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Foto: Alexandre Belém/Concepção: Jaíne Cintra
E xpediente SUMÁRIO
EDITORIAL
boas mulheres da China? - Jornalista re03 As vela a situação feminina em território chinês
O que é a Academia Brasileira de Letras? E por que exerce tanto fascínio sobre a intelectualidade do País? Uma esfinge, um mistério, um encanto?. Durante muito tempo, quase não se podia falar da ABL, muitas vezes fechada num silêncio impenetrável, sem que isso represente crítica a ninguém. Mas o distanciamento entre a academia e a sociedade era, na verdade, formidável. Como se não existisse um compromisso entre as duas. E apesar disso, e das críticas que recebeu, teve muitas dificuldades para se tornar visível. Tudo porque, não por defeito da casa de Machado de Assis, o próprio distanciamento entre o intelectual e a sociedade sempre foi muito forte. Basta lembrar o conselho que José Lins do Rego deu a Luiz Jardim, depois da publicação do excelente romance “Confissões do Tio Gonzaga”, numa daquelas manhãs saudáveis da Editora José Olympio: “Agora, Luiz, você já pode negar bom dia”. Ou seja, não precisava falar com ninguém.
04 Quando nosso desejo é confiscado -
Flávia de Gusmão revela seu amor pelo bom cigarro
No Saber +, o jornalista Nélson Cunha faz um breve histórico da ABL, mostrando, entre outros dados curiosos, que Pernambuco é o estado com maior número de acadêmicos, só perdendo para o Rio de Janeiro. Aliás, os pernambucanos devotam uma grande paixão pela ABL. Basta lembrar, pelo alto, os nomes de Austregésilo de Athayde, Múcio Leão, Marcos Vinicios Vilaça, Mauro Mota, Marco Maciel, Evanildo Bechara, entre outros. Além daqueles que podem ser chamados de acadêmicos afins, pelos laços intelectuais que os ligam ao estado, como Ariano Suassuna. No caderno, ainda, o leitor encontrará duas entrevistas marcantes: do atual presidente, Cícero Sandroni, e o do pernambucano Marcos Vinicios Vilaça. Além de uma resenha sobre o seu livro: “Tarefas do presidente”
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Por onde ir numa Havana mal iluminada - Aqueles últimos momentos de Cuba sem Fidel
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Ao redor da imortalidade - O polêmico fascínio pelas academias e a coleção que resgata a história da literatura pernambucana, lançada pela APL
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Mas a Academia resolveu não obedecer a José Lins. Abriu as portas para falar com a sociedade. Algo que, de certa forma, surpreendeu aqueles que seguiam a linha do consagrado autor do “Ciclo da cana-de-açúcar”. A decisão partiu do escritor pernambucano Marcos Vinicios Vilaça, presidente da casa por dois anos. Ele democratizou os concursos literários, convidou escritores das mais diversas linhagens para palestras, integrou a literatura com as artes mais diversas: desde música à culinária, promoveu debates e publicações, transformou o silêncio em inquietação criadora.
Passei a noite procurando tu - O que é que eu faço com o meu Twitter?
Na primeira matéria, páginas seis e sete, a jornalista Marcella Sampaio relata as entrevistas que fez com intelectuais de correntes do pensamento brasileiro e pernambucano, escutou elogios e, como é natural no comportamento humano, críticas e divergências. O escritor e professor Anco Márcio, nas páginas oito e nove, analisa a literatura de ficção produzida pelos clássicos do estado, publicados pela Academia Pernambucana de Letras, com direção de Lucilo Varejão Filho, e revela uma surpresa: Pernambuco tem uma ficção histórica de alta qualidade. Na página três do Pernambuco, a jornalista Ana Addobbati volta a escrever sobre a China, desta vez abordando a submissão feminina no país das Olimpíadas e Flávia de Gusmão analisa o direito dos fumantes, na quarta página, enquanto Samarone Lima procura, na página cinco, por Fidel Castro nas ruas mal iluminadas de Havana. E mais: Adriana Santa, na página 10, escreve sobre o “Twitter”, Valmir Costa aborda o amor, página onze, e Alexandre Belém mostra uma bela foto, página doze.
A fila tem que andar... - As obrigações sociais da difícil arte de amar
Boa leitura Raimundo Carrero (Editor) rcarrero@bol.com.br
da Praça do Carmo com Dantas Bar12 Esquina reto, 23h30 - Um flagra de um sábado à noite qualquer no centro do Recife
EXPEDIENTE GOVERNADOR DO ESTADO Eduardo Campos PRESIDENTE Lêda Alves
VICE-GOVERNADOR João Lyra Neto
DIRETOR DE GESTÃO Bráulio Mendonça Meneses
SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Ricardo Leitão
DIRETOR INDUSTRIAL Ricardo Melo
GESTOR GRÁFICO Júlio Gonçalves
EQUIPE DE PRODUÇÃO Débora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Aluísio Ricardo
Circulação quinzenal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco.
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Distribuído exclusivamente pela Companhia Editora de Pernambuco - CEPE
Rua Coelho Leite, 530, Fone: (81) 3217.2500 FAX: (81) 3222.5126 Santo Amaro CEP 50100-140
EDITOR Raimundo Carrero
EDITOR EXECUTIVO Schneider Carpeggiani
EDIÇÃO DE ARTE Jaíne Cintra
REVISÃO Gilson Oliveira
TRATAMENTO DE IMAGEM Sebastião Corrêa
SECRETÁRIO GRÁFICO Militão Marques
CONSELHO EDITORIAL Lêda Alves (presidente), Jaci Bezerra, Paulo Bruscky, Nivaldo Araújo, Ivanildo Sampaio, João Monteiro e Lucila Nogueira
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ma simples conversa em meio a um almoço de colegas serviu de start para querer escrever sobre o tema fascinante das mulheres da China. Uma das minhas colegas pediu licença para sentar à mesa e, papo vai, papo vem, ela me mostrou a foto do novo bebê da família. Coisa de tia que ainda não teve o seu primeiro filho. Fiz cara de “Ó, que fofo” e perguntei: qual o nome? A resposta: “A gente o chama de o bebê”. Uma pausa. Não é a história do “menino” de “Vidas secas”, de Graciliano Ramos, que nunca teve nome, que nunca foi alguém com direito às suas próprias escolhas em meio à caatinga seca. Mas “o bebê” traduz também sofrimento. De gerações que aceitaram a regra espartana da sobrevivência. Da necessidade de lutar pela comida. De que cada boca seria um peso enorme que precisava ser compensado com o trabalho. O “bebê” é uma menina que nasceu sem nome. A barriga da mãe estava pontuda demais e a pele, estragada demais para ser um menino. Por isso, ninguém se preocupou em pensar em um nome feminino. Essa foi a explicação que minha colega deu. “E o exame de ultra-som?”, perguntei. Na China, é proibido. Ninguém pode saber o sexo do filho quando ele está na barriga. O motivo é evitar abortos, caso se descubra que uma menininha estar por vir. Como no passado, quando uma filosofia malthusiana incentivou abortos entre as famílias rurais que queriam mais uma força braçal e, sem admiti-lo oficialmente, muitas vezes realizado à força pelo governo para o controle da natalidade. O controle ainda existe. Os casais ainda podem ter apenas um rebento. Quem quiser desafiar as leis perde benefícios sociais, paga multa e pode até perder o emprego se trabalhar em uma empresa pública. Só que, agora, o mundo é das mulheres. Em parte. Minoria que se tornaram, dão-se ao luxo de serem disputadas pelos noivos. No entanto, o peso do conservadorismo da sociedade não as permite viver a liberdade de um mundo feminista, queimar sutiã, falar de sexo na TV no café da manhã, usar biquíni grávidas. Portanto, é preciso analisar esse mosaico de circunstâncias para saber o que é ser mulher na terra de Mao-Tsé-Tung. Eu lavo, você cozinha – Aqui é uma terra comunista. Por mais que os próprios chineses digam que isso é passado, eles não conseguem, talvez, enxergar as marcas que o regime deixou em suas próprias vidas. Como uma garota oriunda do mundo latino machista, surpreendi-me ao constatar que, aqui, homem cozinha, sim, e não é porque está na moda. Ele lava, passa, arruma. Na sociedade chinesa comunista, todo mundo tinha de trabalhar. Aliás, esse lance de marido sustentar mulher é algo puramente capitalista que permite a alguns o luxo de bancar a casa sozinho. Se ela também sai para o batente, ele também tem que pegar no esfregão. Essa é a lógica. Tudo meio a meio. Lembro-me que comentei que tive um namorado que nunca soube o que era lavar um prato. Avó, mãe, empregada faziam isso, oras. Não é tarefa de homem. Todos os meus colegas riram. Um disse: “Eu nunca arran-
jaria uma noiva se ela soubesse que eu não sei lavar pratos”. O outro disse: “Se eu não deixar a louça brilhando minha mulher me enche de tapa”. E, pasmem, muitos homens barganham na hora de pedir a mão das amadas em casamento prometendo assumir todas as tarefas de casa, caso elas aceitem o pedido. E, assim, a mulher chinesa administra o salário do marido, dá as ordens. Não fique pasmo se cruzar com um casal brigando. Muitas vezes, a mulher grita e o homem escuta calado. E, com o mundo se abrindo para elas, o homem teve que ficar ainda mais calado. Amedrontado. Essa chinesa que trabalha e se informa cansou do homem local, “sem sofisticação”, como elas dizem. O chinês típico fala pouco. Faz mais. Mas, elas querem um homem romântico, tal qual os dos filmes estrangeiros, com direito a vinho, passeios na Champs Elysée, frases recheadas de amor, roupas modernas. As mulheres estão exigentes e até egoístas. Muitas adotaram o lado carpem diem da vida ocidental. A chinesa programada para trabalhar, casar e ter filhos dá lugar à aventureira, que deixa o marido em casa com os filhos e vai para a farra. A informação chega também para o homem chinês. Mas, o peso da sociedade conservadora faz com que ela seja algo difícil de digerir. Há um peso da cobrança imenso sobre o homem. Mesmo com toda essa pujança feminina, na tradição, ele é quem paga o apartamento, o carro e até toda a festa de casamento. Existe, inclusive, um ditado que diz: “Se você tiver uma menina, você será dono de um banco. Se você tiver um menino, você está criando um lobo que vai lhe comer”. Refere-se aos gastos que a família do homem assume para que ele consiga casar decentemente. E, por isso, muitos casais modernos têm sonhado com uma menina. Independente, pero no mucho – Foi um choque. Na minha cabeça, a mulher oriental era submissa tal qual no Japão. E acredito que deve acontecer com a maioria dos ocidentais, que ainda têm uma idéia nebulosa das diferenças entre os países dos olhos puxados. Mas, a China também está longe de ser a república do sutiã. É pouco o conhecimento que a chinesa tem sobre o sexo. Esse é um tema velado. Filmes pornôs? Só no mercado clandestino. Falar sobre isso na mídia? Proibido pelo governo e pelo conservadorismo. E esse conservadorismo pressiona as mulheres para que casem até os vinte e cinco anos, que tenham filho, que sejam tímidas (o estereótipo da mulher ideal). Qualquer uma que quebre um desses parâmetros sofre de solidão. Sem apoio de amigos e da família. Aqui, ainda é difícil ser diferente. Ter suas rédeas. Ainda não existe esse país totalmente feminista. Nem na China, nem em canto algum do mundo. yy
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A submissão feminina no país das Olimpíadas 2008 não é mais aquela Ana Addobbati
as boas mulheres da China?
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ou fumante convicta, daquelas que não pensam nem por um segundo em abandonar este vício que me foi incentivado, em outra época e ideologia, e que ainda hoje é legalmente permitido e por isso, numa lógica perversa, incentivado. Daquelas para quem fotos escabrosas de membros apodrecidos, órgãos deteriorados e fetos malformados nada dizem, muito menos comentários ameaçadores com o fogo punitivo do câncer. Pode ser que, quando chegue minha hora, este posicionamento seja a deixa para que a facção antifumo saque o cartão vermelho com a frase: “Eu não disse?”. Pode ser que no momento final eu frustre a todos morrendo uma morte despretensiosa. Pode ser que, ao me faltar o ar num pulmão enegrecido, eu renegue todos e cada um dos Carlton que me fizeram tão feliz. A vida é escolha e os cigarros estão encapsulados num maço delas. Fumo cotidianamente sem culpa. Algumas são inalações de puro prazer, outras de compulsão. Meio a meio como são os seres humanos. Mas não são questões em torno da perecibilidade do corpo que fazem minha alma se encolher diante da campanha antitabagista que o mundo vive. O que me desconcerta é o quão facilmente a liberdade individual é brutalmente confiscada e como nós, como cachorros rabugentos, nos encolhemos reconhecendo a nossa insignificância. O que me causa indignação é a hipocrisia com que os não-qualquer coisa se apressam em fazer cara feia e dar muxoxo para os que não estão nem aí para o que eles acham. Os abstêmios não conseguem entender a alegria de um pilequinho bem-tomado, os homófobos (declarados ou enrustidos) acreditam ainda hoje haver cura para um desejo/sentimento que eles não praticam. Os vegetarianos espreitam com olhar de nojo nossas picanhas sangrentas; os viciados em serotonina ignoram o forte apelo do ócio. E aqui eu gostaria de dividir os não-fumantes em duas categorias: os não-fumantes físicos e os ideológicos. Os primeiros, que merecem o meu respeito, são aqueles cuja estrutura física não suporta a fumaça. Detestam o cheiro, têm rinite alérgica, asma, um medo obssessivo de se poluírem com o hábito nojento de outras pessoas. E eu os
respeito baseada na premissa anterior: ninguém tem obrigação de compartilhar os mesmos gostos. A outra categoria, a dos não-fumantes ideológicos, merecem, na minha opinião, uma baforada na cara – a pior desfeita que pode partir de um fumante. Ao contrário do que se possa imaginar, é muito fácil distinguir um do outro. O nãofumante físico procurará estabelecer uma distância regulamentar com o fumante. O não fumante-ideológico se sentirá incomodado ao detectar visualmente, e não olfativamente, a presença de um fumante no extremo oposto de uma sala de quinhentos metros quadrados com ventilação natural. O não-fumante físico não quer sentir o desconforto que um cigarro lhe proporciona. O não-fumante ideológico não quer que pessoas fumantes existam. O que lhes causa incômodo não é o inalar e exalar da fumaça, mas o fato de que alguém se descomprometa tão acintosamente com a mortalidade. Vemos não-fumantes histéricos bradando sobre a irresponsabilidade dos fumantes, mas basta um olhar mais atento para detectar, entre eles, aquele que é diabético se jogando numa rica sobremesa bem açucarada, aquele que tem as artérias entupidas se deleitando com uma fritura bem gordurosa. Eu, por mim, até estaria disposta a passar a viver em guetos, locais historicamente conhecidos por segregar quem é diferente da maioria. Desde que eles existissem. Não me incomodaria de passar a escolher meus parceiros a partir dessa nova premissa: fumante ou não-fumante. Já são tantas as exigências para que consideremos alguém aceitável. Mais uma, menos uma não faria nenhuma diferença. Mas o que estão tentando fazer é nos enxotar para o meio da rua, para que lá fiquemos o tempo necessário para fumar um cigarro e refletir sobre a nossa condição temporária de não-merecedores do convívio social. Crime e castigo. Eu não compro maconha, por exemplo. E não compro não porque condene os seus usuários, mas porque é ilegal. Tenho a maior preguiça de andar fora da lei, confesso. Portanto, se as autoridades de saúde quiserem realmente me dar uma mãozinha, eu sugiro o banimento da indústria do tabaco e a criminalização de quem dele fizer uso. Isso eu entendo. yy
Alexandre Belém
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quando o nosso
desejo é confiscado
Flávia de Gusmão
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Alexandre Belém
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Escritor colheu as sensações da capital cubana durante o outono do seu patriarca
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ma idéia fixa que tive, há alguns anos, foi a de que tinha que visitar Cuba antes que Fidel morresse. Acreditava que a ilha, depois do Comandante, iria viver sua Perestroika, algum muro iria cair, o capitalismo iria avançar com unhas e dentes, e as imagens bucólicas, dos velhos Buik 1957, circulando cheios de charme por ruas meio decadentes, dariam lugar a uma Havana remodelada para turista ver. Os famosos sistemas de saúde e educação também virariam pó, diante da sanha capitalista. Isso eu pensava dez anos atrás, quando Fidel tinha apenas setenta anos, e ainda era capaz de fazer seus discursos de até seis horas, defendendo a Revolução e atacando os imperialistas norte-americanos. Bastou um mês em Cuba, para ver que minha idéia estava mal fixada. O homem agora está com oitenta anos, e desde julho de 2006, quando teve um problema grave no intestino, saiu de cena. Chegou perto da morte, os milhares de anti-castristas de Miami chegaram a armar uma grande festa para comemorar o fato, mas o homem parece ter sete vidas. Na linguagem do futebol, Fidel fez que foi, e não foi. Agora não está e está, ao mesmo tempo. É como um fantasma de si mesmo. Talvez a imagem mais simbólica disso tudo seja uma tosca montagem feita pelo Granma, em dezembro de 2007, quando Hugo Chávez foi visitar Cuba. Hugo está de mãos dadas com Raúl Castro, e Fidel está atrás, segurando uma espada. Só que a imagem de Fidel é uma foto, recortada. Para um leitor desavisado, os três estão juntos. Uma doença resolveu a transição, que poderia ser um problemão para a revolução. A morte do Comandante, não vai implicar numa Perestroika, nem queda de nada, pelo menos por algum tempo. Seu irmão, Raúl Castro, conhecido como “El Chino”, já assumiu o poder, e é conhecido por ser mais linha dura. Vai ser um fato mais histórico que político. “Nossa esperança era que aparecesse um Gorbachov em Cuba, mas não tivemos sorte”, diz uma cubana ex-revolucionária, de sessenta e quatro anos, desiludida e cansada, que prefere, claro, não dizer o nome, para não acabar como todos os dissidentes, batizado de “contra-revolucionários” – na prisão.
Samarone Lima
uma idéia fixa que tive, há alguns anos, foi a de que tinha que visitar Cuba antes que Fidel morresse. Acreditava que a ilha, depois do Comandante, iria viver sua Perestroika, algum muro iria cair, o capitalismo iria avançar com unhas e dentes, e as imagens bucólicas, dos velhos Buik 1957, circulando cheios de charme por ruas meio decadentes, dariam lugar a uma Havana remodelada para turista ver. Os famosos sistemas de Saúde e Educação também virariam pó, diante da sanha capitalista. Isso eu pensava dez anos atrás, quando Fidel tinha apenas 70 anos, e ainda era capaz de fazer seus discursos de até seis horas, defendendo a Revolução e atacando os imperialistas Norte-Americanos. Bastou um mês em Cuba, para ver que minha idéia estava mal fixada. O homem agora está com 80 anos, e desde julho de 2006, quando teve um problema grave no intestino, saiu de cena. Chegou perto da morte, os milhares de anti-castristas de Miami chegaram a armar uma grande festa para comemorar o fato, mas o homem parece ter sete vidas. Na linguagem do futebol, Fidel fez que foi, e não foi. Agora não está e está, ao mesmo tempo. É como um fantasma de si mesmo. Talvez a imagem mais simbólica disso tudo seja uma tosca montagem feita pelo Granma, em dezembro de 2007, quando Hugo Chávez foi visitar Cuba. Hugo está de mãos dadas com Raúl Castro, e Fidel está atrás, segurando uma espada. Só que a imagem de Fidel é uma foto, recortada. Para um leitor desavisado, os três estão juntos. Uma doença resolveu a transição, que poderia ser um problemão para a revolução. A morte do Comandante, não vai implicar numa Perstroika, nem queda de nada, pelo menos por algum tempo. Seu irmão, Raúl Castro, conhecido como “El Chino”, já assumiu o poder, e é co-
Por onde ir numa Havana mal iluminada nhecido por ser mais linha dura. Vai ser um fato mais histórico que político. “Nossa esperança era que aparecesse um Gorbachov em Cuba, mas não tivemos sorte”, diz uma cubana ex-revolucionária, de 64 anos, desiludida e cansada, que prefere, claro, não dizer o nome, para não acabar como todos os dissidentes, batizado de “contrarevolucionários” - na prisão. uma idéia fixa que tive, há alguns anos, foi a de que tinha que visitar Cuba antes que Fidel morresse. Acreditava que a ilha, depois do Comandante, iria viver sua Perestroika, algum muro iria cair, o capitalismo iria avançar com unhas e dentes, e as imagens bucólicas, dos velhos Buik 1957, circulando cheios de charme por ruas meio decadentes, dariam lugar a uma Havana remodelada para turista ver. Os famosos sistemas de Saúde e Educação também virariam pó, diante da sanha capitalista. Isso eu pensava dez anos atrás, quando Fidel tinha apenas 70 anos, e ainda era capaz de fazer seus discursos de até seis horas, defendendo a Revolução e atacando os imperialistas Norte-Americanos. Bastou um mês em Cuba, para ver que minha idéia estava mal fixada. O homem agora está com 80 anos, e desde julho de 2006, quando teve um problema grave no intestino, saiu de cena. Chegou perto da morte, os milhares de anti-castristas de Miami chegaram a armar uma grande festa para comemorar o fato, mas o homem parece ter sete vidas. Na linguagem do futebol, Fidel fez que foi, e não foi. Agora não está e está, ao mesmo tempo. É como um fantasma de si mesmo. Talvez a imagem mais simbólica disso tudo seja uma tosca
Fidel agora se dedica a escrever artigos sobre os mais diversos assuntos, que são publicados na íntegra, pelo mal editado e entediante jornal Granma, do Comitê Central do Partido Comunista. Manda mensagens para a Assembléia Nacional, que são lidas pelo presidente da casa, Ricardo Alarcón, e aplaudidos de pé, demoradamente, por todos os seiscentos e catorze deputados. Neste período de doença, já são mais de setenta textos, sobre vários assuntos. Está também revisando sua biografia, escrita por Ignácio Ramonet A grande surpresa, para quem circula pelas ruas largas ou estreitas de Havana, sempre mal iluminadas, conversa com o povo sobre a vida cotidiana, sem tocar no nome de Fidel, é o silêncio quase absoluto sobre o Comandante, sua doença, a possível morte. Tirando os obsessivos meios de comunicação cubanos, os eventuais simpatizantes, e os que torcem para que ele morra o mais rápido possível, o grosso da população está mais preocupada mesmo é em sobreviver, do que com a sobrevivência de Fidel. Durante quase um mês em Cuba, conheci mais de cinqüenta pessoas, entre artistas, intelectuais, donas de casa, vendedores esfarrapados do jornal Granma, estudantes, aposentados e vagabundos. Espontaneamente, sem que eu perguntasse nada, apenas três falaram de Fidel Castro Ruiz. Um deles, um velhinho de setenta e dois anos, bêbado, estava numa parada de ônibus e levava até um discurso em homenagem ao Comandante, numa pasta surrada, debaixo do braço. Disse que se os americanos apontassem no mar, seria o primeiro a morrer por Fidel. Os outros dois eram um casal que vive bem, e faz parte de uma elite do estado cubano, que defende o Comandante até debaixo d´água. O restante, os outros quarenta e sete, falavam de coisas mais concretas, como a falta de comida, os transportes precários, a corrupção no sistema, a falta de perspectiva de vida, a repressão. Resumindo, ter o que comer, comprar umas roupas, arrumar a casa, viver um pouco melhor. Não contei, claro, os que sonham dia e noite em ir embora. Foi bom ter ido para Cuba enquanto ele está vivo, mas não sugiro aos compatriotas que preparem caravanas para comemorar os cinqüenta anos da Revolução. A vida na ilha, com ou sem Fidel, anda bem amarga. yy
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Ao redoR da ImorTalidade Mesmo convivendo com críticas, a busca pela cadeira imortal ainda exerce um tremendo fascínio Marcella Sampaio
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or definição guardiãs do cânone e da tradição, as academias de letras são a tradução de um desejo humano que pouco se explica, mas que ninguém nega existir: a imortalidade. Por imortal acadêmico, entenda-se aquela criatura cujo legado intelectual é tão significativo que permanecerá influenciando as gerações posteriores, arregimentando seguidores e, quiçá, quebrando paradigmas estabelecidos. Assim era, pelo menos, na origem. Segundo a página na internet da Academia Brasileira de Letras, a primeira academia foi fundada em Atenas, na Grécia, por Platão. As discussões sobre temas filosóficos estavam, então, na ordem do dia, e o formato era de escola, onde mestres transmitiam seus saberes para os discípulos. Hoje, os debates permanecem sendo o principal objetivo das reuniões entre acadêmicos, mas novas funções coexistem com as discussões, entre elas a responsabilidade de defender a língua e a literatura nacionais e a tentativa de fazer com que a sociedade volte os olhos para a necessidade de preservá-las. As polêmicas sobre a quantidade de academias de letras fundadas no Brasil, os critérios de escolhas de seus membros e sua função social, porém, não raro tomam as páginas da imprensa, quase sempre quando um novo imortal toma posse ou quando os novos presidentes são escolhidos. Não é exagero dizer que a proliferação de academias democratizou (vulgarizou, para alguns) o acesso à imortalidade. Esse movimento, que parece estar consolidado, segue sendo alvo de defensores ardorosos e críticos igualmente mordazes. A seguir. Recém-empossado, o atual presidente da Academia Brasileira de Letras, Cícero Sandroni, afirmou em entrevista recente (publicada no site da ABL) que um dos objetivos da sua gestão será popularizar a entidade sem apelar para o popularesco, através da realização de seminários, conferências, palestras e eventos musicais. Segundo o acadêmico Marcos Vinicios Vilaça, antecessor de Sandroni na cadeira da presidência, guardar a tradição sem imobilizar a academia sempre foi uma das suas grandes preocupações. “É possível misturar as duas coisas. Hoje temos uma instituição forte, consistente, com representatividade social”. O presidente da Academia Pernambucana de Letras, Waldênio Porto, reeleito em dezembro do ano passado, concorda com a linha defendida pela ABL, e promete continuar a promover eventos que aproximem a APL da sociedade. “Nossa Academia sempre foi um reduto de intelectuais, que defende e promove a cultura e interage com o público. Fazemos sete concursos literários anuais, que movimentam o cenário literário local e estimulam os escritores. Não somos um clube fechado, cada vez mais nos abrimos à sociedade, seja através da promoção de eventos e cursos ou da participação em festivais literários”, diz. “Já há muito tempo, a APL vem assumindo uma atitude mais participativa. Encabeçamos, por exemplo, o movimento de defesa do livro pernambucano, que resultou numa lei que obriga as livrarias a expor nas vitrines livros de autores locais, um grande ganho para a literatura estadual. Neste nosso novo mandato, entregaremos à sociedade uma biblioteca com trinta mil títulos catalogados e digitalizados, em um ambiente climatizado e de acesso gratuito”, afirma, ressaltando que, este ano, provavelmente ainda no primeiro semestre, a biblioteca estará pronta para receber o público. Sobre a quantidade de academias de letras que existem no Estado, Porto é enfático: “É muito salutar a criação de novas academias, pois elas reúnem gente que promove cultura. Não temos restrição a esse movimento, pelo contrário. Participamos, inclusive, da Rede das Academias de Letras do Nordeste e estamos permanentemente estabelecendo um intercâmbio com outras entidades. Costumo dizer que, juntos, ninguém pode conosco”. Além da APL, há, no nosso Estado, a Academia Recifense de Letras, a Academia Olindense de Letras, a Academia de Letras e Artes do Nordeste, a União Brasileira dos Escritores-Seção Pernambuco, a Academia de Letras de Garanhuns e até a Academia Internacional de Literatura e Artes, entre outras. Jornalista, produtor e apresentador do programa literário “Café Colombo”, transmitido pela Rádio Universitária, Renato Lima defende outro ponto de vista. “As academias deveriam existir como um ponto de referência cultural e de debate, e seus membros ser intelectuais que estivessem referendados por seus pares e pela sociedade. Entidades do gênero não deixam de ter um lado conservador, no sentido da preservação de uma certa cultura. Essa proliferação, no entanto, faz com que esse tipo de referência seja perdido. A nstituição deixa de ser uma academia e vira uma agremiação”, acredita. Renato acha que esse movimento se deve mais a uma tentativa de “burlar” o caminho árduo para a imortalidade e menos a uma tentativa de democratizar o acesso às letras. “Criar novas academias é a maneira mais fácil de se tornar imortal. Ser autor de uma obra duradoura é bem mais complicado”. Para ele, é mais interessante que os acadêmicos busquem ampliar o contato com a sociedade do que a pura e simples inauguração de instituições literárias. “Por que não um acadêmico ir a escolas falar sobre a obra de Machado de Assis, por exemplo, agora no ano do centenário da sua morte? Iniciativas como essas podem ajudar a tornar as letras mais populares, pelo fato da figura do imortal chamar a atenção do público”, sugere. Parte deste público, entretanto, ainda continua de certa forma alheia a todo esse debate. Rafael Alves, estudante de comunicação social da Universidade Federal de Pernambuco, não enxerga uma função social nas academias de letras brasileiras. “É como se fosse uma coisa decorativa. Vejo as academias como locais onde é mais importante premiar quem aquelas pessoas consideram a nata da literatura do que defender a língua e o cânone nacionais. Os intelectuais da ABL, por exemplo, nem sempre possuem uma obra significativa, tudo funciona muito mais como umcírculo de relacionamento. É assim que eu enxergo”. Por outro lado, há quem tente, inclusive, internacionalizar o acesso dos imortais e ampliar sobremaneira seu alcance. A artista plástica e psicanalista Sheila Cohen fundou, em 1998, aqui no Recife, a Academia Internacional de Literatura e Artes, que, segundo ela, reúne cem cadeiras, sendo cinqüenta destinadas a autores e artistas brasileiros e cinqüenta a artistas de outros países. Presidente da entidade, ela afirma que, em abril deste ano, o neto de Gilberto Freyre tomará posse em sua academia, o que lhe garantirá mais visibilidade. “Até Pelé está entre nossos imortais”, diz. A AILA promove reuniões mensaise lança um livro anualmente. Embora ainda exerça um fascínio significativo entre escritores, novatos ou não, tornar-se imortal não faz a cabeça de todo mundo. Arnaud Mattoso, que tem três livros de poesia publicados, acha que essa deve ser a menor das preocupações de um autor. “Temos grandes escritores que não são imortais e imortais que não são grandes escritores. O que vale é a representatividade da obra, independente da presença do autor em uma lista de acadêmicos”. Ex-filiado à UBE-PE, ele ressente-se apenas do que considera pouca proximidade das academias com a sociedade, justamente a grande bandeira defendida por elas nos últimos tempos. “Acho também que falta ampliar a participação dos novos autores, além de criar programas que incentivem a leitura, enfim, que aproximem a literatura do povo”. Sarcástico e inteligente como sempre, o escritor Marcelino Freire observa o assunto sob um ângulo que vale reproduzir: “De fato, o termo ‘academia’ é muito popular. Como eu diria? Mesmo quem não lê, sempre me pergunta: ‘Quando você vai entrar para a academia?’. Explico: é o mesmo peso que têm, no juízo do povo, uma igreja, uma sinagoga. Academia é um lugar que figura no imaginário popular. Mas não quer dizer que seja, de fato, popular, entende? É coisa enclausurada e que, a meu ver, não representa o escritor brasileiro. Não atende ao escritor brasileiro. Basta perguntar o que faz a ABL pela nova literatura brasileira. Nadica de nada. Raras exceções, lá não estão escritores de verdade. Ivo Pitanguy, por exemplo, que obra construiu, operou? Em que parágrafo meteu o bisturi? Enfim... Eta danado! Certa vez, me indagaram o que eu achava da entrada de Paulo Coelho na ABL. Respondi: ele está no lugar certo. Virou uma instituição burocrática, careta, sem diálogo com o leitor, com a população, enfim, assado. No mais, nem sabia que as academias têm proliferado. Se têm, não é por causa da literatura. Mas por outras causas... Status, carteirinhas, política, sei lá e saravá!” Saravá! A representatividade das academias junto ao público provoca reações mais ou menos exaltadas, mas nada se compara à polêmica que geram as escolhas dos novos acadêmicos. Talvez algumas imortalidades recentes, principalmente no que diz respeito à ABL, tenham acontecido justamente neste afã de tornar o espaço das letras menos distante das pessoas, mais familiar. Na opinião de alguns, este critério provoca injustiças, o que é, convenhamos, uma característica de todas as listas. Quem entra, fica orgulhoso, embora aja com naturalidade, e quem não entra, fica irritado, embora aja com naturalidade. O desafio é tornar as academias, muitas ou poucas, cada vez mais necessárias e úteis à sociedade, estabelecendo um espaço de yy troca rica e permanente.
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Coleção organizada pela Academia Pernambucana de Letras publica romances fundadores da tradição literária do estado Anco Márcio Tenório Vieira
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uma conversa informal com um dos funcionários de uma livraria paulista que tem loja no Recife, tomei conhecimento que esta filial não somente tinha um volume de vendas superior à sua congênere de Porto Alegre (na verdade, as vendas da capital pernambucana só eram inferiores às matrizes paulistas), mas também que o seu carro-chefe eram os livros de Ciências Humanas e Sociais, Crítica e Teoria Literária, Lingüística e Artes, ficando as obras de ficção e de Literatura numa posição secundária. O inverso, dizia-me o jovem vendedor, acontecia com a Livraria de Porto Alegre, onde os campeões de vendas eram textos ficção e de Literatura, superando os livros deciências e de ensaios. Confesso que como professor de Literatura fui tomado de uma grande surpresa. Talvez por vício de profissão, por conviver com escritores literários, docentes e alunos de letras, sempre acreditei que livros de ficção e de literatura eram os campões de vendas das livrarias, ficando os das demais áreas do conhecimento numa posição secundária. Minha crença não era de todo infundada, principalmente se eu estivesse em Porto Alegre. No Recife, não. Por que? Eis a pergunta que venho tentando responder para mim mesmo. Tenho uma hipótese. É que a tradição da Faculdade de Direito, particularmente com as idéias cientificistas que dela começaram a emanar a partir de 1870, redimensionando os pressupostos românticos e fincando raízes profundas no pensamento social brasileiro (na crítica literária, na Política, no Direito, nas Ciências Sociais e Humanas, e no gosto estético) terminou por direcionar os interesses intelectuais antes para o campo da “ciência” do que para o da ficção. A ficção sendo vista, como era característico do cientificismo, como uma forma secundária de conhecimento, forma que deveria ficar subordinada à verdade científica, ao projeto de Nação e de Estado. A força do cientificismo foi tão grande e verticalizante que a pouca ficção que saiu da pena daqueles que fizeram a Escola do Recife (pouca, digo, se compararmos com o conjunto da produção intelectual que foi desenvolvida pela Faculdade e por seus pupilos) não deixou de aspirar à objetividade “científica” sobre a matéria a ser retratada. Haja vista que seus poetas (Sílvio Romero, Silva Jardim, Tobias Barreto...) perseguiam uma poesia realista e se auto-intitulavam de científicos. O que levou Machado de Assis, em célebre ensaio de 1879 – “A nova geração” –, a afirmar “que a realidade é boa, o realismo é que não presta para nada”, ou melhor, que “a ciência é má vizinha” da literatura. A urgência com que aquela geração buscava solucionar os males do Brasil – sociais, econômicos, políticos – deixara a produção lúdica numa posição secundária. Daí ela nascer como que pedindo desculpas, e para ser desculpada
se submetia aos interesses maiores das teses “científicas”. Não raras vezes o escritor literário sendo também “cientista” social, jurista, ou mesmo crítico literário, nascendo a literatura da sua pena como um momento de “lazer”, de “descanso”, de “relaxamento intelectual”. É como se a ficção, ao se reconhecer como uma forma secundária de conhecimento, tentasse superar sua posição de “inferioridade” fazendo uso das mesmas armas utilizadas pela “ciência”. Só assim, acreditavam os escritores literários, poderiam eles receber do público leitor e dos homens de “ciência” o respeito merecido. O resultado de toda essa tradição intelectual é que Pernambuco terminou por ser um Estado que, ao se libertar da “poesia científica”, conseguiu produzir alguns dos melhores poetas da língua portuguesa; em contrapartida, pouquíssimos romancistas conseguiram, ao longo do século XX, sombrear a importância desses poetas. A prosa parece ter ficado prisioneira das verdades “científicas” que a poesia, desde os anos 20, soube contornar, superar e se firmar de maneira muito própria. Tentando dizer de outra maneira, a prosa, ao contrário da poesia, terminou por perseguir preocupações antes etnológicas, ou de análise de costumes, do que literárias de fato. Há em grande parte da nossa produção romanesca antes uma tese social a ser defendida (a denúncia do nosso atraso, da nossa miséria, das desigualdades sociais, da violência dos coronéis, dos barões, dos cangaceiros e jagunços) do que um vôo lúdico mais alto que buscasse reelaborar a rica realidade simbólica que foi sendo gestada ao longo dos séculos de formação sócio-cultural do País. Sendo uma prosa prisioneira de uma tese, não é de se espantar que quase toda a produção romanesca desse período (entre 1870 e 1930) caísse em esquecimento ao tempo em que esses mesmos pressupostos cientificistas foram emparedados e substituídos por novas teorias e metodologias de abordagem do real. Como poderia ela ombrear a prosa regionalista que, pouco a pouco, vai tomando conta das letras pátrias a partir da segunda metade dos anos 20? Nomes que ultrapassaram seus espaços regionais, nada obstante seus temas serem quase os mesmos dessa geração anterior, por virem munidos não somente de uma prosa mais plástica, contemporânea das inovações formais das vanguardas do princípio do século, mas também de ferramentas mais complexas para abordar essa realidade: o marxismo, a psicanálise e a antropologia cultural. A recém-editada coleção “Os velhos mestres do romance pernambucano” (constituída por obras de antigos titulares da Academia Pernambucana de Letras), coordenada e apresentada por Lucilo Varejão Filho, busca resgatar essa produção que se encontrava adormecida nas estantes empoeiradas do tempo.
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ência” da época apenas aludia, faz desses romances documentos que desvelam como viam e viviam nossos avós. Mas não é só isso. A prosa realista-naturalista, não raras vezes perpassada por um certo tom saudosista de um mundo que ia pouco a pouco desaparecendo (a exemplo dos “Romances urbanos”, de Mário Sette, ou de “A Rosa Verde”, de Nilo Pereira), consegue prender a atenção do leitor da primeira a última página. Todo um mundo perdido num passado distante parece ressuscitar aos nossos olhos. E apesar de todo cientificismo, de todas as “verdades” (hoje, envelhecidas) implícitas e explícitas que seus autores propagam, ainda encontramos nessas obras não apenas muito dos caminhos programáticos que a literatura brasileira continua a perseguir (o romance de tese, a narrativa realista, a mimetização da realidade pela semelhança e não pela diferença), como muitos dos fatos sociais, políticos e culturais que ainda hoje fazem parte do nosso cotidiano. A coleção “Os velhos mestres do romance pernambucano” é mais do que urgente. Não só pela criteriosa escolha dos títulos publicados, mas por colocar em circulação obras que preenchem vazios da nossa ainda tão recente história literária. Como entenderemos a literatura que foi produzida nas últimas décadas dos oitocentos e nas primeiras dos novecentos, se tais obras não circulam? Como podemos entender em verticalidade o que foi a Escola do Recife, se o seu braço estético encontra-se ausente das nossas livrarias? Como entendermos as críticas produzidas pelos modernistas e regionalistas dos anos 20 e 30 aos seus antecessores se não encontramos disponível tais obras para julgarmos se eles estavam ou não corretos nas suas críticas? Como podemos julgar, comparativamente, a excelência que a produção romanesca atingiu em Pernambuco nos últimos 50 anos – a exemplo de Osman Lins, Hermilo Borba Filho, Ariano Suassuna, Raimundo Carrero, Fernando Monteiro, Gilvan Lemos, Maximiano Campos e Cláudio Aguiar – se não temos como parâmetro o que antes fora produzido? Que venham outros títulos; que se reedite também a “poesia científica” produzida pelos filhos da Escola do Recife, poesia esta que, como sabemos, teve em Augusto dos Anjos seu último e mais significativo nome. O que a Coleção “Os velhos mestres do romance pernambucano” faz é o que os órgãos de cultura deveriam ter como meta e objetivo permanentes: a reedição de obras que construíram o imaginário (para o bem ou para o mal) e o conhecimento do que fomos, somos e gostaríamos de ser. A coleção editada com tanto esmero por Lucilo Varejão Filho indica o caminho a ser perseguido quando resolvemos fazer a lição de casa, que, como toda lição de casa, cabe a nós realizarmos e não delegarmos a outros. Saber+ yy
São autores como Theotônio Freire, Carneiro Vilela, Manoel Arão, Farias Neves Sobrinho, Mário Sette, Lucilo Varejão, Luiz Delgado e Nilo Pereira. Destes, só os dois últimos não são filhos da Escola do Recife (muito pelo contrário, inseremse dentro do que poderíamos chamar de romances católicos), apesar de serem crias da velha Faculdade de Direito. Destes, apenas Carneiro Vilela, Mário Sette e Lucilo Varejão tiveram suas obras reeditadas, mesmo que timidamente, ao longo do século XX, e mesmo assim por iniciativas públicas. O caso mais emblemático é o de Carneiro Vilela, autor e “A emparedada da rua Nova”. No prefácio à nova edição, que é a quarta, Lucilo Varejão Filho observa que “A emparedada” “é um livro mítico da literatura pernambucana”, e lembrando palavras de Sílvio Rabelo, inseridas no seu artigo “Um novelista da província”, assinala que o autor “‘um caso típico da glória da província’”. A pergunta é como tal livro seria “um caso típico da glória da província” se só agora o romance, que é de 1886, alcança quatro edições. Sendo a penúltima datada de 1984? Vê-se, pela “A emparedada”, que uma obra que alcance mais de duas edições já pode ser considerada uma “glória da província”. O que é muita pouca edição e leitores para tal designação. O que talvez tenha prejudicado as reedições dessas obras e, conseqüentemente, o interesse contínuo dos leitores por esses pioneiros romances produzidos em Pernambuco, seja o excesso de cientificismo. As obras, em geral, revelam-se tão datadas quanto as bases científicas que lhes subsidiaram. As explicações psiquiátricas para as histerias femininas ou as traições de alcova, o anticlericalismo panfletário, o moralismo envolto em tese científica, o racismo encoberto por teorias deterministas e evolucionistas, a certeza positivista sobre qual sociedade deveríamos construir: Tudo isso nos leva, leitores de hoje, a lermos essas obras com um certo pé atrás. Em contrapartida, é talvez nessas obras que vamos encontrar os melhores relatos da vida cotidiana, dos costumes sociais, políticos, religiosos e, principalmente, dos preconceitos sociais e de raça das últimas décadas do século XIX e das primeiras do século XX no Recife. São painéis generosos que o cientificismo da época pouco nos legou. Talvez, numa inconsciente vingança tardia, é nessa literatura, acatada como secundária por seus contemporâneos (daí porque não foi lida nem apreciada à época), que o universo sócio-político-econômico-religioso melhor se apresenta. Por mais que essa produção seja prisioneira do cientificismo, ela, por ser ficção, termina por ter certas liberdades que a “ciência” que lhe subsidiou não pôde alcançar. Penetrar na cabeça dos personagens, tentar ler psicologicamente seus desejos e angústias, descrever cenas de sexo que a “ci-
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passei a noite procurando tu
Por que tanta gente anda interessada na falta de função do Twitter?
um período de seis dias, o jovem Saskuna dedicou dezoito preciosos momentos de sua caminhada neste planeta azul para contar, através de micro-relatos, o que andava fazendo no momento exato em que escrevia. A bem dizer, digitava, sem poder ultrapassar o limite de cento e quarenta toques estabelecido pela ferramenta Twitter – misto de rede social, microblog e site de relacionamento. Nova febre da Web. É possível, em espiadas esporádicas pelo espaço público do sítio (nenhuma referência ao conceito habermasiano, apenas coincidência na tradução), não só saber o que as pessoas declaram fazer, mas também até se arriscar a traçar um perfil, ainda que fajuto, dos que participam. Saskuna e outras oitocentas mil almas têm feito o mesmo, desde o surgimento do Twitter, há menos de dois anos. A depender do que o forçosamente lacônico Saskuna escreve, habilmente, a conta gotas e em espanhol, não é difícil inferir que se trata de alguém do sexo masculino, que trabalha diariamente, tem muito sono (provavelmente porque trabalha muito) e dores de cabeça constantes. Quando se descobre o Twitter e se decide embarcar no convite para responder à pergunta-chave, “o que você está fazendo agora?”, a primeira reação pode não ser, necessariamente, responder à questão, mas se perguntar o porquê de respondê-la. Mas antes, faz-se importante esclarecer o quê, exatamente, é essa ferramenta. Digitando www.twitter.com, o ilustre internauta é convidado a se registrar, gratuitamente. A partir daí, basta contar o que está fazendo no momento – respeitando o por vezes irritante limite dos centro e quarenta caracteres, é claro. Então, pode-se bisbilhotar o que os usuários do sistema dizem estar a fazer. Só para escrever este parágrafo, por exemplo, trezentos e setenta e seis caracteres foram utilizados. Para incrementar a brincadeira, assim como no Orkut, sugere-se que amigos sejam adicionados, de modo que se possa acompanhar o dia-a-dia dessas pessoas, com atualizações automáticas a cada quatro minutos. Os posts podem ser feitos a gosto do freguês: via celular, no próprio site, por e-mail, através de outros programas de comunicação (MSN, ICQ etc) e também pelo browser Firefox. Ainda um novato na vida digital – foi lançado em março de 2006 – , mas com fôlego de veterano, o Twitter nasceu pelas mãos de Jack Dorsey, executivo que mal chegou à casa dos trinta anos, mas já é considerado pela Business Week como um dos maiores expoentes da nova geração de empreendedores tecnológicos. Dorsey é CEO da Obvious Inc, cujo principal produto é justamente a rede de microblog. Antes, ganhava a vida com um sistema para download de mp3s, intitulado Odeo. Em entrevista a Eric Enge (empresário especializado em estratégias para que as empresas apareçam mais nos engenhos de busca – sim, isso existe), Dorsey tascou uma definição curiosa do “filho”, que pode valer tanto para o fascínio quanto para o desprezo dos internautas ante a ferramenta. Para o “pai” da criança, “o Twitter é como escrever no muro: há pessoas que passam por ele e resolvem ler, ao passo em que outras simplesmente o ignoram”. No coro dos entusiastas da ferramenta, o jornalista suíço Nico Luchsinser povoou a web, recentemente, com um texto já bastante evocado por internautas a respeito dos, de acordo com ele, vários usos do Twitter para profissionais da notícias. Para ele – que também segue o lema de não ultrapassar os cento e cinqüenta toques (dez a mais do que o Twitter) em cada comentário que faz no seu blog pessoal –, o Twitter pode e é usado para escrever notícias, arregimentar informações e se conectar com os leitores. Alguns sites noticiosos, a exemplo do brasileiro G1, já identificaram no Twitter mais uma maneira de divulgar suas últimas notícias. Nos Estados Unidos, os can-
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didatos, assessores de campanha e eleitores das prévias inundam o sistema com informações. Barack Obama tem seis mil, seiscentos e sessenta e três se seguidores no Twitter. Hillary Clinton, apenas trezentos e cinqüenta e nove Tal diferença de popularidade twitterana é explicada em partes, pelo número de atualizações. Enquanto a candidata só atualizou a ferramenta vinte e sete vezes, Obama já contou sessenta e oito vezes onde estava e o que fazia. Não é para menos, as eleições estadunidenses deste ano já foram batizadas de Eleições 2.0 (uma referência à expressão Web 2.0, que descreve a segunda geração da www, cuja principal característica é a maior participação dos internautas na produção de conteúdo e troca de informações). Outros motivos têm sido elencados por especialistas e usuários comuns para se abraçar a idéia do Twitter. A lista vai de “informar-se”, “entrar em contato com os amigos”, “conhecer pessoas”, “exercitar o poder de síntese”, “divulgar produtos”, “fazer propaganda de seus posts”, “divulgar links”, “fazer perguntas e obter respostas” (este último a escriba tentou, mas não obteve retorno) a “entender o que as pessoas estão pensando sobre temas do seu interesse”, e por aí vai. Um dos integrantes da corrente do contra, o professor Sérgio Lima, que dá aulas de Física a jovens do ensino médio e mantém um blog sobre física, ensino e tecnologia, considera o Twitter uma “ferramenta inútil”. Para ele, antes de mais nada, “na atual super-dosagem de informação em que vivemos, tudo que menos desejo é receber mais e mais informações irrelevantes ou idéias sem a devida maturação”. Em resposta aos que vangloriam o fato de o Twitter “furar” outras mídias, com circulação de notícias antes de qualquer veículo, afirma que essa vantagem temporal é mínima, nunca mais de uma hora, irrelevante a menos que se esteja participando de um leilão. O professor também considera que o trabalho das pessoas conectadas à Internet tende a ser prejudicado com serviços do gênero. “Imagina quanto sua produtividade vai ser impactada negativamente ao acompanhar e filtrar (supondo que o twitteiro faça isso) o miolo de pote da eventual informação útil que rola numa ferramenta dessa”, exemplifica. Lima também não acredita que seja possível fazer boas sínteses via Twitter, já que para isso é necessário ter “estofo intelectual e reflexão, e refletir não é incentivado por esta ferramenta”. Enquanto as discussões se acaloram dentro e fora da (micro)blogosfera, um milhão de pessoas deverão usar a ferramenta antes de abril chegar. A projeção, calculada pelo blog Twitter Facts, leva em consideração os crescimentos assombrosos alcançados até agora. E a concorrência começou a se coçar. Jaiku, Powce, Gozub (este brasileiro) e outros são sites parecidos, que fazem basicamente a mesma coisa com pouca diferença. Durante a redação deste texto, um usuário alardeava que queria se matar – tomara que metaforicamente –, o outro estava jantando com a mulher e o bebê, Alexandre acabava de ser anunciado como o novo eliminado do BBB (direto do G1), aquele que queria se matar destruiu o laptop (antes o computador), um cidadão esperou uma hora pelo ônibus e outro descaradamente avisava que procurava pornografia na rede. Por fim, Saskuna, o citado lá no começo desta matéria, continuava com dores de cabeça, razão pela qual precisou ir embora. Com essa deixa, este texto também chega ao fim. Com sete mil, trezentos e oitenta e um caracteres (sete mil, duzentos e vinte e um a mais do que o Twitter permite), podem conferir. Se mídia potente de informação, voyeurismo sem graça, clube digital ou perda de tempo, só usando para saber. Agora, parafraseando o global Bial, é só dar uma espiadinha e também contar a quantas anda sua vida. Então, para começar, o que você está fazendo agora? yy
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que descumpre o prometido e tira-lhe o capuz, Eros vai embora, pois “o amor não sobrevive sem confiança”. Daí a insegurança de um questionar o amor do outro e exigir provas. A angústia da perda é retratada no poema de Fernando Pessoa (“Eros e Pisque”) quando diz que ela “sonha em morte a sua vida”. Mais uma vez a pulsão de morte. É também sobre a angústia que Freud dá três pilares para o amor na relação do luto e da melancolia como o fator “analítico”, no qual um deseja repetir sua vida familiar com o outro, o “narcísico”, ligado à possessão, e a “escolha afetiva”, ou seja, as escolhas pessoais. É fato dizer que o amor cega, mas ele não é cego. Vê-se muito bem no objeto amado o Eu faltoso de acordo com nossas identificações. A partir daí passa-se à “fase social” do amor, o de querer mostrar este amor à sociedade, e à “fase psíquica”, na qual os problemas do dia-a-dia coexistem. Assim, amar é aceitar as angústias do outro. Maior ainda é a aflição do amor de mão única. Se angústia é fala entupida, fala do seu sentimento o sujeito amante ao objeto amado. Mas o amor é onipotente. É pulsão de vida. Quando se ama, acha-se que pode mudar o pensamento do outro e ter reciprocidade no amor. Ah, sensação de morte esse amor platônico! Como sobreviver sem ter aquilo que não se possui nem se vai ter? É preciso dizer “eu te amo” e dessas três palavras fazer uma homilia. Verborragia amorosa é blá-blá-blá inútil. Porém, faz consumir o amor sem reciprocidade. Sem sintonia, o amor transforma-se em ódio ou em mágoa do ser amado, culpado pela não completude do Eu faltoso, arrebatado pela memória, que faz resgatar este Eu. É a fase dos suspiros de saudade. É o que cantou Renato Russo: “Quando não estás aqui, sinto falta de mim mesmo”. E saudade é assim mesmo. É tudo aquilo que a gente tenta preencher da ausência nos esvazia. Mas o ser amado aparece na nostalgia embrulhada pela mágoa. “Se fosse só sentir saudade, mas vem sempre algo mais”, descreveu Renato Russo. Coração ferido, Eros banido. Vida-morte, morte-vida. O amor desabrocha rejuvenescido e inexperiente. Quando discorre sobre o amor, Betty Milan diz que todo amante é marinheiro de primeira viagem e a paixão anterior nada ajuda na de agora, pois “o meu amor de agora é só amor, não é de agora”. Isto é, “o amor quando acontece a gente esquece tudo que sofreu um dia”, como canta João Bosco. Com casca, é preciso seguir adiante. Como diz o provérbio contemporâneo, “a fila anda”. Para muitos, ela voa, embarcada na angústia e no dever do encontro desse elo perdido do Eu faltoso. O amor dos nossos dias apropria-se do resultado da união de Eros e Psique, ou seja, a Volúpia (deusa do prazer). É o que Milan chama de sexo como forma de interditar a paixão, que nos fez puritanos ao contrário. Mas o que é o amor, afinal? É um eterno não saber. Porque quem ama, como disse o Pessoa, nunca sabe o que ama nem sabe por que ama, nem o que é amar. “Amar é a eterna inocência. E a única inocência é não pensar”.
SXC/Cortesia
ário de Andrade já disse que amar é um verbo intransitivo. Enfim, aquela forma que não necessita de complemento, ou seja, a cara-metade, a tampa da panela, a metade da laranja. Irônico como o título do livro de Mário de Andrade é a forma contemporânea de amar. Do sagrado amor, tornou-se profanado pelo dever de amar, representado apenas pelo ato de “namorar”, fazer do amor moradia, abrigar-se nele. O amor intransitivo é amar sem se importar qual seja o objeto amado. O olhar não muda. O que muda é o objeto olhado. Daí tantos namoros seqüenciais impostos pela sociedade atual como obrigação. Está namorando? Muitos fazem esta pergunta como cobrança. Namorar: conjugação vazia aos solitários; tempo gerúndio transitório aos que “estão namorando”. Hoje o amor está no ar e ninguém sabe como captá-lo na sua essência romântica de acordo como ele foi pensado e articulado. Banalizado, ele parece necessidade corriqueira. É preciso entrar na roda do jogo e namorar, pois ele está atrelado ao conceito da felicidade plena. Quem não namora é infeliz, pensa-se. Mas o que é o amor? Diferentes fases tiveram o amor. No período medieval, o “amor cortês” ditava as regras das relações baseadas nos princípios e econômicos com o dote como garantia, pois o casamento era indissolúvel segundo a Igreja. Necessário garantir o futuro “até que a morte os separe”. Era exercido pelos nobres da corte, pois a plebe, como disse Foucault, se “pavoneava” nas aventuras do acasalamento. O amor cortês era racional. Só no limiar do século deszoito para o dezenove surge o “amor romântico”, vinculado à liberdade da escolha, porém salvaguardado pelas doutrinas da Igreja e da burguesia, que reprimiam as práticas sexuais permitidas apenas no enlace matrimonial. A lenda medieval de Tristão e Isolda e, mais tarde, Romeu e Julieta são os ícones dessa transição do amor cortês ao amor romântico. Só são perfeitos e insolúveis por causa da morte. De lá para cá, a literatura, o cinema, a teledramaturgia, a música e os meios de massa construíram o amor romântico e suas facetas. Mais tarde, a psicanálise sucumbiu às relações amorosas quando Freud fala da “estranha relação de amor” entre o Eros (pulsão de vida) e Thanatos (pulsão de morte). Freud nos coloca diante da pulsão de vida na busca da felicidade prometida e da pulsão de morte com a autodestruição. Antagonista é o amor. Nele há sempre essa condição, pois o amor nada mais quer do que o amor. Se não o tenho, nada importa. Essa é a relação entre o “amante”, o sujeito que ama, e o “amado”, aquele sobre o qual recai o amor do sujeito amante. É necessário ser uma via de mão dupla. Quando não ocorre essa junção, o amor aproxima-se do ódio, do desprezo. Jacques Lacan articula o amor como sendo faltoso. Logo, “o amor é dar o que não se tem”. Isso porque o sujeito “amante” vê no objeto “amado” aquilo que lhe falta, porém lhe completa. Espelho narcísico que não reflete o Eu no Outro. Mesmo compartilhando o amor, o “amante” e o “amado” não se vêem. É como na mitologia onde Eros (deus do amor) casa-se com Psique (alma), na condição dela não ver seu rosto, encoberto por um capuz. Quando Psi-
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Valmir Costa
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E squina da Praรงa do Carmo com Dantas Barreto, 23h30