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Acervo Fundação Joaquim Nabuco

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I néditos

Helder Tavares

EDITORIAL Nós, aqui do Pernambuco, ficamos mais que satisfeitos com a repercussão da antologia de novos autores, publicada na edição passada. Houve críticas e elogios ao trabalho. Mas não indiferença – o pior que pode acontecer, em qualquer contexto. Com aquele projeto, longe de uma crítica literária (se bem que escolher é criticar), nossa intenção foi promover um apanhado jornalístico das várias tendências existentes na literatura pernambucana contemporânea. Mas, deixando a edição passada de lado, vamos ao que interessa. Este Pernambuco abre com um longo artigo de Silviano Santiago sobre Machado de Assis. Ficamos mais que felizes em contar com a colaboração de Santiago, um dos mais agudos críticos literários brasileiros e um dos articuladores definitivos da obra machadiana. Que esta seja a primeira de uma longa parceria! Georgia Quintas reaparece com uma inusitada análise da Coleção Francisco Rodrigues (Fundação Joaquim Nabuco). Trata-se de um dos mais importantes acervos fotográficos do Brasil, que guarda a memória visual da história social do século XIX e início do século XX. “Os retratos que integravam os álbuns de famílias refletiam e representavam o fluxo de idéias e da relevância de distinções sociais. Fica claro que registrar o indivíduo através da fotografia transcendia a individualidade física, ou seja, contemplava o significado social que os retratados possuíam naquela sociedade canavieira oitocentista. A natureza fotográfica, em essência, indicial e de incontestável analogia ao seu referente, instaurava, sobretudo, representações e perspectivas”, explica Georgia. E por falar em Georgia, no próximo mês, ela lança seu primeiro livro, em que analisa a obra do fotógrafo Man Ray. O título final é Man Ray e a imagem da mulher. Vale a pena conferir. A questão fotográfica reaparece no artigo de Thiago Soares, em que ele problematiza o que seria a ausência da fotografia. Nos últimos números do Pernambuco, Thiago tem despertado a atenção dos leitores por seus ensaios sempre inovadores, que misturam questões acadêmicas com um tom confessional (ou ficcional, nunca se sabe...). O ponto de partida do texto é uma foto de Helder Tavares. Ele, por sinal, aparece duplamente neste número – no texto de Thiago e na seção Inéditos aqui do lado. Na contracapa do caderno, um divertido confessionário do jornalista Breno Pessoa. Ele confessa para os leitores a razão dele não perder por nada no mundo tudo o que é show/evento com cara de roubada. Mas sua confissão não tem nada de mea culpa. Ainda bem. “Tem quem ache mau gosto ou esquisitice o fato de eu adorar freqüentar eventos ruins. Não sei bem o motivo desta minha inclinação por programas que são normalmente descartados pelas pessoas de bom senso”. Esta edição do Saber + conta com uma homenagem a um dos mais inventivos poetas pernambucanos dos últimos anos, Ericson Luna, que teve sua obra marcada pelo redutor slogan “marginal”. Bobagem: poesia é poesia. O resto é besteira.

Boa leitura e até o próximo mês Schneider Carpeggiani

Uma publicação da

Companhia Editora de Pernambuco - CEPE

Circulação mensal integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco

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Fotos: SXC.HU/Cortesia

Brasil. Liberdade, ainda que tardia. O capítulo é omisso nesse particular. Não o será no tocante aos escravos africanos, como veremos. O pai de Brás Cubas comporta-se como verdadeiro puxa-saco, já que nutre contra Napoleão “um ódio puramente mental”, pois – como ainda observa o filho – “à força de persuadir os outros da nossa nobreza, acabara persuandindo-se a si próprio”. Não era nobre, apresentavase como tal. No terceiro capítulo do romance, intitulado “Genealogias”, o leitor ficara sabendo que a família Cubas fora desde sempre movida pelo arrivismo, já que seu fundador na primeira metade do século XVIII, Damião, natural do Rio de Janeiro, era tanoeiro de ofício. E continua: “[...] teria morrido na penúria e na obscuridade, se somente exercesse a tanoaria. Mas não; fezse lavrador, plantou, colheu, permutou o seu produto por boas e honradas patacas, até que morreu, deixando grosso cabedal a um filho, o licenciado Luís Cubas”. A economia poupada fora ao campo e voltava ao centro urbano acumulada de dividendos. Luis Cubas é o avô do menino. Afronta ao imperador deposto ou gesto de desagravo ao príncipe-regente, o banquete na residência dos Cubas funcionaria como um passo a mais no caminho para a nobilitação do colono de descendência plebéia. Durante as festividades, ele se apresenta como fidalgo presuntivo. Eis a descrição dos preparativos: Ao salientar referências literárias definidas por romances publicados além e aquém do oceano Atlântico, os dois episódios de 1814 apontam para um desequilíbrio maior na complexa escrita romanesca machadiana. Trata-se do abalroamento do acontecimento imprevisto da história universal (no sentido eurocêntrico que o adjetivo comportava então) contra a comédia de costumes local. As repercussões ao acontecimento histórico irmanavam a todos na alegria da festa e conclamavam os presuntivos nobres brasileiros à “sede de nomeada” e ao exibicionismo nas festividades gastronômicas e etílicas.

A comédia de costumes local se representa através do esculacho verborrágico dos letrados e nas camufladas fanfarronices sexuais dos militares e seus familiares na colônia, então em processo de up grade. Como escreveu Manuel Antonio de Almeida, “Era no tempo do rei”. Ou, para seguir ao pé da letra Machado de Assis, era no tempo de Napoleão. O desequilíbrio entre as partes do capítulo e as respectivas dicções tem como personagens intermediários a figura do Doutor Vilaça, “glosador insigne que acrescentou aos pratos de casa o acepipe das musas”, e o menino Brás Cubas, preterido no desejo de abocanhar certa compota de sua paixão pela enxurrada de glosas do poeta falastrão. Os antagonistas transitam entre os dois episódios de 1814. Ao ecoar o fato histórico em destaque nas palavras poéticas, o mais velho tromba no mais novo. O Doutor Vilaça não fecha a boca, enquanto o menino Brás Cubas não pode abri-la. Acrescente-se que, ao desfiar todas as rimas de tirano e usurpador, o poeta Vilaça não perdera tempo e informara à seleta platéia que tinha sido comensal de Bocage no botequim do Nicola e discreteara com a senhora duquesa de Cadaval. Frente ao glosador do fato histórico, que abalroa o lauto banquete e Dona Eusébia, a festa perde o primeiro plano da narrativa e relega ao segundo a gulodice do menino. Diante dos reclamos insistentes deste (“bradei, berrei, bati com os pés”), o pai o bota para fora do jantar, entregando-o aos cuidados duma escrava. Observa o menino, fornecendo a chave que irá ligar os dois episódios de 1814: “Não foi outro o delito do glosador: retardara a compota e dera causa à minha exclusão. Tanto bastou para que eu cogitasse uma vingança, qualquer que fosse,

Silviano Santiago

o narrar peripécias da infância, Brás Cubas dedica especial interesse às repercussões, no Rio de Janeiro, da primeira queda de Napoleão Bonaparte. A notícia é alvissareira para a maioria dos cortesãos e colonos, e o fato histórico ganha reverberações inesperadas por a família de Bragança ter-se provisoriamente instalado na capital da colônia desde 1808. Lemos no capítulo XII das “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1881), intitulado “Um episódio de 1814”: “A população, cordialmente alegre, não regateou demonstrações de afeto à real família; houve iluminações, salvas, Te-Deum, cortejo e aclamações”. Sem qualquer alusão ao abalo causado pela derrota do intrépido corso nos países europeus, o clima de festa, tanto na rua quanto na residência do herói, ocupa o capítulo nomeado e tem como epicentro o lauto jantar oferecido pelo pai. Ao banquetear em honra à derrota das tropas napoleônicas, a família Cubas esperava que “o ruído das aclamações chegasse aos ouvidos de Sua Alteza ou, quando menos, de seus ministros”. Uma pedra tinha sido atirada lá da França e ricocheteava nas águas tranqüilas do distante lago brasileiro, repercutindo em círculos excêntricos. Há vida cosmopolita no Rio de Janeiro e, melhor, em romance escrito por brasileiro, cinqüenta e nove anos depois da Independência do País. Na Europa, o primeiro fracasso de Napoleão e o exílio na ilha de Elba foram tidos como catastróficos para o destino do Império. Profetizavam o retorno imediato dos Bourbon ao trono da França, dando início à Restauração, e prenunciavam o segundo exílio do ex-imperador, a acontecer na ilha de Santa Helena, onde morrerá em 1821. No Rio de Janeiro, então capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, a abdicação do imperador europeu se anunciava no Paço Real como de bom tamanho para a monarquia portuguesa, e talvez, na calada da noite, despertasse nos colonos revolucionários o desejo de retomar a luta pela independência do

Os movimentos entre o local e o cosmopolita em Memórias Póstumas de Brás Cubas

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mas grande e exemplar, coisa que de alguma maneira o tornasse ridículo”. Exclusão e vingança são velhas amigas no romance folhetinesco de Alexandre Dumas e estão na gênese jornalística do romance “O vermelho e o negro”, e aqui são responsáveis pelo troco em moeda de galhofa que o menino dará aos destemperados membros da corte lusitana. Em duelo de capa e espada é que o adulto falastrão e o menino com água na boca transitam para a segunda cena do capítulo. O desequilíbrio entre as duas partes do capítulo permanece na estrutura global do romance, mas com valor e peso invertidos, indiciando o tom a ser privilegiado pelo narrador, que é o do deboche. As comemorações fidalgas se perdem no próprio capítulo, ou seja, se esgotam na descrição do banquete e nas glosas poéticas do Doutor Vilaça, bem como no destaque dado ao espadachim presenteado ao afilhado pelo tio militar. Já as conseqüências da queda de Dona Eusébia na moita da chácara perseguirão toda a primeira parte do romance. Repercutem inicialmente no capítulo XXV, “Na Tijuca”, para espocar nos capítulos XXX, “A flor da moita”, XXXII, “Coxa de nascença”, e XXXIII, “Bem-aventurados os que não descem”. Da pisadela e do beliscão, amorosamente trocados em 1814 na moita, nascerá Eugênia, a moça naturalmente coxa que, dezessete anos mais tarde, encantaria e decepcionaria os olhos de Brás Cubas, órfãos de mãe e já então europeizados. Nada deveria impedir que a bela e meiga moça merecesse o beijo do moço Brás Cubas, a não ser que a sexualidade à flor da pele do rapaz fosse tolhida pela lembrança de outro e fértil beijo, o dado por Vilaça em 1814. Frente à coxa Eugênia, observa Brás Cubas: “Tu, trêmula

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do capítulo XII para a ponta ideológica do contexto colonial e se a envolva com a roupagem de apólogo machadiano, o leitor percebe que a agulha napoleônica deixa de lado a linha fidalga brasileira para puxar a linha do carretel angolano. Em concomitância com as festividades pela abdicação de Napoleão, anuncia-se a chegada ao porto do Rio de Janeiro de mais um grupo de cento e vinte exilados, no caso, escravos africanos. Também foram empurrados à vida em exílio no Brasil, só que antes tiveram as vidas negociadas por terceiros e viajarão acorrentados no porão dum navio negreiro. No momento escancaradamente debochado do capítulo, intervém certo sujeito ao pé do menino Brás Cubas. Ele passa a outro comensal [...] notícia recente dos negros novos, que estavam a vir, segundo cartas que recebera de Luanda, uma carta em que o sobrinho lhe dizia ter já negociado cerca de quarenta cabeças, e outra carta em que... Trazia-as justamente na algibeira, mas não as podia ler naquela ocasião. O que afiançava é que podíamos contar, só nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos. Caso o leitor abandone a escravidão africana e volte a puxar o desequilíbrio dramático para a ponta camuflada dos brasileiros nascidos em berço de ouro e em busca de nobilitação, agiganta-se o fantasma plebeu do capítulo e de páginas anteriores do romance. Refiro-me à figura de Napoleão Bonaparte, o corso que, ao se tornar imperador, exigiu ser coroado pelo papa. No último minuto, retira-lhe das mãos a coroa e a coloca – ele próprio – na cabeça. Tendo como pano de fundo essa imagem, pode-se levantar uma hipótese bem plausível em termos de Machado de Assis. Com o capítulo XII, o bruxo do Cosme Velho põe em marcha uma transformação histórica e social no mundo urbano da ex-

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colônia (apud Caio Prado Júnior), agora capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, e procura dar-lhe sentido. A partir da segunda década do século XIX, os colonos haut placés na praça do Rio de Janeiro passam a admitir como inadiável a recompensa real pela ascensão financeira alcançada, de que é exemplo o banqueteador, pai de Brás Cubas: “à força de persuadir os outros da nossa nobreza, acabara persuadindo-se a si próprio”. Na busca do título almejado, o filho de Luís Cubas, descendente de velho tanoeiro natural do Rio de Janeiro, estava em competição com os afidalgados senhores de engenho do Brasil rural, para usar o recurso estilístico de que se valeu André João Antonil em “Cultura e opulência do Brasil” (1711) para adjetivá-los. O novo Cubas e os concidadãos cariocas perderão desastrosamente a luta, já que são os fazendeiros que farão parte do segmento social mais agraciado pelos mil duzentos e onze títulos concedidos pelos dois imperadores brasileiros. Em cópia dos novos e imperiais ditames europeus, mas em letra minúscula, a mobilidade social e financeira da gente carioca pode ser bem surpreendida, na versão original e em letra maiúscula, pelo percurso vitorioso do corso Napoleone Buonaparte a Imperador. De um lado, o espadachim do menino Brás Cubas, do outro, a espada de Napoleão. Como se sabe, graças a não surpreendente guinada conservadora, o regime imperial europeu instituiu seus símbolos e títulos de nobreza, em imitação do Antigo Regime. Em 1804, os velhos títulos principescos foram desencavados pelo regime imperial e trazidos de volta para os membros da família de Napoleão e, em 1808, é criada uma nobreza imperial, cujo princípio regulador é a “qualificação pela grandeza”, e não apenas o sangue azul. Recompensa-se esse ou aquele indivíduo – a título ad personam, insista-se – pelos grandes feitos alcançados. Não se trata, pois, de nobreza hereditária, já que o título recebido por um

não é passível de ser transferido ao descendente – a não ser por ordem expressa do imperador, a quem deve ser dirigida a solicitação específica. O “ódio puramente mental”, que o pai de Brás Cubas nutre por Napoleão, camufla a mais doce e sincera admiração pelo Imperador de origem corsa e plebéia – completo os vazios do capítulo. A ponta camuflada do capítulo aponta, pois, para a residência dos Cubas e acentua as controvérsias e as rusgas que a figura múltipla e mítica de Napoleão desperta entre os membros do clã. No tópico do arrivismo, já dominante entre os descendentes do velho tanoeiro, não se surpreenda se o modelo stendhaliano de sucesso na sociedade burguesa se reafirme na escolha de carreira para o menino Brás Cubas. Os dois tios oscilam entre o alistamento nas duas corporações que eram oferecidas ao impulsivo Julien Sorel, personagem principal de “Le rouge et le noir”. O tio João aconselha a farda vermelha militar e o tio Ildefonso já lhe veste a sotaina negra do sacerdócio. Ainda no capítulo XII do romance, podem-se ler as reações incompatíveis do militar e do cônego ao corso, que se tornou general e depois Imperador: “Era isso motivo de renhidas contendas em nossa casa, porque meu tio João, não sei se por espírito de classe e simpatia de ofício, perdoava no déspota o que admirava no general; meu tio padre era inflexível contra o corso, os outros parentes dividiam-se; daí as controvérsias e as rusgas.” Não é, pois, por coincidência que a apresentação dos tios e o primeiro tratamento psicológico das duas personalidades ascendentes tenham aparecido, de maneira indireta, já no segundo capítulo do romance, intitulado “O emplasto”. Ali, Brás Cubas acentua o valor e o sucesso do medicamento anti-hipocondríaco, e pela imagem da medalha traduz a ambivalência das futuras recompensas a serem auferidas pela produção e venda do produto farmacêutico. A medalha traz duas faces, “uma virada para o pú-

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blico, outra para mim”. E continua: “De um lado, filantropia e lucro; do outro lado, sede de nomeada. Digamos: – amor da glória”. É também dito no segundo capítulo que o tio militar e o tio cônego se dividem quanto ao invento mágico do sobrinho, tomando atitudes opostas, ditadas pela dicotomia clássica entre tempo e eternidade. O militar, oficial dos antigos terços de infantaria, afirma que o amor da glória é a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseqüentemente, a sua mais genuína feição. Já o cônego de prebenda julga que o amor da glória temporal é a perdição das almas, que devem cobiçar apenas a glória eterna. No décimo capítulo, “Naquele dia”, o leitor é levado a conhecer as circunstâncias que cercam o nascimento do sobrinho Brás Cubas das mãos da Pascoela. É bom não esquecer que se trata de “insigne parteira minhota, que se gabava de ter aberto a porta do mundo a uma geração inteira de fidalgos”. Já não satisfeitos por terem abraçado as respectivas personalidades stendhalianas, o tio João e o tio Ildefonso – à semelhança das pitonisas – resolvem projetá-las sobre o recém-nascido. O antigo oficial de infantaria – anota o narrador defunto – “achava-me um certo olhar de Bonaparte, coisa que meu pai não pôde ouvir sem náuseas; meu tio Ildefonso, então simples padre, farejava-me cônego”. Os tios stendhalianos retornam no capítulo seguinte do romance, “O menino é pai do homem”, momento em que Brás Cubas narra os primeiros anos de sua educação, detendo-se primeiro no modelo dos pais

para, em seguida, dedicar-se ao exemplo do tio militar e do tio cônego. A preferência do menino recai sobre o tio militar, embora nada seja dito sobre sua atividade propriamente profissional. Silêncio total. O narrador prefere acentuar-lhe a língua solta, as anedotas abarrotadas de obscenidades e imundícies, o comportamento rebelde, galante e picaresco entre os familiares e entre as escravas que lavam a roupa da família no fundo da chácara. A admiração do menino pelo tio João se dá de forma progressiva e realça os valores da educação tradicional pelo avesso: “Não me respeitava a adolescência, como não respeitava a batina do irmão”. Desconhece a diferença de idade entre mestre e pupilo. Trata a este como a qualquer adulto. Por isso, o menino primeiramente não entende o que ele diz; depois passa a entender e, finalmente, acha-lhe graça. Tanta graça, que passa a procurá-lo, querendo privar de sua companhia. Em troca, o tio oferece doces ao pupilo e o leva a passeios. Há um entendimento formacional entre ambos que passa por cima dos vezos da profissão, do bom senso e da razão, e se enraíza no gosto pela chacota e o riso. “Ah! brejeiro! Ah! brejeiro” – não é a interjeição que define o menino e encerra o capítulo XII? Tudo leva a indicar que o narrador escamoteia a carreira profissional do tio militar para descrever o tio cônego apenas pela vida religiosa que leva e tal como a leva. No interior da congregação, as preferências espirituais do tio Ildefonso são completamente equivocadas. Ele não enxerga a parte substancial da igreja, apenas o lado externo, ou seja, “a

hierarquia, as preeminências, as sobrepelizes, as circunflexões”. Se os valores que admite sustentar e ostentar são nobres, como a austeridade e a pureza, ou ainda a piedade, a severidade nos costumes e a minúcia na observância das regras, o resultado do investimento pessoal é pífio. Segundo o narrador defunto, os valores nobres “não realçavam um espírito superior, apenas compensavam um espírito medíocre”. Em suma, o cônego “carecia absolutamente da força de incutir [as virtudes], de as impor aos outros”. No clã e junto ao menino, o tio Ildefonso funciona como mero objeto de adorno. Em última instância, é fútil e de valor mínimo. O exemplo dos tios stendhalianos é duplamente picaresco, ou melhor, paródico. Por isso, o tom geral adotado para a escrita romanesca é coerente com o espírito escolhido por Machado para o romance. O narrador não toma ao pé da letra o espírito militar da farda a fim de tomar ao pé da letra o aparato externo e mundano da sotaina. Se no caso do tio João, a aparência não justifica a opção de qualquer jovem pela carreira militar, a não ser por despertar nas pessoas as gargalhadas e no ambiente a festividade perpétua, já no caso do tio Ildefonso, a aparência não apreende o essencial da vida religiosa, a não ser pelo que nela pode conduzir à mediocridade e ao embuste. As aparências são duplamente falsas, e falsidade por falsidade é preferível a que desperta o riso. O exemplo dos dois tios stendhalianos evita que Brás Cubas caia nas armadilhas da arma e da cruz. Nem herói nem santo. Bem ao jeito brasileiro, aprende a viver com nobreza convivendo com o picaresco, ou seja, a paródia é afinal a fidalguia de Brás Cubas. Da preferência pelo tio militar vem o espadim – naturalmente em grau diminutivo – que o menino recebe de presente do padrinho. Da arma de guerra é que vem a boa aparência da criança durante as festividades e

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a primeira comparação entre o brinquedo e a espada de Napoleão. Compare-se o espadim à espada, assim como se vem comparando a queda de Dona Eusébia na moita da chácara à trágica queda de Napoleão. É de comparação em comparação que qualquer colônia enche o papo. De uma forma ou de outra, de todas as formas, sempre se sai perdendo no confronto entre o acontecimento externo e a repercussão interna. No confronto, Brás Cubas acaba vencedor pelo jogo da reviravolta, às vezes amena e risonha, às vezes corrosiva e irônica. Na moita da chácara dos Cubas, gerou-se uma flor belíssima, mas coxa! Ou, como no oximoro que serve de título ao livro do historiador Robert Slenes sobre a formação na família escrava: Na senzala, uma flor. Caso se tome o espadim como centro de convergência da múltipla e inesgotável personalidade do indivíduo, caminha-se direto para o narcisismo absoluto e se chega à conclusão definitiva do menino Brás Cubas: “interessava-me mais o espadim do que a queda de Bonaparte”. Do mesmo modo, interessava-lhe mais certa compota encomendada às madres de Ajuda e prevista para a sobremesa, do que as mil e uma glosas poéticas do Doutor Vilaça. De parti pris em parti pris vem a máxima expressa ao meio do capítulo: “Nunca deixei de pensar comigo que o nosso espadim é sempre maior do que a espada de Napoleão”. O inusitado advérbio nunca, associado ao pronome em primeira pessoa (comigo), se ricocheteava – como a pedra européia e a africana – no lago tranqüilo do Segundo Reinado brasileiro, gerando outras e mais universais palavras. São as palavras de Pandora, ou a Natureza, mãe e inimiga. Não é ela quem diz: “Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal.” yy

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O que há por trás das fotografias das famílias pernambucanas do final do século XIX e início do século XX Georgia Quintas

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les sempre estiveram lá. Cada um a seu modo. Alegres, sisudos, às vezes com um quê de melancolia no olhar, mas sempre impávidos e solenes. Alguns sabem que podem seduzir, criar um jogo de aparências. Outros, em sua simplicidade na verdade, sabem muito pouco sobre o que os cercam. O certo é que a vida era dura para uns e de muito fausto para outros. Que as diferenças se pautavam por questões cromáticas da pele: o preto e o branco. Que as mulheres, presas em seus sombrios vestidos, também transbordavam silêncios e limites. E os homens, por sua vez, numa espécie de simbiose, simbolizavam a terra, a política, o dinheiro, a propriedade de bens e, até mesmo, de pessoas. Em suma: o sexo masculino personificava o poder, o eixo que movia uma estrutura social. Para mim sempre foi desafiador encontrá-los e de forma recorrente perceber que cada um desejava esclarecer certas questões, aclarar situações nebulosas, ou seja, dar suas versões sobre os fatos. Nos primeiros encontros o que prevalecia era o silêncio. Sentia que a vida deles estava submersa sob a rígida camada de convenções sociais de uma época. As diferenças eram muitas. Basicamente, este mundo não pertencia a um território físico, mas à construção idealizada de um contexto cultural bastante próprio. Ao vê-los, era clara a dinâmica daquela realidade. Quase que postos em nichos simbólicos, firmes em seus papéis e propósitos. De fato, se revelavam à medida que lhes davam atenção, no momento em que o registro fotográfico os perpetuava – não só com relação ao semblante, à postura, mas a todos os signos e significados inerentes à corporeidade do indivíduo. Foi assim que adentrei no universo da Coleção Francisco Rodrigues (Fundação Joaquim Nabuco). Trata-se de um dos mais importantes acervos fotográficos do Brasil, que guarda a memória visual da história social do século XIX e início do XX. Mérito do esforço e paixão de um dentista pernambucano, chamado Augusto Rodrigues, que em 1927 iniciou sua coleção particular de fotografias. Tal patrimônio cultural existe devido à sua dedicação em adquirir retratos da sociedade pernambucana daqueles séculos. Seu filho, Francisco Rodrigues, prosseguiu na trilha do colecionismo paterno.

Em 1958, contabilizava doze mil fotografias e se encontrava no Museu do Açúcar. E, em 1974, a coleção foi incorporada à Fundação Joaquim Nabuco. Desde então, a coleção cresceu a partir de doações, e hoje comporta mais de dezessete mil imagens. Nelas, pude investigar e inventariar as possibilidades de análise que o suporte fotográfico detém. Ou, como diria Pierre Bourdieu, compreender adequadamente uma fotografia não é apenas recuperar as significações que proclama, é também decifrar o que vai além do significado que revela, na medida em que participa dos símbolos de uma época, de uma classe social. Nesse sentido, a partir dos retratos de família da aristocracia canavieira, centrei minha pesquisa que resultou na tese de doutoramento em Antropologia pela Universidade de Salamanca (Espanha). A iconografia revelou-se repleta de narrativas antropológicas, edificadas pela economia do açúcar (um dos aspectos mais relevantes da sociedade brasileira desde o tempo do Brasil colonial). De maneira que as imagens estabelecem aspectos diretos para análise de temas como relações sociais, parentesco, as fases e rituais simbólicos da vida familiar, assim como os costumes da sociedade patriarcal e escravocrata. Enfim, sutilezas da vida privada que conotavam elementos ligados ao espírito de opulência dos protagonistas da casa-grande (núcleo familiar patriarcal), em contraponto índices visuais importantes sobre os negros. Os retratos que integravam os álbuns de famílias refletiam e representavam o fluxo de idéias e da relevância de distinções sociais. Fica claro que registrar o indivíduo através da fotografia transcendia a individualidade física, ou seja, contemplava o significado social que os retratados possuíam naquela sociedade canavieira oitocentista. A natureza fotográfica, em essência, indicial e de

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Fotos: Acervo Fundação Joaquim Nabuco

incontestável analogia ao seu referente, instaurava, sobretudo, representações e perspectivas. Portanto, o registro visual definia papéis sociais e delimitava os limites – numa espécie de território visual – entre senhores de engenho e camadas menos abastadas, incluindo a submissa e sempre presente na vida privada senhorial, a dos escravos. Ou seja, as imagens fotográficas, acima de tudo, representavam status social e a legitimação de um discurso sócio-cultural patriarcal-escravocrata. Mas a memória é sutil, assim como ínfimos gestos. Estes corroboram a condição feminina quando retratadas com seus maridos – respeitados senhores de engenho, em muitos casos com títulos de nobreza de viscondes e barões. A postura feminina era de deferência, de pé ao lado do homem. O toque entre ambos revelava sinal de respeito, no máximo transmitido pelo gesto suave de repousar a mão no ombro do patriarca. O carinho, tão óbvio, implícito aos retratos de família que fomos acostumados a contemplar, não está presente. A austeridade honorífica dos retratos restringia o toque, o aconchego até mesmo de mães com seus filhos. Entretanto, sob a perspectiva inter-racial dos relacionamentos, se destacam as imagens de amas-de-leite ou de escravas que amamentavam e cuidavam das crianças da aristocracia canavieira de Pernambuco. Nelas, o afeto, mais velado que contundente, estabelece uma tensão pela proximidade dos corpos que por si só, conotam uma história estreita de dedicação com aqueles bebês e crianças. A partir do discurso inerente aos álbuns de fotografias, vemos desfilar famílias numerosas, pelas quais podemos acompanhar o crescimento dos filhos e os caminhos que estes seguiam. Os meninos que se tornavam bacharéis, políticos ou religiosos; meninas que permanecem no núcleo familiar e que, precocemente, originam outros. Crianças de todas as idades, documentadas em rituais religiosos como o batismo e a primeira comunhão. A mulher, símbolo matriarcal da família oligárquica canavieira, fora representada com signo estético ligado à perfeição e à fragilidade (quase cruzando a linha tênue da frivolidade da exuberância de adornos e roupas). Importantes enquanto moeda de mercado, o futuro era certo e inadiável: o casamento. Através dele, muitas famílias ampliavam suas riquezas, territórios se alargavam, escravos se acumulavam e a cana-de-açúcar se convertia em prestígio, riqueza e poder. Em particular, essas meninas vestidas de branco, na primeira comunhão eram quase um presságio visual para o casamento que dentro em pouco estava por advir. Ser perenizado pelo enquadramento da imagem fotográfica significava sublinhar a identidade de acordo com normas

sociais. De certo, as fotografias dos negros revelam um panorama significativo sobre o uso e a representação destes indivíduos. Em paralelo, aos retratos que alimentavam a curiosidade sobre o exotismo dos escravos africanos e seus descendentes nos trópicos, percebemos que tais imagens seguiam uma seleção bastante particular. E, nesse ponto, ressaltamos uma dualidade fundante sobre a existência dessas fotografias. Pois, ao passo que os escravos eram escolhidos (provavelmente, os mais próximos do convívio privado, os escravos domésticos), a forma como o registro era feito mostrava uma dicotomia bem específica. Ou bem se apresentavam em retratos, em que se conta a dignidade do indivíduo, ou bem se enfatiza a função de escravo, (caracterizando-o em seu ofício). Nesse sentido, encontramos elementos icônicos que entram no enquadramento por acaso e que possuem uma simbologia antropológica de extrema relevância. Como pudemos constatar nos retratos em que escravos estão sempre nos limites da composição fotográfica, de soslaio, observando o momento da foto, à margem da imagem dos outros. De certo, a margem que perpassava a essência de sua própria vida e condição social: a escravidão. Assim, diante de uma realidade imagética própria à uma sociedade meticulosamente ciente do valor simbólico da imagem, o caminho da memória foi refeito. Descortinar essas lembranças, a vida de outros, é também o encontro com nós mesmos. Desde o início, buscava esse fluxo espelhado. Entender, sobretudo, os sentidos culturais em histórias de vida de um tempo bem guardado na imagem fotográfica. Diria que Marcel Proust ilustra a dimensão desta busca, pois a verdadeira viagem da investigação não consiste em procurar novas paisagens, mas sim yy em ter novos olhos.

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Não retire o incurável do centro das atenções Roberta Melo

Não sou contra cirurgia plástica, sou contra falar a respeito - Madonna

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metamorfose dos corpos não cessa. As práticas corporais incentivadas na contemporaneidade se refletem nas inúmeras possibilidades de remodelar e reelaborar nossa carne, com um toque de autoridade que chega a lembrar a manipulação do primeiro corpo realizada pelo deus-criador da tradição ocidental, registrada no livro do Gênesis. Tal autoridade é constantemente motivada pelo mercado da estética e seus aparatos tecnológicos, que promovem o corpo como algo a ser continuamente desbravado, como uma tela de pintura a ser constantemente retocada. Entretanto, apesar dos inúmeros recursos biotecnológicos, os truques de beleza continuam fazendo parte de um cotidiano no qual a estética cumpre um papel social, revelando-se interessante produto cultural e histórico. Desde as estratégias de Cleópatra até as dicas das divas hollywoodianas, permanecem os segredos de beleza que fazem parte da vida das pessoas, repassada de amiga para amiga, da avó para a neta, mesmo não tendo a comprovação científica dos produtos oferecidos pela indústria da beleza. Se, em outras épocas, tivemos inúmeros artifícios, como o espartilho, loções de receita caseira e maquiagens extraídas diretamente de plantas, hoje as estratégias mais rudimentares continuam valendo, mesmo diante da supremacia biotecnológica. Tais segredos de beleza são elementos investidos sobre o corpo antes deste se apresentar na esfera pública: é como se fizessem parte de um ritual no qual, apesar de necessários, devessem ficar nos bastidores, no sigilo. Afinal, a beleza de uma pele aveludada não deve ser quebrada com a revelação de que ela foi conseguida através da receita da avó, que recomendou uns pedaços de pepino sobre o rosto (isso provavelmente só será revelado para as pessoas mais próximas). É como se o glamour falasse por si só, não devendo o seu impacto ser diminuído por nada. Daí o fato de, muitas vezes, os truques de beleza serem quase tabu. Seguindo esta mesma lógica, basta percebermos como as pessoas recebem os elogios, devido ao corpo bonito conquistado através de uma dieta rigorosa ou da prática de exercícios físicos exaustivos sem, no entanto, mencionar o esforço que foi necessário ou as renúncias que tiveram que ser feitas, já que o mais importante é o resultado final. Sob este prisma, a dedicação e o empenho aparecem como elementos fundamentais, porém atrelados à intimidade e à responsabilidade de cada um. Cada corpo segue sua própria lógica de funcionamento e possui suas próprias estratégias. No entanto, o que ganha relevância são os resultados que ele ostenta e a imagem que apresenta. Cabe a cada indivíduo revelar, ou não, as suas táticas e esforços. Raramente as beldades são incitadas a falar sobre dispêndios e sacrifícios, mas freqüentemente são convidadas a celebrar a beleza do corpo e a conquista do prazer que dela advém. É curioso notar como alguns recursos atuais de embelezamento tornam-se tabu, nesse sentido. Como exemplo, atentemos para o clima de suspense criado por revistas de entretenimento ao questionarem se determinada celebridade da TV possui, de fato, tal textura de pele ou se recorre a algum tipo de serviço oferecido por clínicas de estética. É interessante pensarmos também no caso das cirurgias plásticas. Por se tratar de uma tecnologia cujos efeitos são visíveis de modo relativamente rápido, pouco se reflete sobre a etapa paradoxal na qual a finalidade do embelezamento é ofuscada por um necessário processo inverso: curiosamente, as

cirurgias estéticas constituem práticas que necessitam que, por um determinado período, o indivíduo abra mão da vaidade, feche (literalmente) os olhos e confie seu corpo aos bisturis, a fim de que seja retalhado, costurado e corrigido para tornar-se apto a uma nova experiência no mundo. Passada a fase da sala cirúrgica, vem o pós-operatório, que é o momento de trancafiar-se num espaço qualquer, longe do social, até que o corpo possa retomar suas atividades corriqueiras, e esperar até que não mais se veja em seu corpo aquilo que é omitido pelos hábitos assépticos do dia-a-dia: nem os excessos retirados, nem o sangue exposto na cirurgia. É preciso esperar que se cicatrize, que desinche, até que não haja nenhum indício de deformidade que cause estranheza aos olhos das outras pessoas. Passada a fase da fealdade, o corpo, em sua integridade, poderá dar-se ao deleite de sua exposição e ser contemplado pelo olhar alheio. O resultado final dessas práticas de embelezamento está, portanto, intimamente relacionado a uma mentalidade asséptica e civilizadora que oculta o lado feio do processo, e isso inclui o horror à gordura que será aniquilada, ao sangue que será derramado através dos cortes feitos pelas mãos do cirurgião, bem como a todos os elementos vistos pelos olhos de outrem como algo próximo à ojeriza e que em nada interessa aos propósitos da ostentação pública. O grande segredo é a paciência, para então conseguir enxergar em sua pele os sinais do que será considerado civilizado pelo olhar externo. O corpo, então, continua sendo o espaço de materialização de um bem-estar atrelado ao que é higiênico, e tais atributos passam pelo crivo cultural que determina o que é puro e o que é impuro. A beleza, enquanto pensada no mesmo contexto em que se incita o consumo de cirurgias estéticas, vincula-se a um ideal de limpeza e pureza que também é refletida em outros hábitos estéticos, como o tratamento de manchas dos mais diversos tipos, tais como marcas de acne, manchas de sol, etc. A cosmetologia freqüentemente oferece novidades para disfarçar esses problemas que ameaçam a pureza e, portanto, a beleza da pele. Por outro lado, a dermatologia, nos últimos anos, vem alertando de maneira incisiva sobre os perigos à saúde, revelados sobre a superfície epitelial. Curiosamente, uma campanha contra o câncer de pele, por exemplo, faz com que os cuidados com nossa epiderme se tornem uma mistura de hábitos da vaidade com práticas saudáveis, recomendadas pela medicina. Ao mesmo tempo, esses hábitos terminam por desestabilizar as fronteiras do que seria um corpo jovem: esse já não mais seria delimitado pela idade biológica, mas sim pelo aspecto considerado saudável em nossos dias. A saúde passa a ter uma forma; a vitalidade do corpo e seu bom funcionamento devem ser refletidos na pele. Passa-se a incentivar sua expressão, ou seja, sua materialização através de produtos adequados que devem ser utilizados no mesmo momento de nossas outras práticas de asseio como, por exemplo, utilizar um protetor solar após a higienização da pele, ou o uso de alguma loção adstringente após o banho. Isso constitui parte do discurso da indústria cosmética, a qual sugere um ritual que ressalta não apenas a vaidade pela preservação do vigor da pele, mas também a busca pela saúde (muito embora esta possa ser ostentada através de nossa estética corporal, segundo tal lógica). Beleza e saúde encontram-se numa simbiose almejada o tempo yy todo, contribuindo, ambas, para o bem-estar.

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MN useus

Fotos: SXC.HU/Cortesia

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urante a expansão e consolidação do catolicismo na Europa medieval, a construção de grandes catedrais era o motor de um desenvolvimento que impulsionava engenharia, arquitetura e arte em direção à parâmetros técnicos cada vez mais elevados – conhecimento que, aos poucos, era também utilizado para erigir edifícios seculares. O século XXI vive frenesi semelhante, mas em relação a um tipo totalmente diferente de espaço público: os museus. São cada vez mais vultosos os investimentos em dinheiro e neurônios para que estes templos modernos desafiem o senso comum do que é possível erigir. Se antes eram procurados pelo que guardavam, os museus do novo milênio são atrações de per si – o que também aponta para novas formas de se exibir o material guardado entre suas paredes. Paredes? A arquitetura desenvolvida para os novos museus subverte elementos básicos da construção, desafia a gravidade e a imaginação. Na Áustria, o telhado da Kunsthaus Graz está como se aterrissado entre casas tradicionais do século XVIII, tal qual a nave de uma civilização alienígena baseada em tecnologia orgânica – como se marcianos tivessem decidido, de repente, visitar a Terra a bordo de um gigantesco besouro com carapaça azul-turquesa. A Corcoran Gallery of Art, em Washington, Estados Unidos, tem sua fachada composta por gigantescas chapas de metal abauladas e dispostas sem lógica aparente; enquanto o Museu Arqueológico do Parque Kalkriese, em Onasbrück, Alemanha, aparece aos olhos do visitante como uma pequena caixa de metal enferrujado da qual se projeta uma trombeta (o museu, na verdade, está no subsolo). A exposição Museus do Século XXI, em cartaz recentemente em Berlim, capital alemã, reuniu 28 projetos de supermuseus que já foram ou estão sendo executados na Europa, Estados Unidos, Japão e Austrália. Entre maquetes, projeções em 3D e fotografias destes novos espaços, fica claro que toda a técnica construtiva serve ao objetivo primordial de despertar novas sensações. Toda a excentricidade disposta nas fachadas se transforma dentro de estruturas interiores pensadas para que uma ida ao museu seja uma experiência verdadeiramente multisensorial, possível através do uso de novas tecnologias em multimídia à disposição dos visitantes ou, simplesmente, de formas criativas de despertar a reflexão. O Museu Judaico de Berlim é um caso exemplar, construído na década de 80 e expandido continuamente até o ano passado, já sob essa filosofia. A sala em forma de corredor, dedicada a historiar a fuga empreendida pelos judeus alemães a partir da perseguição nazista reúne uma série de objetos de época relacionados ao ato de viajar

– malas, cartas, postais, capas de chuva, etc. Até aí nada demais. No entanto, o piso ligeiramente inclinado, paredes fora de prumo, teto rebaixado em ângulos esquisitos, fazem do percurso de poucos metros uma caminhada nauseante. A proposta é que o visitante saia do corredor totalmente desorientado – exatamente como os judeus devem ter se sentido ao deixarem tudo para trás em nome da sobrevivência. Toda essa discussão parece estar à anos luz do Brasil – por motivos óbvios, dentre eles o cultural e o econômico. Não se trata de querer comparar duas situações com parâmetros totalmente distintos. Mas é de se esperar que, em algum ponto do futuro, nossos museus sejam influenciados pelas tendências de vanguarda, ainda que minimamente. Por enquanto, faltam as coisas mais básicas que fazem de um museu uma experiência atrativa não apenas aos aficionados, especialistas ou estudantes obrigados pelos professores. “Em geral, não há divulgação. E quando há, os museus pernambucanos não têm uma estrutura mínima, como uma cafeteria ou mesmo um bebedouro com água”, ressalta a diretora-presidente do Fórum de Museus de Pernambuco, Marilene Dias Leal. “As pessoas precisam ter prazer, quando vão visitar os espaços culturais de entretenimento e educação. Hoje, no Brasil, a Casa de Rui Barbosa faz isso muito bem, ao manter uma programação cultural ao longo do ano e ao deixar seus jardins abertos ao uso da comunidade”, comentou. Mais básico ainda: quase a totalidade dos museus pernambucanos sobrevive sem museólogo. São apenas sete atualmente em atividade no Recife, todos formados no Rio de Janeiro, quatro deles ligados à Fundação Joaquim Nabuco. Na ausência desse profissional, o museu fica estagnado quanto ao que deveriam ser suas funções primordiais – pesquisa e documentação. Sem esse trabalho permanente de estudo e reflexão sobre o acervo, o museu fica perto do estereótipo negativo de coleção de velharias. E longe, muito longe de uma discussão mais aprofundada sobre as formas de uso do espaço, tendências da arquitetura, seu próprio papel na formação da identidade de um povo em constante transformação e, adicionalmente, tudo quanto vem se firmando como características de um “museu do século XXI”, como apontou a exposição de Berlim. “Os museus são poderosas ferramentas na construção da memória e na consolidação de identidades a serviço do desenvolvimento social das comunidades e nações”, afirma a museóloga. Mas nem tudo são trevas. Este ano, a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) vai inaugurar o seu curso de Museologia. “E acredito que, a partir disso, o Estado yy pode avançar muito”, comemora Marilene.

Renata Beltrão

A beleza exterior é tão importante quanto a interior, em se tratando dos museus desse novo milênio

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Helder Tavares/Cortesia

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nonada Thiago Soares

Como é possível registrar uma ausência na fotografia?

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ão existe o nada numa fotografia. Para registrar uma ausência, o fotógrafo precisa presentificar algo. Expor uma coisa, um lugar, um vazio. Revelar uma presença. Alguns pensadores da filosofia da linguagem já disseram isso. Convoco Merleau-Ponty, porque ele chama este trâmite entre o visível e o invisível de “quiasma”. Ponte entre o que se mostra e o que se sugere. Mas, voltemos para as ausências: porque pensar o nada numa fotografia me sugere um caminho pelas insignificâncias. Tenho tendência a achar grandeza no mínimo. No que sobra, no que dobra. Naquilo que não se olha. Este pequeno preâmbulo sobre as grandezas do ínfimo – com a licença poética de Manoel de Barros – me sugere chegar a uma fotografia de Helder Tavares, que vi no livro “Linguagens” (2007), organizado por Mateus Sá e com curadoria de Dominique Berthé. É uma imagem de intensa cor vermelha, em que vemos uma imponente poltrona do lado esquerdo superior e uma espécie de acortinado também vermelho, no lado direito superior. Por trás da poltrona, uma parede desgastada e um interruptor. Por trás do acortinado de filó, duas fontes de luz e, acho, uma janela. O chão se agiganta em seu excesso vermelho enquanto que, sob a poltrona, vemos uma espécie de tapete com ornamentos azulados. Um ponto parece central na leitura que faço desta imagem: não sei em que circunstância a foto foi captada, não sei se houve produção, não sei quais os interesses que norteiam o trabalho do fotógrafo. Mas há algo que me convoca: olhar esta imagem de vermelho intenso, identificar aquela poltrona imponente, as luminescências ao fundo e este cenário ermo, desgastado, carcomido, de chão “batido”, me soa paradoxal. Tão paradoxal quanto reconhecer que é impossível fotografar o nada. Talvez, por isso, meu interesse nesta fotografia: pois tudo que nela está presente, me convoca um ausente.

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Não à toa, lembro de dois diretores de fotografia, exímios no uso do vermelho intenso: Christopher Doyle, parceiro do cineasta Wong Kar-wai no filme “Amor à flor da pele” e Sven Nykvist, que trabalha com o sueco Igmar Bergman, em “Gritos e sussurros”. Esta imagem me evoca o trabalho dos dois, pois enxergo no diálogo destas matrizes, um além: os três trabalhos trazem o vermelho como um dentro. Entranha. O vermelho como carne, vida, sentimento. Em “Amor à flor da pele”, o vermelho embebeda os personagens que não conseguem dizer que se amam. Em “Gritos e sussurros”, o vermelho é o líquido amniótico das verdades femininas e universais. Na fotografia de Helder Tavares, vejo o vermelho como um palco: ato cênico de uma ausência. Há detalhes que se agigantam na minha leitura desta fotografia: um tapete, uma poltrona. Tapetes são convocações. Demarcações de espaço, lugares que pressupõem pessoas. Tapete é entrada. Ou permanência. Poltronas são mais que cadeiras. São ornamentos de um lugar, transcendem a utilidade do cotidiano. Convocam um sentar nobre. Tapete e poltrona, no entanto, entram em contraste com o fundo: parede descascada, interruptor. Eu já havia sinalizado: o vermelho é um dentro, com poltrona e tapete. Um dentro que convida. Um dentro que convida, mas está desgastado: rachaduras, reboco aparente e, surpreendentemente, um interruptor. Uma luz. Luz que está fora. Encoberta levemente por um filó vermelho. Vento que bate neste filó, luminosidade que insiste em entrar pela beira do acortinado. Uma luz branca que tenta entrar neste ambiente vermelho – ou seria o contrário? Não sei. Só sei que em mim se desvela um novo paradoxo: o dentro vermelho e o fora branco. O dentro que convida e o fora que é clarão. O dentro expectativa, o fora constatação. Neste jogo, reconheço: o nada não existe. Nem na fotografia, nem na vida. Porque sempre fica algo. Lembro de um técnico de informática que, certa vez, me disse: se você apagar o arquivo, mesmo da lixeira de seu computador, ele fica. “Onde?”, pensei. E ele me retrucou desatento: “Na memória”. Talvez,

só na matemática, o nada exista. Um menos um é zero. Pronto. Nada só existe na representação das ciências exatas, porque, por onde transito, nas ciências humanas, todos parecem unânimes: o nada é uma presença. Em todas as suas metáforas: silêncio, fim, adeus. ************** Lembro de quando a gente decidiu acabar. Partir para outra. Tentar fazer do nosso relacionamento um nada. Na hora, fomos polidos, educados, trocamos gentilezas e um “é melhor que seja assim mesmo”. Eu coloquei minhas angústias, você colocou as suas. Eu disse todas as verdades que tinha guardado até aquele dia, você, bem, acho que também disse as suas. A verdade é que todo fim pressupõe um esvaziamento. Sobretudo um fim cordial como o nosso. Sem dramas, choros nem velas. Aquele nosso último papo foi um esvaziamento só. Ao final de tudo, você, meio de soslaio, me disse: “Acabou?”. Eu: “Acabei”. Demos um abraço seco, sem lágrimas, você disse “tchau”. Eu quase digo “me liga”. Quase. Você deu as costas, virou a esquina. Você virando a esquina: se fosse fácil esvaziar, chegar ao nada, partir do zero, eu teria ficado com a imagem anterior – você indo embora. Mas, não, eu fico, até hoje, pensando e remoendo, outra imagem: a imagem da esquina. Porque é ela que ficou daquele dia. Você fez a curva, a esquina não. A esquina me parece ser a presentificação do nada em que a gente queria que nossa relação se transformasse. Mas, na dimensão humana, o nada é impossível. Porque, como me advertiu, desatentamente, aquele técnico de informática, algo fica. E na memória. Na foto de Helder Tavares, há algo que insiste em sugerir que não há vazio, não há ausência. É o vento que bate sobre o acortinado de filó. O vento que parece atestar que “o esforço para lembrar é a vontade de esquecer”. Aquele vento é a minha esquina. A imagem que yy sobra. O resto essencial.

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B eibei, Jingjing, Huanhuan e Nini

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o meio da muvuca de mais um dia de trabalho, num verão escaldante até para quem nasceu em terras tropicais, parei para assistir às telas de propaganda do metrô de Xangai. Uma moça oferece o guarda-chuva para uma estranha se proteger da tempestade. O motorista de ônibus espera pacientemente uma velhinha subir. O filme termina com uma moça bonita dizendo que a Olimpíada de Beijing está chegando. É preciso ser altruísta, ajudar o próximo, impressionar. Eu pensei: “Não faz um ano, a mesma moça pedia para que os chineses não cuspissem no chão”. Afinal, jogue a primeira pedra quem nunca fez cara de asco ao ver um chinês cuspindo no chão... Detalhes para nós, estrangeiros, fundamentais. Ah, esses jogos... Tamanha cautela em orientar os chineses a respeitarem nossas frescuras é o termômetro para dizer que a Olimpíada de Beijing está pronta para acender a pira e marcar a história dos jogos mundiais. Enquanto isso, o chinês espera paciente e tranqüilo para ver com seus olhinhos apertados o resultado de quatro anos mais que frenéticos. Mas ele espera de uma forma tão blasé que quem se acostumou ao nosso ritmo brasileiro, de deixar tudo para a última hora, até estranha. Vieram terremotos, protestos no Tibete e até recentes atentados, ainda assim a China estava pronta, de mangas arregaçadas: estádios foram entregues antes da hora; aeroportos novos; o país todo transformado num canteiro de obras. Não será qualquer coisa que destruirá esse sonho. Nem as filas imensas para comprar um ingresso. Nem a frustração de não ter sido sorteado numa loteria esquisita, que pinçou os chineses que poderiam sentar na platéia do ping-pong, natação, ginástica e futebol. Por causa de um certo presidente europeu, que falou o que os chineses não queriam escutar, algumas regras foram lançadas para expulsar os ocidentais indesejáveis. O anúncio “aqui é proibida a entrada de cachorros e franceses” foi estampado nos táxis de Beijing. “São as Olimpíadas. É a nossa cara em jogo”, me disse o policial da imigração. De repente, todos os msns, facebooks, orkuts e o que mais existisse na web estampavam I Love China. “Se você defende o seu país, está cansada dessa tentativa de boicote aos jogos, escreva essa frase onde puder. Vamos mostrar que estamos unidos para impedir que destruam nosso sonho”, dizia a corrente da internet. Tamanho empenho em manter o sonho fez com que ocidentais, como eu, tivessem a chance de cruzar com personagens encantadores. Como a taxista (isso mesmo, mulher no volante por aqui), que aprendeu a falar inglês para dirigir para os turistas e passou a usar pérolas nas orelhas e pescoço, além de muito perfume, o toque decisivo no clima de boas-vindas. “É para deixar os turistas que estão para chegar sorrindo”, disse ela. Não sabia a motorista que já havia deixado uma boquiaberta.

Como foi a espera final dos chineses para as olimpíadas

Ana Addobbati

O fato é que a China, hoje, vive tempos de revolução. Bem diferentes da que fez com que a minha vizinha xangainesa de cinqüenta e três anos, cujo nome em inglês é Lilly, aprendesse sozinha a falar inglês. Ela foi um dos motivos mais que pertinentes para eu chegar atrasada à minha aula. Numa conversa despretensiosa, no elevador, ela me contou o motivo de tanto empenho. Na metade da década de setenta, a então universitária dotada de idéias contrárias aos interesses dos comunistas do líder Mao-Tsé-Tung foi enviada ao campo para uma temporada de trabalhos forçados - era obrigada a limpar as latrinas. Carregou livros escondidos, que ensinavam a língua do Tio Sam. Segundo ela, uma forma silenciosa de se opor ao movimento que paralisou a produção técnico-intelectual do país. Prestes a se aposentar, Lilly respira fundo quando lembra do que enfrentou no passado, mas enche ainda mais o peito para o que vê nas ruas. “Mesmo com tanto controle exercido pelo governo nas informações, é inegável que se inaugurou uma nova era, em que o chinês se vê compelido a se abrir para o mundo e estou orgulhosa disso”, disse a senhora sorridente. One World, One dream. Um Mundo em um só sonho. Quem diria que o país que tanto hostilizou o Ocidente iria abrir suas portas desta forma acolhedora? Pagou-se um preço, é certo. Mas o sonho tinha de ser perfeito. Uma utopia merecedora para quem carregou tanto peso nos ombros. Se informações foram manipuladas para manter esta perfeição imaginária, isso também veio no pacote que os chineses resolveram aceitar. Quem quer saber de atentados às vésperas das Olimpíadas? Se a mídia internacional alardeia, na China isso vira uma notinha de rodapé. Quem luta por democracia se choca. Acha injusto. Mas, esse é o sonho de uma maioria que quer curtir a fofice dos mascotes Beibei, Jingjing, Huanhuan e Nini (juntando as primeiras sílabas quer dizer Bem-vindo a Beijing). Sentar com o neto no colo e ver um show inesquecível nem que seja apenas pela TV. O resto? Deixa com a gente, que dificilmente vai conseguir entender a alma dos que enxergam o yy mundo por olhinhos puxados.

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F oi mal M

de ã f m u o de de duvit n e oim ualida p e d q straO e e d u s e o s event que deve erto show c , dosa cio a um eição” c í nho v de “Coenssoa m P ao so Breno

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em quem ache mau gosto ou esquisitice o fato de eu adorar freqüentar eventos ruins. Não sei bem o motivo desta minha inclinação por programas que são normalmente descartados pelas pessoas de bom senso. Como quase todo desvio de comportamento, isso deve ter raiz num trauma de infância não resolvido. Ao menos, assim, posso ter uma justificativa mais ou menos plausível e me isentar de qualquer responsabilidade. Sofri abuso, aos 11 anos de idade. Os molestadores: minha mãe e Cauby Peixoto. Sim, a palavra abuso é apenas para causar dramaticidade. Mamãe não é nenhuma pervertida. Sobre o Cauby, me falta autoridade pra dizer qualquer coisa, mas, obviamente, não boto a mão no fogo por ele nem por ninguém. Ah, também nunca fui molestado por qualquer pessoa, fique claro. De qualquer maneira, o primeiro evento genuinamente ruim que presenciei na vida foi um show do Cauby Peixoto, uns 12 anos atrás, época já bem distante dos dias de glória dele. Fui na marra, dizia que “Cauby é coisa de gente velha”. Mas minha mãe insistiu e me arrastou até lá, garantindo que eu iria gostar do show. Talvez, por algum tipo de intuição materna, ela desconfiasse que, no futuro, eu seria um grande apreciador desses espetáculos de duvidosa qualidade. Tendo este histórico, é claro que eu não poderia perder a apresentação do Village People aqui, no Recife, cerca de três décadas depois de eles terem sido sucesso com dois únicos hits. Impossível que possa ser bom algo envolvendo cantores-dançarinos de meia-idade tentando parecer sensuais vestindo roupas supostamente fetichistas. Por teimosia ou desconhecimento, algumas pessoas achavam que poderia ser uma boa balada e acabaram ficando frustradas após os shows do grupo no País. Eu, pelo contrário, fiquei mais do que satisfeito. Estou convencido de que o Village People mostrou uma das piores apresentações que verei em toda minha vida. Será muito difícil ver novamente aquela combinação única de pessoas esquisitas, música de péssima qualidade acompanhada de coreografia desconexa e falta de empolgação do público. Não tenho capacidade para imaginar algo mais constrangedor. Definiria o show como uma versão disco de fim de Baile dos Artistas, reduzida a um universo de seis se-

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nhores no auge de sua decadência. Definitivamente ruim e, por isso mesmo, maravilhoso. Embora de vertentes bem distintas, Cauby e Village têm, em comum, esse inegável ar de decadência, algo deprimente que me atrai. Mas não saberia explicar exatamente o que me faz sair de casa e ir para festas meia-boca. Simplesmente, me parece uma opção razoável e honesta de diversão. Mas não me limito a experiências musicais improváveis, o meu negócio é experimentar de tudo quanto for insólito e irrelevante. Talvez, tosco seja a palavra mais apropriada para definir alguns eventos, como um seminário holístico de que participei certa vez. A reunião foi realizada por um grupo chamado “Fraternidade raio de luz”, que se definia como “uma fraternidade espiritual da Terra ligada aos seres divinos cósmicos confederativos (sic)”. Só pelos organizadores já parece irresistível, não? Difícil ficar indiferente. Tanto que saí de Boa Viagem, no Recife, e peguei dois ônibus numa manhã de domingo para chegar ao local do encontro, no centro de Igarassu. Não tinha nada melhor pra fazer naquele dia, mesmo. O seminário durou umas seis horas e propiciou momentos inesquecíveis: ouvi histórias sobre criaturas subterrâneas, anjos infiltrados entre homens e alienígenas querendo dominar o planeta. E ainda fui apresentado ao fundador do grupo, um cara que dizia ter adquirido poderes extra-sensoriais após receber instruções de seres extraterrestres. É o tipo de pessoa que eu jamais conheceria em qualquer outra ocasião. Portanto, os eventos ruins cumprem também um importante papel de socialização. Ponto positivo pra mim. O grande problema destes eventos, e talvez seja o único, é que poucas vezes encontro alguém disposto a ir comigo. Nem os melhores amigos, ou minha, namorada costumam topar de primeira. Não quero tornar isso um prazer solitário, gosto de poder compartilhar com mais gente. Às vezes tenho de insistir muito para convencer, mas nunca desisto. Por falta de argumento, continuo usando o chavão “vamos, vai ser divertido, prometo”. Mas, vez ou outra, acreditam nas minhas promessas. Aposto que o Cauby iria gostar de sair comigo. Da próxima vez vou chamá-lo, até mesmo como retribuição pelo show que ele me proporcionou. E vou convidar Conceição também, lógico. yy

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