Pernambuco 32

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Foto de capa/Concepção: Jaíne Cintra

D ois EDITORIAL “Vamos levar um pingüim de geladeira para Boa Viagem e fazer o editorial da capa”. Quando a nossa editora de arte, Jaíne Cintra, chegou com a idéia, minha primeira reação foi de não colocar muita fé na solução encontrada para ilustrar a reportagem de Bruno Albertim. Mas, no meio da (minha insensata) descrença, começaram a pipocar notícias sobre pingüins perdidos no litoral brasileiro. Mais bizarro (e para nós aqui oportuno), impossível.

A surpresa do real concordando com a vasta (e bem vasta) imaginação de Jaíne, ficou ainda melhor com o resultado das fotos, que só ressalta a preocupação do Pernambuco em tratar todos os assuntos

com ironia e, quando possível, com uma dose de nonsense. Pois o pingüim de geladeira foi transformado num postal, na nossa página central, excelente solução para o ótimo texto de Bruno Albertim que, meio entre a ficção e o ensaio, detalhou nossa relação com o paraíso salgado de todos os finais de semana.

Saindo um pouco da praia, o professor do departamento de Letras da UFPE, Alfredo Vizeu, enviou um artigo incisivo sobre como os jornais andam tratando o chamado homem comum nas suas páginas. Atualmente, é a coisa mais normal do mundo encontrar reportagens falando de gente não muito diferente de mim e

de você. Personagens que se tornam fortes exatamente por sua banalidade. Mas quais são os perigos dessa chamada humanização?

Georgia Quintas sugeriu um texto bem inusitado: descrever o choque que teve ao ver uma foto da sisuda escritora francesa Marguerite Duras... sorrindo.

Animado com a história, Raimundo Carrero resolveu escrever um depoimento falando dos perigos de um escritor aparecer sorrindo.

Na contracapa do Pernambuco, uma reportagem pra lá de divertida de Fabiana Moraes, questionando o sumiço do pequinês. É engraçado como até o nosso

afeto pelos animais de estimação é mediado pela moda.

O Saber+ presta homenagem ao poeta Ângelo Monteiro, que lançou pela Editora da Cepe “Todas as coisas têm língua”, reunião dos seus principais trabalhos poéticos.

PS: O pingüim usado para o editorial dessa capa foi levado por uma onda traiçoeira durante as fotos... Surpresas de verão...

Até o próximo mês, Schneider Carpeggiani

I néditos

Tom Cabral

Uma publicação da

Companhia Editora de Pernambuco - CEPE

Circulação mensal integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco

Governador do Estado de Pernambuco Eduardo Henrique Accioly Campos

Presidência Leda Alves

Departamento de Suplementos Raimundo Carrero

Vice-Governador do Estado de Pernambuco João Lyra Neto

Diretoria Administrativa e Financeira Bráulio Mendonça Meneses

Superintendência de Criação Luiz Arrais

Diretoria de Produção e Edição Ricardo Melo

Supervisão de Redação Schneider Carpegianni Redação Marilene Mendes Mariza Pontes Gilson Oliveira (revisão)

Secretário da Casa Civil Luiz Ricardo Leite de Castro Leitão

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Conselho Editorial Mário Hélio: Presidente Cristhiane Cordeiro José Luiz Mota Menezes Luís Augusto Reis Luzilá Gonçalves

Arte Jaíne Cintra (edição) Diagramação Militão Marques Supervisão de Diagramação e ilustração Joselma Firmino Departamento de Produção Gráfica Júlio Gonçalves

Supervisão de Impressão Eliseu Souza Setor de Pré-Impressão Roberto Bandeira

Contatos com a Redação 3183.2786/3183.2787 redacao@suplementope.com.br Atendimento ao Assinante 0800 81 1201 317.2750 cepecom@cepe.com.br Distribuído exclusivamente pela Companhia Editora de Pernambuco - CEPE Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro. CEP 50100-140 Fone: (81) 3183.2700 FAX: (81) 3183.2741

T elevisão

ai de mim, que sou romântica

A estranha combinação entre ficção-científica e dramalhão na novela “Mutantes” da Record

Cristhiano Aguiar

Q

uando eu era criança, dizia ter dois medos: o escuro e os ETs. Se hoje cresci e tenho medo de outras coisas, bem mais sem graça (não pagar o IPTU, ficar desempregado), isso só prova a principal teoria que eu tinha na infância, a de que ser adulto não era tão legal quanto achavam meus coleguinhas. Faz alguns dias, zapeando pelos canais de TV, me surpreendo com uma dramaturgia que também se recusa a crescer: uma novela da rede Record chamada “Caminhos do coração – Os mutantes”. O próprio título já é um clássico.

O escritor tcheco Franz Kafka tem alguns contos com bichos bastante estranhos. Um deles se encontra no conto “Um cruzamento”, que conta a história de um animal que é metade ovelha e metade gato. Da mesma forma, “Caminhos do Coração – Os mutantes” emenda uma imaginação pop extravagante (mutações, vampiros de olhos vermelhos, super-poderes, modelos que já posaram nuas na Playboy dando risadas enquanto falam em dominar o mundo) com o melodrama. É como se vocês colocassem um bando de fãs nerds para escrever a continuação de “Maria do Bairro”. À primeira vista, a novela da Record não parece uma grande novidade. Outras tantas já usaram personagens e enredos que nos parecem fantásticos, como aquelas baseadas em obras de Jorge Amado. Todo mundo lembra de “Vamp”, com a fatal Claudia Ohana e o ultracamp vampiro interpretado por Ney Latorraca.

Mas nenhuma tentou se conectar de maneira tão estreita com toda uma nova geração, que começa a ter contato com narrativas fantásticas através do boom dos mangás e animês, do “Harry Potter” e “Senhor dos Anéis”, dos RPGs, videogames, seriados de TV (tipo “Lost”, “Stargate”, “Buffy” ou “Arquivo X”) e filmes de super-heróis. Este público vem crescendo desde os anos oitenta e está preparado para consumir um fantástico bem diferente do de “Saramandaia”.

Toda essa cultura muitas vezes cai na estética do trash, daquilo que é precário e exagerado e se assume assim. O Brasil produziu o Machado de Assis do trash, que é Zé do Caixão, mas a novela da emissora do Bispo Edir Macedo é diferente. Por mais tosco e grotesco que os filmes de Zé do Caixão sejam, eles têm um compromisso com o horror e com o desviante. Já “Caminhos do coração – Os mutantes” leva todos os clichês do fantástico até o limite, sem se levar muito a sério em momento algum. Numa das cenas que vi, o homem-cobra transa com a mulher-aranha. Precisa dizer mais?

No mundo de “Caminhos do coração – Os mutantes”, pelo que pude entender, uma cientista maligna faz experiências genéticas que causam mutações. Isto cria novas raças de seres humanos e lhes dá super-poderes. Este enredo básico lembra muitos as histórias em quadrinhos de super-heróis, como “X-Men”.

A raiz disto tudo está na ficção científica, que alia imaginação com especulação científica.

Vou dar um exemplo com filmes, para explicar melhor: pegue o clássico “2001”, de Kubrick, e compare com um filme como “Apolo 13”, dirigido por Ron Howard. O primeiro realiza uma especulação sobre possíveis desdobramentos do desenvolvimento de inteligências artificiais, viagens no espaço, encontro com civilizações alienígenas, entre outros temas. O segundo é uma reconstituição histórica de uma malfadada expedição à lua. Nos dois filmes, temos ciência. Um é ficção científica (Kubrick); o outro, não. O que os diferencia é justamente isso: o escritor de ficção científica vive no “e se...”.

Ele tenta nos mostrar realidades paralelas possíveis. A esta maneira de contar histórias (seja na literatura, na TV, cinema ou história em quadrinhos) interessam, não apenas, o conhecimento da chamada ciência “dura” (Química ou Física, por exemplo), mas também as especulações sobre ciências sociais.

Os poderes dos super-heróis, dos vampiros, dos homens-alguma-coisa são uma maneira que nós encontramos de transformar em metáforas as nossas próprias inquietações.

Numa das cenas da novela, uma personagem vampira luta contra o desejo de sugar o sangue de outro personagem. É um momento de grande significado sexual, apesar da cara de palerma do ator. Este tipo de cena deve interessar bastante os adolescentes. Sei disso porque, na minha adolescência, me identificava com a inadequação dos personagens bizarros, deformados e mutantes, que eu encontrava nos quadrinhos, na literatura e no extinto programa “Cine trash”. Toda essa confusão de fluidos, desejos que não se realizam, músculos que se tensionam e relaxam, grupos que excluem uns aos outros, transgressões e indefinições... Não é por acaso que este tipo de histórias têm como obsessões o corpo e a demarcação do limite entre nosso grupo e nosso jeito e o Outro. Por isso, mesmo que o sangue de “Caminhos do coração – Os mutantes” seja de ketchup, não deixa de ser um caso curioso na recente história da cultura pop brasileira.

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V

A efêmera atualidade da indústria de consumo que nos vende a ilusão de eterna juventude Paulo Marcondes F. Soares

ivemos no mundo da rápida obsolescência e do ultra-utilitarismo. Tudo deve ser essencialmente útil mas, também, rapidamente descartável. As tecnologias inovadoras nos prometem, a cada minuto que passa, um avanço, uma felicidade maior com a nova novidade, um sempre atualizado modo de estar no mundo. Cria-se, assim, uma fantasmagoria para os objetos: a de que, consumindo-os, vamos nos manter eternamente atuais. E mais, que o sentido de atualidade, tal como identificado aqui, passa a ser o mesmo que se manter jovem. Daí as novas tecnologias terem uma forte aliada na elaboração dessa idéia de ser atual: a moda. A moda tem o seu principal apoio, para se manter em evidência, na publicidade.

Minha argumentação não é a de que as inovações tecnológicas sejam um engodo, uma balela, uma inverdade ou que, no fundo, não sirvam para nada.

Longe disso, as inovações tecnológicas se mostram como algo sério, que trazem muitas das respostas para os nossos problemas, e nos têm proporcionado muito conforto e satisfação. Muitos benefícios.

Há, contudo, uma questão a ser levantada: inovações não são benéficas por si sós. Dependem do uso que delas se faz. Tecnologias podem ser usadas como modo de inovar ações de destruição; podem vincular estados de felicidade a modos de possuir: ter é poder, é o passaporte da felicidade; ao possuir, você tudo pode e compra.

A reflexão sobre como as tecnologias têm estado a serviço de interesses não claramente revelados, ou de como elas passam a compor a agenda oculta de interesses puramente mercadológicos de consumo, se nos impõe como opção a não aderirmos pura e simplesmente a tudo que se nos apresentam sob o signo do novo e do redentor.

Nesse jogo, existem interesses com fins muito específicos que, para serem atingidos com eficácia, precisam constantemente elaborar e re-elaborar modos ou estilos de vida ditos “da onda”, mas cuja finalidade é menos a de nos reconhecer como cidadãos e mais a

de nos transformar de consumidor potencial em consumidor implacável.

O mercado precisa se expandir, multiplicando suas ofertas no que diz respeito à ampla diversidade de produtos e serviços, com capacidade para atingir um contingente cada vez maior de consumidores. Independente de sexo, idade, cor ou etnia, somos transformados no típico: jovens dos oito aos oitenta, como já se disse. E isso inclui o disciplinamento do nosso tempo livre numa forma de lazer construído. Assim, o tempo do não-trabalho, do ócio, diria Adorno, converte-se em tempo de consumir.

Descartam-se produtos, reciclam-se idéias. O démodé vira a nova onda, o supérfluo a nova essência.

Manifestações culturais tidas como expressão mediana e de mau gosto, transmudam-se em fenômeno cult. Assim como a novidade logo fica obsoleta, também a obsolescência ganha ares de novidade, como que para saciar nossa ávida compulsão pelo novo, que beira a um estado de angústia.

Para isso, a publicidade é chamada a fazer a sua parte. Como dizem eminentes estudiosos, na sua origem a publicidade de um produto era elaborada pela mescla de informação e fantasia. Ou seja, embora criasse uma fantasmagoria sobre o produto, ela não era desprovida de informação. A publicidade hoje parece ter tomado o caminho da pura fantasmagoria em torno da marca ou grife, sem informações específicas do produto.

Trata-se de vincular o produto, exclusivamente, a um estilo de vida. Não importa as propriedades de que um produto dispõe, mas a sua assinatura. A rubrica é o que o autoriza, é o que afirma o produto como expressão da última geração da moda. Para isso, a publicidade transforma as estações do ano em ambientes primaveris (veja-se Baudrillard). Podemos, pois, dispor de uma moda inverno, verão ou outono, mas sempre em clima primaveril. E em tudo se reitera uma forte ideologia utilitarista. Mas, diante disso, quem nos garante yy a gratuidade e a espontaneidade das coisas?

O que é, por conseguinte, o O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me pertempo? Se ninguém me perguntar eu sei; se o quiser guntar eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. pergunta, já não sei.

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SXC.HU/Cortesia

T ique-toque

J ornalismo

O

s jornais pernambucanos Folha, Diario e Jornal do Commercio vêm, há algum tempo, fazendo reportagens sobre o que podemos denominar de perfis populares, gente simples e o homem comum. A novidade pode ter como estratégia aumentar as vendas ou, então, trazer para as páginas homens e mulheres que são como que invisíveis no cotidiano. Não são celebridades, não são autoridades, pessoas que na literatura inglesa seriam chamadas de ordinary people. Na tradução literal, gente ordinária. A tradução que mais se adequaria à expressão é gente simples.

O tema ao mesmo tempo que me fascina, incomoda. Lembro-me do tempo em que era estudante de Direito em Porto Alegre, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no começo da década de oitenta, e só ouvia meus professores falarem que a Justiça, a maioria deles juízes, decide com base no homem comum. Essa expressão motivou algumas discussões com alguns deles, porque sempre quis saber o que era para eles o homem comum.

Os professores/magistrados procuravam dar grandes explicações, mobilizando toda uma retórica sobre o homem comum que tomava por base crenças, mitos, profissões, entre outros, do mundo do qual faziam parte. Acredito que esse foi um dos motivos para que abandonasse o curso de Direito no terceiro ano. A explicação não me convenceu; pelo contrário, levou-me a refletir e ver que o tal homem comum era, na verdade, auto-referencial. Ou seja, alguns juízes levam muito em conta sua cultura, seu meio social, para idealizarem o homem comum. Fiquei pensando: o que estou fazendo aqui onde se julga a partir de uma referência das elites? Deixei o curso.

A outra experiência que tive com o tal homem comum, gente simples, no final da década de setenta, foi com o padre Pedrinho Guareschi, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Com certeza, algo bem mais produtivo para minha vida como cidadão. Trabalhávamos nas primeiras comunidades de base, com favelados, procurando construir um novo mundo. Gente simples, sem acesso à educação, habitação, segurança, saúde e lazer. Sentia-me gratificado e aí comecei a entender o que era a gente simples.

Sem nenhuma preocupação demagógica, já estou velho para procurar defender uma razão cínica. Explico:a razão cínica é o que prometemos e não fazemos.

Muito comum aos políticos. Mas, naquela época, junto com aquelas pessoas sem direito a nada, não havia como ser cínico. Era preciso ter vergonha na cara e trabalhar por um novo País. Como mentir para aquelas pessoas que esperavam da gente tão pouco, a contribuição para juntos construirmos um mundo melhor.

Ao homem comum, o homem médio de alguns juízes, fico com essa gente que percorre as nossas ruas, vive de biscates nos sinais, perambula pelas praças e luta, mas luta muito, para se manter vivo tanto no campo quanto nas cidades. Gente que nasce e morre e, por mais trágico que pareça, não faz diferença; são gente simples para as quais basta viver sem se importar com o presidente, o prefeito, as guerras que ocorrem pelo mundo. Elas seguem o seu dia-a-dia.

Mas, essa gente simples, aparentemente indiferente com os rumos da vida, sempre fascinou o Jornalismo, os jornalistas. E, esse interesse não é recente, só para ficarmos no pioneiro dos estudos de comunicação e

do jornalismo no Brasil, o pernambucano Luiz Beltrão, já no começo da década de sessenta, no livro “Imprensa informativa”, ao tratar do que é notícia, chamava atenção para um item que ele classificou como “Drama e comédia”: “A vida cotidiana está cheia de pequenos grandes dramas e comédias. Na verdade, toda a matéria jornalística pode ser enquadrada numa dessas categorias teatrais. Como já dizia Shakespeare, o mundo não é mais do que um grande cenário em que a humanidade faz o papel que corresponde aos atores. Para estes é que o jornalista trabalha como diretor de cena e descobrindo os ‘valores desconhecidos’ nos episódios de conteúdo dramático ou cômico para apresentá-los ao público”. (os grifos são nossos) As reportagens que vêm saindo nos jornais pernambucanos têm essa preocupação. Revelar esse drama de homens e mulheres que vivem o cotidiano e que fazem parte do nosso dia-a-dia, mas são os invisíveis. Então, aqui e ali, temos lido matérias, por exemplo, sobre uma banca de revistas que existe próximo à Jaqueira e tem o nome de “Banca do Otário”. Ou então sobre o motorista que dá bom dia aos seus passageiros e foi capa do Jornal do Commercio.

No Diario de Pernambuco também não é muito diferente. A repórter Ana Braga, que tem feito reportagens sobre gente simples, reuniu seus trabalhos num blog: http:www.sobrevidasordinarias.blogspot.com. br. Acredito que não se trata só de uma estratégia de venda dos jornais. O que chamamos de gente simples, cidadão comum, homem médio, sempre fizeram parte do jornais. O que ocorre agora é que a eles se dedica um bom espaço. Quais os motivos?

Jornalista durante vinte anos e hoje lecionando na Universidade Federal de Pernambuco, não gosto muito de especular, mas levanto algumas hipóteses com relação a esse resgate de gente simples. Tirando a questão da estratégia de venda, parece-me que há uma preocupação dos jornais, em particular dos jornalistas, de contribuir para procurar mostrar que o País não vive só de autoridades, celebridades e políticos. Também há milhões de pessoas que ajudam a construí-lo e, provavelmente, nascerão no anonimato e morrerão no anonimato.

Um outro aspecto a se levar em conta, este mais lúdico e pueril, é que nas grandes cidades, cada vez mais complexas, existem milhares de cidadãos e cidadãs que têm ainda uma vida comum. Vida que acreditamos já não ser possível em função do ritmo cada vez mais acelerados das metrópoles. No entanto, as reportagens sobre “gente simples” vivendo no campo e na cidade são um exemplo prático de que há outras alternativas. Mas, queremos? Queremos construir uma nova sociedade?

Uma preocupação que tenho com essas reportagens sobre gente simples, cidadãos e cidadãs comuns, é não endeusá-los. Eles não são seres humanos acima do bem e do mal. Têm ódios e paixões. Também me preocupa a possibilidade de uma descontextualização.

Elas não são quadros de uma exposição.

Ou seja, essas pessoas fazem parte do nosso mundo e nós do cotidiano delas. Não contextualizá-las socialmente, culturalmente e politicamente, isolando-as em seu mundo, é transformá-las em peças de museu para que sejam visitadas como algo que já não existe mais. Peças primitivas. Essa gente simples tem corações e mentes que vibram e isso é central para que as comyy preendamos.

há uM alGuém na MuLTIdão Os problemas por trás das matérias de jornais que glorificam o chamado homem comum Alfredo Vizeu

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C apa

A história e as histórias que nos tornam iguais perante a praia Bruno Albertim

E

les chegam em grupo. Uns cinco ou seis rapazes. O mais velho, talvez já tenha atingido a maioridade. Uns, de sunga, coxas à mostra, mais curtas do que os sungões da classe média que custam, provavelmente, meio mês do trabalho de cada um deles. Outros, bermudas largas, movimentos livres. Mal chegam perto da água, começam a coreografia. Piruetas seguidas, giros aéreos no eixo do próprio corpo. Aterrisam elegantemente de pé, as caras largas de satisfação. Lembrei do sobrinho de uma amiga. Ficara tetraplégico aos dezesseis.

Fraturou a cervical num pouso mal planejado dessas acrobacias que os meninos suburbanos cometem, ritual hedonista semanal, tão logo descem de seus ônibus apertados em direção ao paraíso possível e salgado.

Uns metros depois, crianças usam restos de pranchas abandonadas por surfistas ou tábuas finas para deslizar velozmente sobre a arrebentação na areia. Mais alguns anos, e estarão dançando no ar como os outros. Estão sinceramente felizes. Na areia fofa, três estrangeiros, europeus certamente, parecem dormir sobre cangas ao lado de edições de bolso de alguns clássicos. Amassado, “O estrangeiro” de Camus está cheio de terra: a náusea em versão cenoura e bronze. Não usam guarda-sol.

A praia é Calhetas. Mas poderia ser Trancoso, Pipa, Búzios ou a urbana Ipanema. Um desses lugares que os caras do Lonely Planet mapeiam para facilitar a migração de mochileiros enquanto seus pais se embriagam de mojitos em resorts do Caribe, do Mediterrâneo ou mesmo do Nordeste do Brasil, inspirados por outros guias. E tomando drinque com outras frutas.

Uma das gringas ensaia o topless. Abandona a parte superior do biquíni. Mas permanece de bruços. Os seios ocultos entre a canga e as costas. Um pouco adiante, uma nativa convicta exibe seu conhecimento inato de que a praia é espaço mais que natural para o dionísico do cotidiano. Curvas generosas, algumas estrias em contraste com o biquíni verde-esmeralda de lacinho. Não é gorda. Mas está a quilos das meninas de outdoor.

Sabe que o corpo, abrigo de seu espírito pouco contido, é eficiente como mecanismo de liberação de hormônios. Uma colega passa abundantemente óleo de bronzear vermelho em suas nádegas, desses vendidos em saquinhos pendurados numa vara como se fosse cajá, pitomba, siriguelas ou outro trunfo de tropicalidade conduzido por mascates amparados por chapéu de palha de um Nordeste idílico e cada vez menos real.

Ela está de bruços. Quem caminha pela beira do mar não tem a visão apenas das duas montanhas carnudas de seu derrièrre. A concavidade anterior de sua vulva é generosamente ofertada à visão dos passantes. Está curvada, apoiada pelos cotovelos.

Beberica uma cerveja sutilmente enterrada na areia, protegida por um isopor cilíndrico. A um gesto seu, o barraqueiro saca outra garrafa da caixa térmica e repõe a bebida. Crianças correm, cavam piscinas na areia. Os adultos parecem ligeiramente embriagados. E felizes. Ela deve ter trinta anos Cerca de um século atrás, sua bisavó dificilmente estaria na praia a uma hora dessas. As senhoras e moças eram desencorajadas a permanecer diante do mar depois das sete da manhã, quando as praias viravam arena de trabalho de pescadores ou treino de alguns poucos remadores. Não seria aconselhável a exposição ao olhar masculino. Mesmo que a indumentária praieira dos primeiros tempos seja militarmente calculada para impedir a revelação da anatomia. Calças e blusões largos, do pescoço ao tornozelo. Pesados, de um tecido chamado baeta.

Para que a luz não atravessasse a trama revelando o que deve esconder, a cor é sempre azul-marinho.

Os homens já podem exibir o torso. E freqüentar a praia em qualquer horário. As moças de família contam com os serviços de banhistas profissionais.

Seguram nos braços fortes enquanto banham-se pela cintura.

Sob a velocidade dos anos entre guerras, as cocottes já adotam o maillot colado à pele. Tornam

possível a avaliação pública de quadris e ancas. Com os testes atômicos no atol de mesmo nome à época da segunda grande guerra, o duas-peças recebe o nome de biquíni. Em 1974, encolhe. Vira tanga. O caminho para o desnudamento segue firme até que, nos anos 1980, a bunda ganha de vez a praia com o fio-dental. Lojas e farmácias comercializam adesivos para os seios com motivos tropicais. Sutien – e a marquinha – já é opcional.

Para proteger a pele contra o câncer da vez, íamos à praia não somente com os primeiros protetores solares, mas também com faixas coloridas de noscote nas bochechas e nariz. A pomada rosa-shock é o máximo numa época em que nossos cabelos recebem mechas cintilantes do gel New Wave para refletir melhor a luz negra das danceterias.

Guel Arraes sintetiza a juventude tropical que cura a ressaca da ditatura com surfe, sal e sassarico sensual no triângulo amoroso (e bisssexual?) de “Armação Ilimitada”.

Com o biquíni cada vez mais rente ao esfíncter feminino, calcinha tão cavada como uma curva de Niemeyer, os homens também sobem a curvatura de suas sungas.

Enquanto uns mancebos preferem bermudões como os dos surfistas, outros rapazotes deixam antever as polpas de suas nádegas em modelos ligeiramente asa-delta. Eflúvios da econômica sunga que a prima Leda Nagle fez para o Gabeira chamar a atenção do País nas areias de Ipanema.

Mas quando tudo parecia caminhar para o fim definitivo da marquinha, para o bronzeado completo, vem a moda, de novo, a moda. Biquínis recebem babados e espartilhos. Os sungões dos anos cinqüenta adornam os mancebos do século vinte e um.

Indiferente aos modismos, a moça de Calhetas acomoda melhor a alça inferior do biquíni que deixa sua anatomia igualmente inferior pouco ventilada. Movimento rápido, ligeiro puxão na calcinha, e ela parece estar outra vez confortável. O sol está a pino. Um casal joga frescobol. Na água, um rapaz moreno, cara de contínuo de Nelson Rodrigues, percorre os lábios da namorada. Saem do mar ao encontro de um grupo. Seu andar ligeiramente transversal lhe deixa algo patético. O homem curva sutilmente a pélvis para trás – uma tentativa subconsciente de esconder a excitação incontida. Travestis se exibem lascivamente nas pedras do canto direito. Longe dos banhistas, homens trocam favores sexuais entre si. Enquanto os héteros quase copulam abertamente na praia, os gays parecem escolher uma trilha para além dos arbustos como arena para o sexo fortuito.

Na terceira ou quarta caipirinha de vodca barata, Thales de Avezêdo me vêm à memória: a praia confirmou seu destino. Não é mais apenas espaço geográfico ou a porta de entrada de nossa colonização remota. Mas sobretudo arena de sociabilidades. Ainda que Augusto e outros imperadores da Roma Antiga gostassem de molhar o pezinho, o banho de mar como hábito social é algo bem recente no Ocidente. Começa no fim do século dezenove, quando a elite européia elege balneários para o deleite e distinção social. Em pouco mais de um século, o Brasil descobre, ufana e degrada boa parte de seu litoral. No século vinte, inventamos a tropicalidade contemporânea.

Como dizia Paulo Francis, intelectual não vai à praia; intelectual bebe. Mas alguns dos movimentos artísticos pontuais do Brasil têm, necessariamente, resto de areia no calção. Tom e Vinícius (que não gostava de praia ) enchiam a cara numa rua de Ipanema quando viram a garota no doce balanço a caminho do mar. A turma deles atualizou a música brasileira exumando o clima soturno dos boleros e sambas-canção com a luminosidade da cinqüentona bossa nova. Caetano (que não dispensava seus mergulhos, às vezes noturnos, na Praia da Barra) trouxe o pop ao patropi com um movimento batizado de tropicalismo. No início dos anos noventa, muitas cervejas no eixo Rio Doce-Candeias, Chico Sciense, Zero Quatro e cia. recriam o pop brasuca com metáforas em torno do estuário; o mangue praieiro aterrado para pavimentar o Recife.

Com as comemorações, bons livros, seminários e também blablablás estéreis pela passagem do bicentenário da mudança da corte portuguesa para o Brasil, o fato ganhou evidência. Dom João VI, o rei frouxo e glutão, tomava banhos na Praia do Flamengo. Suspenso numa espécie de gaiola, para curar-se de uma mordida de carrapato. Sua mulher, Carlota Joaquina, preferia Botafogo. Mais para estar longe do rei. Até o começo do século vinte, banho de mar era remédio. Curava de tudo: reumatismo, sífilis, béribéri, anemia, edemas, escorbuto e crises nervosas.

Na virada do século, a atitude terapêutica vira hábito social. O chique entre a gente do Recife era o banho de rio nos arrabaldes ao longo do Capibaribe, nas águas doces onde Manuel Bandeira teve seu “primeiro alumbramento” diante da moça nua e molhada. Mas a elite européia e norte-americana passa a advogar os benefícios dos banhos salgados, dos esportes ao ar livre. E a aristocracia açucareira começa a criar também o hábito das casas de veraneio.

Com o fim da escravidão, a musculatura tonificada deixa de ser vista com preconceito, coisa de quem é obrigado ao trabalho braçal. A mulher flácida e corpulenta de engenho começa a ter outro modelo.

Como Boa Viagem é uma invenção muito recente (a principal avenida do bairro hoje mais adensado do Recife não era mais que um manguezal nos anos 1950), cria da Ponte do Pina, Olinda é a primeira praia a ser anexada.

Por ali, veraneou gente notória como a Clarice Lispector, que escreveu com ternura sobre a Praia do Carmo, e um Nelson Rodrigues de calças curtas – e provavelmente já de suspensórios. Gilberto Freyre anotou as mudanças. Diz ele, em “Aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil”: “A água nobre é hoje a de mar – esse mar nuns lugares tão azul e noutros tão verdes que banha as areias do Nordeste. E entretanto faz pouco mais de um século que nelas só se fazia atirar o lixo e excremento das casas; se enterrar negro pagão; se deixar bicho morto; se abandonar esteira de bexiguento ou lençol de doente da peste”. Cem anos depois, o que resta de praia na cidade histórica raramente passa nos testes de balneabilidade.

Enquanto os pobres se espremem nas praias (sub) urbanas, os ricos queimam a pele em novas latitudes. A Organização Mundial do Turismo decretou que os destinos clássicos, no Mediterrâneo ou no Caribe, estão saturados. Não têm mais como e por que crescer. A saída é alargar as fronteiras de um mundo onde oitenta e oito por cento dos lugares que motivam deslocamentos estão em áreas costeiras. Diz a OMT que novos destinos já surgem como mercadoria corrente deste mercado global de viagens. A seis horas de vôo da Europa, o Nordeste do Brasil é um deles. Sim, da próxima vez que for à sua praia deserta, prepare-se para encontrar um segurança carrancundo e a bandeira de alguma rede internacional de hotelaria indicando que os sabiás e andorinhas cantam agora sobre as palmeiras de um resort. Eles já estão lá. Aqueles pescadores e caiçaras de peixe fresco à disposição, conversas amplas e outros chiclês da cordialidade brasileira terão virado camareiros. Ou, indenizados em suas choupanas, moradores de um subúrbio do Recife.

Aos domingos, pagarão a meia passagem de um ônibus para dividir espaço contigo na areia ou te vender o melhor caldinho de frutos do mar entre o Pina e Boa Viagem. Na babel de sabores, mais um tira-gosto vibrante, honesto, como quase tudo oferecido nos pregões na areia. Um gole na cerveja gelada, antes de um mergulho. Derramado na cadeira, o sol descendo do rosto pelos braços, o pensamento leve e displicente. O mar está ali. É bom se sentir yy em casa.

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SXC.HU/Cortesia

T eatro

O

que mais importa na arte: o artista ou a obra?

A pergunta nem sempre tem resposta segura.

Em princípio pode-se dizer, simplesmente, a arte. O que seria o ideal, claro. Mas nem sempre é assim. Há vidas que superam o objeto artístico e se impõem pela forma, pela qualidade. Pela loucura, talvez. E há casos em que arte e artista se confundem tanto, que uma coisa jamais será separada da outra. É o caso das vidas de Rimbaud e Verlaine? Ou seria mais apropriado dizer das duas em uma só?

Os dois se transformaram em símbolos do amor gay, embora cheios de violência, sofrimento e dor. E não somente para eles; também para as esposas e, lógico, para os parentes e amigos. E é justamente para refletir sobre essa turbulência que está em cartaz, no Teatro Barreto Júnior, a peça “Anjos de fogo e gelo”, de Moisés Neto, som e direção de José Francisco. Um espetáculo difícil, que exige o máximo do elenco, sobretudo de George Meireles e Roger Bravo.

Além da natural e óbvia responsabilidade de encarnarem personagens-símbolos de toda uma geração e de toda uma época, enfrentam um texto exigente naquilo que a peça de teatro tem de mais significativo: o condicionante humano no tratamento do mundo gay. Algo que provoca sempre divergências profundas e gestos desmesurados. É claro que não é atributo apenas de pessoas do mesmo sexo. As atribulações estão em todos. Mas, no caso especial dos dois, que também geraram obras de arte extraordinárias, a paixão e a convivência causariam, como causaram, muitas inquietações.

Basta lembrar o tiro que Verlaine deu em Rimbaud, na Bélgica, e que por isso teve de pagar pena de prisão. É claro que o tratamento agressivo pode ocorrer entre casais os mais diversos, do mesmo sexo

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ou não. Violência não tem particularidade. O efeito da luta, porém, recebe hábil tratamento no texto do experimentado Moisés Neto, através de referências e alusões. Até porque um tema que começa a entrar na infalível lista do lugar-comum é a violência.

A direção da peça não conseguiu evitar outro lugar-comum da arte contemporânea: as cenas de sexo. A arte contemporânea terá que superar esse impasse – seria mesmo um impasse? – de tratar o sexo e a violência em todas as manifestações artísticas. Sobretudo no caso do amor entre pessoas do mesmo sexo. É algo que está beirando o óbvio e, por isso mesmo, precisa ser repensado. O sexo ainda causaria, mesmo, estranhamento artístico? É um elemento artístico de qualidade? Ou ainda provoca escândalo e, por ser escandaloso, geraria o fator artístico? É o caminho? Uma das questões da contemporaneidade, em que a violência e o sexo estão terrivelmente presentes, precisa receber outro tratamento, que não seja apenas pela beleza ou pelo escândalo.

No entanto, o que mais se ressalta no texto de Moisés Neto é o equilíbrio cênico, o que também é um atributo do diretor. Dentro de um cenário leve, também com ótimo equilíbrio de luz, pode-se acreditar, sinceramente, naqueles dois seres dilacerados, na pele de George Meireles e Roger Bravo, sem esquecer as duas atrizes Stella Maris e Ivonete Melo. As duas, aliás, fazia tempo que não pisavam no palco. E estão ótimas. Seguras, firmes.Trabalhando este lado mais inquietante do drama teatral que, no entanto, não tem nada de teatral – na origem são duas mulheres que se debatem entre a dor e o amor. E nada mais intranqüilo do que o amor magoado. O amor yy que se debate entre o choro e o soluço.

sobre o amor magoado Novo espetáculo volta a investigar a fratura causada pelos poetas Rimbaud e Verlaine Raimundo Carrero

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tal pioneirismo foi ressaltado já alguns anos após a morte deste. Segundo Baudelaire, Poe teria sido “o primeiro americano que, propriamente falando, fez do seu estilo uma ferramenta”. Mas o poeta francês também aponta para algumas particularidades limitantes, como a narração constante em primeira pessoa: “Abusa do ‘eu’ com uma cínica monotonia. Dir-se-ia que está tão certo de interessar, que pouco se preocupa em variar seus meios”. Por outro lado, se Edgar Poe não foi um experimentador contumaz, avant la lettre, chegou em sua época ao ápice de uma literatura calcada no fantástico e no imaginário, com um timbre novo, uma espécie de racionalidade construtiva a contrastar com os temas sombrios e ambíguos por ela trabalhados. Uma espécie de matemática no e do caos. Isso ajudou a esfacelar, de uma vez por todas, tanto o normativismo neoclassicista que ainda existia no período, como também, o puro confessionalismo romântico já transformado em modismo. Ambos impunham à criação ficcional certos modelos que só seriam superados efetivamente pelas poéticas individuais da modernidade, as quais têm seu nascedouro justamente na lira de Baudelaire. E é o autor das “Flores do mal” quem sintetizará perfeitamente a estranheza causada por Poe no século dezenove: “Sua solenidade surpreende e mantém o espírito alerta; sente-se, desde o princípio, que se trata de algo grave. E lentamente, pouco a pouco, se desenrola uma estória, cujo interesse inteiro repousa sobre um imperceptível desvio do intelecto, sobre uma hipótese audaciosa, sobre uma dosagem imprudente da natureza no amálgama das faculdades. O leitor, tomado de vertigem, é constrangido a seguir o autor em suas arrebatadoras deduções. Nenhum homem jamais contou com maior magia as exceções da vida humana e da natureza”.

A seleção de contos feita por José Paulo Paes, que já havia sido publicada em mil, novecentos e oitenta e cinco pela editora Cultrix e, em mil, novecentos e oitenta e sete, pelo Círculo do Livro (hoje esgotadas), consegue oferecer ao leitor uma visão geral de algumas facetas de Edgar Poe, ao colher obras-primas de vários modos narrativos.

Há exemplos daqueles que são considerados os primeiros contos policiais da literatura ocidental (“A carta roubada”, “O escaravelho de ouro”) e os representantes do horror psicológico que seria tão caro a, por exemplo, Dostoiévski (fã confesso de Poe), como “O coração delator” e “William Wilson”. Em maior número, há os contos de horror que sintetizam momentos clássicos do gótico tardio, como “Ligéia”, “Berenice”, “A queda da casa de Usher”, “O poço e o pêndulo”, “O gato preto”, entre outros. Há ainda espaço para os contos humorísticos que geralmente Edgar Poe escrevia para agradar ao grande público e, dessa forma, conseguir algum dinheiro extra para tratar de sua esposa doente. É interessante notar como os temas mais jocosos não deixam de maneira alguma entrever as penosas situações em que Poe geralmente estava afundado. Diz-se que, por falta de lenha no inverno, sua esposa precisava abraçar-se a um gato para não morrer de frio. Dentre esses contos, estão presentes “O diabo no campanário” e “Pequena palestra com uma múmia”. Por último, há alguns contos de evanescente beleza plástica e lírica, como “Sombra (uma parábola)”, onde um narrador já falecido antecipa o nosso machadiano “Memórias póstumas de Brás Cubas”, como se pode ver já nas primeiras linhas: “Vocês, que me lêem, estão ainda entre os vivos, mas eu, que escrevo, desde há muito ingressei no reino das sombras (...)”; e “O homem da multidão”, texto filosófico precursor do ideal do flâneur baudelairiano. Em suma, um livro de profundo interesse literário que vale a pena ser sempre relido.

Reedição de contos nos relembra a assustadora modernidade de Edgar Allan Poe

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editora Companhia das Letras está disponibilizando – especialmente às gerações atuais – uma nova edição da consagrada obra “Histórias extraordinárias” (duzentas e setenta páginas, vinte reais), do contista e poeta norte-americano Edgar Allan Poe, ícone do gótico tardio e uma das mais imaginativas vozes literárias do Ocidente romântico.

O preço, bastante acessível, se deve ao formato de bolso. A qualidade narrativa que iria influenciar uma multidão de autores posteriores ao próprio Poe ainda possui o encanto e terror originais, graças à conhecida tradução do poeta paulista José Paulo Paes, que também verteu para o português um número considerável de escritores seminais de língua alemã, italiana, grega e inglesa. Paes, fã confesso de filmes antigos de horror, especialmente os da produtora inglesa Hammer (cujas produções cinematográficas inspiradas nas obras de Edgar Poe hoje são cults), em uma entrevista na década de mil, novecentos e oitenta, chega a fazer um elogio ao ator Vincent Price – que ficou famoso ao estrelar filmes como “Muralhas do pavor”, totalmente baseados em contos de Poe – apelidando-o de “o Vicente Celestino dos filmes de horror”.

Esse pequeno detalhe pode talvez representar uma certa simpatia pelo universo gótico tão característico e presente em muitos contos do mestre norte-americano. Aquela atmosfera melancólica e vaga tão cara aos autores maldu-siècle das três primeiras décadas do século dezenove e que já podia ser encontrada, anteriormente, nos chamados romances pretos do pré-romantismo inglês (mutatis mutandis, os “filmes” de horror da época), nos versos líricometafísicos da escola dos graveyards poets (poetas de cemitério), e nos estranhos contos e novelas do alemão E.T.A. Hoffmann, dos quais Poe era assíduo leitor antes de criar suas próprias obras-primas.

Poe escreveu três pequenos livros de poesia (incluindo o famoso “Tamerlão e outros poemas”) antes de dar lume ao seu primeiro livro de contos. A idéia de reunir, pela primeira vez, alguns contos sob o título de “Estórias extraordinárias” (estórias e não histórias, como geralmente é grafado nas traduções em língua portuguesa) é de certa forma tardia, quando, em doze de março de mil, oitocentos e cinquenta e seis, o editor Michel Lévy lançou – de acordo com o estudioso Oscar Mendes – um volume que contava com treze contos traduzidos pelo poeta francês Charles Baudelaire, ao qual Poe deve em grande parte sua fama póstuma, o ingresso nos círculos cultos da Europa e, de lá, seu espraiamento para todo o mundo, inclusive o Brasil.

Esses contos foram sendo gestados e publicados por Poe de forma esparsa ao longo dos anos, em jornais e revistas, paralelamente a uma atividade jornalística irregular mas frenética, entremeada por hoffmannescas exagerações boêmias, mortes em família, demissões, falências, problemas de saúde, a partir dos quais a antiga crítica biografista buscou evidenciar um temperamento repleto de patologias. Como aconteceria com Dostoiévski ulteriormente, muitas obras-primas vieram a lume escritas às pressas, para pagar não apenas notas promissórias mas também constantes dívidas de jogo.

Para além da crítica biografista, hoje se sabe que Poe é o corolário de uma tendência literária bastante expressiva que transformou a antiga, ingênua e novelesca melancolia de autores como Maturin, Radcliff, Walpole, Beckford e mesmo Byron, num construto literário bastante sólido que ditou, entre muitas outras coisas, o nascimento do conto moderno. Malgrado os aspectos datados da fisiognomonia presentes à crítica de Baudelaire sobre Poe, que serviu de prefácio à primeira edição das “Estórias extraordinárias”,

André de Sena

SXC.HU/Cortesia

por vós esperamos

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Georgia Quintas

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ofri uma traição. Muito por minha culpa. De deixar-me envolver por uma trama de fatos e palavras.

De pensar que há pessoas fortes ao extremo, capazes de suplantar as maiores dores da alma e de continuarem sendo superiores à vida que vivemos. Reconheço, sofri uma decepção, daquelas que te deixa sem norte, que te dá um soco no plexo. É bom dizer que foi, digamos, uma traição ideológica, quase metafísica, de imaginar e criar uma memória visual sobre uma pessoa que sequer te induziu a nada. Fui eu mesma que depurei todo um arcabouço simbólico sobre uma mulher que em certos momentos consolava, dava pistas, quando não respostas, para muitas dúvidas e sentimentos.

Que plasmava a possibilidade de ser forte, pungente e realista, mas mesmo assim ser poética. De sempre quase morrer pelas suas dores profundas e sobreviver a elas. Fui eu mesma que criei a imagem mítica de Marguerite Duras. E, por acaso, digo melhor, por encanto, a verdadeira Marguerite surge num retrato de 1993, feito pelo fotógrafo americano Richard Avedon.

A obra de uma das maiores escritoras da literatura francesa do século vinte alimentou a minha imaginação. Detentora de narrativas imagéticas profícuas, de uma escrita autobiográfica que alinhava as minúcias da memória, de detalhes de cenas contadas com esmero.

Enfim, a imagem, no sentido irrestrito, sempre esteve presente em seu discurso. Imagens insinuadas por outros nos indicam, dão atalhos, mas nunca serão únicas, ou sequer semelhantes ao que nós mesmos vejamos ou imaginemos.

O sentido da visão, do recurso em escrever evocando imagens a converteu em uma das mais habilidosas, de estilo cinematográfico. Não por acaso também foi

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Sobre como um sorriso pode redimensionar um escritor

roteirista e cineasta. O roteiro do clássico filme “Hiroshima, mon amour” (1959), de Alain Resnais, foi escrito por Duras.

Ela própria dirigiu mais de quinze filmes. O realismo presente em seus romances reflete-se na contextualização e composição pelas quais ela expõe suas personagens, convertendo sua obra numa espécie de roteiro de filme. Tal é sua riqueza de nos transpor – não só pelas idéias, pelo percurso narrativo de sua história –, mas de provocar o deslocamento do olhar do leitor para a personificação das cenas. Estabelecendo assim o reconhecimento de um espaço e de um tempo das situações narradas. É o olho de Marguerite Duras, sua acuidade visual em descrever o real para adentrar nas emoções e sentimentos, que guia o olhar de quem lê sua obra. Mas esse olho não é o que reconhece objetos e realidades, é o olho da mente.

Dentre os livros da grande senhora Duras, imagem e fotografia transitavam por sua escrita. A imagem que se pensa, que se retoma na memória, a imagem e seu poder de revelação, reflexão, reconstituição, da ausência, da presença... Em “O amante” (1984) – seu livro best-seller, escrito aos setenta anos, fora agraciado pelo prestigiado prêmio literário francês Goncourt – e, no ano seguinte, em “A dor” o recurso da inflexão sobre a imagem é recorrente. Em “O amante”, desde a primeira página, a palavra imagem é escrita e a questão da imagem fotográfica cria um ritmo singular ao discurso da autora; já no segundo, vários parágrafos assim se iniciam: “A imagem...”.

Sobre certa travessia do rio, Marguerite Duras (em “O amante”) narra: “É no curso dessa viagem que a imagem teria sido destacada, subtraída ao conjunto. Poderia ter existido, poderiam ter tirado uma foto, como qualquer outra, em outro lugar, em outras circunstâncias. Mas não tiraram. O objeto era miúdo demais para tanto. Quem iria pensar nisso? Ela só poderia ter sido tirada se fosse possível prever a importância daquele acontecimento em minha vida, aquela travessia do rio. Ora, enquanto esta ocorria, até mesmo sua existência era ainda ignorada. (...) É a essa falta de ter sido registrada que ela deve sua virtude, a de representar um absoluto, de ser justamente a sua autora”. A imagem não perenizada que Duras sugere, só depois é descrita. Entretanto, o sentido profundo do seu não existir revela a importância que delega à ausência e existência das imagens em sua vida – vivida e lembrada.

Comigo passa o mesmo. E assim aconteceu. O olho de quem sente as imagens projeta arquétipos, idealizações e cria a sua própria imagem sobre o outro. Desde muito jovem, descobri um universo através do vigor da escrita desta autora. De

maneira que Duras era palavra e imagem. A imagem de uma intelectual forte e arrebatadora e de outra imagem (fixada por fotografias), a de uma mulher elegante e altiva. Seu olhar, não era um mero olhar, ele sempre encarava o outro lado, penetrava na objetiva, nos inquiria, colocando-nos à prova de sua presença definitiva. Assim era: o visível e o invisível, o que seduz e torna a imagem mágica.

Os retratos fotográficos de Marguerite Duras em preto e branco são belos; em especial, o de Robert Doisneau. Mulher de estatura pequena, cuja dimensão era velada pela composição clássica dos retratos. Ela, de corpo inteiro, despojada, livre e feliz, nunca a tinha visto.

Foi o renomado fotógrafo americano Richard Avedon (1923-2004) quem a trouxe para o mundo prosaico dos seres humanos. Três anos antes de sua morte (1996), aos setenta e nove anos, Duras é fotografada em Paris por Avedon. O retrato segue o estilo autoral de Avedon, fundo branco, luz lateral e o principal, a pessoa centralizada na composição, ou seja, o porquê daquela imagem existir. Esta era a essência do seu olhar. E foi através da sensibilidade da percepção visual deste fotógrafo que a lendária escritora, autora de cerca de cinquenta obras publicadas (entre romances, peças e roteiros de cinema), irrompeu no meu imaginário. O simbolismo criado a respeito da imagem daquela mulher tornou-se frágil, vulnerável... Não tinha visto aquela imagem até então. E isso fazia toda diferença.

A imagem de uma simples velhinha, baixinha, sorridente, graciosa, brincando com o momento da pose poderia ser de qualquer mulher, caso não estivesse identificada pela legenda. Seu gesto na fotografia de levantar um pouco – quase que infantilmente – a saia, é a ruptura. É bom que se diga, a saia em questão transforma-se numa quase minissaia. A cena pitoresca é arrematada pelo estonteante par de botas. A atitude com a qual ela define sua pose conota algo improvável para uma renomada dama da literatura francesa, tida como difícil, sisuda e que se irritava quando não a tratavam como a maior escritora francesa. Ao me deparar com essa imagem, o meu olhar se renovou, como se nunca tivesse visto uma senhora de forma tão jovial e leve de espírito ter se permitido perenizar sua imagem daquela maneira. Mas devo relativizar o que elaborei em minha percepção até ver o registro de Avedon. Digamos que foi mais um susto do que uma traição, porque se não conhecia aquela imagem, ela não existia para mim. É a mágica da presença fotográfica: reconsiderarmos a vida a todo instante. Repleta de novos significados naquele fotograma de Avedon, Marguerite Duras renasceu para mim.

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Raimundo Carrero

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rimeiro, os lábios deslizam para os cantos, suavemente. Em seguida, se abrem. Dentes à mostra.

Mais adiante, é preciso deitar a cabeça para trás a fim de comportar os movimentos da musculatura na face.

Esses são os momentos em que uma pessoa sai do riso para o sorriso e, depois, para a gargalhada. Vistos de perto, provocam alegria, ironia ou deboche. Em alguns casos, raiva, pânico ou desespero. E maldade.

Quando registrados numa fotografia, longe do ambiente onde se manifestaram, podem transformar-se num rictus de feiúra e de irresponsabilidade. É por isso que Dostóeivski mostrava, em seus romances, preocupações com o riso, também matéria de estudos em Bergson, que escreveu um clássico a respeito do assunto.

Nem sempre o riso pode revelar simpatia, agrado ou festa. Pode ser uma das manifestações mais cruéis do ser humano, porque nem sempre gera simpatia.

A lembrança insuspeita: o riso de Cristo. Do ponto de vista religioso, Ele nunca aparece rindo. Por isso gerou uma das linhas mais dramáticas do romance – mais tarde filme – de Umberto Eco, “O nome da rosa”. Os monges procuram um livro onde existiria a prova do riso no Redentor. Crimes, assaltos e morte se cruzam. Nem sempre o humano está disposto a se preocupar com essa manifestação carnal. Alguns teóricos – místicos ou exegetas – asseguram que não haveria o riso em Cristo, porque Ele estaria sendo simpático, é verdade, mas também nervoso. Pior: debochando. Ou ironizando a condição humana. Eis o mistério.

O riso de um escritor na capa, orelhas, ou quarta capa de um livro, gera conflitos. Num texto denso, provocaria a suspeita do deboche ao leitor, cercado de ansiedades e armadilhas narrativas. Ou, o que é incrível, falta de responsabilidade com a própria obra. Talvez de respeito para com o seu público. Numa comédia, sim. Texto e fotografia se integram.

Experimente observar as capas para verificar como são estranhas e suspeitas. O ideal mesmo é acompanhar as exigências de Salinger, o norte-americano autor de “O apanhador no campo de centeio” – capa e orelhas lisas, nem informações sobre o autor nem fotos. Fotos jamais. Nem rosto fechado, nem sorriso. O leitor decidirá pela admiração ou pela rejeição através daquilo que ele tem de mais radical: o texto.

Um sorriso, por exemplo, torna o rosto cheio de marcas nem sempre belas. Daí porque a foto de um sorriso deve estar sempre reservada à pessoa a quem se destina. Nunca em circunstâncias públicas. ­­Porque é capaz de causar desconfiança. Ou inveja. No mais, yy tudo é vaidade e o vento que passa.

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senso comum, assim como o sonho da razão, produz monstros. Mas é impossível não bater continência para o clichê que nos classifica como País desmemoriado, que não respeita suas glórias, seus heróis – tampouco seus animais domésticos, seus encantadores bichanos, aqueles que aqui não tiveram a sorte de serem chamados de pets, como bem fizeram nossos sagazes colegas norte-americanos. Tão mais fácil proferir quatro (ou três) letrinhas em lugar de se referir a gatinhos e cachorrinhos como bicho de estimação. Anglicismos à parte, o fato é que esse Brasil que hoje celebra o shi-tzu, o beagle, o yorkshire e o maltês já foi fã número um daquela coisinha tão bonitinha do pai, o dono daquele latido ímpar, o antigo guardião de Buda, o inesquecível pequinês.

Quem?, perguntariam as crianças que cresceram vendo nas ruas apenas aqueles esquisitos poodles depilados, sinônimo de um apogeu econômico vivido nos anos noventa ao lado de frangos, iogurtes e próteses dentárias. Ah, FHC, você foi bem mais cruel do que Heloísa jamais imaginou.

O desaparecimento do pequinês já levou muitos desavisados a proclamarem sua extinção – mas engana-se aquele que duvida da raça contida no peito dessa pequena espécie nascida da mescla entre o leão e o macaco, como diz a lenda. Não: o pequinês é, antes de tudo, um forte. Durante anos, viu sua nobreza ser jogada na lama com misturas esdrúxulas, que não correspondiam à sua linhagem real. Mas em vários lugares no País – como no canil Damabiah, em São Paulo – existem pessoas cuidando para que os pequineses com pedigree não sejam coisa do passado. A mestiçagem desenfreada desse cãozinho que fez tanto sucesso nos anos sessenta e setenta provocou o nascimento de cachorros feios de doer, com olhos esbugalhados e comportamento agressivo. Nada a ver com a fleuma do leão de Buda, como o pequinês era chamado em priscas eras. Conta-se que ele era tão importante quanto o imperador e a imperatriz na China feudal: quem passasse por um orgulhoso pequinês precisava fazer uma reverência, em respeito ao bichano.

Maltratado em solo nacional, ele sofreu a maldição do excesso de popularidade, desaparecendo das ruas.

Faz tempo que deixou de ser legal ter um pequinês, sendo muito melhor desfilar por aí com um labrador, um schnauzer ou um pug, igualzinho aqueles que Sofia Coppola mostrou em “Maria Antonieta” (e se So-

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fia, diz a cartilha do moderno, põe o dedo ou o nariz em algo, não tem jeito: é cool). O severo tribunal das relações sociais não perdoa: é até, vai ver, mais legal assumir que você cria um vira-lata do que falar que está comprando aquele Papitas sabor frango com leite para seu filhotinho (a pobreza, o boteco do copo mal lavado e o autêntico espetinho de gato continuam a fascinar parte da classe média brasileira).

Mas ter um desses leõezinhos em casa não é para qualquer um – em outra palavras, mais respeito que o bichinho é precioso. Segundo o senhor Edson Bárbara, um dos mais respeitados criadores de peki (pequinês, para os íntimos) do País – ele é dono do citado canil Damabiah e autor do site www.pequines.com.br) –, é difícil criar um filhote com qualidade física e saúde por um valor inferior a seiscentos reais. “Em média tenho visto exemplares de oitocentos reais a três mil reais. Quanto maior a exigência, maior o preço”, conta ele.

Além do preço, os cuidados diários exigem paciência, amor, dedicação. O asseio de um peki assemelhase aos frufrus percebidos naqueles dias de noiva. Quer ver? Depois que ele é banhado, é preciso um enxágüe perfeito – resíduos de shampoo são um perigo para aquela cabeleira farta. A secagem acontece em duas etapas: primeiro, com uma toalha para retirar o excesso de água; depois, vem um secador (não muito quente, informa o site de Edson), acompanhado com uma escova de pinos – mas sem bolinhas nas pontas, por favor, para não provocar nós. Um truque – e truque é uma coisa que definitivamente nos ajuda a viver muito melhor, não é verdade? – para evitar emaranhados é apelar para o maravilhoso mundo do Lojão dos Cabelereiros: o Biorene e o condicionador Dove são ótimos para dar aquele grau no pelo de seu pet.

Mas não se engane: não são lacinhos, fitinhas e roupinhas com a bandeira de seu time de coração que vão fazer o pequinês te amar: sagazes, eles percebem de longe se o carinho é ou não verdadeiro. “Um cão nos braços de uma modelo pode virar moda, a compra é quase impulsiva, descompromissada”, comenta Edson. Talvez por isso, por perceber que era apenas mais um rostinho bonito lá no fundo do quintal, que nosso animalzinho tenha saído de cena de uma maneira tão rápida. Ele não é um cão da moda, e sim um peki, um pequeno peki, que nasceu para nos animar, proteger e consolar das armadilhas dessa nossa pós-modernidade de barraca. yy

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