, o que era para ser apenas meia hora terminou duas horas e quinze minutos depois. A despedida foi demorada. Com meu jeito italianado de ser, beijei seu rosto, dei um forte abraço e beijei várias vezes suas mãos. Ela agradeceu as flores e se queixou de que não tinha comido a torta, só tomado o café. Antes de o elevador fechar a porta de madeira escura ainda ouvi: “Volte sempre, quando quiser”. Prometo, respondi, quase gritando. Nunca voltei. Caminhei em estado de graça até Copacabana. Nas mãos, o livro com o presente que fui buscar: a dedicatória que, uma semana depois, mostraria com orgulho para Rodolfo: “A Paulo Sérgio, meu mais novo amigo, de repente... Clarice Lispector”. Não conseguia parar de pensar naquele encontro, nem mesmo um festival de obras-primas no Cine Metro conseguiu interromper aquela felicidade clandestina. Em 1977, como bolsista na Espanha, não tive ninguém com quem compartilhar a dor pela morte de Clarice Lispector. Hoje eu tenho. yy
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H istória Em plena CDU, a nostalgia de uma revolução que ainda não quer acabar Fabiana Moraes e Luiz Carlos Pinto
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u tinha saudades de comer castanha de caju, que eu conheci quando era professora em Moçambique”, diz com certa graça Larissa Chevtchenko. Nascida na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, filha de militar, Larissa sintetiza com a frase um elemento fundamental para as mudanças político-econômicas que varreram o império soviético, 15 anos atrás: a necessidade de consumo para além das delimitações estabelecidas por um estado centralizador. Hoje, quando se completam 90 anos da revolução bolchevique, o centro nevrálgico do antigo império soviético, a Rússia, converteu-se num dos lugares em que o consumo encontrou sua expressão mais luxuosa. Essa, a evidência glamourosa do que hoje é uma das economias capitalistas mais concentradas do mundo. Sentada na sala de sua casa na Cidade Universitária, que fica atrás do Bar da Kelly, Larissa deixa escapar um contido saudosismo no seu olhar, quando fala da URSS e da vila dos cosmonautas, onde morava. “No momento em que resolvemos vir morar no Brasil, praticamente toda a população tinha boa formação. Para ficar, precisávamos desenvolver algum tipo de negócio, algum comércio, mas ficou perigoso”. Ela e seu marido, o brasileiro Fernando Lipídio, se conheceram quando ele, em novembro de 1984, desembarcou em Moscou para estudar engenharia mecânica – do grupo de quase dez brasileiros que o acompanhava, somente Lipídio permaneceu, pois os outros não se acostumaram ao clima nem encontraram um motivo a mais para permanecer. Melissa fazia doutorado em Sociologia sobre Teologia da Libertação, havia passado um tempo em Moçambique e, por causa disso, falava muito bem o português. Foram apresentados e casaram em Moscou mesmo. “Era fácil fazer dinheiro, em parte por causa da demanda reprimida durante mais de setenta anos do regime”, lembra Lipídio. “Havia muito dinheiro não declarado em circulação, muitas oportunidades de enriquecimento lícito e ilícito surgindo, quase nenhuma legislação capaz de regulamentar atividades de uma economia de mercado. A criminalidade aumentou naquele momento”, completa Larissa. Nesse período, mais precisamente a partir de 1986, Mikhail Gorbachev iniciou uma redistribuição do poder e da propriedade. Não se pretendia, pelo menos no início, eliminar o comunismo como regime econômico, mas aumentar a participação popular (“mais democracia, mais socialismo”), e modernizar a indústria. O estado deixou de fiscalizar as posses monetárias e as transações comerciais entre as pessoas. E vendeu, na forma de ações, grande parte das empresas estatais em funcionamento. Uma quantidade considerável dessas participações foi adquirida, nem sempre de forma clara, pelos próprios gerentes das empresas estatais, criando assim uma oligarquia formada por novos ricos. Foi também a oportunidade para que as máfias se desenvolvessem, criassem novas ramificações, legalizassem seu próprio capital. “Questionava-se muito os privilégios dentro do sistema socialista, que em grande medida foram a ponta de lança das mudanças. O que acontece em termos de privilégios hoje é absurdo”, diz Larissa. À formação desse extrato de novos capitalistas seguiu-se a criação de um consumo de luxo, em que a opulência parece reeditar o fausto das monarquias czaristas pré-revolucionárias. O shopping mais frequentado do mundo fica em Moscou – o Mega1 recebe 52 milhões de visitantes por ano, tem 250 lojas. Carros e grifes de moda, como Vuitton, Christian Dior, Gucci,
Lacoste, Max Mara, Versace, Prada e Furla, batem recordes de vendas. Alguns dos produtos mais desejados do mundo ocidental, como celulares, tvs de plasma e carros importados, alcançam cifras astronômicas. A classe média emergente gasta cerca de 70% de seus ganhos (em média US$ 1.500) em compras. A oferta e o fato de a maior parte dessa população já ter casa própria (as residências estatais foram transferidas definitivamente aos usuários ainda na década de 1980) explicam em parte esse comportamento. A concentração de capital e o consumo de luxo são expressos indiretamente pelos números da “Forbes”: em 1997 a revista listou quatro bilionários na Rússia. Em 2004 esse número passou para trinta e seis. A lista de bilionários divulgada no início deste ano tinha cinqüenta e quatro nomes – destes, somente quatro não moram em Moscou. É a maior concentração de bilionários do mundo. Um quarto da riqueza da Rússia está nas mãos de apenas cem pessoas. Segundo a “Forbes”, o bilionário russo é homem, 47 anos, casado, teve sua formação na antiga capital da URSS, sua fortuna é baseada na exploração, venda e/ou distribuição de petróleo e derivados ou metais, passa longas temporadas na Europa Ocidental ou nos Estados Unidos. A “Forbes” deu-se ao trabalho de ir além no perfil dessa nova oligarquia: em média, o bilionário russo tem um apartamento avaliado em US$ 7 milhões em Moscou, tem o próprio avião, em torno de US$ 33 milhões, e o próprio iate (US$ 40 mil), gasta cerca de US$ 50 mil com aluguel de chalés nas férias de verão e queima entre US$ 25 milhões e US$ 70 milhões quando resolver comprar uma casa para passar temporada, por exemplo em Saint Tropez. Como não poderia deixar de ser, a concentrada distribuição de renda tem conseqüências negativas, expressas em seus indicadores sociais. O país está mais pobre. Somente agora seu PIB voltou ao mesmo nível que tinha em 1990. Os salários são 80% da média em 1989, segundo o Instituto de Política Social da Rússia. O Partido Comunista da Federação Russa (KPRF, na sigla em russo) se esmera em levantar números catastróficos sobre a situação atual: a mortalidade supera em 1,6 vezes a natalidade. O salário real em 2006 foi duas vezes inferior ao de 1990. As aposentadorias médias em 2,5 vezes. As bolsas estudantis, sete vezes. Ainda segundo o KPRF, foram fechadas setenta mil indústrias nestes quinze anos. O consumo de produtos alimentícios ficou mais variado, mas 50% dos ítens da feira são importados. O consumo calórico caiu para um terço dos níveis de há quinze anos, enquanto o consumo de leite é duas vezes menor. Na Federação Russa são cometidos três milhões de crimes por ano (duas vezes mais que na antiga Rússia Soviética, segundo o KPRF). As bonecas russas, que diminuem à medida que são descobertas, nunca pareceram uma metáfora tão adequada para a grande pátria. Cidade Universitária, Recife, 17 de novembro, 13 horas. Faz calor. Larissa Chevtchenko espera a chegada, a qualquer momento, de um do seus alunos para aula de russo. Anda ocupada com as atividades do Centro Cultural Brasil-Rússia, criado em 10 de novembro deste ano. Com graduação em Letras e experiência de ensinar inglês na URSS, também leciona inglês num curso particular. Parece desanimada com os rumos que seu país tomou. Observa a escalada consumista e a concentração de riqueza com certo desconforto. Lipídio, hoje assessor parlamentar, lamenta não ter obtido cidadania soviética. “Gostaria de ter ficado lá, se a URSS tivesse continuado a existir e não houvesse tanta dificuldade em viver”. A expectativa dos dois com o Centro é boa. Novos alunos, uma sede, convênios com faculdades da Rússia, preparar alunos para estudar por lá. O aluno de Larissa chega, Lipídio yy tem que ir trabalhar, o sol continua lá fora brincando com as crianças da vizinhança, acaba a entrevista, a vida segue.
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Por que até uma cozinheira-celebridade precisa sofrer a patrulha da balança? Renata do Amaral
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ão é novidade que a opinião pública e a mídia são cruéis em sua patrulha contra os quilinhos a mais das celebridades. Mesmo assim, chamam atenção as críticas recebidas pela apresentadora de programas de culinária Nigella Lawson. Bastou a inglesa aumentar alguns pontos na balança durante a temporada da sua nova série, “Nigella express”, ainda inédita no Brasil, para pipocarem comentários maldosos sobre sua forma no site da sua emissora, a BBC. Atenção: não estamos falando de uma supermodelo ou de uma atriz de cinema, mas de uma bem sucedida cozinheira televisiva, cujos seis livros já venderam mais de três milhões de exemplares pelo mundo e que foi eleita a autora do ano de 2001 no British Book Awards, escrevendo sobre comida. Aos 47 anos e com dois filhos, Nigella também foi eleita a mãe mais sexy da Inglaterra em pesquisa realizada em 2007, desbancando Angelina Jolie. É linda e chique, porém não foi contemplada pelo “metabolismo rápido” sempre mencionado pelas entrevistadas – para desespero das leitoras – das revistas femininas. Ela come de tudo e engorda, sem parecer muito preocupada com isso. No programa “Festas de Nigella”, transmitido pelo GNT, suas receitas são de dar água na boca e incluem bombas calóricas, como um bolo de quatro chocolates. Nada muito complicado, ao contrário do que fazem outros chefes também exibidos aqui pelo canal. “Outros chefes” é modo de dizer, pois ela se denomina cozinheira. Nunca estudou gastronomia e atribui seu conhecimento ao ânimo com que se dedica ao papel de comensal. Sua comida é para devorar em casa, com os amigos e a família, lambendo os dedos (algo que a própria não se furta de fazer durante o preparo dos pratos, o que já gerou críticas a seus hábitos de higiene, mas essa é outra história). Não por acaso, um dos seus livros de maior sucesso leva as expressões “como ser uma deusa doméstica” e “confort cooking” no título. Nossa deusa doméstica de formas renascentistas preza a alegria da alimentação e deixa de lado os valores nutricionais e calóricos. A moça é um mau exemplo tão grande que todos os episódios de “Festas de Nigella” terminam com ela de pijama, à noite, assaltando a geladeira. Não seria essa festa dos sentidos um verdadeiro pecado nos regrados dias de hoje? Além dos comentários mais diretos à aparência da apresentadora, houve quem dissesse que ela deveria ensinar pratos mais saudáveis. Para isso, há outras propostas, como o reality show “Você é o que você come”, em que a nutricionista Gillian McKeith modifica radicalmente a dieta de pessoas acima do peso: se costumavam se entupir de fast food, passam a comer apenas vegetais e fibras. Invariavelmente, choram no “antes”, ao ouvir delicadezas como “Você está se matando!”, e sorriem no “depois”, mostrando as roupas folgadas. Quem se choca com os banquetes hedonistas de Nigella e com o tratamento quase amoroso que ela dispensa à comida pode optar pelo politicamente (e nutricionalmente) correto. Ou tirar os quatro chocolates da despensa – a saber: pó, chips, xarope e tablete – sem medo de ser feliz. “O assim chamado glutão é uma censura ambulante ao nosso autocontrole, nosso sacrifício e nossa duvidosa convicção de que se nos vigiarmos, se fizermos isto e não aquilo, então a morte, seguramente, não vai nos atingir”, afirma a ensaísta e novelista Francine Prose em seu livro “Gula”. Pode até ser que comer em excesso não seja mais considerado pecado no sentido religioso, mas não resta dúvida de que fugir dos estereótipos impostos pela sociedade contemporânea tem seu preço. Para muita gente, a comida é vista como um inimigo a ser combatido e como causa de arrependimento e culpa e não mais como fonte de prazer e satisfação. Que o digam as inúmeras vítimas da anorexia. A escritora americana M. F. K. Fisher falou sobre a gulodice no seu essencial “Um alfabeto para gourmets”: “Recuso-me a crer na existência de um único ser humano que não possa confessar, a si mesmo pelo menos, que em uma ou duas ocasiões empanturrou-se a ponto de explodir com uma coisa qualquer, de codorna financière a panquecas, pela única razão de satisfazer bestialmente seu apetite. Na verdade, sinto pena de quem jamais se permitiu essa experiência sensual, mesmo com o único objetivo de identificar o próprio limite e descobrir em que ponto, no seu caso específico, acaba o gourmet e começa o yy glutão”. Façamos coro a ela e deixemos Nigella em paz.
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O fator Cristina Kirchner irá trazer ainda mais “tango” ao futuro dos nossos hermanos argentinos Luiz Carlos Pinto Alexandre Belém
ssim como é impossível entender a política argentina sem se referir ao peronismo, tem sido inevitável analisar a vitória de Cristina Kirchner ao cargo de presidente daquele país sem que se coloque em discussão seu estilo. Há os que, logo de saída, consideram que suas roupas coloridas demais, com excesso de brocados e flores, com estampas em abundância, sem falar no cabelo em desalinho e no excesso de bijuterias, são inadequadas a uma chefe de estado. Ou simplesmente brega, o que a colocaria em descompasso com o padrão de Michelle Bachelet (presidenta do Chile), com a senadora americana Hilary Clinton, com a chanceler alemã Ângela Merkel e até mesmo com Marisa, nossa querida Marisa. Essas sim, dotadas de senso, equilíbrio e discrição, mais em acordo com o poder. Mas há os que analisam a coisa de forma diferente: Cristina Kirchner estaria muito mais próxima de Evita Perón, a elegantíssima mulher de Juan Perón, num aspecto ou dois: em sua sintonia com o mundo de celebridades dos Estados Unidos, em especial do cinema feito em Hollywood, e em seu discurso francamente direcionado à população pobre e desamparada. Mas essas semelhanças param por aí, porque o mundo glamouroso ao qual Eva se reportava, e procurou insistentemente pertencer, é aquele vivido na década de 1940, personificado para ela na atriz Norma Shearer (Oscar em 1930 por “The divorce”). Se Cristina está estilisticamente conectada a celebridades, estas estão mais para Jeniffer Lopez. Quanto ao discurso, embora direcionado à população pobre, o de Evita foi muitíssimo mais carismático. Foi Eva Duarte que forjou o peronismo como grande movimento de massas. Hoje, o sistema de representação política portenho é extremamente concentrado em dois partidos: a União Cívica Radical e o Partido Justicialista (a sede institucional do peronismo). E há elementos inéditos na chegada de Cristina ao poder. Essa foi a primeira vez na história argentina que duas mulheres disputaram a presidência. A outra postulante era a candidata radical Elisa Carrió que, aliás, ficou em segundo lugar na eleição. Foi a primeira vez que uma mulher foi eleita presidente. Essa também foi a primeira vez em que um presidente argentino (no caso, Néstor Kirchner) desiste de tentar a reeleição, o que em termos de política externa deverá fazer bem ao país, uma vez que Cristina tem mostrado mais jogo de cintura nessa seara. Foi a primeira vez que um presidente fez de sua mulher a sucessora. Caso muito diferente de quando Isabelita, terceira mulher de Juan Perón, assumiu o governo em julho de 1974, porque naquela ocasião a mudança ocorreu por causa da morte do presidente. Essa foi também a primeira vez que um político da União Cívica Radical (Julio Cobos) se colocou como vice-presidente de um peronista (Cristina), o que poderá provocar uma reformulação bastante interessante da macropolítica do país. Essa foi ainda a primeira vez, desde 1952, que a sucessão se deu entre dois peronistas, de forma democrática. Naquele ano isso se tornou possível porque Perón se reelegeu, ou seja, passou a faixa presidencial a si mesmo. O caso de Meném, em 1995, não vale, porque o seu programa de governo era muito distante do peronismo. O que esperar então do governo Cristina Kirchner? Mais do que o visual meio brega da presidente, provavelmente maior proximidade com o governo Lula e com uma virtual administração democrata nos Estados Unidos do que o governo de seu marido. Por sinal, Néstor Kirchner adotou posturas bastante intransigentes em sua política externa, o que o levou a uma crise diplomática com o Uruguai e a tensões com o Brasil sobre questões comerciais no âmbito do Mercosul e com relação às intenções brasileiras de obter uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. Na mesma medida, espera-se de Cristina maior distanciamento do governo de Hugo Chávez. E isso será possível porque, embora consolidando um projeto de poder que coloca o casal Kirchner como principal liderança nacional, Cristina tem autonomia suficiente para isso. Autonomia essa construída ao longo de mais de 20 anos de vida pública em cargos de vereadora, deputada provincial e nacional e senadora. Finalmente, espera-se que a conquista do parlamento por Cristina marque um distanciamento ainda maior do governo de seu marido, que foi eleito em 2003 com apenas 22% dos votos e sem apoio parlamentar. Foi essa fragilidade da base política que gerou uma concentração do poder em torno da Casa Rosada. O que, por sua vez, gerou várias denúncias, de yy corrupção no primeiro escalão à maquiagem da inflação.
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Livro-reportagem detalha a ascensão e derrocada do chef francês Bernard Loiseau Bruno Albertim
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aís que discute comida com a mesma paixão delegadas à política e ao futebol, a França, sabemos, é a pátria de caçarolas. Na noite de 24 de fevereiro de 2003, o Brasil esquentava as cadeiras para mais um Carnaval quando o caldo entornou em Paris. As TVs pararam para dar a notícia, em regime de plantão. Dono de três estrelas “Michellin”, celebridade construída entre panelas, herdeiro e atualizador da nouvelle cuisine, o chef Bernard Loiseau fora encontrado morto na cozinha de seu restaurante. Quem haveria assassinado Loiseau? A perícia, a partir do tiro no peito, confirmou suicídio. Mas a pergunta persistiu: Quem matou Loiseau? Ali estava a manchete e muitas suítes de todos os principais jornais franceses, do dia e das semanas seguintes. O drama Loiseau foi tema de duas capas do semanário “Paris-Match”. Fizeram comparações com Vatel, o grande cozinheiro da França absolutista, que deu cabo da vida na impossibilidade de concluir um banquete real. Bipolar, como 1,5% da população mundial, vaidoso, grandiloqüente, ambicioso, Bernard havia preferido a morte ao fracasso. Colegas de fogão logo conheceram e expuseram a receita de sua morte. Guia menos conhecido fora de suas fronteiras que o “Michellin”, mas tão importante quanto, o “Gault Millau” o havia rebaixado em seus critérios de classificação. Diziam que a outra publicação, tratada como a grande dama da gastronomia francesa, também lhe ceifaria uma estrela. “O ‘Gault Millau’ o matou”, sentenciou o über chef e verbete de primeira hora da gastronomia mundial, Paul Bocuse. O fato, refogado potente o bastante para a crônica mundana de qualquer parte, ganha novos molhos com o lançamento de “O perfeccionista”, a biografia de Loiseau escrita pelo gourmet e jornalista norte-americano, radicado há trinta anos na Europa, Rudolph Chelminskki. O relato, pouco mais de quatrocentas páginas, foi publicado este ano no Brasil pela Record. Mais que ascensão e queda de um chef, cuja vida talvez renda pouco interesse fora da França, o livro conta como um fabricante de pneus mudou para sempre a cultura gastronômica do mundo no século vinte, dando origem à crítica especializada contemporânea, elevando comida à categoria cultural, como o cinema e a literatura, promovendo fortunas e distribuindo desgraças. O turismo gastronômico, a competitividade da indústria da alta cozinha, da alimentação fora de casa, as placas de melhor fava do Brasil na porta de estabelecimentos encardidos nos subúrbios do Recife, a obsessão da classe média por comida de grife. As Vejinhas temperando vaidades anuais com o melhor da cidade. Tudo isso tem início quando a “Michellin” publica um livreto com os melhores restaurantes no interior da França. Paixão pela gastronomia? O fabricante queria mesmo que os franceses gastassem seus pneus. Para isso, teriam que procurar o melhor pot-au-feu das províncias francesas. O “Michellin” e seus pares fecharam-se, como era de se esperar, num clube de defesa. Defenderam-se das acusações de ter precipitado a morte do cozinheiro, alegando liberdade de imprensa. O fato de um ex-inspetor ter declarado que o “Michellin” não visitava, rigorosamente, todos os estabelecimentos avaliados fez passar ainda mais do ponto sua credibilidade chamuscada.”Podemos dizer que eles mataram Bernard Loiseau”, declarou Jacques Pourcel, presidente do Sindicato de Haute Cuisine Française – sim, na França há uma entidade classista apenas para quem tem o luxo gastronômico como ofício. A apuração e relato dos fatos pelo autor do livro-reportagem mereceu elogios da comunidade gastronômica. “‘O perfeccionista’ é um retrato interessante, perspicaz, impiedoso, porém agradável, de um grande chef na encruzilhada da história da culinária. Poucos escritores nos levaram tão profundamente – ou com tanta precisão – para dentro da realidade da haute cuisine”, disse o midiático e também escritor, chef Antony Bourdain, autor do outrora polêmico “Cozinha confidencial” (aquele em que são revelados bastidores de grandes restaurantes mundiais, em episódios como o aproveitamento de ingredientes semi-estragados e chefs cuspindo no bife de clientes que reclamam do ponto da carne, antes de devolvê-la à mesa). Na crítica gastronômica francesa, o principal concorrente do “Michellin” surgiu nos anos 70. Com grande diferença editorial, o “Gault Millau” não tinha a sisudez nem a frieza da Grande Dama. Suas avaliações não se limitam a descrições rigorosamente objetivas e símbolos indicativos de qualidade. Jovem, apareceu com textos bem-humorados, espirituosos e bem escritos pela dupla de jornalistas cujos sobrenomes unidos batizam o guia. Seu grande trunfo foi ter cunhado o termo que obrigaria a cozinha francesa – e, por extensão, toda a gastronomia contemporânea – a mudar forçosa e definitivamente: a nouvelle cuisine. Muito embora, quando surgiu, pouca gente soubesse o que queria dizer isso. Nem mesmo os cozinheiros apontados como seus protagonistas. No Brasil, a principal publicação de avaliação de restaurantes mantém a escola asséptica do “Michellin”. Com suas estrelas , o “Guia quatro rodas” estabelece castas de classificação das casas. Outras publicações surgiram. Sempre alvo de críticas. “Já fui apontada como dona de uma das melhores casas da cidade por gente que nunca pisou no meu restaurante. Os guias nem sempre são confiáveis”, diz uma restaurantrice recifense. Ela prefere manter-se no anonimato. Não confia no guia. Tampouco, contudo, quer perder a publicidade que sua indicação significa. A pergunta é: quatro anos após o suicídio de Bernard Loiseau, precisamos de alguém que nos diga onde e como devemos comer? Sim, gastronomia é um investimento de relativa importância no orçamento da classe média. Costumamos nos informar antes de adquirir um livro. Também o fazemos na hora de eleger uma casa, no abre e fecha de restaurantes. Mas não se mate por isso. yy
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ota água no fogo! Pra quê? Pra depenar o frango!” Este foi o enxovalho usado pela vizinhança do personagem Bernardinho (Thiago Mendonça), quando este saia de casa após ser pego na cama com outro homem, na novela “Duas caras”, do pernambucano Aguinaldo Silva. O novelista utilizou uma expressão pernambucana de insulto ao moço (frango). Antes disso, Bernardinho ouviu da família termos como boiola, gay, baitola, afrescalhado, bambi, bichice, bicha-louca, florzinha, viadinho, homo, bichona, meiguinho, quebra-munheca, desmunhecar e gostar da fruta. Dezesseis palavras foram usadas para se referir a uma única coisa: o homossexual. Todas elas são “termos sexuais depreciativos” ou “estigmas sexuais de gênero”. Têm uso regional, nacional e até planetário. Sua única função é a ofensa. Mais do que machismo, demarcam uma relação de poder. Os “superiores” estigmatizam os “inferiores” como seres de menor valor humano, fazendo-os acreditar que são desprezíveis no seu status moral. O estigmatizador atribui ao estigmatizado atributos “ruins” de sua minoria anômica, ou seja, sem normas sociais, pois sua auto-imagem é nômica (normativa) das suas “melhores” características. Daí tantos termos pejorativos para apontar a “pequenez” dos estigmatizados. Além de ferir, eles causam efeito paralisante, sem efeitos de retaliação ao grupo de maior poder. Tais estigmas servem para demarcar territórios e fronteiras. No território masculino, o gay serve como um “mal necessário” para a própria existência do modelo ideal masculino, isto é, o ideal do eu (social), em detrimento ao Eu ideal (Eu narcísico). É como na construção de que Deus é bom. No entanto, se não fosse o diabo ruim, Ele seria tão bom? Esta é a lógica. Diferente dos gays, mulheres homossexuais são menos estigmatizadas pela sua homossexualidade do que pelo seu comportamento transgressor na heterossexualidade. A pecha da mulher promíscua é o que sustenta o modelo ideal feminino. Assim, mais termos para rotular tal comportamento como cadela, galinha, pistoleira, vaca, vagabunda, piranha, rampeira, quenga, rapariga, entre tantos outros para designar a “puta”. Por sua vez, as lésbicas recebem os rótulos de sapatão, sapa, caminhoneira, saboeira, rala-coco, bolacha, pitomba (a que chupa-chupa e não faz nada), cola velcro e tantas outras, necessárias para demarcar seu território. Se quanto mais alto, maior a queda, mais palavras ofensivas ao gay, à mulher hétero e, por fim, à lésbica por sua região fronteiriça com a masculinidade. Termos sexuais depreciativos são encontrados em todas as culturas e línguas. No inglês, eles são chamados de “slurs”, como por exemplo, whore (puta, promíscua) slut e bitch (puta ou cadela), fag (bicha), e queer (bicha louca). O mesmo ocorre com o termo masculino prick (caralho, pau, cacete) para a lésbica masculinizada (female pick) e em referência às suas práticas sexuais, como carpet muncher (lambedora de carpete). Alguns deles também são correspondentes no Brasil, como fruit (fruta), Limp wrist (desmunhecado), Pillow biter (mordedor de travesseiro). No tocante à transculturação desses termos, a nomenclatura “gay” é empregada de forma global. No seu uso primitivo, gay significa “jovial” ou “alegre”, mas ganhou significado sexual na década de vinte, na Califórnia (EUA), para designar membros da “hobo comunity” (comunidade de vagabundos) pela aparência extravagante e alegre. Por conta disso, a expressão “rapaz alegre”, corrente no Brasil a partir dos anos 1970. Já foi reivindicado que gay advinha da sigla “Good As You” (bom como você), mas é apenas um mito, sem provas comprobatórias. Numa transferência do depreciativo ao apreciativo, militantes preferem o termo “gay” uma vez que “homossexualismo” e “homossexual” foram criados no âmbito médico em 1869 pelo húngaro Karoly Maria Benkert para aquele com “dependência sexual que o torna física e psiquicamente incapaz com claro horror ao sexo oposto”. Depois de Benkert, o “vício contra Deus” passou a ser uma doença e o homossexual uma espécie. Isso até 1993, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) risca a homossexualidade da lista de doenças. Nos anos 60, o gay da classe média se denominava “entendido”, rejeitando quaisquer termos pejorativos. Entendeu? Não teve jeito! O “entendido” virou mais um termo pejorativo. Não importa o rótulo dado ao conteúdo, pois este sempre será estigmatizado. Além de operar na linguagem, o estigma também age no campo do imaginário como estereótipo. É no imaginário que habita o estereótipo como uma idéia de conjunto que abre para o individual. Ele é um “corpo social” que se impõe ao “corpo individual” (o Eu narcísico). Quando o pêndulo do estereótipo pesa para um ponto negativo, nasce o preconceito. Aliada ao estereótipo e ao preconceito está a discriminação, que é uma separação social institucionalizada na cultura. Logo, o corpo físico (Eu narcísico) é um objeto social que deve se adequar ao tipo masculino e ao feminino, estigmatizado quando não se ajusta ao social. Enfim, nosso corpo pertence mais ao social do que a nós mesmos. Os tempos mudam e os termos também, mas aparecem sempre como instauradores de domínio e isolamento do sujeito diante de um objeto: a sexualidade. No Brasil antigo, a homossexualidade era considerada pecado nefando, ou seja, de que não se devia falar. Porém, expressões como “cousa má”, “mau pecado”, “sodomia”, “vício dos clérigos”, “dormir por detrás”, “dormir no sexto mandamento”, “dormir carnalmente pelo vaso traseiro”, “velhacarias”, “velhacadas”, “somitigarias”, “amor italiano” eram ditas na surdina e em bom tom quando se tinha a ofensa como intenção e a imagem masculina como proteção. Por fim, o macho não passa incólume e recebe sua marca pejorativa sexual. Porém, apenas dois termos para rotulá-lo: “broxa” ou “corno”. No primeiro caso, o viagra resolve. E o chifre é culpa de quem mesmo? yy Se respondeu que é da “gaieira” da mulher dele, acertou. Já o filho dela...
É c o m i g o? Termos depreciativos maculam, ferem e estigmatizam membros da moral sexual não aceitável Valmir Costa
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Cristhiano Aguiar Cristo morre. Fincado na cruz. Fincado, Ele morria. Seus dedos se contorciam, metal blasfemando a carne, metal dos filhos dos homens atravessando a carne humana do Filho do Homem. Boca murcha, inflamada de sede. Boca torta, vergão de lábios atravessado num rosto de homem injustiçado. Naquela cruz, artimanha do Pecado e dos chifres tortos de Satanás-Patas-de-Bode, senhor das moscas e dos Azazéis, Jesus Cristo descobriu a si mesmo como dor. (Ali, Ele arrependido de Homem?) Os olhos de Cristo enxergavam verdades e visões que ninguém mais via, como, por exemplo, as legiões de anjos acorrentados que flutuavam acima da Sua cruz, berrando horrorizados com a Sua morte, enquanto ventanias carmesins de demônios saltitavam e chupavam a luz do céu. As correntes daqueles anjos, que mãos as amarraram, se não as do próprio Cristo, ao decidir descer e vestir uma carne? Cristo: sozinho no madeiro, chorado por mulheres que já não têm voz, engolidas pela tristeza, chorado pelos apóstolos escondidos nas dobras de Jerusalém. Cristo: magro e amarelo, costelas arfantes, membros doloridos, chagas abertas, coração a ponto de arrebentar-se, mente em incoerências e em dores... – Tenho sede. *** – Dá-me de beber! Gritou um conviva, embriagado, no grande banquete de bodas de casamento em Caná da Galiléia, enquanto balançava a taça e limpava o prato com seu pão. Onde estava o vinho? Pedia-se mais e mais ao mestre-sala. – Filho? Eles não têm mais vinho – sussurrou, discreta, a mãe de Jesus. Por que Ele parecia estar ali e ao mesmo tempo não estar? Ela não o compreendia. Alguns dos seus apóstolos também o olhavam. – Jesus? Jesus? Jesus sabia. Embora não tenha respondido, tinha escutado, tanto por dentro, quanto por fora, sua mãe, seus apóstolos, os noivos, suas famílias e cada conviva da festa. Jesus sabia que seria crucificado e agora mesmo via a si próprio cultivando o Jardim do Éden e voando sobre a face das águas, antes que elas fervilhassem de peixinhos; Ele se via na sua última ceia de Páscoa bebendo do cálice amargo do coração de Judas; Ele sentia a sede dos crucificados. Jesus, Jesus via a morte do conviva embriagado e conhecia todos os nomes dos futuros filhos dos noivos. Amava com urgência sua mãe, seus discípulos e a todos naquela festa. Jesus chorava. Jesus suava. Na solidão das oliveiras, enquanto apertava o nó nos calcanhares dos arcanjos de três metros de altura, armados com espadas e com lanças de luz fria, pura, Jesus lembrava. – Meu filho...? – Mulher... Que tenho eu contigo? Os discípulos não o reconheceram. – Ainda não chegou minha hora – Ele disse, mas a água dentro do copo, que estava perto da sua mão direita, avermelhou no exato momento em que os cravos foram pregados em suas mãos e nos seus pés e os centuriões romanos embeberam a esponja com vinagre para enfiá-la na sua boca. Os discípulos se agitaram e comentaram entre si aquela transformação. Sua mãe estendeu a mão, queria pegar o cálice e prová-lo. Desistiu. Em silêncio, ela tentava entender o que deveria fazer, mas percebeu que precisava agir como todas as outras vezes, deixando-se jogar no mistério que invadiu seu corpo desde a concepção daquele filho tão distante, tão constrangedor, um filho que não lhe pertencia, mas que tomava todo o seu ser. Que tenho eu contigo?: ela percebeu que aquela primeira porção de água transformada num vinho não era o milagre de mais um Elias, mas o sinal de uma poça de sangue que seria como um rastilho a incendiar o mundo... Vinho e sangue se misturavam agora nas incoerências da mente semiconsciente de Jesus. – Fazei tudo o que Ele vos disser – disse Maria, mãe de Jesus, aos serventes que João, para pedir um pouco de água, acabava de chamar. Era exatamente isto que Jesus esperava que ela dissesse; essa frase era o verdadeiro milagre das bodas de Caná, não o vinho que em instantes jorraria de dentro da água. Da boca de Maria, nascia Cristo. * Jesus ajudava seu pai, José, a matar o animal. – Corte aqui e sangre aqui – seu pai ensinou, com a mesma paciência do ensino da carpintaria. Jesus enfiou a lâmina no animal, enquanto o centurião retirava a lança do seu corpo morto. Após sangrar, cortar e tirar a pele, Jesus chorou. * Milhares, milhares de peixes e de pães, multidões de bocas de varões e mulhe-
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res e crianças, línguas e dentes se fartando, quase como um pecado santo, com os cestos, mais cestos, todos derramando comida... Há poucos instantes, Jesus pregava a uma multidão e realizava as curas prodigiosas e revelações maravilhosas que chegavam aos ouvidos dos fariseus e dos romanos. Jesus: foi Este que ressuscitou os mortos, que fez um ladrão reencontrar a luz no mundo, que fortaleceu as pernas dos paralíticos, que cobriu de pele nova os corroídos leprosos, que não desperdiçou pérolas com os porcos. – A multidão que nos segue é muito grande, Filipe. Onde compraremos pães para lhes dar a comer? – Jesus perguntou. – Não lhes bastariam duzentos denários de pão, para receber cada um o seu pedaço. – Filipe respondeu, preocupado. Pedro chutava uma pedra. – Está aí um rapaz que tem cinco pães de cevada e dois peixinhos; mas isto que é para tanta gente? – perguntou André, irmão de Pedro. Jesus pediu para que a multidão de quase cinco mil homens, fora as mulheres e crianças, se sentasse na relva do monte onde estavam. Em seguida, tomou os pães e os peixinhos, deu graças e os distribuiu para toda a multidão. Após todos comerem, sobraram doze cestos abarrotados de comida. Empolgado, Judas gritava junto com a multidão “Este é o profeta que precisava vir ao mundo, este é o Rei dos Judeus”, enquanto Jesus enxergava não mais uma multidão de pessoas naquele monte, mas uma manada de gnus espalhando poeira pelo continente africano, ou um tapete de corpos pisados por homens enlouquecidos brigando por Israel. Jesus, cada vez mais dolorido, sentia que O matavam aos poucos, sentia que O devoravam. Mas como cumprir Sua missão e fazer a diferença no mundo tenebroso se Ele fosse apenas um homem? Como abdicar de Deus? Sua dor, então, se aprofundou ainda mais, dor humana de mais fundura e profundeza, porque nascia da inconciliação entre Deus e a sua criatura. Pela primeira vez, Jesus, que dançou no meio do vácuo e pendurou supernovas no escuro, não conseguiu ser Palavra. Sentou-se no alto do monte, longe do amor que O minava. Sozinho, sentiu um frio noturno de deserto. * – Tomai, comei; isto é o meu corpo – partiu o pão sem fermento e o distribuiu aos discípulos. – Agora, tomai esse cálice que eu encho de vinho; isto é o meu sangue, bebei dele todos, é o sangue derramado da Nova Aliança, para remissão dos pecados. Mas Judas bebia com o coração enlouquecido pelas sombras. 30 moedas tilintariam no chão e seu corpo enforcado penderia, daqui a algumas horas, na árvore dos suicidas, dos que se enclausuram e perdem o fôlego no desespero dos becos, pescoço enrolado no destino mesquinho dos traidores. Vinha-lhe à tona o gosto de sangue. Suas mãos tremiam. O olhar de Jesus – pena? amor? decepção? ansiedade? – mantinha-o sob vigilância. Uma sensação terrível da falta de sentido de todas as coisas rasgou seu espírito, feito uma gargalhada zombeteira, quando Jesus lhe entregou um pão molhado e ordenou: – O que tiveres que fazer, faze-o depressa. Os seus colegas não entenderam o gesto de Cristo, ou Suas palavras. Judas respirava com dificuldade, como se pisassem sobre o seu peito, quase como se o seu corpo tivesse sido invadido pela presença de alguma outra coisa. Judas Iscariotes queria um reino de espada na mão, degolas e sangue de romanos borbulhando em cima da terra. Jesus só lhe deu peixinhos, promessas de um céu cheio de anjos e ensinamentos bonitos. Sim, Judas tinha amado Jesus, mas não O suportava mais. Retirou-se do banquete com a certeza de que fazia a coisa certa. * Judas, Jesus. Um beijo no jardim, soldados romanos, a traição. As tochas na noite – luz trêmula, rostos velados pelo escuro. Mantos em movimento. O beijo sem amor: lábios feito pregos incandescentes. * O flanco, aberto pela lança do centurião romano, jorrava. Jesus morreu, sem que pudesse salvá-Lo o pranto das Marias. Agora, agora mesmo, faz pouco tempo que Sua cabeça pendeu e os olhos fecharam. As ventanias e potestades rejubilavam, enquanto os anjos balançavam suas correntes e gotas de relâmpagos trovejavam para fora dos seus olhos sem pecado. A noite, no entanto, cobriu o mundo apenas durante poucos instantes. De repente, uma pomba de fogo elevou-se do Seu corpo e voou em linha reta até estilhaçar os céus, levando consigo, num turbilhão de ira, todas as asas negras dos espíritos do mal. Os anjos cantavam – suas correntes se partiram no fogo. (É Páscoa, uma coluna de fogo invisível liga o firmamento à crosta terrestre) Sangue na pele lacerada do cadáver, nos pés, na madeira da cruz, sangue no chão; sangue que deveria ser bebido pela terra, se a mesa do banquete já não estivesse se desfazendo, porque aquelas poças se recusavam a descer até as profundezas das vísceras das rochas. Dentro delas, havia uma verdade alada, uma vontade. Uma voz, um mundo vencido.
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