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Alexandre BelĂŠm

Antologia dos novos escritores pernambucanos no Saber +

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I néditos

EDITORIAL A primeira vez que D. Lourdes viu Ascenso Ferreira tinha dezessete, e o poeta já contava com uns cinqüenta anos. Se a diferença de idade já era grande, maior ainda foi o susto: D. Lourdes achou que Ascenso era o fantasma de um amigo de família que há pouco falecera. Assustada com a assombração, ela caiu no chão e a história dos dois começou. E foi uma história de tramas tão curiosas que até parece mesmo coisa de outro mundo. A vida da eterna companheira de um dos principais autores pernambucanos é a matéria de capa deste Pernambuco. O texto é assinado por Valéria Torres da Costa e Silva, responsável pela organização e notas da novíssima edição reunida de “Catimbó”, “Cana caiana” e “Xenhenhém”, lançada pela Editora Martins Fontes este ano. Para Valéria, D. Lourdes é uma espécie de Pagu pernambucana. Visivelmente apaixonada pela história, a autora nos leva, a partir de uma linguagem quase literária, por um passeio pelas festas, dramas e preconceitos do Recife dos anos quarenta e cinqüenta. E por falar em datas e números, os cem anos de Ian Fleming (o criador de 007) são lembrados num divertido texto do escritor Fernando Monteiro. Sua missão foi a pergunta “qual é o seu filme do James Bond favorito?”. Quando a gente foi pensar na edição da página deste artigo, a primeira regra era seguinte: nada de ilustrar Bond com aquelas velhas e cansadas imagens de explosões, carros de luxo e coisas do tipo. Como uma das marcas do filme favorito de Monteiro, “Goldfinger”, é o grito da cantora Shirley Bassey, nossa idéia foi colocar uma montanha-russa com o povo berrando “Gooooldfinnnngger” bem alto na hora do loop. Quem retorna nesta edição é a poeta e tradutora Lenilde Freitas, que verte para o português e apresenta uma autora bem curiosa, a poeta inglesa Charlotte Mew, pouquíssimo conhecida no Brasil e até mesmo na Inglaterra. Os dois poemas traduzidos por Lenilde são uma grata surpresa. Às vésperas das Olimpíadas, nossa garota na China, Ana Addobatti, entre uma mordida e outra no McDonalds, revela detalhes da enorme obsessão dos chineses pelos seus heróis nacionais, sobretudo nessa época em que o país sobrevive a tragédias que abalaram o mundo. O Inéditos desse mês é um auto-retrato do fotógrafo Renato Spencer. Vale ressaltar que o Pernambuco nos últimos meses tem se dedicado a publicar imagens que vão além do mero registro fotográfico para assegurar um suposto real. Nossa intenção é fazer um pequeno mapeamento de quem está tratando a fotografia como uma produção artística, com tudo o que de artificial e revelador essa expressão contém. Mas o grande destaque da edição é mesmo o Saber +, que vem com uma antologia reunindo quem está fazendo a literatura pernambucana hoje. E por hoje, entendemos uma expressão bem elástica: é gente que publica na imprensa, em blogs ou que mostra a amigos com um certo pudor. É gente que não tem um livro publicado (alguns até têm, mas ainda estão em busca da forma perfeita, e será que ela existe?) ou mesmo nem sabe se quer algum dia publicar um. O mais importante para esse pessoal é escrever – talvez esse seja o único elo entre os autores aqui selecionados, o que já é muita coisa. Talvez essa seja a primeira vez que uma reunião de tantos textos atuais e inovadores é feita aqui em Pernambuco nesta década. Mas sobre isso Raimundo Carrero (o responsável pelo estalo inicial deste projeto com os novos autores) explica melhor no Saber +. Boa leitura e até o próximo mês

Renato Spencer

Schneider Carpeggiani

Uma publicação da

Companhia Editora de Pernambuco - CEPE

Circulação mensal integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco

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GOVERNADOR DO ESTADO DE PERNAMBUCO Eduardo Henrique Accioly Campos

PRESIDÊNCIA Leda Alves

SUPERVISÃO DE REDAÇÃO Schneider Carpegianni

DEPARTAMENTO DE PRODUÇÃO GRÁFICA Júlio Gonçalves

Vice-GOVERNADOR DO ESTADO DE PERNAMBUCO João Lyra Neto

DIRETORIA DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo

REDAÇÃO Marilene Mendes Gilson Oliveira (revisão)

SUPERVISÃO DE IMPRESSÃO Eliseu Souza

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Luiz Ricardo Leite de Castro Leitão

DIRETORIA ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA Bráulio Mendonça Meneses ARTE Jaíne Cintra (edição) DEPARTAMENTO DE SUPLEMENTOS Raimundo Carrero DIAGRAMAÇÃO Militão Marques SUPERINTENDÊNCIA DE CRIAÇÃO Luiz Arrais SUPERVISÃO DE DIAGRAMAÇÃO E ILUSTRAÇÃO Joselma Firmino

SETOR DE PRÉ-IMPRESSÃO Roberto Bandeira

CONTATOS COM A REDAÇÃO 3217.2597/3217.2598 redacao@suplementope.com.br ATENDIMENTO AO ASSINANTE 0800 81 1201 3217.2521 / 3217.2522 cepecom@cepe.com.br

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F ílosofia

Renata do Amaral

Sobre a compulsão de guardar tudo na memória. Da máquina, não do fotógrafo

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ecife, 7 de maio, Teatro Guararapes. Apresentação única do novo show do cantor Ney Matogrosso, “Inclassificáveis”. Além da mais que comentada perfeita forma física do artista, chama atenção a avidez da platéia na hora de fotografar com suas câmeras digitais e telefones celulares. Não seria exagero dizer que boa parte do público passa o espetáculo inteiro com máquinas em punho. Enquanto filmam ou clicam, ficam vidrados de tal forma nas microtelas que até esquecem que podem aproveitar para ver a performance ao vivo, sem mediação alguma. Aproveitar o momento, enfim, em vez de perdê-lo ao tentar captá-lo para sempre. De que serve tirar uma casquinha (é exatamente isso que fazem afoitas mocinhas de 8 a 80 anos quando o cantor desce do palco e passeia pela platéia), se não houver registro para comprovar e mostrar para os amigos? De nada adiantaria argumentar com os fotógrafos e videomakers amadores de plantão que seria mais produtivo curtir o show e depois visitar o site do artista para baixar fotos profissionais de alta qualidade, no lugar dos garranchos escuros que costumam resultar de tais esforços. Quem sabe, comprar o DVD quando ele chegar às lojas, para ver de pertinho? Ora, a sugestão pode até parecer uma afronta: o que vale aqui é ter sua versão para contar, não importa quão borrada ou fora de foco ela seja. De preferência, com a própria estampa também enquadrada no canto da foto, no melhor estilo “eu estive aqui”. No dia seguinte, o evento pode virar tema de fotologs e blogs para terminar

de cumprir sua função. A compulsão de guardar tudo na memória (da máquina, não do fotógrafo, vale dizer) costuma gerar algum clique que se salve e mereça ser divulgado. Como o registro da experiência passou a valer mais que a experiência em si? A psicanalista Maria Rita Kehl, em seu livro “Videologias” – cuja capa, não por acaso, é ilustrada por um olho em forma de câmera fotográfica –, dá algumas pistas: “Em plena cultura do individualismo, da independência pessoal e da liberdade (como valores dominantes), vive-se uma espécie de mais-alienação, de rendição absoluta ao brilho não exatamente dos objetos, mas da imagem dos objetos”. Numa era em que a vida privada se torna pública com a ajuda da web, a imagem ganha mais força ainda. É como se cada diário ou álbum virtual fosse um reality show em miniatura. Não há como dissociar a fotografia digital desse fenômeno nem da facilidade de fazer uma quantidade de cliques quase ilimitada. Por que tirar dez fotos quando se pode tirar cem? A falta de limite facilmente vira falta de noção, para desespero de quem é convidado para dar uma olhada nas fotos das últimas férias. O consumo também é força motriz desse exagero, seja na troca do celular a cada dois meses, seja na ansiedade de acumular informações que talvez nunca sejam usadas. Como os apetrechos eletrônicos são sinal de status, vale a pena entrar no cheque especial para exibir em público o último modelo de celular ou a câmera com mais megapixels – mesmo sem entender o que isso significa, afinal. Qualquer

semelhança com o comportamento infantil de levar o brinquedinho novo para mostrar na escola, não é mera coincidência! Por outro lado, guardar centenas ou até milhares de fotos na memória do computador pode revelar uma compulsão por possuir informação que pode nem vir a ser acessada. O simples fato de ela existir traz alguma segurança, como no caso dos internautas que baixam discos e mais discos que nunca vão ouvir ou que salvam, para ler depois, textos que nunca vão ler. A posse pela posse, sem sentido e sem reflexão. O filósofo esloveno Slavoj Zizek defende que, na explosão das torres gêmeas, em Nova Iorque, a maior parte dos telespectadores viu a realidade como ficção. “A imagem exaustivamente repetida das pessoas correndo aterrorizadas em direção às câmeras, seguidas pela nuvem de poeira da torre derrubada, foi enquadrada de forma a lembrar as tomadas espetaculares dos filmes de catástrofe, um efeito especial que superou todos os outros, pois (...) a realidade é a melhor aparência de si mesma”, afirma o autor no seu livro “Bem-vindo ao deserto do real!” Seria essa obsessão pela representação, no lugar do acontecimento, um dos motivos pelos quais alguém prefere uma tela minúscula, mesmo estando diante do palco onde se passa a ação? Qualquer que seja a resposta, vale a pena dar voz a Ney Matogrosso na música “Coragem, coração”, de Cláudio Manjope e Carlos Rennó, que faz parte do repertório do show: “Respire fundo como yogue, saia pro mundo, caia do blog e na batida da vida se jogue!” yy

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aquele Maio de 68 francês – que acabou de completar quarenta anos –, entre tantas ruínas, tantos estilhaços que até hoje atingem aqueles que acreditaram na possibilidade de um mundo melhor, pouco sobrou. Uns cacos de sonho e uma geração indiferente. Um mundo falido e insustentável. Becos sem saída e teorias vãs. Um cinismo constrangedor. André Gorz, um dos pensadores de ponta do existencialismo-marxista, na linha de frente daquelas românticas barricadas, escreveu, entre muitas obras teóricas de valor, uma derradeira: uma longa e emocionante carta de amor intitulada “Carta a D. – História de um amor” (CosacNaify/Annablume, 2008). Se como teórico foi um homem que, desde os idos anos 70, refletiu sobre a ecologia política, forte e sensível crítica ao capitalismo, uma “ecológica, social e cultural revolução que deseja abolir os constrangimentos do capitalismo”, militando com suas idéias para que o planeta pudesse, mais que se sustentar, sobreviver à adversidade humana (indo muito além dos oportunismos degradantes que presenciamos em nossos dias), é neste belíssimo livro que o pensador, que foi a fundo em seus ideais e em sua vida, chega àquele patamar luminoso da existência de que fala o grande poeta Rainer Maria Rilke: “(...) apenas quem está pronto para tudo, quem não exclui nada, nem mesmo o mais enigmático, viverá a relação com uma outra pessoa como algo vivo e irá até o fundo de sua própria existência”. Ao abordar a questão da presença de sua companheira Dorine em sua escrita ensaística, Gorz percebe, e mostra de maneira ímpar ao leitor, que D. está mais presente do que ele imaginara: ela está no âmago da estrutura de seu percurso intelectual que, claro, deságua em sua teoria escrita. Sua “Vênus de Milo tornada carne”, mais que alma: um presente tão intenso que a teoria mostrou-se frágil na prática extática da convivência amorosa. A prosa fluída de Gorz carrega o leitor pela extraordinária aventura da eternidade – aquele ponto específico e atingível apenas através da transcendência espiritual, da dor imensa, do transe. “Carta a D.” é uma espécie de testamento lírico que, de alguma forma, mesmo por força de oxímoro, vem de encontro à sua teoria de uma ecologia humanista como proposta de salvação da singularidade e liberdade humanas. A consciência da perda nos faz remodelar a concepção de realidade. Instância de extrema dor, a perda violenta noticia em suas não raras histórias que essa reconstrução muitas vezes nos rouba a sanidade e até mesmo a própria vida. Reconstruir algo no espírito não é necessariamente torná-lo melhor, mas sim torná-lo suportável. E esta instância é extremamente dolorosa. “Nossa história começou maravilhosamente, quase um amor à primeira vista”. A vida de Gorz foi inteiramente filtrada pela existência de Dorine: “Você descobriu para mim a riqueza da vida, e eu a amava através de você (...)”. “Perguntei-me como é que você era capaz de suportar o fracasso de um trabalho ao qual eu havia subordinado tudo desde que me conhecera. E eis que, para me libertar dele, eu me lançava de cabeça num novo empreendimento que iria me monopolizar sabe Deus por quanto tempo ainda. Mas você não mostrava nem preocupação, nem impaciência. ‘Sua vida é escrever; então escreva’”. “Nós seremos o que fizermos juntos”, diz Dorine a Gorz ao ser questionada sobre o “pacto da vida inteira” de que haviam pensado. Tanta lucidez em palavras tão doces quanto certeiras e que funcionariam para todas as instâncias da vida. O “fazer” sempre foi mais que simples partícula de retórica para o casal, já que “a teoria sempre ameaça se tornar um constrangimento que nos impede de perceber a complexidade movediça da realidade”, como sabiamente dizia ela a ele. É com um alumbramento cortante que o leitor se depara com trechos como: “Nós desejaríamos não sobreviver um à morte do outro. Dissemonos sempre, por impossível que seja, que, se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer passá-la juntos”. Entre inúmeros pontos luminosos, este livro é uma comovente carta que nos leva muito mais longe que a própria eternidade, nos leva para a rara aventura da valoração de cada dia de sol, de chuva, de cada noite, de cada instante, um a um, por uma vida que, entre terremotos e buquês, se realizou acima de todas as máscaras. yy

Entre inúmeros pontos luminosos

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Um passeio pela prosa fluida de André Gorz, que coloca em questão o tema da presença no livro “Carta a D. - História de um amor” Fabiano Calixto

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s filmes de James Bond fazem da parte da minha formação – como duas ou três jóias de entretenimento que passavam pela sofisticação, pela ironia e pelo gosto por ambientes exóticos muito além do Bar Savoy (onde se bebia a cerveja meio morna do centro do Recife – ainda não degradado – que ficou para trás). Bem, eu admiro “The Servant”, “Cronaca Familiare”, “Lawrence of Arabia”, “Limite”, “Rio Bravo”, “Vagas Estrelas da Ursa” e (por que não?) pelo menos dois filmes baseados nas novelas de Ian Fleming – sem a frescura de muita gente que, naquela época (anos 60), fingia desdenhar dos “Bonds” em série, aguardados do mesmo modo como a garotada, hoje, aguarda o bruxismo do Harry Potter infanto-juvenil criado com máquina calculadora no coração da indústria cinematográfica. Os “Bonds” também queriam grana, é claro, mas não só isso, e, se nem todos foram bons, há um núcleo de charme, elegância e até refinamento, em alguns daqueles filmes feitos em cima do clima da Guerra Fria. Sim, há uma nítida separação entre, digamos, as três primeiras produções (as melhores da série, em minha opinião) e as outras que diluíram o personagem central e os perigos por ele enfrentados, perdendo matéria e direção, até chegar a esse último filme com um brutamonte sem jeito (Daniel Craig) que só sabe fazer uma única coisa: correr (e como corre, essa jamanta humana, com seu bíceps incapaz de não estufar um smoking como pentelhos não aparados estufam o colante vestido de seda de uma bela mulher). Os “James Bonds” são o melhor ícone pop do Cinema – junto com “Blow-up” (noutra dimensão) – desde aquela Londres que também exportou os quatro rapazes de Liverpool e muito “fumo” misturado ao fog. Bons tempos. Havia um clima de ligeira melancolia (repito: nos três primeiros filmes) que dava saudade daquilo que a gente não havia vivido em Istambul ou nas estradas dos Alpes trafegadas por carros modelo esporte a caminho de uma bala ou de uma explosão. O primeiro Bond – “O satânico Dr. No” – foi o mais baratinho dessa primeira leva. Nem seus produtores acreditavam muito no sucesso do filme, de orçamento curto, confiado ao competente Terence Young, com roteiro baseado na obra de um escritor guindado para a fama (imediata) numa entrevista de final de semana do presidente John F. Kennedy. Você não sabe a história? Eu conto: o futuro cabeça-explodida Kennedy (que era, no fundo, mais um porra-louca disposto a detonar o planeta) havia encerrado a sua entrevista coletiva das sextas-feiras, e já ia saindo do Salão Oval – fixação das Monica Levinsky –, quando um repórter ainda lançou sua pergunta jogada sobre as costas de JFK: “Presidente, o senhor está levando alguma coisa para ler no final de semana?” Sim, porque era um tempo em que os presidentes americanos liam – coisa que George

Bush nunca fez e que o nosso Mandatário vive dizendo para ninguém fazer (porque “não precisa”, para se chegar a Presidente da República Federativa do Brasil). Bom, voltemos ao Oval. Kennedy se voltou – com aquele sorriso de garotão alimentado a leite espesso com cornflake –, e, talvez de brincadeira, resolveu responder: “Ah, eu estou levando um romance de Ian Fleming”... “Ian Fleming?” Ninguém conhecia. E todo mundo foi para as suas redações com esse nome desconhecido na cabeça, e, de lá, os editores mandaram os “boys” em algumas das muitas livrarias de Washington – de onde voltaram com exemplares meio empoeirados de novelas (todas de espionagem) do tal Fleming. Não deu outra: quando o nome surgiu nos jornais americanos, em poucos dias se esgotaram todas as boas histórias que o ex-agente inglês sabia inventar, com aquela classe que sempre faltará aos seus (apareceram logo) muitos imitadores. Essa é a história – real – da fama instantânea do “pai” de James Bond. Mesmo assim, os direitos cinematográficos do “Dr. No” foram vendidos baratinho-baratinho, e o filme número um da série pode ser assimilado ao “Véio mangaba”: era pobre, meio feio e morava longe, num Caribe para inglês botar defeitos. “O satânico Dr. No” fez, porém, um estrondoso sucesso – com seu ator novato (Sean Connery, boca irônica, perfil afilado e paletós bem cortados) subitamente guindado para a fama, na pele do agente do serviço secreto de Sua Majestade com autorização especial para soluções radicais (leia-se matar mais ou menos ao sabor dos critérios – sempre ambíguos – dos, ãh, “interesses britânicos”). O filme seguinte teria um largo orçamento e seria bem mais interessante: “Moscou contra 007”. Nada mais “Guerra Fria”, não? Por isso mesmo, até que a película poderia estar irremediavelmente datada, se a direção (de novo) de Young não lhe houvesse garantido uma ação trepidante, um ritmo perfeito e os cenários da deslumbrante Istambul. Filme cheio de charme, foi nele que Sean Connery consolidou seu perfil de espião sedutor. O argumento é simples: Bond recebe inusitada proposta amorosa de uma agente russa com acesso aos decodificadores secretos da embaixada soviética na capital turca, porém a terrível organização criminosa S. P. E. C. T. R. E (interessada em ganhar com a confusão entre as grandes potências) também deseja a maquininha – de aspecto bastante inocente, aliás – e isso faz a antiga Constantinopla ferver de ações de espionagem e contra-espionagem, com direito a mulheres bonitas e mulheres feias (uma dessas – a ótima Lotte Lenya – atriz alemã do teatro e do cinema clássicos). Mas, para mim, o melhor filme da primeira safra – insuperável, ao que parece – é mesmo “007 contra Goldfinger”, sob a condução talentosa de Guy Hamilton, e o mais bem interpretado (por outro alemão: Gert Fröebe) dosyyvilões

dos “007”. “Goldfinger” não era tão monolítico como o “Dr. No” e, desde o começo, tem o seu nome sonoramente gritado pela maravilhosa Dame Shirley Bassey, com aquela voz afro-inglesa saída do útero (mais do que do belo peito da Bassey jovem). Isso ajudou – quero dizer, a música ajudou – quase todos os filmes do superespião, com o maestro John Barry à frente da maioria das trilhas que traduziam as seduções amorosas, as traições idem, os perigos inesperados e mais aquela doidice que é o plano de “Goldfinger”: roubar a reserva de ouro da América com aviões despejando gás sonífero etc. Nada mais dementado. Charles Chaplin, então, adorou o filme (ele descobriu “gags” ótimas, nas cenas dos desmaios coletivos). E eu também adorei – e mais a população do planeta que assistiu ao mais charmoso dos filmes de Bond, aquele que começa simplesmente antológico e termina em loucura nos ares, com um miolo no qual o imbatível “007” está, o tempo todo, à mercê de Fröebe, o Midas do Crime, louco por ouro e fazendo seu jogo de gato-e-rato com o agente especial, o que significou mais ação psicológica do que física, nesse filme melhor do que os dois anteriores e não-superado, ainda, pelos que vieram depois (cada vez mais alucinados por uma pirotecnia “tecnológica” que desencarnou o herói, tirou parte da sua elegância humorada e a mínima verossimilhança que existia nos roteiros, até “Goldfinger)”. Sean Connery ainda agüentaria rodar mais alguns Bonds – até o dia em que encheu de vez e passou o bastão, isto é, a pistola automática para o insosso, o morno, o mauricinho Roger Moore, que não conseguiu convencer ninguém de que poderia usar, mesmo, a arma “licenciada” para matar, nas mãos dos 007. Pelo contrário, com a canastrice de Sir Roger, foi dado um largo passo, acredito, para o primeiro tiro no pé do personagem que é hoje interpretado pelo bisonho Craig, mais parecido com um agente truculento do Mossad do que com um inglês rindo um pouco de si mesmo quando viaja para Istambul ou para as montanhas da Áustria, na pista do falso amor ou do ouro verdadeiro. Da idade dourada da série, escolho aquele que me parece o melhor dos James Bonds: Goooooooldfingeeeer! – conforme grita, nos letreiros, a divina Bassey que acabou de completar setenta anos com a voz ainda inteira, enquanto todos olhamos para trás (todos que éramos jovens, nos anos 60), com uma vaga saudade até da Fria Guerra que não conseguiu explodir o mundo. Onde anda a S. P. E. C. T. R. E? Nas covas fundas das montanhas afegãs de Bin Laden? E quem hoje poderia ser humorado e sofisticado – como Sean Connery – enquanto tudo desaba em vulgaridade de seriados? Sidney Bristol (de “Aliás”) é bonita e perigosa, mas não chega nem perto de tudo que o pop misturou no coquetel desse filme velho de quarenta e quatro anos. yy

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A serviço de sua majestade

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No ano do centenário do criador de James Bond, lembranças daquele 007 que ganhou vida graças aos bons gritos de Shirley Bassey Fernando Monteiro

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Por todas minhas sete vidas

Alexandre Belém

A incrível história de Maria de Lourdes Medeiros, a eterna companheira de Ascenso Ferreira Váleria Torres da Costa e Silva

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á pelos princípios do século vigésimo, nas brenhas pernambucanas, nascia uma menininha guenza. Crescida, teria a altivez do cavalo e a solidez do jacarandá. Seria preciso acrescer, ainda, o espírito livre e independente dos gatos. Maria de Lourdes Medeiros, tal qual o poeta mineiro, veio destinada a ser gauche na vida. Seus apuros começaram já no nascimento, pois que a mãe, vitimada por depressão pós-parto, deu a filha a um sujeito que bateu em sua porta. Sorte foi que o avô, Vespesiano, tomou logo conhecimento do fato e tratou de recuperar a neta, que resolveu criar junto a si. Lourdes conta orgulhosa que o Capitão Vespesiano Vieira de Mello fôra jovem e analfabeto para o Recife, trabalhara de cavalariço na Great Western e voltara para Canhotinho letrado e empreiteiro da companhia de trem. Fizera-se, então, senhor de engenho e delegado da região. Das três irmãs da família Oliveira, que lhe ofereceram em casamento, escolheu Amélia, moça pequenina e sábia. Lourdes foi criada no engenho do avô, que ela chama carinhosamente de “Papai”. O pai natural morreu cedo, de morte matada, e a mãe, Beatriz, mulher bonita e coquete, depois de viúva apaixonouse por um homem separado, de família tradicional e abastada. Os dois fugiram quando Lourdes tinha apenas dois anos. Quinze mais se passariam antes que a menina, já moça, reencontrasse a mãe. A fuga de Beatriz marcou a alma de Lourdes de modo indelével, obrigando-a ao amadurecimento precoce da vontade e do caráter. De primeiro, vítima do preconceito, da visão tacanha daquela sociedade tracional e interiorana, Lourdes recusava-se a ir à escola. Tampouco queria aprender a ler. Preferia viver livre e solta nas terras do engenho, desfrutando da companhia inofensiva das vacas, cavalos, cabras, ovelhas e galinhas. Só concordou em estudar a cartilha do ABC por artes de Tia Amância, que a convenceu de que se aprendesse a ler, conseguiria decifrar o enigma que o capinzal soprava no vento. Depois, na escola, aprendeu mesmo foi sobre a crueldade humana, obrigando-se a construir rígida couraça que a protegeria ao longo da vida contra o preconceito e a perseguição. Feita moça, quiseram arranjar-lhe casamento. Recusou-se, alegando que nela não se botava arreio. Foi para o Recife estudar. Na altura de concluir os estudos, ia um dia a atravessar uma rua, nas redondezas do Forte das Cinco Pontas, quando viu à sua frente um homem enorme, de chapéu. Era a hora do crepúsculo e o vulto, vislumbrado à contra-luz, pareceulhe o fantasma de Caetano Vidal, amigo da família recém-falecido. O susto foi tão grande que não viu o bonde se aproximando. Foi jogada ao chão. O vulto enorme correu em sua direção, desejoso de ajudá-la a levantar-se. – Quem é o senhor? É o espírito de Caetano Vidal? – Não, eu sou Ascenso Ferreira. Pronto. Danou-se. Destinos cruzados, destinos selados. Formada e trabalhando em loja de jóias antigas na rua do Imperador, Lourdes passava diariamente em frente ao Café Continental, cruzando sempre com o poeta, que a convidava para um suco. A paixão cresceu e tornou-se indomável. Certa feita, a moça de decisões firmes foi bater à casa do poeta e anunciou que viera para ficar. Foi um Deus nos acuda na família de Lourdes, pois que o poeta era oficialmente casado, além de homem já maduro. Foi a intervenção de Mãe Amélia que acalmou os ânimos do avô e dos irmãos: -- Ninguém bole com Lourdes, se não vai se haver é comigo! Deixem a menina viver a vida dela. A partir daí, Lourdes passou a dedicar-se integralmente a Ascenso. Embarcava nas loucuras do poeta e compartilhava com ele a opção por uma vida plenamente vivida. Dez horas da noite Ascenso dizia: -

- Lourdes, se arrume, que vamos sair. Pegavam o bonde, desciam no Recife Antigo, iam para o Grande Hotel, jantavam, jogavam e depois saíam andando pelas pontes e ruas do Recife, encontrando os grupos de amigos pelos bares. Vez por outra a turma decidia ir apanhar o sol com a mão, na praia de Boa Viagem. Dali, antes de ir para casa, dormir o sono dos inocentes, passavam pelo Mercado de São José, pra tomar um café da manhã “sustento”, com macaxeira, inhame, carne de charque, carne de sol, queijo manteiga. Em outras ocasiões, iam ver as damas da noite passar, luxuosamente vestidas e perfumadas, em carros abertos. As moças da casa de Alzira Melo falavam francês, tocavam piano, esbanjavam elegância e bons modos. Ascenso mandava fechar o cabaré e levava Lourdes, chamava os amigos e ali passavam as horas, jogando, bebendo e cantando, ao som do piano, tocado por mãos de sinhásmoças, que haviam dado um mau passo. Certa feita, Ascenso e Lourdes haviam saído do Grande Hotel já a altas horas da madrugada, e caminhavam pela rua sozinhos em busca de um carro, quando foram abordados pela “viúva”, que queria prendê-los por vagabundagem. Lourdes correu, subiu no parapeito da ponte e ameaçou: -- Se me prenderem, eu me jogo da ponte. E Ascenso, por sua vez, alegre e serelepe, já meio enfiado na viatura, exclamou: -Deixa de besteira, Lourdes, vamos dar uma volta na viúva! A sorte é que o delegado Apulcro Assunção, amigo do casal, viu o furdunço da janela do hotel, desceu e resolveu a situação, mandando soltar o Diretor do Tesouro do Estado – Rapaz, solte logo esse homem, que senão, amanhã ninguém no Estado recebe. Quantas vezes Lourdes acompanhou Ascenso a catimbós, xangôs e bumbas-meu-boi é conta impossível de ser feita. Certa noite de São João, Ascenso lhe disse: -- Lourdes, tem um samba de parelha trocada, lá no Alto da Foice e eu quero ver, que é muito raro. Roupas trocadas, tomaram um carro de aluguel, que parou ao pé da ladeira do Cu de Boi. Havia chovido e a ladeira, além de íngreme, estava enlameada. Toca Ascenso e Lourdes a subir de pés a ladeira. Chegaram lá em cima, vinham dois criolos: -- Lá vem um coroné com a mulhé. Vamos roubar-lhe o dinheiro e tomar a mulhé. Lourdes se aperreou, mas quando os homens chegaram, reconhecerem logo Ascenso, que de caderneta em punho esclareceu estar em busca de um samba de parelha trocada para suas pesquisas folclóricas. Ao chegarem à casa do samba, Lourdes se espantou com a presença de arrombadores de renome: Concriz, da Peixeira, Otacílio. Ascenso abraçou todo mundo, o samba foi uma beleza e o sarapatel, melhor ainda. O melhor que Lourdes já comeu na vida. Era só alegria, até que um garoto anunciou a chegada da polícia. A casa esvaziou-se num piscar de olhos. Lourdes e Ascenso saíram caminhando calmamente e se encontraram com o delegado Apulcro, que tinha subido a ladeira: -- Ascenso, que diabo tu tais fazendo aqui, criatura? Ele respondeu: – Me disseram que tinha um samba de parelha trocada, mas me enganaram, ali só tem uma velha cachimbeira! A carona de volta para o Recife Antigo foi na viúva de Apulcro. Em 1948 nascia Maria Luíza, única filha natural de Lourdes e Ascenso. O casal teve também um filho adotivo, Jonas. Ascenso passou a viver para a filha, fazendo-lhe todas as vontades. Lourdes ficava de longe, atocalhando as sandices de pai e filha, que de certa feita quase botaram fogo no cinema Moderno. Em outra ocasião, Lourdes foi dar umas palmadinhas merecidas em Luíza e Ascenso logo ligou para a polícia, dizendo que lhe estavam matando a filha. O delegado, afilhado de Lourdes, quando chegou e constatou a situação, passou um pito em Ascenso. Por essa altura, Lourdes já tinha suas terrinhas em Canhotinho, onde criava e vendia gado. Era conhecida como a mulher vaqueira. Terá sido a primeira pernambucana a correr vaquejada. E vaquejada daquelas de cabra valente, que se corre no meio das brenhas, de gibão e chapéu de couro,

pra não ser destroçado pela vegetação agreste, retorcida e espinhosa. Em cima de um cavalo ninguém segurava aquela mulher, que olhava o mundo do alto e sentia-se livre de arreios, de autoridade e de convenções. Montada em seu cavalo, com um revólver nos quartos, enfrentou até o delegado de Canhotinho, que bulira injustamente com trabalhador seu. Invadiu a delegacia, com cavalo e tudo, de modo a botar freio nos desmandos da autoridade local. Depois da confusão armada, Ascenso corria a apagar o incêndio. Amavam-se assim. Tal qual eram. Ele com seu espírito boêmio, seu desejo insaciável de embriagar os sentidos, e ela com seu amor pelo mato, pelos bichos, prezando acima de tudo sua independência. Respeitavam-se e aceitavam-se sem poréns. Quando, em 1965, Ascenso não resistiu à doença que o abatera desde a exoneração do cargo de diretor do Instituto Joaquim Nabuco, Lourdes e Luíza sentiram-se desemparadas e desesperadas. A mulher de espírito altivo, sentia-se baquear. Tanto mais que na seqüência da morte de Ascenso, acusada de comunismo, Lourdes vendeu tudo o que tinhas e às pressas deixou Pernambuco, rumo a São Paulo e, depois, ao Rio de Janeiro. Perseguida desde a infância pelo preconceito de uma sociedade tacanha e mesquinha, era agora vítima de perseguição política: -- Eu, que nunca fui comunista. Era apenas, e sou até hoje, uma humanista! A amizade com Arraes e Luiz Luna e, sobretudo, a recusa em silenciar suas idéias e opiniões voltaram contra Lourdes a sanha dos Militares. Escapou à prisão por intervenção do irmão mais novo, que lhe conseguiu um salvo-conduto junto ao Governador Paulo Guerra. A vida solitária, no Rio, não lhe foi fácil. Anos depois, quando pôde voltar ao seu Recife amado, com a ajuda de Joaquim Inojosa, trouxe debaixo do braço o livro “Pá de cal”, envolvendo-se em confronto direto com Gilberto Freyre. Também a família, por assim dizer, “legítima”, de Ascenso Ferreira não deu tréguas a Lourdes e Luíza, a quem o pai deixou todos os direitos sobre sua obra. Silenciosa, mas incansavelmente, Maria de Lourdes Medeiros enfrentou todas as resistências, dedicando-se, desde o seu retorno a Pernambuco, à defesa da memória e da obra do seu grande amor. Tal como havia sido em vida a companheira fiel, a parceira de todas as horas e de todas as situações, segue sendo a guardiã incansável e feraz do legado de Ascenso. Vive hoje com seus vinte gatos e Clara, a cachorrinha, em antigo casarão do Campo Grande. Está ali cercada de Ascenso por todos os lados, defende o poeta e sua poesia com a própria vida, sem exagero da metáfora. Os gatos, que também estão por toda parte, são os entes do reino animal que Lourdes mais preza, depois dos cavalos. Simbolizam a liberdade de espírito e a independência de que ela própria não admite abrir mão. Esses felinos são, de certo modo, o espelho em que Lourdes se mira diariamente. Vive sozinha por opção, pois que não quer ninguém lhe ditando as regras do viver, mas assegura que não está só, jamais: quem passou pelo mundo com tanta intensidade, tem como companhia um baú incomensuravelmente rico de memórias. yy

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Tradução e notas de Lenilde Freitas

Dezessete anos faz, você disse alguma coisa que soou como um Adeus; e todos pensam que você está morto — menos eu. À medida que a tudo ressurjo dura e fria, Adeus também isso quer dizer; e todos vêem que estou velha — menos você. E se uma bela manhã numa vereda ensolarada (mudei a pontuação) dois jovens se encontrarem, e beijando-se jurarem que jamais alguém amou com tal desvelo, enquanto aí você irá sorrir, estarei aqui afagando seu cabelo.

A QUOI BOM DIRE

Seventeen years ago you said Something that sounded like Good-bye; And everybody thinks that you are dead, But I. So I, as I grow stiff and cold To this and that say Good-bye too; And everybody sees that I am old But you. And one fine morning in a sunny lane Some boy and girl will meet and kiss and swear That nobody can love their way again While over there You will have smiled, I shall have tossed your hair.

A QUOI BOM DIRE

Charlotte Mew

C harlotte Mew M

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ascida no famoso bairro londrino de Bloomsbury, Charlotte (Mary) Mew (1869-1928) foi dona de um temperamento tímido e reservado. Passou por graves dificuldades financeiras e sérios problemas familiares, motivos que a fizeram parar de produzir. Foi a última sobrevivente de sete irmãos. Três morreram ainda crianças. Sua irmã Freda viveu a maior parte da vida internada num asilo na Ilha de Wight, onde faleceu em 1958. Seu irmão, Henry, morreu em 1901 num asilo para lunáticos, aos 35 anos. A sombra assustadora desse estigma perseguiu Charlotte e sua irmã Anne. Fizeram então um pacto de permanecer solteiras e assim evitar a transmissão da doença. Após a morte de Anne, no início de sua adolescência, Charlotte não mais se recuperou da dor de tantas perdas. O escritor Thomas Hardy (1840-1928), grande admirador de sua poesia (“far and away the best living poet”), sensibilizado com a situação, consegui-lhe uma pensão alimentícia (o que seria na Inglaterra de hoje um seguro-desemprego) que a amparou até a data do seu suicídio em 1928. Por deixar transparecer uma linha de partida romântica, a trajetória poética de Charlotte nem sempre revela parcimônia na utilização de metáforas e sobriedade no uso de imagens, o que resulta numa linguagem às vezes não muito clara. Mas os temas — solidão, desilusão e medo — são desenvolvidos a partir de uma abertura progressiva à modernidade. A natureza é o painel no qual a autora projeta seu sentimento preciso. Charlotte Mew somente ficou conhecida após a publicação do livro: “The farm’s bride” (“A noiva do fazendeiro”) — inspiração, talvez, para o futuro título do conhecido poema de Anne Sexton “The farm’s wife”. yy

Sea Love

Tide be runnin’ the great world over: ...’Twas only last June month I mind that we Was thinkin’ the toss and the call in the breast of the lover ...So everlastin’ as the sea. Hear’s the same little fishes that sputter and swim, ...Wi’ the moon’s old glim on the grey, wet sand; An’ him no more to me nor me to him ...Than the wind goin’ over my hand.

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Mar/Amar

As águas correm por sobre o imenso mundo: ... Junho passado me pareceu ficar Em nós - acreditei–um amor profundo ...Tão perene é o mar. Sobre a praia bruxuleia a mesma lua. ...Escutam-se os mesmos peixes – nadam em vão; Tu já não és meu, tampouco eu sou tua ... E até o vento escapa de minha mão.

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SXC/Cortesia

PN assaporte

Luís Carlos Pinto

Os últimos dias de uma loja de disco na New Orleans que soube sobreviver a uma tragédia

tudo o que se pode recuperar

Q

uem vai a New Orleans e gosta de blues, jazz, drogas e rock n’roll acaba chegando à Decatur Street, de um jeito ou e outro. É onde ficam algumas das melhores casas de shows e alguns bons bares, longe da algazarra da Bourbon Street – por onde todos os turistas passam, também de um jeito ou de outro. Decatur é onde ficava também uma das lojas de discos mais impressionantes já montadas, a Vieux Carre Vinyl – na verdade uma plaquinha pendurada por duas correntes de metal anuncia que seu nome oficial é Rock & Roll Collectibles. Mas é por Vieux Carre Vinyl que ela é conhecida. Ou era. O lugar fechou as portas, o que é um mal presságio para a cidade conhecida como um dos três locais em que o encontro da cultura negra, européia e ameríndia foi mais virtuosa. Os outros dois locais são o Brasil e a América Central. “Aproveite a promoção. Todos os discos com preço pela metade, ou menos. Nós vamos fechar amanhã”. Foi o que eu ouvi logo que cruzei a grande porta de madeira e vidro do local. Por que vocês estão fechando? “As pessoas aqui não gostam de jazz. Eu diria que elas não gostam de música”, me dizia desconfiado o proprietário, Michael. “As pessoas estão interessadas no turismo das ruas, em beber, passear, ninguém quer mais parar para ouvir discos de vinil, esse aqui é um negócio muito específico”, dizia Michael, um cigarro atrás do outro. Era difícil e ainda é complicado entender isso que Michael falava. A cidade, como se diz por aí, respira música. As influên-

cias creole e cajun, francesas e hispânicas, anglosaxãs e negras produziram composições de jazz e jazz compositores inesquecíveis; e mesmo o folk que se escuta nas ruas de New Orleans é impregnado do soul de Louisiana. “De onde você é?”, “Brasil”. “Oh, yeah! I love brazilian music. Do you know mister Jobim?” A loja de Michael não tinha apenas um acervo de blues e jazz impressionantes. Ele possui praticamente tudo que havia sido feito de relevante na música brasileira no século passado. O que, diga-se de passagem, não é pouco. E foi assim que eu conheci “Por toda minha vida”, disco que Jobim gravou em 1959; “Amor de gente moça”, do mesmo ano; foi assim que eu ouvi “Jazz samba encore”, disco que Luiz Bonfá gravou com Stan Getz em 1963; “Ben é samba bom” e “Samba esquema novo”, ambos de Jorge Ben, 1964 e 1963, respectivamente. E muitos outros discos legais que sabia que existiam e outros que eu nem sabia desconhecer. Só para registro: lá estavam dois (dois!) exemplares de “Bob Dylan, 1962”, primeiro disco que Robert Zimmerman fez pela Columbia Records. Ouvi ainda “Chico canta”, que Chico Buarque fez em 1973, mas que eu só fui ganhar nos idos de 1982, dias antes da Copa começar. E foi assim, ouvindo Chico Buarque e traduzindo as letras do português para o inglês para Michael, que me despedi da minha breve visita a New Orleans, pra onde fui a trabalho. Há o mito de que New Orleans é uma cidade negra na qual os brancos vivem ou para

a qual os brancos se dirigem para ver e viver a cultura negra. Ela é, sim, negra, mas também francesa, caribenha, mulata, hispânica, católica e vodoo - multicultural diriam alguns, por ser ainda hoje a maior cidade portuária dos Estados Unidos. Os dois grupos étnicos principais que lá vivem (os cajun, descendentes dos colonos de Acádia, hoje Nova Escócia, Canadá, e os creole, os francófonos brancos e negros que começaram a chegar no século XVIII) moram abaixo do nível do mar, cercados pelas águas barrentas do rio Mississipi, por um lado e por um enorme lago do outro. Há quem diga que essa geografia é o que explica o clima de permanente celebração, como se o fim do mundo estivesse próximo a todo instante na forma de água. Disso eu não sei. Sei que alimenta um pouquinho aquele mito de cidade-festa. O que me pareceu mais certo é dizer, como os dois únicos taxistas que me conduziram em momentos diferentes, que as regras no French Quarter (principal área turística) são feitas pelos brancos. E que a tal diversidade, acondicionada em formato de vinil na loja de Michael, é celebrada de tal forma que esconde lógicas de apropriação e de exclusão muito claras – pelo menos para quem se dispor a olhá-las. Mas antes que me perguntem, sim eu amei a cidade. Banha-lhe uma luz de abril no mês de março (talvez por isso há quem escute tanto Jobim por lá); banha-lhe por fim, as ruas, a urina e o álcool dos bêbados, a água e a lama de um rio inodoro e anasalado. yy

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M emória

A

fumaça sai pelo nariz, pela boca e pelos olhos. Logo descobrimos o fogo: duas pernas que se manobram e se curvam em um elástico e bastante persuasivo monólogo. Cyd Charisse nunca precisou de roteiros extensos em suas pontuais aparições no cinema. Suas pernas sussurravam. O resto eram frases desnecessárias. Cyd Charisse, a atriz, morreu no último dia dezessete de junho. Mas graças ao produtivo mercado de DVDs e, claro, ao You Tube, Cyd Charisse, as pernas, sobrevive ao tempo, ao sexo e a Beyoncé. Sim, lado a lado, temos a clássica e tantas vezes repetida cena de “Dançando na chuva”, estrelando Cyd Charisse e Gene Kelly e o clipe “Get me bodied”, estrelando Beyoncé, suas três amigas e alguns homens de rostos e corpos aparentemente iguais. Duas imagens que têm um peso distinto para suas respectivas gerações e que esclarecem alguns

comuns equívocos quando se faz uma referência à cronologia da sexualidade na indústria do audiovisual. De volta então à cena inicial. Gene Kelly, o mais vigoroso dançarino dos anos dourados de Hollywood, gira em saltos cronometrados e desliza pelo chão até dar de encontro com uma curvilínea perna que suspende um chapéu na ponta do salto alto. A câmera acompanha os olhos dele no caminho dessa misteriosa perna e achamos Cyd Charisse, sentada, soltando fumaça para todos os lados. O que se vê em seguida é uma seqüência muito bem ensaiada de sugestões. Ela quebra a cintura e move os ombros como quem diz “você pode lidar com isso?”, joga as pernas para o alto e logo em seguida dobra os joelhos indo devagar em direção ao chão como quem desafia “será que você agüenta meus passos?” e abre e fecha as pernas como quem con-

clui: “sim, é disso que estamos falando.” A cada movimento, passo e cruzadas de pernas, Cyd fala, mas não se explica. Mas o que é mais revelador nisso tudo, é que a personagem parece saber o espaço que seu corpo ocupa. Essa aparente sensação de que a dançarina tem total controle e, mais intrigante ainda, compreensão da autoridade que seu corpo e movimentos exercem sobre o outro, a torna ainda mais enigmática e misteriosa. E onde há brechas, há sempre alguém para espiá-la. A auto-consciência sexual de Cyd Charisse abre caminho então para um novo discurso do corpo: Beyoncé. “Get me bodied”, a música do clipe em questão, explica absolutamente tudo aquilo que antes era subentendido. Ou não. A expressão que dá título à faixa significa algo como “deixe meu corpo ligado”. Aliás, a palavra “corpo” – “body” – é a rima maior da música e tudo termina “encorporado”

Cyd Charisse permanece como um marco na cronologia sexual da indústria de audiovisual Carol Almeida

nele. Na letra, frases como “garoto, dance comigo, sinta meu corpo, mas fique mais perto enquanto caímos nesse ritmo, com o seu corpo tocando o meu corpo”. A asserção de Beyoncé é intrigante. Mas não no sentido sexual da palavra. Cyd poderia explicar: “Acredito que em todas as minhas danças eu interpretei um papel. Para mim, a dança era isso (o personagem). E não apenas passos”. Enquanto Beyoncé fala explicitamente o que quer, as imagens tentam reforçar a idéia de que o corpo, qualquer um, é o personagem central da história. A coreografia pode até tê-la como centro, mas só existe em função de um cenário maior, onde personagens são iguais e até mesmo o vestido da protagonista tem o tom prateado de todo o conjunto de elementos visuais. Não surpreendentemente, a redundância

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entre o que se fala e o que se vê elimina qualquer possibilidade de sugestão sexual. Existe uma negação da negação hegeliana em Beyoncé. O uso reiterado da palavra e da imagem “corpo” é tão exaustivo que todas as possíveis conotações sensuais se diluem em uma massa única de homens e mulheres que parecem encontrar mais satisfação na coreografia em si do que no que ela pode sugerir. Mais saudável e isotrópico que um copo de leite. Uma cena em particular, muito semelhante nas duas produções, esclarece qualquer dúvida. Em determinado momento, Gene Kelly se arrasta em direção à desconhecida musa que lhe puxa com as pernas. Beyoncé repete a seqüência e atrai não um, nem dois, mais uma fila de gente em direção ao seu inflacionado corpo. Cyd usava suas pernas como ímã para o

sexo. Beyoncé usa seu corpo como trunfo da auto-afirmação. Naturalmente, estamos falando de produtos que nasceram em meios com propósitos diferentes. O clipe musical dentro de um filme dos anos 50 não é o mesmo que o filme produzido para ser um clipe musical mais de cinqüenta anos depois. O primeiro faz parte de um contexto maior, o segundo é o contexto inteiro, ainda que menor. Ambos, no entanto, vendem uma imagem do sexo por tudo que ele pode significar para suas respectivas audiências. Na época de Cyd Charisse, se havia fumaça, havia fogo. Tempos da estética da sugestão, tempos de sexo a dois. Com Beyoncé, o fogo intenso queima, mas não arde. O corpo, assim como o sexo, é um coletivo indistinto, e não mais um par de pernas. yy

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C

rianças-prodígio não são novidade no mundo da música. A história diz que Mozart começou a tocar as primeiras notas no piano aos quatro anos e que, aos cinco, já havia escrito algumas peças. Chopin dava concertos aos sete. Bach, Beethoven, Brahms, todos eles tiveram algum destaque ainda nos primeiros anos de vida. A música pop do século vinte também está cheia de crianças talentosas, como Stevie Wonder, que assinou seu primeiro contrato com a gravadora Motown aos doze anos e aos treze já havia chegado ao topo da parada norte-americana; ou Michael Jackson, irmão caçula que aos oito já era o principal vocalista e dançarino do Jackson 5, só para ficar nos mais óbvios. Não foram eles, certamente, os únicos talentos infantis das suas respectivas épocas. A precocidade, na maioria desses casos, é um dado biográfico que ajuda a entender a genealogia de um talento já consolidado. Mozart não era Mozart aos cinco anos; era apenas uma criança com um talento descomunal. Hoje, contudo, isso parece ter mudado. Na era do jornalismo em tempo real, não é relevante que um talento se desenvolva. É a existência do talento que vira notícia. O que importa é o fait divers: o como, quando e quem produziu; a obra em si fica num distante segundo ou terceiro plano.

faz cultura inglesa, vai prestar vestibular para comunicação ou artes, prefere cinema de arte a blockbuster e ouve “música boa”, ou seja, aquela que pessoas mais velhas aprovam. Mallu é um talento. A música dela, contudo, é de uma simplicidade que, no máximo, faz com que passe despercebida. São canções de três acordes de uma menina que, como tantas outras, se empolgou ao conseguir fazer sua primeira pestana. Mas ela tem quinze anos e, numa era em que qualquer coisa vale para se destacar na turba de novos artistas que surgem a cada minuto, isto definitivamente conta a seu favor. Com relação a Vitor Araújo, era impossível não ficar do lado dele depois da polêmica com o compositor Marlos Nobre, que enviou cartas a um jornal local criticando o jovem pianista, e até ameaçando processá-lo, pelo improviso feito em cima do seu “Frevo para Piano”. Naquele instante, Vitor era um soldado franzino de camiseta, jeans e all star enfrentando todo o reacionarismo e a ortodoxia do mundo da música erudita, e isso me fez simpatizar com ele de cara. Nobre tentou desqualificá-lo, chamando-o de “jovem aspirante a pianista”. Não conseguiu. Vitor bem sabe que é um aspirante a pianista mesmo, que tem muita técnica a aprender se quer se tornar um músico do quilate de Nelson

M úsica

Isso vem sendo percebido na mídia “especializada” brasileira, que parece ter despertado recentemente para os prodígios da terra, sem prestar muita atenção no som que está saindo dos alto-falantes. Algumas das mais badaladas novidades do mundo musical estão longe de chegar à maioridade, como a cantora paulista Mallu Magalhães, de apenas quinze anos. Do lado de cá, os holofotes estão voltados para o pianista pernambucano Vitor Araújo, dezoito, integrante do cast de uma das maiores gravadoras independentes do Brasil, a Deckdisc, que lançou seu “Transtorno Obsessivo Compulsivo” em dualdisc (CD num lado, DVD no outro). Mallu diz ser influenciada por Bob Dylan e Johnny Cash, canta em português, inglês e francês e toca violão, gaita e piano. Ganhou as primeiras seis cordas aos oito e, aos quinze, pediu de presente de aniversário a gravação das suas músicas num estúdio. De repente, o site de Mallu no My Space havia recebido mais de um milhão de acessos, a menina foi citada em vários blogs e revistas de música, apareceu na MTV, no Jô Soares, na propaganda da Vivo e foi elogiada até por Tom Zé. Mallu é afinada, tem presença vocal e, principalmente, carisma. Ela se esforça para parecer sabida. É a típica menina branca da classe média letrada que estuda em colégio construtivista,

Freire. Nem por isso se desencorajou. Vitor é um jovem talento rebelde, mas peca por querer faturar em cima dessas três qualidades. Parece obstinado com a idéia de ser acessível, pop, contemporâneo e ao mesmo tempo quer transformar tudo isso numa mercadoria que venha com o selo de qualidade “música boa”, ideal para dar de presente a tios, tias, sobrinhos e sobrinhas. O repertório de Vitor está cheio de cânones e obviedades (Chico Buarque para agradar ao pessoal da MPB, Radiohead para o pessoal mais novo) e isso, associado à forma como ele quer chamar atenção para a sua performance e seu jeito de vestir, me faz crer que ele está no caminho errado.

e já sabe falar Haymone Neto

De quando a idade vira sinônimo de talento

Vitor e Mallu me lembram aquela máxima do futebol que diz que, se surge um talento nas divisões de base do time, o técnico deve preservá-lo para que o jovem não seja “queimado” pela torcida. No jogo da música tem sido diferente. Apesar do talento inegável dos dois, a música de Vitor e Mallu não faz sentido sem o manual de instruções que informa a idade de quem a está executando. Atualmente, eles só estão tapando a lacuna do novo para a cambaleante indústria do entretenimento. Em alguns anos, deixarão de sernovidade, e outras, talvez ainda mais novas, surgirão. yy

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1 , 2, 3 e já!

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T

uma tarde de chuva, naqueles dias em que você mal tem tempo para respirar, parei numa Mc Donald’s de Xangai para pedir a calórica e rápida refeição número1. Nos segundos de intervalo entre uma mordida e outra no imenso hambúrguer, notei o jogo americano de papel que sempre forra a bandeja. Os super-heróis da China. Não eram changemans, jaspions e todos aqueles super-heróis orientais que os nascidos na década de 80 se acostumaram a ver na TV. Eram os atletas do país que abriga a Olimpíada de Pequim. São imbatíveis. Admiráveis. Fantásticos. Gigantes. Tão grandes como a terra em que o minimalista não interessa. Aquela propaganda me chamou a atenção. Os atletas estavam vestidos tais quais os heróis de olhinhos puxados da TV que tinham vida normal,mas se transformavam quando precisavam salvar o mundo. Nesse caso, esses atletas vão salvar a face chinesa. Carregavam expectativa de mais de Um bilhão de patriotas de que os jogos de 2008 não serão marcados apenas pela segurança e organização, mas serão a chance de fincar de vez na cara do mundo que a China é e sempre foi o Império do Meio, como todos os chineses enxergam sua terra natal. É preciso saber que o chinês desconsidera o conceito do “o que vale é competir”. Aqui, é necessário ganhar. Faz parte do que eles chamam de honrar a face. Há exatos sete meses, quando cheguei na China, mais

precisamente à cidade de Wuhan, no centro do país, todos que se apresentavam à “brasileira”, me diziam: “Ah, o Brasil venceu de 4x0 a seleção chinesa de futebol feminino”. Repetiam isso à exaustão. Na minha leitura ingênua, acreditava que eles estavam sendo simpáticos com a estrangeira e que tanta insistência no tema era pelo fato de a Copa do Mundo ter se encerrado há apenas um mês e a grande final ter se realizado na cidade. Hoje, meus caros, minha leitura é outra. Não só pelo que aprendi com o tempo, de que os chineses negam ou se anestesiam para suas falhas e derrotas. Tempos depois, convivendo com a comunidade brasileira, descobri uma história que me deixou de queixo caído. No tal fatídico jogo, os brasileiros foram retirados do estádio escoltados pela polícia chinesa. Os torcedores locais gritavam que iam bater nos brasucas. Estavam inconformados com a derrota de placar bastante largo da seleção chinesa. Aqui, isso não se engole. E vale ressaltar que,em termos de rivalidade, se quisermos comparar a situação com um jogo entre Brasil e Argentina, a situação só se justificaria se Japão,o inimigo histórico, ou os Estados Unidos,o inimigo eminente, estivessem em campo. Os “super-heróis” chineses carregavam esse peso nas costas. Suas fotos estão espalhadas por toda a China. Em outdoors e banners do tamanho dos arranha-céus

O fascínio pelo herói nacional chinês às vésperas das Olimpíadas Ana Adobatti

onde é que isso vai parar?

de Xangai. O museu de cera da Madame Tussaud na capital financeira disponibiliza o boneco de Yao Ming, o jogador de basquete de 2,26 metros de altura e estrela da liga americana NBA, para que os transeuntes batam fotos ao lado do ídolo. Engana-se quem pensa que os turistas envergando camisas I Love Shanghai se atrevem a se aproximar da estátua. Os chineses naturais da cidade se aglomeram ao lado do gigante, numa muvuca, e não deixam nenhum forasteiro ter a chance de chegar junto. Ironicamente, nessa semana, enquanto os chineses ainda choram os mortos do maior terremoto dos últimos trinta anos, eu tentava achar mais informações sobre a vida do jogador e a primeira notícia que surgiu na ferramenta de busca da Internet foi: “Fratura no pé de Yao Ming é um terremoto para a China”. Há três meses, o jogador descobriu que poderia vir a não participar dos jogos de Beijing. E como tudo na China é construído com a idéia de que o país é o centro do mundo, desde então, as notícias na mídia falam que a culpa é dos americanos que não o pouparam. A mesma idolatria existe com a maratonista Wang Xunjia, o recordista mundial dos cnto e dez metros com barreira e campeão olímpico Liu Xiang e os astros da ginástica olímpica, do ping-pong. As crianças na escola aprendem o nome de seus “heróis”.

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Lembro-me que, a pedido de uma jornalista espanhola, entrevistei uma menininha chinesa de cinco anos de idade para uma reportagem sobre o que pensam os pequeninos de todo o mundo. Uma das perguntas era: quem é a celebridade que você mais gosta? Xin Xin não hesitou em responder: Liu Xiang. Para mim, apesar desse clima pré-olímpico, não deixa de ser surpreendente. Quando pequena, me acostumei às imagens de Mickeys e Xuxas. A ver Joannas, Daianes e Jardéis sofrendo com a busca por patrocínios e,muitas vezes, pelo menos, o reconhecimento. Para quem anda comparando todo esse quadro de nacionalismo ao nosso amor ao futebol, é preciso notar que esse sentimento chinês pode sim, assemelhar-se ao que os que envergam a camisa canarinho nos tempos de Copa do Mundo sentem. No entanto, quando nós, muitas vezes, rimos ou damos de costas aos vexames da vida pessoal dos nossos jogadores de futebol, que há muito jogam no exterior, na China, em 2002, quando os mascotes Huanhuan YingYing Beibei e Jingjing nem sonhavam em existir e a pira olímpica sequer havia sido acesa em Atenas, na Grécia, atletas da seleção chinesa foram expulsos somente porque namoravam com os integrantes do time. Inadmissível. Eles são super-heróis. E precisam estar de prontidão para salvar o orgulho chinês. yy

Pernambuco_Jul 08

8/7/2008 10:36:03


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