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E xpediente SUMÁRIO

EDITORIAL

bonito por natureza, mas que beleza? 03 E- Ensaio focaliza o olhar de Terry Richardson

No final do ano passado, a socialite Paris Hilton foi visitar a China. A mídia, como tudo o que cerca a maluquete, seguiu seus passos. Era possível ver Paris fingindo sobriedade em meio aos espetinhos de rua e conversando com os locais como uma musa populista. Para coroar sua visita, a moça soltou “a China parece o futuro”. Paris, quem diria, estava certa. O país que recebe este ano os jogos olímpicos a cada dia avança no caminho de se tornar a grande potência mundial.

em relação ao Rio de Janeiro

04 E a gente faz um país - Dossiê analisa a China que está engolindo o mundo

Fotos: SXC.HU/Cortesia

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Segundo sexo - Livro promove panorama de crônicas escritas por mulheres

Diante disso, o Pernambuco decidiu publicar um dossiê sobre como é a vida e a cultura desse país, que vive no meio do caminho entre tradição e modernidade. O ponto de partida é uma crônica da jornalista Ana Addobbati. Pernambucana, ela está vivendo em território chinês desde outubro passado e conta das surpresas que tem vivido com uma forte dose de senso de humor. “A tradicional frase puxa-assunto daqui – ‘Você já comeu hoje?’ - fruto da preocupação exacerbada do chinês com a falta de comida, cujas marcas o comunismo deixou em milhares de famílias que perderam seus parentes na grande fome da era Mao (década de 50), foi substituída. Hoje, quando um chinês quer ser simpático pergunta: “Você já foi às compras na China?”, explica Ana. O dossiê conta ainda com textos de uma equipe que o leitor do Pernambuco já está acostumado a acompanhar, Luiz Carlos Pinto, Thiago Soares, Carolina Leão e Renata do Amaral, que dissecam o país do Dragão. Ainda nessa perspectiva de retratar um povo que parece exótico, o mestrando em comunicação social, Paulo Carvalho, fala da passagem do polêmico fotógrafo Terry Richardson pelo Brasil. Ele é famoso por suas fotos que subvertem o banal, sempre feitas com polaróides. Terry esteve no Brasil em 2007 para fazer um livro de fotos do Rio de Janeiro, para um projeto da marca Diesel. Só que seu olhar em relação ao exotismo carioca guarda armadilhas. Curioso é o passeio que o jornalista Breno Pessoa fez pelos bingos do Recife, descobrindo uma forma de diversão que é mais estranha que sua superfície deixa transparecer. “Maior parte da rara interação humana é entre freqüentadores e funcionários da casa, nada muito além de frases como ‘me vê cinco cartelas’, ‘traz um uísque’ ou ‘um filé com fritas’. Dificilmente se vê alguém conversando, nem mesmo as pessoas que estão dividindo mesas, provavelmente parentes ou amigos”, escreve Breno. Marcella Sampaio fala de um livro reunindo a nova crônica feminina feita em Pernambuco, que foi editado pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe).

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Estranhos prazeres - Um passeio pelos bingos do Recife para colher o inusitado dos seus jogadores

Esta edição do Saber + presta homenagem ao poeta Alberto da Cunha Melo, um dos maiores nomes da literatura brasileira, falecido em outubro passado. A publicação traz uma longa entrevista com a sua viúva, Cláudia Cordeiro, revelando a intimidade do escritor e o depoimento de Isabel de Andrade Moliterno, que fez doutorado sobre o autor na USP. Há ainda uma análise de André Cervinsky sobre a série “Marginais” que é publicada pela Prefeitura do Recife. É isso, boa leitura e até o Carnaval! Schneider Carpeggiani (Editor executivo) carpeggiani@gmail.com

- Ivana Arruda Leite dá sua receita 12 Inéditos bem pessoal para um bom réveillon

EXPEDIENTE GOVERNADOR DO ESTADO Eduardo Campos PRESIDENTE Flávio Chaves

VICE-GOVERNADOR João Lyra Neto

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Ricardo Leitão

DIRETOR DE GESTÃO DIRETOR INDUSTRIAL Bráulio Mendonça Meneses Reginaldo Bezerra Duarte

GESTOR GRÁFICO Júlio Gonçalves

EQUIPE DE PRODUÇÃO Débora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Aluísio Ricardo

Circulação quinzenal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco.

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Distribuído exclusivamente pela Rua Coelho Leite, 530, Fone: (81) 3217.2500 Companhia Editora de Pernam- Santo Amaro FAX: (81) 3222.5126 buco - CEPE CEP 50100-140

EDITOR Raimundo Carrero

EDITOR EXECUTIVO Schneider Carpeggiani

EDIÇÃO DE ARTE Jaíne Cintra

REVISÃO Gilson Oliveira

TRATAMENTO DE IMAGEM Sebastião Corrêa

SECRETÁRIO GRÁFICO Militão Marques

CONSELHO EDITORIAL Flávio Chaves (presidente), Jaci Bezerra, Paulo Bruscky, Nivaldo Araújo, Ivanildo Sampaio, João Monteiro e Lucila Nogueira

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F otografia

O que aconteceu quando o narcisismo do carioca encontrou o fotógrafo Terry Richardson

E bonito por natureza, mas que beleza?

Paulo Carvalho

A

passagem do fotógrafo norte-americano Terry Richardson pelo Brasil (o resultado pode ser visto no catálogo “Rio, Cidade Maravilhosa”, lançado no último mês de dezembro) não foi mais uma ereção do imaginário falocrata ocidental. Sim, o Brasil continua sendo solo sagrado para as perversões do Ocidente, e nunca faltou quem quisesse imputar a cafetinagem da identidade brasileira à nostalgia colonial, “ideologicamente reacionária e esteticamente conservadora”. Tudo bobagem. Se o Brasil é a maravilhosa prostituta mítica, de lascívia disponível e negociável, da qual todos falam e desejam, na geopolítica desse imaginário erótico, ressoa um “leitmotiv” que não funde neocolonialismo e representação num mesmo acorde. Antes mesmo de ser o destino libidinal do mundo civilizado, o Brasil é uma grande nação narcisista, onde o comportamento impessoal não desperta paixão, os sentimentos íntimos não são refreados e a sexualidade emerge de maneira deformada. Esse motivo condutor, o narcisismo, aqui entendido através da leitura do sociólogo norte-americano Richard Sennett, revela-nos uma perturbação de caráter cuja preocupação exagerada consigo impossibilita a distinção entre aquilo que concerne à autogratificação e aquilo que concerne à esfera pública. Numa cultura narcisista como a nossa, tudo se revela questionado pela perspectiva do eu, visão pessoal, autoreferente, que reduz e embota o verdadeiro significado das pessoas e acontecimentos. A desvalorização da dimensão social da sexualidade torna dificultoso identificá-la como atributo exterior ao corpo, tomado como representação absoluta desse estado. O sujeito mostra-se, então, como nos aponta Sennett, em meio à crescente inaptidão cognitiva para criar símbolos, num decréscimo de metáforas que relacionam a corporeidade a outros elementos do mundo, tal como formas fálicas ou movimentos que sugerem a penetração, por exemplo. É nesse contexto que o engajamento na relação física assume a função de “revelar o eu”, traduzindo-se numa nova forma de escravidão pela busca do sujeito nos órgãos sexuais... A sexualidade carente de metáfora além da realidade do corpo, a nudez gratuita, a promiscuidade, o investimento exagerado nas emoções e nos símbolos da aparência física. Obviamente o sentido geral do narcisismo e suas deformações também figuram nas imagens de “Rio, Cidade Maravilhosa”. Em Richardson, o narcisismo emerge de maneira particular, não apenas porque nele o sentido de revelação provocado pela estética amadora é determinante (as cenas fotografadas revelam sempre o privado como confissões ou declarações íntimas), mas também porque o fotógrafo como “documentarista” ou objeto de suas fotografias é o personagem central. É ele que “estava lá” para fotografar ou para ser fotografado (em um dos fotogramas do livro, Richardson aparece beijando na boca a centenária Dercy Gonçalves). Mas o trabalho teria uma importância menor se fosse apenas um registro bizarro da intimidade – o que no Brasil significa dizer, da nossa imagem pública. Enquanto objeto do fotógrafo o país é apenas um instrumento com o qual exerce sua comédia particular da arte, da estética e da cultura, motivo pelo qual não se deveria tratar seu trabalho como reforço da representação eurocêntrica, nem de consonância crítica com leituras brasilianistas, como a de Sérgio Buarque, por exemplo. A retroatividade crítica (ou exaltiva, no caso de Gilberto Freyre) esclarece as raízes desse ethos, mas não o localiza na ampla promiscuidade de todos os valores, cuja cópula e equivalência geral é a verdadeira pornografia da cultura e da arte contemporânea. Caberia, em melhor análise, trabalhar a hipótese de que “somos” o epítome de representações (particulares) do fotógrafo em questão e não seu objeto de compreensão. Considerando que, no caso de um artista ambíguo como Richardson, um livro de fotografias “do” Brasil (encomendado pela marca de roupas Diesel) não trataria de fazer passar a mentira como verdade (portanto, não legitima uma falsa representação da brasilidade). Pelo contrário, transfuncionaliza signos do “mainstream” que cafetinam essa representação, tratando como ficção aquilo que é a verdade (afinal somos o tal paraíso grotesco que queremos negar, cheio de celebridades insignificantes, gente bizarra e uma inigualável aptidão em vulgarizar os símbolos do nosso exotismo tropical). Richardson alcança, com seus jogos, originalidade em relação a fotógrafos como Martin Parr, Nan Goldin e Larry Clark, sendo uma das figuras mais interessantes da fotografia contemporânea. O catálogo tem edição limitada e pode ser adquirido nas lojas Diesel de São Paulo e Rio de Janeiro. yy

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C apa

E a gente

faz umpaís Série de textos analisa os paradoxos da China, que este ano abriga os jogos olímpicos. Para começar, a crônica de uma jornalista pernambucana intrigada com uma cultura que se reinventa para além dos seus estereótipos

Ana Addobbati

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ara começar essa história, é preciso remontar ao dia 16 de outubro de 2007. Fazia planos de como preencher meu dia-a-dia na China. Com a criatividade alimentada pelo filme “Amor à flor da pele”, de Wong Kar Wai, imaginei-me usando o tradicional chipao (o vestido típico chinês) envergado por Maggie Cheung, saindo para comprar noodles nos dias de tédio e praticando taichi-chuan todas as manhãs. Mal o avião aterrissou, vi que esses meus sonhos teriam de ser guardados na gaveta da imaginação ocidental que, pode não perceber, mas tem informações bem superficiais do que é a terra do Grande Timoneiro Mao atualmente. A China mudou. Se para a melhor ou para pior, cada olhinho puxado que tire as suas conclusões. Estou há dois meses na China, na cidade de Wuhan, a quinta maior do país. Não haveria lugar tão perfeito para constatar o que é a vida no Império do Meio de hoje. Apesar de estar num ritmo de desenvolvimento frenético, com fábricas de automóveis suficientes para carregar o ar com uma poeira insuportável, a capital da província de Hubei contém em si o significado do que seria provinciano. Na mesma rua, vê-se a placa da China Mobile, a grande estatal de telefonia celular local, com um homem vendendo gansos vivos, carregando-os pelas patas. Estrangeiros chamam atenção de toda forma. Andar pelas ruas é um teste de ego e de paciência. Para os de fora, mesmo quem tem cabelos castanhos e usa óculos escuros para esconder os olhos arredondados, é preciso parar de tempos em tempos para tirar fotografias com os celulares. Ah! Os celulares. Não existe febre maior entre os moradores e, ao mesmo tempo, que traduza o quanto o chinês está embalado pelo capitalismo e pela globalização. A tradicional frase puxa-assunto daqui – “Você já comeu?” – fruto da preocupação exacerbada do chinês com a falta de comida, cujas marcas o comunismo deixou em milhares de famílias que perderam seus parentes na Grande Fome da era Mao (década de 50), foi substituída. Hoje, quando um chinês quer ser simpático pergunta: “Você já foi às compras na China?”. Essa paixão pelo novo, fez o chinês esquecer certas tradições com a mesma velocidade da taxa de crescimento desta economia. O tai-chi não é mais praticado nas praças, como ocorria há menos de cinco anos. Virou artigo de contemplação acadêmica. Para aprender a tão tradicional arte marcial é necessário uma verdadeira pesquisa. Apenas os mais velhos ainda seguem para as praças, onde realizam a dança comunitária, uma coreografia de passos delicados e coordenados por uma das integrantes do grupo, que fica à frente das demais. Querer usar o chipao de Maggie Cheung é despertar o nojo entre os jovens de 20 anos. “Para que usar isso? Apenas minha avó ainda insiste em usar essa coisa tão antiga. A China mudou e vocês, ocidentais, não querem enxergar”, respondeu-me, asperamente, uma chinesa de 20 anos, cujo nome inglês é Lynn, que acabara de voltar de um intercâmbio à Índia. País cuja tradição de seu povo representou à estudante de economia a incapacidade do governo de preparar o país para os novos tempos do desenvolvimento. Uma terra de Marys, Christinas, Joes – a guerra é alimentada pelo governo. Essa geração que sai das universidades, aos quinze anos, já tinha um nome em inglês, inspirado nos personagens dos filmes de Hollywood. Um jeito de facilitar a vida do investidor estrangeiro, a grande solução para empregar a imensa população chinesa. Falar com um bebê em chinês é quase impossível. As mães de classe média, ao verem um estrangeiro brincando com seus filhos, além de abrirem um sorriso largo por alguém demonstrar carinho para a única e derradeira cria, estimulam os rebentos a falarem “How do you do?”, “What’s your name?”. Se o filho fala direitinho, com certeza, ela não dormirá de alegria. Significa que o filho não terá que aprender inglês às pressas para não perder o emprego como ela. A luta para preservar a tradicional cultura chinesa é inglória e feita por iniciativas individuais. Grupos começam a surgir em Beijing para criticar essa ocidentalização demasiada. A última iniciativa desses heróis da resistência foi um protesto para expulsar o Starbucks da Cidade Proibida. Viridian, uma estudante de Relações Internacionais, 23 anos, sabe que é motivo de chacota entre as garotas descoladas da universidade. Ela e mais cinco amigas freqüentam os templos budistas e cantam na ópera da escola. Ela foi a minha salvação. Desde que cheguei, tentava assistir à tradicional Ópera de Beijing, com suas máscaras e pinturas únicas. Antes de encontrá-la, escutei a pergunta quase que repetida com as mesmas palavras. “Para que sair de casa para ouvir o iiiiiii das cantoras?”. Outra força é o medo dos erros do Ocidente. Os pais temem essa ocidentalização toda. Ir às boates (toda semana há inauguração de uma nos moldes americanos) é motivo de castigo. Por isso, a maioria dos jovens até os 25 anos freqüenta os karaokês. No entanto, os olhinhos ainda brilham quando sabem que eu freqüento os bares como os que aparecem nos episódios do seriado americano de “Sex in the city”, baixados da Internet, através de dribles ousados aos bloqueios do governo à web. Apesar de toda essa sede ocidental, os chineses alimentam a tradição da família, dos casamentos fartos, das mesas com incontáveis pratos, da comida saudável e mantêm o medo da gordura “trans” e da coca-cola que deixam os ocidentais imensos e da vida cheia de liberdade e de drogas que destroem as famílias do lado de lá. Apesar das cenas de Shanghai e Beijing que o governo envia para as Tvs de todo o mundo, não se iludam. O ganso pendurado na frente de lojas de celular deverá existir por algum tempo. Ainda bem. Comer de pauzinho, tomar chá e ir ao banheiro típico em que a privada é um buraco no chão continuarão sendo uma aventura única e curiosa para quem se chega por essas bandas. yy

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Luiz Carlos Pinto

Deus não é só brasileiro, como dizem!

É

bem possível que Deus continue a ser brasileiro. Mas a tese de que o Brasil é o país do futuro foi adaptada – ou adiada, o que dá no mesmo. A impressão que economistas, historiadores, cientistas políticos e sociólogos têm é que o futuro do mundo depende cada vez mais do que acontecerá com a política e a economia da China. Entretanto, engana-se quem imagina que a crescente prosperidade daquele país será acompanhada de democracia e pluralidade política. É difícil saber exatamente o que acontecerá num cenário em que a China se estabelece como maior potência econômica. Uma tentativa nesse sentido foi feita por James Mann no livro “The China fantasy – How our leaders explain away chinese repression”. O livro, publicado nos Estados Unidos em 2007, aponta para a consolidação de uma China cada vez mais próspera e estável, porém autoritária. A tese de Mann desconstrói as expectativas mais correntes: a de que a democracia chinesa é um “bem” que será conquistado graças a seu desenvolvimento econômico e a de que a insatisfação com as limitações impostas pelo governo resultaria em desagregação política. Que nada. Mann sustenta sua descrença num futuro democrático da China argumentando que o país não tem a mesma cultura política do Sudeste Asiático, não se curva às pressões dos Estados Unidos e é muito maior que a Coréia do Sul e Taiwan. Esses dois países são (ou seriam) os exemplos de como a China poderá (ou poderia) “progredir” em direção à democracia. Se Mann estiver realmente certo, qual será o impacto disso para a região? E para a economia global? E pro acúmulo de lixo no mundo (o país asiático já é o maior poluidor)? A tendência, segundo o próprio Mann, é que a China apóie outros regimes autoritários e se sinta cada vez mais à vontade para isso. As perguntas aqui podem mudar: qual será o impacto desse encadeamento histórico para a própria idéia de democracia (ocidental)? Estará em formação uma nova polaridade política? Qual o sentido da idéia de prosperidade e riqueza que a China põe em questão? São perguntas difíceis e há gente boa por aí tentando respondê-las. Tantas, que o ex-correspondente do Financial Times, James Kynge diz, que existem palpiteiros profissionais sobre o futuro do país. Ele mesmo deu sua contribuição. Escreveu “A China sacode o mundo”, publicado no Brasil ano passado. Para Kynge, somente em 2040 o Produto Interno Bruto produzido pela China se aproximará da atual riqueza produzida pelos Estados Unidos. Quando isso acontecer, a população chinesa será apenas um sexto tão rica quanto a população americana. As gerações que estão re-erguendo a China e que nasceram nos anos de 1960, 1970 e 1980 (as três décadas da explosão populacional estimulada por Mao Tsé Tung) chegarão a 2040 em torno dos sessenta anos. A previsão de Kynge, então, é que a China poderá ficar velha antes de ficar rica. Aliás, hoje a renda per capta na China se equipara à de países pobres: US$ 1 mil. Até lá, o país precisará criar vinte e quatro milhões de empregos. Anualmente, claro. Muitas das análises ocidentais sobre a China comparam o país a um dragão. Os economistas chineses parecem usar uma metáfora mais apropriada: o país é como um elefante andando numa bicicleta. Se ele cai, a terra treme. Isso porque esse elefante precisa lidar com uma crise real de empregos que influencia, de forma realmente inevitável, o crescimento. Uma eventual crise de crescimento abalaria internamente o mercado de empregos e geraria uma onda de choques que dá veracidade à metáfora do elefante desequilibrado.

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De uma forma ou de outra, o crescimento econômico na China é sustentável e tem condições de manter as taxas similares nos próximo anos. A razão é simples: as principais fontes de crescimento, que encantam e assustam os mercados, ainda estão presentes. De modo que a China parece se converter no cenário que materializa o planos de Henry Ford e os fantasmas de Franz Kafka; que opõe elementos da Inglaterra da revolução industrial do século XIX à China da revolução cultural do século XX; que remete a “Blade Runner” de Ridley Scott e ao “Admirável Mundo Novo”, de Huxley. As mudanças realizadas na política econômica desde a década de 1970 fomentaram um crescimento em escala global baseado em inflação baixa, estabilidade cambial, investimento em capital fixo e humano, aumento do grau de abertura comercial e financeira. É possível dizer que o eixo dessa prosperidade é a estabilidade cambial (mantida artificialmente), um alto fluxo de investimento direto estrangeiro (chegou a US$ 53 bi em 2003) e o baixo custo de mão de obra (dada a oferta e o aumento da mecanização produtiva). Aliás, um parêntese necessário. Não é correto afirmar que a China é apenas e tão somente um celeiro de mão-de-obra escrava. “Seu imenso manancial de mão-de-obra industrial de baixo custo faz inveja a todo o mundo desenvolvido, e, no entanto, a China não é apenas uma gigantesca instituição exploradora de mão-de-obra. Universidades no continente produzem mais gente formada a cada ano que os Estados Unidos”, escreve Kynge. Os países que concorrem economicamente com a China – em especial os Estados Unidos – pressionam por mais clareza nas contas públicas, por uma flexibilização do câmbio e pela redução do Estado na economia nacional. Mais que isso, o comprometimento americano em estimular a democracia em todos os cantos do globo deverá sim se chocar com a histórica adoção da China ao princípio de não interferência, inclusive em relação às suas políticas sociais, policiais e econômicas. A tendência é a China manter sua política econômica apesar das pressões dos Estados Unidos. É a formação de uma nova polaridade na política internacional? É difícil dizer. Sobretudo num mundo em que muitas e importantes prioridades nacionais são obliteradas pelos objetivos das indústrias transnacionais. É possível dizer, entretanto, que a inédita rede de parcerias e alianças para fornecimento de petróleo, metais e minerais para custar o crescimento chinês deverá ser reforçada nos próximos anos para assegurar um futuro continuamente próspero ao elefante, perdão, ao dragão. Também é possível dizer que a China precisará resolver a ambivalência que ainda demonstra em sua política internacional. Assumirá sua posição nos principais fóruns internacionais ou se apegará ao posto de líder dos não-alinhados? Continuará desempenhando papel mais ativo na ONU com certeza... Mas como equacionar esse papel com as obstruções de envio de tropas a localidades em conflito, como em Darfur, no Sudão? Ou às vistorias ao programa nuclear iraniano? Para finalizar um texto que tem mais perguntas que respostas: a seleção nacional de futebol (a chinesa) prometeu se classificar para a Copa da África do Sul de 2010. Estariam os chineses certos de que Deus é chinês (ou que mudou de time, diria Nelson Rodrigues), ou o incentivo prometido pelo governo foi suficiente para garantir a classificação? Mas isso fica para outro dia. yy

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C apa Carolina Leão

Um país onde os homens de negócio precisam consultar o “I Ching”

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ansou do crescimento da China? Pois vai cansar ainda mais em 2008. Hordas de homens e mulheres andando sob os arranha-céus de Hong Kong; as ruas de Pequim repletas de ciclistas desviando dos seus antagonistas, os automóveis; adolescentes com seus Ipods falsificados e sonhos consumistas na China Continental; a réplica de um dragão gigante manuseado por agricultores na China Imperial. Imagens que provavelmente vão acompanhar a cobertura midiática no ano de um dos eventos mais grandiosos da história. A curiosidade que desperta a cultura chinesa será ainda mais explorada nesse Ano do Rato, marcado pela abundância e prosperidade. O país mais populoso do mundo fascina pelos seus paradoxos. Sem paralelo na história universal, a transformação da China numa superpotência econômica fomenta os estereótipos que separam o Oriente do Ocidente em lógicas culturais diferentes. Naturalmente, as civilizações que surgiram lá ou cá carregam consigo singularidades pelas quais são reconhecidas e representadas em sua identidade. Mas não é menos verdade que o olhar lançado pela mídia oficial para a experiência da Nova China reflete os vícios dos discursos dominantes sobre o Ocidente, em relação aos seus rivais. Há sempre a exploração do bizarro, do excêntrico, do esotérico. Entram nessa lista a comilança de carne de cachorro, ainda em prática no contemporâneo, e a possibilidade de sexo com mulheres agonizantes, na Segunda Guerra Mundial. No entanto, o esforço de mostrar o perfil de país civilizado esbarra no paradigma do que é civilização e progresso no continente ocidental. E o que mais intriga os ocidentais, porque escapa à sua lógica de descontinuidades, é como um país oriental se transformou num ícone capitalista, reproduzindo tão bem os sistemas de relações econômicas e sociais da modernidade. Ao contrário de vizinhos orientais como o Paquistão e a Índia, a China não vive em ideologia e metafísica a crise de seus paradoxos culturais. Se a literatura e o cinema desses dois países se farta de personagens moralmente culpados pelas suas possíveis traições culturais, a China mergulha na fartura dos gadgets high-tech que acompanham o cotidiano de milhares de jovens no país. Jovens que deixaram de lado os manifestos políticos e vivem freneticamente a cultura de consumo. Pelo menos, é isso que a indústria cultural nos mostra. Se existem manifestações artísticas cujo conteúdo ideológico marca sua estética, não sabemos. O filtro do Ocidente é muito claro: tecnologia e hedonismo. Enquanto observamos como espectadores a matança humana

em nome de fundamentalismos religiosos no Oriente Médio – apoiados na decadência do islã, contaminada pela devassidão do ocidente –, a China parece viver sua modernização sem muito conflito. Peritos no cálculo, os chineses não deixam de lado as superstições e tradições milenares. Os arranha-céus de Hong Kong contam com especialistas de Feng Shui para melhor programar o espaço no qual serão construídos, de modo a ampliar seus lucros. Não é raro ver nos programas especiais sobre a China homens de negócios consultando o “I Ching”. “O traço fundamental da cultura chinesa é a visão pragmática do mundo, levando a uma ética que acentua os valores necessários para manter as formas eqüitativas de coexistência social ordenada, com base em fortes laços familiares e um profundo respeito pelos ancestrais, pelo pater familias no nível micro e pelo líder supremo da nação no nível macro, conjunto manifestado por meio de uma sinalização ritual”, conceitua o historiador Hélio Jaguaribe, no livro “Um estudo crítico de história”. Esse pragmatismo está presente em doutrinas como o Confucionismo e o Taoísmo, que estiveram intimamente ligadas às diversas dinastias chinesas e às suas ações militares. Ambas as filosofias, aliadas à penetração do Budismo hindu no país, são marcadas pela aplicação de normas de conduta precedidas por uma reflexão e observação das ações e cujo objetivo é maximizar as possibilidades do indivíduo viver em felicidade, ou, ao menos, em paz com sua consciência e seus semelhantes. A astrologia e consulta de oráculos como “I Ching” estão a serviço desse bem-estar. Tradicionais e funcionais, eles dão continuidade ao ethos chinês que se expressa na permanência e estabilidade de conceitos e exercícios milenares. A unidade cultural da China e, ao mesmo tempo, a sua franca adaptabilidade à tecnologia é uma das características mais estudadas dessa cultura. A predominância de uma maioria étnica, os Han, que representa mais de 90% da população; a permanência por mais de trinta séculos de uma mesma língua e escrita oficiais e o próprio isolamento social da região são alguns dos fatores sociais que contribuíram para essa “suposta” unidade. Originária do período neolítico, e uma das poucas civilizações que sobreviveram às passagens dos milênios, a cultura chinesa emergiu no século XX como uma “variedade” intrigante da civilização ocidental tardia. A tarefa da imprensa, sobretudo nesse ano, é dar conta dessa complexa relação de representação e estereotipia cultural. yy

Moramos no terceiro mundo a partir do sol. Número três. Ninguém nos diz o que fazer. Gostaria que as estrelas não nos descrevessem uns aos outros, gostaria que nós mesmos o fizéssemos (China, Bob Perelman)

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Num território de olho no que o futuro reserva, uma arte fascinada pela utopia

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ára, mãe! Tudo bem, eu me caso. – Com que tipo de homem? – Que tipo de homem se casaria comigo? Você sempre fala para eu me casar com um homem rico... – Se casar com um homem rico, você será somente uma concubina. – Que eu seja, então, uma concubina. Não é esse o destino de toda mulher? É com este diálogo e com um close no rosto da atriz Gong Li, que chora copiosamente, que o diretor Zhang Yimou inicia o filme “Lanternas vermelhas”, lançado em 1991 e um dos marcos da abertura do contemporâneo cinema chinês nos festivais mundo afora. Ao olhar atentamente para o rosto de Gong Li, redondo e pálido, uma tremenda sinceridade parece emanar de seus olhos marejados. E, vendo sua personagem Songlian, a menina pobre que vai ser concubina de um senhor no interior da China, eu vejo o destino de um país. Um país que chora. Dito assim, tão diretamente, tudo soa assustadoramente fatalista. Mas, a China, este lugar distante e exótico, capitaneou um dos mais perversos dirigentes políticos que o mundo já conheceu: Mao Tsé-Tung. E, assim, tudo o que se produz, de arte e cultura, na China pós-Mao, parece uma resposta ao ditador. Por isso, “Lanternas vermelhas”, em sua simples trama sobre uma menina que, sem escolhas, tem que se submeter a viver em disputa com outras três mulheres pela “atenção” do senhor, aparece como uma obra sobre o destino e a ausência de escolhas. O seguir em frente cego, às escuras. “Lanternas vermelhas” desvelou para o mundo o cinema da chamada “Quinta geração de cineastas chineses”, de diretores como Zhang Yimou (“Lanternas vermelhas”, “Herói”, “O clã das adagas voadoras”), Chen Kaige (“Adeus minha concubina”) e Tian Zhuangzhuang (“Primavera numa aldeia”). Como na história marcada pelas dinastias e pelo poder familiar e agrário, o modelo de cultura da China pós-Mao Tsé-Tung tinha como alicerce o ideal da Revolução Cultural, instaurada pelo político e pela sua esposa, Jiang Qing, em nome do comunismo puro, entre os anos de 1966 a 1976. Dessa forma, cineastas se aglomeram em gerações, atores fazem parte de coletivos e assim por diante. Pelos ditames da Revolução Cultural, toda manifestação artística da China deve ressaltar ideais do comunismo, do coletivo, do passado e da tradição. O grande epicentro estético de tudo que foi produzido na dramaturgia chinesa contemporânea parece ligeiramente refém dos argumentos da tradicional ópera chinesa (wuxia). Elementos trágicos e cômicos, misturados com canto, dança, narrações poéticas e acrobacias emolduram dramatizações de feitos históricos e lendas populares. A Ópera Nacional da China,

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Thiago Soares

com sede em Pequim, é o principal centro de conservação deste “modelo ideal” de entretenimento. No cinema, obras recentes como “Herói”, “O clã das adagas voadoras” e “O tigre e o dragão” são herdeiros desta matriz estética que flerta incondicionalmente com a tradição, com a família e a propriedade chinesa. Falam de um heroísmo utópico e de um mundo de faz-de-conta. É interessante notarmos como “Lanternas vermelhas”, embora sendo uma obra carpintada por Zhang Yimou – o mesmo de “Herói”, por exemplo – traz um inconformismo e um conteúdo subversivo “por baixo” de um uma aparente história que evoca as tradições chinesas. Basta afirmar que o cineasta Zhang Yimou trabalhou dez anos em lavouras e moinhos chineses porque era filho de um ex-membro do Kuomintang, o partido nacionalista arqui-rival dos comunistas. Foi Zhang que conseguiu, junto a Chen Kaige, reabrir a Beijing Film Academy (Academia de Cinema de Pequim), fechada por Mao Tsé-Tung por deixar de produzir os “filmes vermelhos”, obras de um cinema oficial – que, serve como clara propaganda política e tem um valor artístico medíocre. Sintomático que, na reabertura da Academia de Cinema de Pequim, Zhang Yimou tenha feito uma obra como “Lanternas vermelhas”, ambientada num cenário da China de 1920, trazendo um verniz da tradição e da propridade chinesas, só que, colocando como personagem principal uma mulher inconformada com a sua situação. Ao relatar as agruras da personagem Songlian – ela não consegue driblar a “burocracia” do lugar, há uma constante disputa para ver “quem vai receber” o senhor -, Zhang Yimou fala sobre a China e a sombra de Mao Tsé-Tung. O tom ritualístico de “eguer as lanternas vermelhas”, indicando o lugar em que o senhor iria manter relações sexuais com a sua “esposa”, dá indicativos de quão invasivo é um regime totalitário: um manda, outros obedecem. Mesmo que obedecer seja ser “deflorado”. Num modelo em que se é mandado, não ter escolhas é a solução para as massas. E, neste sentido, a personagem Songlian ousa não querer e questiona: o marido, a vida daquele jeito, o destino que lhe é reservado. Ao assistir a “Lanternas vermelhas”, só me fica a imagem do rosto enorme de Gong Li chorando e dizendo: “Não é esse o destino de toda mulher?”. Como numa imagem em movimento em que se dá uma pausa, o rosto e as lágrimas de Gong Li começam a se fundir com aquela imagem de um homem, sozinho, parando um tanque de guerra, no Massacre da Praça da Paz Celestial. Congeladas, as duas imagens são belas porque trazem um silêncio barulhento ou um barulho mudo de um povo que não é senhor de seu destino. Do contrasenso que é ter mais de um bilhão de pessoas e tão poucas vozes que gritam. Mudo, o rosto de Gong Li parece gritar e dizer: eu não quero que seja assim. yy

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C apa Você tem mesmo certeza de que é um grande admirador da cozinha chinesa? Renata do Amaral

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que dizer de um país em que a saudação mais comum, em vez de “Tudo bem?”, é “Já comeu?” A gastronomia chinesa é um rico território a ser desvendado pelo Ocidente, pois os pratos que aportam por aqui não passam de uma pálida reinterpretação de uma cozinha com mais de três mil anos de história. Difícil fazer tamanha complexidade caber nas caixinhas de papelão tão comuns nos serviços de entrega em domicílio à moda oriental. Como os sushis japoneses, que ganharam versões fritas e com frutas do lado de cá do mundo, a cozinha chinesa também sofreu adaptações locais. É o caso do chop-suey, mistura de carne, legumes e molho de soja criada na Califórnia. Isso mesmo: uma das mais conhecidas receitas “chinesas” veio dos Estados Unidos. No Brasil, são comuns os rolinhos Romeu e Julieta, com goiabada e queijo no lugar dos tradicionais legumes e carne de porco. Pouco afeitos a sobremesas, é provável que os chineses torcessem o nariz para a invenção. Ao lado dessas novidades, aparecem receitas menos modificadas, como o frango xadrez (com amendoim e molho de soja), o lombo de porco com molho agridoce, o gyoza (pastel de massa fina recheada com lombo e temperado com gengibre), o yakissoba (macarrão frito com legumes e carnes), o yakimeshi (arroz com ovo, presunto e cebolinha), o bifum (macarrão de arroz) e as frutas carameladas (banhadas em água gelada para solidificação). Para encerrar a refeição, o indefectível biscoito chinês da sorte lembra o quanto comida e superstição estão relacionadas por aquelas bandas. Nada contra as adaptações. O problema é que o menu repetitivo dos restaurantes brasileiros acabam deixando de lado pratos que vão muito além do yakissoba. A falta de ingredientes orientais é outro fator que contribui para a mesmice. Em que outra cozinha é possível encontrar uma receita como a do ovo de mil anos, em que um ovo de pata com casca é colocado em uma mistura de limão, sal, cinzas e temperos e enterrado por cerca de cem dias? A exótica iguaria fica com clara em forma de gelatina e gema preta. Barbatanas de tubarão e ninhos de andorinha também constam do menu chinês. Outra preparação típica é o pato laqueado, servido em três atos: primeiro, a pele crocante vem acompanhada por tortas de farinha de trigo, molho doce de feijão e cebolinha; depois, chega a carne macia e avermelhada da ave; por último, é servida uma sopa de ossos com acelga e melão. Com sorte, dá para encontrar a famosa receita no bairro paulistano da Liberdade, em pequenos estabelecimentos cujos donos raramente falam português. Nem tudo é tão exótico, claro, e esses pratos ficam reservados para ocasiões especiais. Rica em peculiaridades regionais, a China apresenta algumas características que permeiam todo o seu extenso território. Uma delas é o uso intensivo da soja como fonte protéica, no lugar de leite e laticínios. Para tal escolha, há uma explicação biológica e outra cultural: boa parte da população não consegue digerir a lactose e, de quebra, considera o leite um sabor “bárbaro”, pois era consumido por invasores de outras épocas. Outro ponto a considerar é que a escassez de lenha levou ao desenvolvimento de técnicas para cozimento rápido. A panela wok, de fundo curvo, é ideal para concentrar calor e preparar alimentos em poucos minutos. Nesse caso, os óleos vegetais alcançam temperatura bem mais alta que a manteiga sem queimar. Os ingredientes são cortados em pedaços pequenos pelo mes-

mo motivo e vão todos juntos ao fogo, mas podem adquirir texturas diversas dependendo do efeito desejado pelo cozinheiro. A vaporeira de bambu, que cozinha vários pratos ao mesmo tempo, é outro utensílio bastante utilizado. À regra prática, une-se mais uma vez a regra social: é considerado má educação servir pedaços grandes e dar aos convidados o trabalho de cortar a comida. Não há faca à mesa, apenas hashis. O arroz é usado como o pão na cozinha italiana: servido numa cumbuca, acompanha todas as refeições. Símbolo de vida e fertilidade, é colocado aos pés do morto para ele se nutrir na viagem para o além. No Ano Novo, é posto no altar como oferenda para pedir proteção aos antepassados. Apenas em banquetes requintados ele some, para frisar a variedade de outras opções à mesa. Molho de ostra e de soja, óleo de amendoim, gengibre e semente de lótus são condimentos muito usados. O macarrão, de origem atribuída àquele país, geralmente é feito com farinha de feijão ou arroz. Entre os produtos animais, o cordeiro é sinal da herança muçulmana e a carne bovina raramente aparece, uma vez que o rebanho é essencial ao arado na agricultura. Alguns peixes secos de gosto forte surgem como temperos. A bebida nacional é o chá verde ou aromatizado, tomado antes e depois da refeição. Alguns de seus nomes são quase poéticos, como é o caso das variedades “poço do dragão” ou “primavera do caracol verde”. O cuidado com o preparo é tanto que as moças envolvidas na colheita não podiam comer alho, cebola ou especiarias fortes para não contaminar o gosto das folhas de chá. Raramente tomam-se bebidas alcoólicas junto com a comida. Em um país com mais de um bilhão de habitantes e dimensões continentais, as diferenças regionais são claras. A capital Pequim é o domínio da cozinha da corte imperial e palco de cruzamentos culturais. O pato laqueado nasceu ali. Batata-doce, couve e nabo são acompanhamentos comuns. Sichuan, no centro, demonstra forte influência do vegetarianismo indiano. A terra fertilizada pelas inundações do Rio Azul ajuda as plantações de vegetais como o broto de bambu, elevado ao status de iguaria. O tofu (chamado de “doufu” por lá) e a pimenta de Sichuan são outras presenças marcantes. Yunnan, na fronteira com a Tailândia, sofre influência do país vizinho e abusa de molhos agridoces e pimenta vermelha. Cantão, ao sul, se destaca pelos peixes e frutos do mar e pelas colheitas de coco e café. Por fim, Xangai, na costa leste, é conhecida por seu arroz frito e se diferencia pelo cozimento lento das preparações. A história de que se come até cachorro na China não é lenda. O país que concentra um quinto da população mundial possui apenas 10% de área cultivável e se apega à política de desperdício zero para evitar a fome. Principalmente em Cantão, são servidos animais como cachorro, gato, cobra e macaco. A manutenção da saúde é prioridade na hora de montar o prato. É onde entram os pares complementares do yin e yang, para assegurar uma alimentação harmônica e equilibrada. Enquanto o yin representa suavidade, frio, escuridão e feminilidade, o yang remonta a força, calor, claridade e masculinidade. Broto de feijão, cenoura, pato e tofu são yin. Broto de bambu, frango, ovos e gengibre são yang. Se para os ocidentais essa definição é complicada de entender, para os chineses ela faz parte do cotidiano e segue o ciclo das estações. Afinal, quem vai contradizer filosofias que datam de milhares de anos atrás? yy

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segundo sexo Livro, lançado pela Cepe, reúne panorama da produção de crônicas feita por mulheres no Estado Marcella Sampaio

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untas, cinqüenta vozes femininas revelam vislumbres do cotidiano, histórias que remetem às memórias individuais de cada uma e, ao mesmo tempo, formam um conjunto representativo da produção literária pernambucana. Lançado no último dia 17 de dezembro, o livro “Vozes – a crônica feminina contemporânea de Pernambuco” reúne textos de autoras conhecidas e outras nem tanto, quase todos de temática intimista, subjetiva, pessoal. Laura Areias, uma das organizadoras da coletânea, explica que o livro é o terceiro de uma trilogia idealizada por ela. “Lançamos primeiro uma antologia poética, batizada de ‘Retratos’. Em seguida, uma coletânea de contos, chamada ‘Olhares’, ambas com o apoio do Funcultura. Agora, vieram as crônicas, cuja publicação foi viabilizada pela Companhia Editora de Pernambuco. Todos os livros contam apenas com autoras mulheres”, diz, acrescentando: “Pernambuco tem uma capacidade literária muito expressiva, com muitos bons autores ainda desconhecidos. Esse livro tem o propósito de valorizar a mulher pernambucana enquanto escritora”. Autoras consagradas como Fátima Quintas e Luzilá Gonçalves dividem o espaço da obra com escritoras menos familiares ao grande público, e compõem uma teia interessante e variada de estilos. Classificado por alguns estudiosos como um gênero que transita entre o literário e o jornalístico, a crônica tanto pode se ater a temas oriundos de passagens cotidianas como tratar de sentimentos individuais ou mesmo passear pela ficção. Grande parte dos textos que estão reunidos no livro “Vozes” têm um tom memorialista, resgatam histórias representativas de um tempo passado, embora não muito distante. Alguns falam sobre sensações, sentimentos, criam metáforas da condição humana. Se é verdade que a discussão sobre a existência de uma literatura de gênero está longe de terminar, é verdade também que a reflexão das mulheres sobre a vida é muito particular, como fica claro ao observarmos as crônicas escolhidas para compor a obra em questão. Os textos, de um modo geral, não traem quem os escreve. Desde os mais objetivos e crus aos mais suaves e intimistas, é interessante notar que há neles um olhar que é feminino poetizando o banal, há um pensar sobre as coisas que é típico da mente das mulheres. Para ficar mais claro, talvez uma metáfora televisiva seja útil: imagine o tratamento dado a um tema qualquer proposto pelos rapazes do “Manhattan connection”. Agora pense no mesmo tema comentado pelas moças do “Saia justa”. É mais ou menos por aí. A organizadora Laura Areias acredita que este tipo de publicação contribui não apenas para valorizar quem participa dela, mas também para estimular outras pessoas a se aventurar como autoras de literatura. “Pernambuco é muito avançado nas atitudes, muito rico em produção cultural, mais até do que muitos estados do Sul e do Sudeste. Acho que publicar é o caminho para estimular novos artistas a surgirem e aparecerem para o público”. No prefácio do livro, a escritora e jornalista Lourdes Sarmento afirma que “o valor dessa trilogia, o tempo se encarregará de situá-la entre os melhores trabalhos do gênero”. Concordando com a opinião de Laura, ela diz ainda que “o trabalho de fazer antologias é algo sério, de necessidade fundamental para o registro de novos valores que podem despertar a curiosidade do leitor e, conseqüentemente, ser procurados nas livrarias para um conhecimento mais profundo de seus livros”. Segundo a organizadora, que dividiu o trabalho de reunir os textos e lançá-los com Elizabeth Siqueira, o livro está à venda na própria CEPE, por quarenta reais. Editada em capa dura e ilustrada por Pedro Frederico, a obra possui duzentas e oitenta e sete páginas. Todas as crônicas vêm acompanhadas por uma breve descrição da autora, e muitas delas são profissionais de áreas não necessariamente ligadas às letras, mas que vivem a literatura em seu dia-a-dia. Para quem quer conhecer um amplo panorama da produção literária feita por mulheres em nosso Estado, vale entrar em contato com estas autoras e descobrir o que suas vozes têm a dizer. yy

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CAomportamento

Estranhos prazeres Um passeio atento pelos bingos do Recife, que escondem discretas obsessões ão importa o dia, a casa está sempre cheia. Estacionamento lotado, veículos ocupando as calçadas próximas e manobristas se desdobrando para dar conta de todos os carros que chegam. O movimento é de fazer inveja a qualquer casa noturna da cidade. O estabelecimento, localizado na avenida Conselheiro Aguiar, Boa Viagem, funciona vinte e quatro horas por dia, sempre com uma boa rotatividade de clientes. Mas é a partir das dezessete horas que o local começa mesmo a encher. Às vinte e uma horas, o bingo está lotado. Do lado de fora, a impressão é de que algo especial deve acontecer lá dentro. Afinal, não é qualquer coisa que faria tanta gente estar fora de casa numa terça-feira, já tarde da noite. E dificilmente alguém sai do local antes da meianoite, quando é oferecido o grande prêmio do dia, no valor de, no mínimo, dois mil reais. Sim, o dinheiro parece um bom motivo, mas observando os modelos dos carros estacionados perto da casa de jogos, imagina-se que os prêmios máximos são irrisórios para muitos. Com dois mil reais não é possível nem comprar o jogo de rodas de alguns dos automóveis dos freqüentadores. Brincar de vencer as probabilidades do jogo pode ser algo interessante, inegavelmente, ainda mais com a possibilidade de ganhar dinheiro. Uma combinação que não raras vezes desperta compulsão para jogar mais e mais. O estranho é saber que existem pessoas jogando com fins recreativos, sem qualquer vício, apenas por prazer. Dentro de uma casa de bingo se percebe que diversão é um conceito muito relativo. Para quem acha que a quantidade de gente é diretamente proporcional ao do grau animação que um ambiente pode oferecer, à primeira vista, um bingo pode parecer uma boa opção. Quer ir para um lugar com garantia de encontrar muitas pessoas? Vá até uma casa de jogos. Mas não espere que alguém vá prestar atenção em você. Todos estão muito ocupados marcando os números nas cartelas ou jogando em máquinas de videopôquer ou bingo eletrônico. Maior parte da rara interação humana é entre freqüentadores e funcionários da casa, nada muito além de frases como “me vê cinco cartelas”, “traz um uísque” ou “um filé com fritas”. Dificilmente se vê alguém conversando, nem mesmo as pessoas que estão dividindo mesas, provavelmente parentes ou amigos. A casa tem dois ambientes. Logo na entrada, funciona uma pouco iluminada sala de jogos eletrônicos, com cerca de sessenta máquinas, e no andar de cima fica o salão de bingo.

No térreo, tudo é muito solitário, como uma velhinha que joga vídeo bingo no canto mais isolado do espaço. Usando uma camisa de seda prateada, saia vermelha e maquiagem forte, ela mal reage às tentativas de conversa. Apenas aposta mais e mais dinheiro, soltando um outro risinho de satisfação ao ganhar uma partida no jogo. Em pouco menos de vinte minutos ela deposita na máquina oito cédulas de cinco reais. A ação acontece de fato no primeiro andar, um tanto caótico, com atendentes correndo para vender cartões de apostas, gente tensa marcando os números e uma ou outra voz gritando “bingo”. No meio de tudo isso, uma cena quase libidinosa: uma bonita moça loura segurando um microfone bem perto da boca anuncia os números numa voz com um quê sexy, como as atendentes de telemarketing. Muito provavelmente atiçaria a imaginação, se alguém estivesse olhando para outro lugar que não as cartelas. Acabada a partida, que dura entre três e cinco minutos, começa o correcorre dos atendentes vendendo as cartelas e os apostadores desembolsando dinheiro para comprar os papéis. Nesse intervalo, o telão deixa de mostrar os números sorteados e passa a exibir um show do Kid Abelha. O cenário dantesco ganha ares ainda mais infernais graças a fumaça de cigarro que paira no ar, tornando o ambiente cinzento e abafado. E quase ninguém fuma propriamente. O intervalo entre as jogadas é suficiente para poucas tragadas. Os cigarros ficam queimando solitários nos cinzeiros. Com pouca matemática é possível explicar o quão rentável um bingo pode ser. Numa jogada valendo cento e cinqüenta reais chegam a ser vendidas trezentos e cinqüenta ou quatrocentas cartelas de aposta, cada uma por um real. Isso num ambiente com cerca de oitenta pessoas. Já no grande prêmio do dia, dois mil reais, a casa consegue vender oitocentas e cinqüenta e oito cartelas, cada uma a dois reais. Não chega a ser suficiente para cobrir o montante oferecido, mas a casa garante uma boa margem de lucro com as apostas menores, realizadas aos montes antes do entardecer da noite. Entregue o grande prêmio do dia, o salão começa a esvaziar. Não se distingue bem os ganhadores dos perdedores, não há arroubos de frustração nem de alegria. Parte ruma para o andar de baixo, talvez tentando recuperar nas máquinas o que já se perdeu no bingo ou simplesmente para prolongar a diversão. Estranha diversão, aliás. yy

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I néditos

Ivana Arruda Leite Elogio à solidão

Houve um tempo em que eu sofria pra burro. Sofria por amor, sofria por falta de dinheiro, sofria porque tinha namorado, sofria porque não tinha namorado, sofria porque não tinha filhos, sofria porque tinha. Eu era uma ilha cercada por sofrimento de todos os lados. Minha vida era uma desgraceira só. Passei quinze anos deitada num divã pra aprender a ser feliz em meio à desgraceira. Funcionou. Eu me tornei uma pessoa alegrinha e esperançosa, mas a desgraceira continuava lá. Pelo menos era isso que eu pensava. Esse réveillon eu passei sozinha na minha casa, pelo terceiro ano seguido. De pijaminha, vendo televisão, jogando no computador, ouvindo minhas músicas, comendo minhas comidinhas, bebendo uma (uma mesmo) cervejinha, comendo batata frita de pacote sabor cebola, que eu amo. Enfim, o réveillon dos meus sonhos. E o engraçado é que eu demorei quase sessenta anos pra ter coragem de pedir: pessoas, sumam da minha frente, quero passar o réveillon sozinha. I want to be alone, como disse a diva hollywoodiana. Desde que me entendo por gente eu adoro ficar sozinha. No meu aniversário, ou no Natal, se tivesse coragem de pedir o presente que mais queria, eu diria: ficar sozinha. Parece que só quando eu estava só eu era verdadeiramente eu, verdadeiramente feliz. O problema é que isso nunca acontecia. Onde já se viu deixar uma criança sozinha? Onde já se viu deixar uma adolescente sozinha? Onde já se viu deixar minha mulher sozinha? Onde já se viu deixar mamãe sozinha? Onde já se viu deixar minha filha sozinha? Onde já se viu deixar vovó sozinha?

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É pedir muito? Hoje eu tenho certeza de que, excluindo o sofrimento físico, 99% do meu sofrer tinha essa origem: eu não conseguia ficar sozinha. Casei pra ficar sozinha, separei pra ficar sozinha, e por aí vai... Até que eu comecei a lançar mão de recursos pouco ortodoxos pra conseguir meus objetivos, tais como inventar crises homéricas. Funcionava. Ao me verem na lama, em andrajos, sofrendo feito um cão sarnento, as pessoas fugiam apavoradas. Bingo! Eu estava sozinha e poderia passar o réveillon na minha casa, de pijama, vendo televisão, jogando no computador, bebendo cerveja e comendo batata frita de pacote. Sabor cebola. O problema é que eu fingia tão completamente que chegava a fingir que é dor... e acabava ficando MESMO numa baita crise. Terminava a noite pensando se era melhor tomar veneno de rato ou pular da janela pra acabar logo uma angústia que mal cabia no meu peito. Angústia que não existia no começo da história, perceberam? Não ria. Você também deve se embananar com um monte de coisas que eu tiro de letra. É assim a vida. Portanto, da próxima vez que você vir uma pessoa muito problemática, angustiada, se torturando com problemas que não existem, pense na possibilidade de ela estar querendo um pouco de solidão. Acredite, nem sempre é fácil pedir aquilo que precisamos pra ser feliz. E tem gente que só sabe ser feliz escondido. Respeite isso.

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