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Divulgação

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D ois EDITORIAL Em julho, o Pernambuco publicou uma polêmica (rolaram aplausos, críticas...) antologia dos novos autores do Estado. Um trabalho que se preocupou mais em apontar do que em realizar qualquer julgamento literário. Agora, no final desse ano que é lembrado por um marco histórico (os quarenta anos do maio de sessenta e oito), Raimundo Carrero teve a idéia de procurar saber o que pensavam e o que estão pensando os autores que começaram sua produção entre as décadas de sessenta e setenta. O que o tempo traz ou retira de ideologia, de encanto e de surpresa do texto literário? Uma ques-

tão que o leitor vai encontrar na leitura da edição especial do Saber + Esta edição presta homenagem, ainda, a três poetas recifenses falecidos há pouco tempo, considerados ícones de sua geração, Sérgio Moacir de Albuquerque, Alberto da Cunha Melo e Arnaldo Tobias. No decorrer desse trabalho, foi de fundamental importância o trabalho da jornalista Mariza Pontes em garimpar as mais de duas dezenas de poetas convidados, suas obras e dados biográficos. A capa do Pernambuco também acompanha a idéia de releitura do Saber +. Convidamos Valéria Costa e Silva para

escrever um perfil do escritor Maximiano Campos, que este ano é lembrado pelos seus dez anos de morte e pelo relançamento da sua obra máxima, “Sem lei, nem rei”. Valéria fez um texto emotivo, que mostra um outro lado desse senhor tão sério, que ia até para a praia bem vestido. O Pernambuco inicia uma nova linha de artigos, voltada a publicar trechos de teses e dissertações. Quem abre esse projeto é Carolina Leão, que acabou de terminar doutorado em Sociologia pela UFPE. Seu artigo, mais que enfocar a relação da mídia com o mangue beat, é também uma reflexão das exigências do jornalismo cultural.

Este número do Pernambuco será lançado durante a Feira do Livro de Porto Alegre, que rola na primeira quinzena de novembro. Para marcar o lançamento, dois textos referentes à feira. Ronaldo Correia de Brito, que lança por lá seu romance “Galiléia”, faz uma reflexão sobre sua carpintaria literária; e o poeta gaúcho Fabrício Carpinejar escreveu uma crônica cheia de humor e delicadeza, relatando como é construída a relação do portoalegrense com sua cidade. Até o próximo número, Schneider Carpeggiani

I néditos

Cia de Foto

Uma publicação da

Companhia Editora de Pernambuco - CEPE

Circulação mensal integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco

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GOVERNADOR DO ESTADO DE PERNAMBUCO Eduardo Henrique Accioly Campos

PRESIDÊNCIA Leda Alves

DEPARTAMENTO DE SUPLEMENTOS Raimundo Carrero

Vice-GOVERNADOR DO ESTADO DE PERNAMBUCO João Lyra Neto

DIRETORIA ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA Bráulio Mendonça Meneses

SUPERINTENDÊNCIA DE CRIAÇÃO Luiz Arrais

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Luiz Ricardo Leite de Castro Leitão

DIRETORIA DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo CONSELHO EDITORIAL Mário Hélio: Presidente Cristhiane Cordeiro José Luiz Mota Menezes Luís Augusto Reis Luzilá Gonçalves

SUPERVISÃO DE REDAÇÃO Schneider Carpegianni REDAÇÃO Mariza Pontes Gilson Oliveira (revisão)

ARTE Jaíne Cintra (edição) DIAGRAMAÇÃO Militão Marques SUPERVISÃO DE DIAGRAMAÇÃO E ILUSTRAÇÃO Joselma Firmino DEPARTAMENTO DE PRODUÇÃO GRÁFICA Júlio Gonçalves

SUPERVISÃO DE IMPRESSÃO Eliseu Souza SETOR DE PRÉ-IMPRESSÃO Roberto Bandeira

CONTATOS COM A REDAÇÃO 3183.2786/3183.2787 redacao@suplementope.com.br ATENDIMENTO AO ASSINANTE 0800 81 1201 317.2750 cepecom@cepe.com.br Distribuído exclusivamente pela Companhia Editora de Pernambuco - CEPE Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro. CEP 50100-140 Fone: (81) 3183.2700 FAX: (81) 3183.2741

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O sopro (pop) do criador O

jornalismo cultural pode ser cruel. Mais até do que outras áreas do universo jornalístico, cujas notícias se perdem em superficialidade e velocidade diante da rapidez com as quais são consumidas e esquecidas atualmente. O jornalismo cultural é cruel porque a arte, alçada a indicador de consumo e status social, requer alguns eleitos à sua contemplação e divulgação. Mas, afinal, quem cria o criador? Estampar a capa dos cadernos culturais ou figurar nas suas páginas internas, mesmo que discretamente, é, para os artistas e produtores culturais neófitos, a garantia de visibilidade de sua obra. Uma relação de poder na qual o jornalista e seu veículo assumem, para o outro lado, o papel de um algoz indesejado – ou de um libertador procurado, mas impossível de ser ignorado. Um campo – no sentido bourdiano de um espaço de batalha com dominantes e dominados – contraditório, onde a autonomia dos agentes/atores sociais é significativamente relativa. Os jornalistas são dependentes do mercado e da hierarquia de seu campo (afinal, estão subordinados aos interesses comerciais e afetivos dos editores do veículo) mas, através da linguagem, garantem o seu quinhão de poder – materializado no seu conteúdo simbólico. No jornalismo cultural, essa posição também é formada pela narrativa interpretativa que se relaciona com o próprio estoque de conhecimento cultural do repórter; verdadeiros passaportes de aceitação e reconhecimento. Não há leis e regras que impeçam um ou outro artista de ter destaque nos jornais. Existe, no entanto, uma concepção da notícia e de cultura como mercado cabendo, muitas vezes, ao autor da matéria, uma carga de responsabilidade e significação racional que seu conceito e juízo de valor venham ter publicamente – mesmo que sua notícia tenha sido uma construção coletiva da edição. Simultaneamente, o jornalismo cultural é direcionado pela lógica do mercado contemporâneo (publicidade, marketing e de interesse comercial dos detento-

Carolina Leão

res dos veículos de comunicação) mas encontra maior liberdade de construção reflexiva por sua narrativa não ser, necessariamente, pontuada pelos indicadores da linguagem jornalística padrão, conhecida popularmente pelo termo inglês lead. Essa padronização, enquanto prima pela objetividade (que tenta, através da linguagem, produzir o efeito de correspondência ao real), obscurece os elementos interpretativos e reflexivos da linguagem; conforme prezava a imprensa européia (sobretudo a francesa, de grande influência no Brasil em seu modernismo) na virada do século XX. O jornalismo cultural, no entanto, a ignora solenemente; de modo que a sua linguagem se torna mais próxima do universo literário (dadas as devidas proporções estilísticas e estéticas) do que do propriamente jornalístico. Essa narrativa híbrida, de realidade e fantasia, se distancia da objetividade seguida por outras áreas desse campo e destaca a subjetividade do autor, que se coloca muitas vezes em pé de igualdade com a sua notícia pela importância dada à sua opinião e legitimidade. A assinatura se impõe, portanto, como distinção. Mas, obviamente, a autoridade do profissional em questão é entrecortada por diversos indicadores do jornalismo cultural, como a dependência ao mercado e a posição que o jornalista ocupa dentro do veículo (a saber, a relação de proximidade com a alta hierarquia, o tempo de profissão e o prestígio obtido num dado momento dentro do campo). A idade também é um fator determinante, pois o jovem se coloca como o elemento modernizador que vem trazer a novidade tão desejada para a movimentação da indústria cultural. O jovem não tem ainda muito a perder (já que sua posição nesse espaço não é orientada pelo amor às benesses que a profissão garante aos estabelecidos). Ele é geralmente identificado como o transgressor, o agente que pode confrontar e pode instaurar uma nova ortodoxia dentro desse espaço social, deslocando os critérios de legitimação até então vigentes conforme a sua disposição e seus recursos em afirmar sua autoridade.

O jovem tem, enfim, na luta pelo domínio do campo e, particularmente, no jornalismo cultural, pouco a perder pois não acumulou capital social suficiente para que seu desafio aos estabelecidos lhe renda sanções negativas. Mas, embora sua linguagem permita até produzir retoricamente efeitos reflexivos e não meramente informativos, sua construção vai ser direcionada pelo espaço disponível dentro do seu caderno. Espaço delimitado, primeiramente, pela quantidade de anúncios publicitários que o departamento de marketing do veículo determinar. Fora esse dado comercial interno, ou seja, estabelecido através do departamento de marketing de cada veículo e dos seus interesses comerciais e afetivos, o jornalismo cultural sobrevive criando tendências, modismos e “verdades”. Em sua massiva procura por novidades que movimentem não apenas a venda como a posição de um dado caderno em relação aos seus concorrentes, o jornalismo cultural é orientado por sua capacidade de construir mitos e mitologias. Os heróis aqui refletidos são nocauteados e condicionados também pela disposição espacial de cada publicação editorial. Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu, essa

concorrência em torno da novidade (fundamental para os neófitos que precisam criar sua imagem profissional), ao invés de ser geradora de originalidade termina compondo a uniformidade da oferta. Chega a um ponto no qual as notícias são massificadas, industrializadas; mudando-se, sobretudo, em cada uma delas, o direcionamento ideológico de cada veículo em questão por meio da própria seleção editorial (a saber, a linguagem utilizada nos títulos, subtítulos e legendas, além da diagramação). Mas, se pensarmos as limitações acima mencionadas, como e por que uma estética, linguagem ou movimento, consegue furar o cerco de imposição comercial e afetiva; ter destaque para além dos espaços pré-estabelecidos e ser consumido como elemento de distinção artística e intelectual? Neste sentido, no Recife, o ano de 1994 foi paradigmático para o jornalismo local. Através do Caderno C do Jornal do Commercio, a cena musical recifense classificada como “Mangue beat”, que se iniciara há cerca de quatro anos, teve sua origem, história e desenvolvimento amplamente cobertos, descritos, comentados e refletidos pelo jornalismo cultural proposto pelo veículo. O Caderno C imprimiu

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Jaíne Cintra

“Quem-o-que-quando-onde-como continua o ABC do jornalismo. O fino trivial é bem servido se seguindo essa regra. É o que a maioria das pessoas quer. Notícias, escritas de maneira clara, com descrição específica do que possa interessar. Mas jornalismo cultural são outros quinhentos mil-réis. Requer expertise” (Paulo Francis)

A fabricação do Novo no jornalismo cultural do Recife dos anos 90

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a primeira identidade pop no jornalismo local, bem como se apresentou como um agente determinante na formação de um novo campo musical em Pernambuco ao fomentar a legitimidade do movimento. Enquanto o Diario de Pernambuco, seu antagonista, continuou investindo numa linha editorial mais tradicional, o Caderno C se apresentou como parte da cena cultural recifense. Não é exagero afirmar que o Diario de Pernambuco praticamente ignorou, até o final dos anos 90, a popularidade do “Mangue beat” na cultura local na manutenção de um perfil editorial que se afasta do jornalismo cultural em ritmo industrial, o qual pontua o mercado a partir dos anos oitenta. Um dos principais motivos pelo qual o caderno Viver deixa de lado as coberturas jornalísticas sobre o fenômeno mangue, que em apenas dois anos passa a ter destaque em toda a mídia nacional, é esse perfil geracional – aliado à sua posição privilegiada como veículo tradicional (títulos como “o jornal mais antigo em circulação da América Latina” lhe distinguem como tal). Afinal, os estabelecidos podem se dar ao luxo de serem apenas o que são. Resta aos desafiantes, o risco. O Jornal do Commercio se solidificou na cultura pernambucana nos anos quarenta e cinqüenta, no período de uma incipiente indústria cultural. Os valores da cultura americana transmitidos pelo cinema e pela publicidade ganham as páginas dos veículos nessa época. O desenvolvimento de uma racionalidade capitalista nas empresas jornalísticas brasileiras é produto da consolidação do mercado de bens culturais, que, segundo Renato Ortiz, surge em consonância a um estado modernizador, com o regime militar, nos sessenta. Esse estado vem promover as condições necessárias para a consolidação de uma segunda revolução industrial no País, cuja expansão integra o mercado nacional à indústria cultural que surge em meio ao desenvolvimento de um mercado consumidor. No campo da música, nesse momento, o mercado fonográfico toma fôlego e a facilidade de aquisição de aparelhos radiofônicos impulsiona o consumo do produto música no Brasil.

O período é marcado, por exemplo, pelo crescimento na venda de LPs que vai de vinte e cinco milhões para sessenta e seis milhões. A tecnologia e a popularização dos produtos tecnológicos também modifica a filosofia da empresa. A missão heróica atribuída ao jornalismo é aniquilada. O jornalismo passa a atender à demanda do mercado, realiza pesquisas, molda sua linguagem ao perfil de consumidor e classe que deseja atingir. O advento da imprensa comercial sinaliza a desvinculação de um discurso político direto e marca o signo do cálculo, da racionalidade que, finalmente, passa a orientar a produção jornalística brasileira na virada da década de setenta. O papel da arte na cultura contemporânea, e sobretudo, a ascensão de um mercado de jovens consumidores e produtores de cultura pop redirecionou a linha editorial da maior parte dos suplementos do gênero, que modificou design, diagramação e linha editorial exatamente para atender a um crescimento que corresponde, afinal, à arte como bem de consumo. A estratégia do Caderno C em opor-se aos estabelecidos e difundir uma visão heterodoxa da cultura local foi bemsucedida pela inserção, na redação, do suplemento de agentes suficientemente comprometidos com essa cultura pop, em ascensão no período. O editor à frente do caderno nesta época, o jornalista Marco Pólo, não era apenas um artista (integrou nos anos setenta a lendária banda Ave Sangria) mas um artista de vanguarda – tradicionalmente menos preso aos padrões convencionais de produção cultural. Enquanto o Viver mantinha-se executado pela jornalista Leda Rivas, acadêmica e uma das últimas moicanas do jornalismo romântico. A recusa do Diario de Pernambuco de participar da distinção pop lhe rendeu, dessa forma, a fama de ultrapassado. Nesse caso, o perfil tradicional assume aqui sua supremacia. Em jogo, naquele momento, para o JC, estava o novo. Ou seja, o moderno que vem para se contrapor ao velho, estabelecido e sem muita longevidade na dinâmica da cultura como consumo. Os novos agentes ainda são desvinculados

da cultura estabelecida, com a qual constroem sua própria identidade ao desafiá-la. A cultura pop substitui o discurso tradicional da cultura pernambucana, que sempre tivera destaque nos suplementos culturais da cidade, principalmente em duas áreas: artes plásticas e literatura. Essa preferência por estas áreas explica-se pelo seu respectivo elitismo. A literatura é a fina flor de todas as artes, principalmente no Brasil, onde o índice de analfabetismo é homérico. Seu consumo e distribuição dependem do grau de instrução de seus contempladores. Num caderno que preza as formas mais tradicionais de comunicação, a literatura se impõe como presença constante nas páginas culturais lidas pela elite local. As artes plásticas também integram essa casta. Vale lembrar que discursos culturais que contribuíram para uma identificação institucional acerca do Nordeste, como o Movimento Regionalista, estiveram atrelados a um conceito visual da cultura pernambucana, expresso, por exemplo, nas telas de Lula Cardoso Ayres. Outros artistas como Vicente do Rêgo Monteiro, Cícero Dias e Francisco Brennand contribuíram para a confecção de uma determinada imagem da cultura pernambucana ao retratar personagens e paisagens do Estado, com os mitos folclóricos e manifestações populares; além dos ambientes rurais da Zona da Mata Norte, com seus caboclos

de lança e maracatus. Essas duas expressões atravessaram as décadas com o prestígio conquistado pelas autoridades legitimadas pelo Regionalismo de Freyre, e posteriormente, pelo Armorial, de Suassuna. Nos anos oitenta, os cadernos culturais brasileiros se desvinculavam dos cânones em busca de um outro perfil de consumidor, como o de cultura pop: popular, massificado. Essa mudança editorial e direcionamento são explicados pela solidificação da cultura de massa no Brasil a partir da década de oitenta através da música pop, principalmente, que vai criar esse tipo de leitor específico (o consumidor de música pop). Aqui no Recife, antes de 1994, as manchetes e destaques do caderno faziam referências massivas às peças, espetáculos, discos, livros e filmes lançados nacionalmente ou, por outro lado, reportavam assuntos factuais que diziam respeito às gerações artísticas já tradicionais e estabelecidas no cenário pernambucano, a exemplo de Ariano Suassuna, João Cabral de Melo Neto e Alceu Valença. Mas um dado específico fará a diferença na aplicação desse conceito no Recife. Em primeiro lugar, a idade dessa nova safra de jornalistas e sua identificação com esse mercado de consumo e comportamento vai transformar a questão da agência em torno desse campo jornalístico, que é atravessado por um novo dispositivo sim-

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bólico, produtor de novos tipos de comportamentos e relações de poder. O dispositivo que temos para alterar a dinâmica do campo é a rebeldia, a transgressão, a inovação tão identificada com a juventude. Não se trata de outsiders da notícia. Mas de agentes que solidificam a mudança de padrão de informação cultural pelo seu perfil geracional (identificados com a indústria cultural e a cultura pop). Também não se trata de qualificar essa diferença pela recusa do tradicional ao novo como algo bom ou mal. Lembrem-se: no ritmo da indústria cultural, nada mais fadado ao velho que o novo. O ímpeto de renovação que de fato entrecorta toda a história da arte é saudado pelo Caderno C, o qual, até a chegada do “Mangue beat”, não havia tido a “oportunidade” de colocar em prática, na cultura local, o discurso de modernidade pregado com o implemento de uma nova equipe jornalística e seus códigos artísticos, identificado com a cultura pop da época. Desde o início dos anos oitenta, o suplemento acompanhava as tendências dos cadernos “centrais” da cultura brasileira como o Folhetim e Ilustrada. Mas a confecção da notícia era produzida de acordo com os modelos de comportamento do eixo Rio/São Paulo. A música, por ser um dos elementos de composição de um comportamento ligado à cultura pop, assume, nesse ponto, o espaço outrora ocupado pela literatura, teatro e cinema. É a música – pela sua facilidade em criar modismos, mobilizar tribos urbanas

e circular comercialmente por meio de ídolos de comportamento - a grande vedete do jornalismo cultural e não foi somente a percepção do Caderno C, e o que se chama de faro jornalístico, que orientou a explosão do Mangue beat como fenômeno. Mas o estabelecimento de jornalistas ligados às tendências pop e musicais no veículo sem dúvida influenciou na criação de um ambiente receptivo a essas mudanças culturais. O que se nota na participação do Caderno C, com o surgimento da cena Mangue beat no início dos anos noventa, é a sua tentativa de se igualar à novidade estética; enquanto jornalismo cultural – mais próximo da crítica de arte e, portanto da arte, do que dos noticiários hard news. Não estamos falando de jornalistas beneméritos. Todo e qualquer movimento cultural, se analisado à luz da crítica cultural, mantém-se publicamente por suas relações afetivas com os intelectuais de sua época. Mais: o Mangue mantém seus próprios atores, que são jornalistas (como Fred 04 e Renato L.) e design (a exemplo de Hélder Aragão – DJ Dolores), em estreita relação afetiva com os repórteres do suplemento. A consagração aqui se baseia na proximidade íntima entre os dois espaços. A transformação do Caderno C em vitrine do Mangue beat define a sua posição como agente do campo cultural. Esses jornalistas desempenharam o papel de agentes mais identificados com a novidade da periferia que surgiu àquele momento, do que com o discurso canonizado do

Nordeste, cujo último grande embate fora o Movimento Armorial, nos anos setenta. Como capital ou passaporte para a apreensão do Mangue beat como fenômeno cultural no jornalismo especializado, encontra-se a própria disposição dos repórteres do veículo em pertencerem a uma nova elite intelectual da cidade, no que ela teria de mais moderna. Reportagens sobre música, shows, videoclipes, design, moda, cinema, e demais suportes que faziam parte da estética mangue, ocuparam diariamente as páginas do suplemento. O conteúdo das matérias ou notas girava em torno do desenvolvimento da cena musical: gravações de videoclipes, edições de festas de divulgação, notícias sobre o “Mangue beat” na mídia nacional... O caderno acompanhou passo-a-passo o processo de criação e comercialização do “Mangue beat” – como um protótipo de bandeirantes – abrindo caminhos para mostrar à cidade uma nova identidade sobre esta cidade – o suplemento se transformou numa extensão da efervescência musical. A participação de jornalistas em festas, shows, festivais e demais coberturas (publicados nas edições do Caderno C) que garantiriam esse fluxo de informação e atestado de distinção pode ser comparada à observação de Bourdieu sobre os salões parisienses: “através das trocas que ali se operam, verdadeiras articulações entre os campos: os detentores do poder político visam impor sua visão aos artistas e apropriar-se do poder de consagração e de legitimação que eles detêm”. O ano de 1994, época de lançamento dos dois primeiros registros do “Mangue beat” (“Da lama ao caos”, de Chico Science & Nação Zumbi e Samba esquema noise”, de Mundo livre s/a) também fora um divisor de águas para o próprio Caderno C que passa a fazer parte da novidade pop e termina 1994 de forma enfática, em

sua matéria de retrospectivas, prevendo a aposta no mercado fonográfico no ano posterior e dando seus pitacos sobre o futuro da cena. Esse prognóstico atesta a importância dos críticos de vanguarda que “devem participar das trocas de atestado de carisma que com freqüência fazem deles os porta-vozes, por vezes os empresários, dos artistas e de sua arte” (Pierre Bourdieu). Como local de instituicionalização da arte, o suplemento adotou o fenômeno como símbolo da modernização pernambucana. A ascensão do ‘Mangue beat” a fenômeno cultural deve-se ao poder do criador. “O poder do criador é a capacidade de mobilizar a energia simbólica produzida pelos comprometidos com o funcionamento do campo” (Pierre Bourdieu). A alquimia social, a magia da notícia transformada em fenômeno nesse caso, confronta-se com a verdade que escapa aos agentes sociais. O Mangue beat conquistou seu espaço por trazer novidades à indústria cultural que posteriormente o obscureceria conforme sua lógica de funcionamento. Não muito depois seu discurso multicultural seria tratado como algo datado. Se o agente racionalizasse esteticamente e culturalmente tal assunto, de modo a tornar seu destino fatídico, seria impossível haver uma construção mítica sobre o mesmo. O que se perde em pensamento é ganho em ação, em produção de energia suficiente com a qual seja performatizada em linguagem, narrativa, interpretação e posicionamento a estética da crítica cultural. A alquimia revela o êxito dessa rede social: jovens vanguardistas em estilo e posicionamento musical, que encontram jornalistas idem num espaço de divulgação e legitimação desse estilo de vida. Heterodoxia musical e cultural que passa a ser utilizada como estratégia jornalística de uma nova geração de profissionais da mídia, que se opõe aos românticos e tradicionais da velha guarda. yy

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C apa

Nos dez anos da morte de Maximiano Campos, um perfil bem pessoal do autor do clássico “Sem lei, nem rei”

Ausência, privação, falta

Valéria Costa e SIlva

N

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ovembro. O Recife banhado de luz, aquecido pelo sol forte. Manhãs infernais e tardes mornas. Somente a noite traz algum refresco às margens do Capibaribe ou à beira do mar. Num dia 19 desse décimo primeiro mês do ano de 1941, a cidade das pontes e rios, aspirante à nova Holanda nos trópicos, servia de berço a Maximiano Accioly Campos. Último rebento de uma família de senhores de engenho da Mata Sul de Pernambuco, o caçula de Dona Carmem e seu Fernando recebeu o nome do avô materno, falecido antes de seu nascimento. Criou-se no Engenho Guarany, e essa paisagem de infância fixou-se em sua alma e conformou sua sensibilidade, fornecendo-lhe o metro pelo qual mediria o mundo. Do terraço da casa-grande, assentada numa elevação de terreno, o garoto franzino arregalava os olhos e avistava o mar verde das canas, as colinas onde pastavam os animais, o rio correndo na várzea. Sentia no ar o cheiro das frutas frescas. Seu mundo era feito de cores, curvas, perfumes e sons, a despertar-lhe os sentidos. Talvez intuísse que aquelas manhãs iluminadas, preenchidas com o canto alegre dos canários-da-terra, se tornariam a sua medida do belo e do bom. Ali aprendeu a contemplar o mistério e a amar a humanidade. Quando acordava cedinho, ainda tinha tempo de ver o pai montar a cavalo e com ares de senhor do mundo partir para correr suas propriedades. Às vezes lhe era permitido acompanhar tais rondas. Nessas ocasiões, com extrema alegria, aprendia lições silenciosas sobre o mando dos ancestrais, enquanto nos serões familiares escutava histórias de perdas e ruínas. As derrotas, os fracassos, as glórias idas eram o assunto preferido das noites passadas no terraço. As histórias da família, que aos poucos foi perdendo seus haveres e poderes, impregnaram a imaginação do pequeno a ponto de o passado muitas vezes parecer-lhe mais real que o presente. Por conta delas tinha a impressão, não rara, de ouvir as pisadas, o pigarro, as ordens do velho Coronel Maximiano ecoando nos corredores da casa-grande. Foi do mesmo terraço da casa-grande que Maximiano contemplou as dores da humanidade. Descobriu atordoado que aquele mundo, cheio de beleza e poesia, abrigava também a mais terrível paisagem humana: a servidão e a miséria dos trabalhadores. Tal descoberta marcou o futuro escritor a ferro, deixando-o acabrunhado pelo peso do sentimento de injustiça, por toda a vida. Nos livros vindouros buscaria em vão corrigir o irreparável, e encontrar uma paz de espírito inconciliável. A convivência precoce com a morte e seus fantasmas, com a miséria humana e suas dores, terá feito de Maxi um menino triste e arredio, incapacitando-o, quando adulto, para a plenitude da alegria. Adolescente, deixou a vida de menino de engenho para dedicar-se aos estudos no Recife. Do Colégio São João passou à Faculdade de Direito. Discreto e reservado, o jovem Maxi destoava de seus companheiros de geração. Quem com ele convivesse, logo percebia que os trajes graves e elegantes, o paletó de linho impecavelmente engomado, correspondiam a uma alma precocemente envelhecida. Nos meses de calor ia para Piedade, veranear. A fina flor da juventude recifense ali estava, em trajes de banho, brincando e flertando na praia. Avistavam ao longe a silhueta comprida. Ao aproximar-se o jovem de terno de linho, já sabiam tratar-se de Maxi. Uma vez, quando questionado sobre tão estranho hábito de andar vestido na praia, confessou o vexame da própria magreza: – Quando perguntavam a um vendedor de areia onde era tal coisa, eu servia de referência. É ali, junto daquele magrelo. Por vaidade ou vergonha, até nos momentos da mais pura descontração, seria visto de paletó ou em mangas de camisa. Apesar do retraimento, Maxi não deixava de flertar com as moças de sociedade, fosse durante o veraneio em Piedade, fosse no inverno de Fazenda Nova, para onde se dirigiam muitas famílias bem situadas. A modesta pracinha da cidade serrana foi o palco de namoros inocentes nas noites de julho. O estudante de Direito era dos poucos que tinha, àquela época, um carro à sua disposição. Dirigindo ou utilizando-se do chofer, circulava pela cidade chamando a atenção das mocinhas. Todavia, nunca foi o que se pode chamar um conquistador. Sua alma de homem vivido e calejado, por menos idade que tivesse, não lhe permitia entregar-se a frivolidades. Foi homem de poucas mulheres, mas um amante apaixonado e romântico, dos que lêem poemas ao telefone, oferecem chocolates e se entregam aos impulsos e arrebatamentos do amor. Trabalhando como oficial de gabinete do governador Miguel Arraes, Maximiano conheceu a bela e jovem Ana Lúcia. A prisão de Arraes, na seqüência do Golpe Militar de 64, precipitou o destino dos namorados, que se casaram na capela da base militar da Aeronáutica. A cerimônia foi marcada por um clima de tensão e constrangimento. Poucos familiares e amigos íntimos foram admitidos ao evento. O governador deposto veio diretamente da prisão em Fernando de Noronha e, finda a cerimônia, mal teve tempo de cumprimentar uma ou duas pessoas, antes de ser novamente levado para a ilha, de onde partiria para o exílio, junto com toda a família. No Brasil, ficariam apenas os recém-casados: Maxi e Ana. Foram ao mesmo tempo tormentosos e felizes os anos que se seguiram ao exílio de Arraes. A distância forçada da família entristecia a mulher e angustiava o marido. A sensação de serem alvos constantes de vigilância e controle levou o jovem casal a optar por uma vida discreta no interior. Ao nascimento do primogênito,

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C apa Dudu, mudaram-se para a Fazenda Três Marias, em Vitória de Santo Antão. A Zona da Mata Sul já era ambiente familiar a Maximiano e ali ele se isolou com a família, passando a criar galinhas. Seus vizinhos, Syleno e Cristina, tornaram-se amigos de toda a vida. Os dois casais passavam juntos os finais de semana, encontrando-se para almoços e jantares, ora numa fazenda, ora noutra, freqüentemente acompanhados por Vilma e Artur. Na varanda de Syleno nasceu o frevo “Serpentina partida”, sucesso de carnaval, composto por Maxi e Artur Lima Cavalcanti. Amizade assim, fraternal, manteriam também com os vizinhos de Casa Forte, Ariano e Zélia. O ano de 1968 trouxe duas grandes alegrias: o nascimento do segundo filho, Tonca, e a estréia do primeiro romance, “Sem lei, nem rei”. A essa altura, Maxi aproximou-se dos jovens escritores da Geração 65 e participou, em 1970, do lançamento do primeiro núcleo do Movimento Armorial. Terá sido essa das raras concessões à vida literária feitas por Maximiano. Vivia a literatura visceralmente e fazia dela o centro de sua vida, no entanto, desprezava badalações e eventos públicos. A vida literária intensa acontecia, para o escritor, entre seu escritório e o terraço da sua casa, na rua do Chacon ou na Real da Torre. No terraço recebia os velhos amigos, os jovens aspirantes a escritor, os curiosos, os espíritos inquietos. Jovens e velhos, ricos e pobres, escritores e diletantes, a todos Maximiano recebia em sua casa, generosamente. É bom que se diga que os novatos, antes de serem afetuosamente acolhidos, passavam pelo crivo de um olhar inquisidor, que os perscrutava da cabeça as pés, com uma sem cerimônia desconcertante. Os saraus realizados aos finais de semana em sua casa, quase religiosamente, reuniam muitos dos principais intelectuais pernambucanos da época, além dos irmãos, Renato, Flávio e Mauro. Falava-se de tudo um pouco. De artes plásticas, de política, da cena pernambucana, mas, principalmente, de literatura. Segundo os rumores da época, não havia no Recife melhor conversador que Maximiano. Cativava seus interlocutores com uma habilidade rara, combinando a agilidade do pensamento à mais fina ironia. Era dono de um espírito crítico mordaz. Conversava em pé e gesticulando muito. Com freqüência provocava risos, imitando personagens e situações vexatórias. Algumas vezes, da varanda se passava à mesa, farta de quitutes da terra. Maxi apenas bicava a comida, satisfeito apenas em fartar os amigos com os prazeres da mesa. Jamais bebia: – Se beber, farei horrores no mundo. Em compensação, fumava feito caipora, caminhando pelo corredor, em vai-e-vem constante. Para compensar os excessos do fumo, mandava que lhe preparassem de sobremesa uma gelatina de goiaba: – Muito boa para absorver os excessos da nicotina. Leitor voraz, tinha imenso prazer em incutir nos demais o amor pela literatura. A amigos e conhecidos sugeria textos para leitura, apresentava escritores menos conhecidos, emprestava e dava livros, na esperança de conquistar novos adeptos da causa literária: – Vou lhe ensinar a ler. Você não gosta de ler porque só lhe apresentaram calhamaços aborrecidos. Você vai começar a ler contos. Leve esse livro. Vai se apaixonar pela literatura. Estimulava também os jovens talentos, lia suas produções, fazia sugestões, mas, sobretudo, os municiava com a principal ferramenta do bom escritor: grandes livros. O carinho com os pais, que com ele viveram até a morte, a acolhida indiscriminada dos conhecidos em sua casa, o apoio desinteressado e o cuidado constante com os amigos parecem ter impressionado a todos que com ele conviveram. A generosidade de Maximiano Campos tornou-se quase lendária, juntamente à lealdade canina e à inteireza de caráter. Privado do conforto e dos bens de família, viveu ao lado de Ana e de seus dois filhos uma vida modesta de funcionário público. Tendo ocupado cargos importantes, Maxi jamais abandonou seu compromisso com a verdade e com a justiça, expresso sobretudo através dos seus livros. Mas a impossibilidade de chegar, nesse mundo, à realização de seus anseios enchia seu peito de uma angústia primordial, com a qual conviveu por toda a vida. Quiçá nem um dia sequer de sua existência tenha passado sem que a sombra da angústia turvasse seu espírito. A morte precoce do irmão com que mais se afinava, Renato, foi um golpe brutal para o já angustiado Maximiano. O gênio expansivo de Renato era o contraponto exato de seu acanhamento, porém os dois espíritos alcançavam a comunhão na paixão pela literatura. A perda do irmão fez da depressão a companheira fiel e ingrata do escritor, mas também ensinou-lhe uma lição preciosa: a dignidade diante da dor e da morte. Assim, ao final de sua própria vida, Maximiano descobriu que a diabetes lhe comprometera o coração de tal modo, que só um transplante poderia salvá-lo. Resignou-se à sua sorte e encarou a morte com a nobreza aprendida do irmão. Seus amigos mais íntimos jamais ouviram dele uma única palavra de queixa contra a doença implacável. Guardava para eles apenas o riso e o humor irônico do costume. Recolheu-se a Boa Viagem, onde viveu seus últimos dias na companhia das grandes paixões vividas e daquelas que a vida frustrara. Ao partir, deixou na cena pernambucana um vazio e uma certeza: bem-aventurados os que tiveram a sorte de conviver com Maxi, o generoso. yy

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primeira advertência surge na primeira linha do prefácio: “Esse livro é a biografia de alguém que nunca teve vida”. Mas foi na entrevista exclusiva ao Pernambuco, a primeira em que falou sobre seu livro, que o advogado pernambucano José Paulo Cavalcanti, sessenta anos, explicou o que disse: “Esse é o livro que eu gostaria de ler sobre o poeta”. E completou: “O que não quer dizer seja o que os outros também irão querer ler”. O poeta é o português Fernando Pessoa, seus muitos heterônimos, o gênio mais cultuado da literatura portuguesa depois de Luis de Camões. José Paulo volta a avisar, porém, que o livro, montado e remontado nos últimos seis anos, é uma espécie de quebra-cabeça a ser decifrado pelo leitor, já que ele propõe uma desconstrução do poeta a partir de parceria inimaginável para se compreender melhor a obra. “Os trechos com aspas são dele, sem aspas sou eu”, contou, como mais uma dica sobre o que o leitor deve esperar. Cavalcanti leu e releu a obra do poeta tantas vezes que já recita trechos inteiros de cor. José Paulo dá mais uma pista sobre o que propõe divulgar com a publicação de seu livro sobre Pessoa, que já tem mais de setecentas páginas e irá para a editora – quem sabe? – ainda este ano: “Pessoa é um autor sem imaginação”, vaticina. Como? “Descobri que, mais que sonhador, era um cronista do cotidiano. Tudo o que ele escrevia estava em volta dele ou era a vida dele”, explicou. Em carta ao poeta açoriano Armando César Côrtes-Rodrigues (19 de janeiro de 1915), Pessoa confessa invejar “aqueles de quem se pode escrever uma biografia ou que podem escrever a própria”, lembra Cavalcanti, citando ainda Octávio Paz: “Nada na sua vida é surpreendente, nada, exceto os seus poemas”. Por isso, concorda com Eduardo Lourenço: “Custa-me imaginar que alguém possa um dia falar melhor de Fernando Pessoa que ele mesmo”. O livro, porém, adverte novamente Cavalcanti, “não é feito para especialistas, estes ‘homens que sabem qualquer coisa de uma coisa e nada de todas as coisas’”. Por essa razão, volta a advertir, “muita gente que não sabe ler os textos dele é traída por isso”. Para ilustrar, conta que a poesia “Liberdade” costuma ser recitada como se fosse uma grande brincadeira do poeta, “mas é poesia de protesto”. Censurada, era recitada nos bares de Lisboa em atos de resistência, contou. O verso “Flores, música, o luar, e o sol, que peca só quando, em vez de criar, seca” embute uma realidade política. “O sol é sempre Portugal que, ao invés de criar com a democracia, seca com a ditadura”, decifra o advogado. E os versos “Mais do que isto / É Jesus Cristo / Que não sabia nada de finanças”, referência ao fato de que Antonio Salazar havia sido ministro das Finanças. “Quando se conhece

a vida de Pessoa, se descobre que escreveu tanto, que era possível contar a vida dele com as palavras dele. É claro que nem sempre se pode contar na data que ele escreveu. Ele sabia, por exemplo, o ano em que ia morrer por ser um astrólogo competente. No último ano de vida começou desesperadamente a organizar os papéis, a escrever. Só que ele tinha tanta angústia por escrever que não teve tempo de escrever sobre sua angústia de morrer. Por isso, quando descrevo o último ano de sua vida, me sirvo de palavras que ele escreveu em 1917/18, quando teve uma grande crise”. José Paulo diz que não se propôs a escrever uma nova interpretação de Pessoa, “muitas existem, para todos os gostos”. Quis que o livro fosse “simples guia para não iniciados”. Ele sempre teve consciência das dificuldades, comuns nas biografias, em voltar a um passado que encerra “não só lembranças, mas as mortas esperanças”. No caso de Pessoa, “difícil especialmente pela extraordinária imprecisão em tudo quanto diz respeito àquele para quem ‘o mundo imaginário foi sempre o único mundo para mim’”. A marcação do tempo em Pessoa sempre é imprecisa. “Não marco datas, porque datas são ficções do tempo falso”, dizia o poeta. O mesmo em relação a títulos de poemas, contos e livros, “alguns dos quais sequer existiram”. Como o “Pastor Amoroso”, “com últimos versos escritos em 23 de junho de 1930, que acaba firmado por Alberto Caeiro, já morto desde 1915, enquanto, muito do que escreve, nem título tem. Por ser o seu jeito. Ou talvez pense fazê-lo depois, algum dia”, justifica. Essa imprecisão aparece até nos relatos que antecedem a morte do poeta. “As primeiras dores lhe vêm na noite de 26 de novembro de 1935, em sua casa, e não há ninguém com ele. Ou tudo se dá no dia seguinte, 27, em casa do compadre Armando Teixeira Rabelo. Para outros, na noite de 28, novamente em casa e novamente só. Para outros ainda o cenário é o mesmo, também à noite, mas já é 29, e com ele está seu colega de escritório, Francisco Gouveia. Então o levam ao Hospital São Luís dos Franceses. Nesse mesmo 29, ou dois dias antes. De auto-maca, para uns; no automóvel de Rabelo, para outros; ou no automóvel de Carlos Eugênio Moitinho de Almeida, seu patrão na Casa Moitinho de Almeida. Sozinho, ou com ditos Moitinho e Gouveia. Ao morrer tem a companhia do seu médico, primo por parte de mãe, o Dr. Jayme Pinheiro de Andrade Neves. Talvez, também um médico do hospital, o Dr. Alberto Antonio de Moraes Carvalho Sobrinho. Estaria sozinho, nesta hora; ou com ele estão os amigos Gouveia, Victor José da Silva Carvalho e Augusto Ferreira Gomes. Capelão, sem dúvida; e enfermeiras, provavelmente religiosas – posto ser então o hospital administrado pela Ordem de São

Procura-se por Pessoa desesperadamente A caçada que o advogado José Paulo Cavalcanti empreendeu para decifrar o escritor português “sem imaginação” Paulo Sérgio Scarpa

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Almirante Reis 108-D. Antonio, e não Alberto. Fim da peregrinação”. Na primeira vez que José Paulo visitou a casa onde Fernando Pessoa nasceu foi informado que o carrilhão da Basílica dos Mártires tocava ao meio-dia. “Cheguei lá dez minutos antes. Queria estar onde ficava seu quarto, para comprovar que de lá se via o Tejo e ouvia aqueles sinos”. Mas foi impedido de entrar no prédio, hoje de uma sociedade de advogados, a ABBC, pelo agente de segurança Fernando José da Costa Araújo. Ao seu lado como testemunhas apenas a mulher, Lectícia, e o amigo brasileiro, há trinta anos em Lisboa, o jornalista Duda Guennes. “Como que por uma conspiração do destino”, relata Cavalcanti, “ouvimos tocar o sino – primeira ‘pancada tua, vibrante no sol aberto’. Precisava estar lá.” “Por favor chame a polícia para me prender que, sem sua autorização, estou subindo ao quarto andar”, bravejou. Tomou o elevador e pode constatar o que o poeta já revela em versos: “Dava mesmo para ver o Tejo, de duas das janelas daquele que um dia foi seu apartamento. E ouviam-se os sinos, claramente. Ao sair, no ar frio daquele meio-dia de inverno, os sinos da aldeia de Pessoa tocaram novamente. Agradeci, em uma reverência exagerada, como se tocassem para mim. As pessoas na rua acharam graça”. O livro começou quando José Paulo quis saber quantos foram os heterônimos, pseudônimos ou personagens, “formando o doloroso mosaico de seu verdadeiro rosto”, como gosta de resumir. Foram muitos. Em destaque, publicará também biografias de todos. Ele conta que conheceu Fernando Pessoa em 1966, pela voz do ator João Villaret. “Foi o começo de uma paixão que até hoje me acompanha. Tenho inclusive a sensação de que gostava dele ainda mais, naquele tempo. Talvez porque todo começo de paixão seja assim mesmo, depois arrefece. Ou talvez então, como o rio de sua aldeia, ele apenas pertencesse a menos gente”. José Paulo Cavalcanti só nega revelar quem é o Esteves, do poema a Tabacaria, que ele descobriu após muita investigação. “Vai ter de esperar o livro”, diz, com sonora gargalhada. yy

Vicente de Paula. Mas quem? As pesquisas que fiz resultaram inúteis. Sem mais registros, por lá, de capelães ou religiosas daquele tempo”. Sempre vencendo dificuldades, José Paulo Cavalcanti viajou mais de dez vezes a Lisboa e Paris, para colher dados e checar, sempre investigando o que estaria por trás dos fatos narrados pelo poeta. Conversou com contemporâneos do poeta, com parentes distantes, com gente que se lembrava de alguma coisa contada sobre Pessoa. Até com a sobrinha querida, já octogenária, que o recebeu para responder sessenta perguntas em apenas dez minutos de conversa, mas que, como por encanto da visita, resultou num revelador convívio de mais de seis horas de descobertas. Nem sempre foi trabalho fácil. Assim se deu, por exemplo, “quando tentei encontrar certa farmácia A. Caeiro – ‘cujo cabeçalho’ disse Pessoa, em carta ao amigo Côrtes-Rodrigues (04 de outubro de 1914), ‘por acaso’ ter visto ao passar de carro na Avenida Almirante Reis.” Até achou graça, porque talvez aquele A fosse de Alberto – mesmo prenome que destina ao heterônimo Caeiro. “Nos vários quilômetros dessa avenida existem dezenas. Conversei com seus proprietários, um por um. Sem mais lembranças dela. Não há registros no Arquivo das Finanças do bairro.” “O Arquivo Histórico da Cidade de Lisboa tem duas fotografias de farmácias antigas da avenida em seus ficheiros – as de número 46 e 78, sem indicação de nomes. O 46 ainda hoje é farmácia, agora bem moderna, a Confiança; o 78 não existe mais. O Museu da Farmácia guarda anotação de uma, número 22, com decoração exterior de palmeira em cantaria de pedra. Conferi no local. Lá está agora um café, o Palmeira dos Anjos, entre uma loja de fotografias e uma pastelaria, retendo em alto relevo, na parede envelhecida de sua esquina, imagem que lembra símbolo tão comum nas farmácias, de cobra enroscada numa palmeira. Já admitia não tivesse mesmo existido – algo natural, tratando-se de Pessoa. Até que, conferindo o Anuário Comercial de Portugal, do ano de 1922, encontrei Antonio Joaquim Caeiro, pharmaceutico, Avenida

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Ronaldo Correia de Brito

Se não me perguntam eu sei, Prestes a lançar o romance Galiléia na Feira do Livro de Porto Alegre, escritor desabafa sobre suas inspirações, respirações e paisagens

se me perguntam, desconheço

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uando lancei “As noites e os dias”, em 1997, pela editora Bagaço, Alberto Cunha Melo escreveu que os meus personagens são complexamente urbanos e habitam um sertão sem endereço certo, que pode estar em qualquer latitude. Em “Galiléia”, os primos Davi, Ismael e Adonias procuram reconstruir suas vidas na Noruega, no Recife e em São Paulo, longe do sertão em que nasceram. Por mais que eles tenham se distanciado da violência que ronda a família, voltarão a senti-la de perto, descobrindo que nunca escaparam ao destino que os cerca. O sertão tanto pode significar um espaço mítico como um acidente geográfico. Santo Agostinho perguntava sobre o tempo: o que é o tempo? Se não me perguntam eu sei, se me perguntam, desconheço. O que é o sertão? Se não me perguntam eu sei, se me perguntam desconheço. O sertão é abstrato ou real como o tempo. E continuará sendo tema para a literatura. O sertão é um espaço de memória confundido com o urbano. É o melhor lugar do mundo para acessar a internet, porque as lan house cobram apenas cinqüenta centavos por hora. “Galiléia” trata dessas idas e vindas, mergulhos e retornos nesse mundo suburbano chamado sertão. Sou inteiramente aberto às influências. Não estou nem aí para qualquer tipo de fidelidade. Sou marcado pela escrita de Rulfo, Borges e de vários escritores russos. O livro que marcou mais profundamente minha escrita foi a “História sagrada”, que sempre li como um compêndio de narrativas e nunca como um escrito religioso. Concordo com o ponto de vista de Robert Alter de que a “Bíblia” é prosa de ficção. Eu precisava escrever um romance para ter mais espaço para discussões que não cabem no conto. Mas, sou um romancista conciso. Nunca conseguiria escrever centenas de páginas como os russos e os escritores de língua inglesa. Levei a mesma tensão dos meus contos para o romance. E isso se alcança em poucas páginas. Trabalho duas propostas de Ítalo Calvino na minha literatura: a exatidão e a rapidez. Sou obsessivo em tentar dizer o essencial com poucas palavras. A cada dia me preocupo menos com o efeito das frases. Já não tento alcançar a beleza; prefiro alcançar a verdade. Quase não crio metáforas e censuro os adjetivos. Acho que sou esquemático, o que não deixa de ser um perigo para

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a literatura. Mas não suporto gorduras, sempre busco chegar ao osso. Sou um escritor psicanalisado e minha escrita reflete isso. Nunca quis exercer o papel de psicanalista, embora tenha feito formação. Não conheço boa literatura escrita por psicanalistas. O hábito profissional da escuta e da escrita psicanalítica contamina a criação literária e o resultado é sempre ruim. Freud escreveu boa literatura. Não digo o mesmo de Jacques Lacan. Quando terminei de escrever “Galiléia”, tive a impressão de que havia escrito o roteiro de um filme. Escrevo sempre a partir de impressões visuais, arranjos de cena. Nunca escrevi por sugestão deste ou daquele texto literário. As imagens do cinema me sugerem muito mais profundamente do que um conto ou novela. Escrevo teatro com facilidade. Sou um homem de teatro, conheço a carpintaria teatral. Escrever para cinema e teatro é bom porque podemos acompanhar a encenação ou a filmagem, vemos a transformação do texto numa outra linguagem. Escrever é um ofício custoso. É necessário ler muito, agüentar o tranco da solidão, ser capaz de uma viagem interior e estar sempre aberto às novas experiências da escrita. É um ofício amargo, duro, uma verdadeira ascese. Não vejo nenhum glamour em ser escritor. Só reconheço nessa profissão muito trabalho, uma busca permanente da literatura e horas contínuas de estudo. Continuo trabalhando como médico e não pretendo me afastar da medicina, nunca. Escrever e atuar como médico são atividades sem conflito. Acho que não seria escritor sem o longo e exaustivo exercício da medicina. Todos os dias eu convivo com o sofrimento, com a doença, com a morte e a alegria da cura. Ouço histórias que anoto e que podem aparecer em algum conto ou novela. Em “Livro dos homens” existem dois contos desenvolvidos a partir de minha vivência no hospital. Só consigo viver fazendo muitas coisas. Todas elas estão harmonizadas e é como se eu me movimentasse dentro de um mesmo universo. Gostaria de escrever um livro que me deixasse satisfeito. Isso nunca acontecerá. Estou sempre esperando por esse livro. Ah, se fosse “Galiléia”! Mas tenho consciência da minha permanente insatisfação e já estou trabalhando em novos livros. Queria viver mais serenamente, sem a angústia da espera. Não desejar e não esperar. Isso é quase a santidade. yy

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Porto Alegre dá vontade de pecar mais do que se viveu Fabrício Carpinejar

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porto-alegrense não se aproxima com calma. Cumprimenta alto, gritado, estapafúrdio. Não confunda com assalto: é seu jeito mesmo. Tenta assustar tudo o que pode na primeira vez, para a amizade soar mais tranqüila dali por diante. É o inverso do baiano: a voz não é mansa, para se erguer naturalmente com o avanço da conversa. É tudo ou nada, é agora ou nunca. Um atropelo de vogais. Um eiiii, um oiiiiii, um bah... Sem chance. Sem recuperação. Um abuso para os mais travados. A varanda já é sala de estar no rosto do gaúcho. Não há tempo para recuar. O abraço gira em si, como um nó de marinheiro. A Revolução Farroupilha o perturbou. Está sempre desejando o que ainda nem foi apresentado. Conjuga o tu como se fosse você, para não engolir vento. Canta o hino rio-grandense de cor e salteado. Canta o hino de seu clube de cor e salteado. Não abandona um argumento, mesmo quando percebe que está enganado. É fiel ao erro. Sabe ser profundo, quando distraído. É de uma profundidade inesgotável. Sabe ser solitário, quando atento. É de uma solidão ultrajante. Aceita ser vítima de piada de um familiar. A mesma piada na boca de um estranho é preconceito. Recebe qualquer um de braços abertos, para depois investigar. Paranóico, pulou do ventre para não ser chamado de filho da mãe. Não admite neutralidade e empate, muito menos voto de Minerva. Minerva é somente o nome de um sabão em pó. É preciso escolher: está do lado dele ou contra ele. Cuidado, o silêncio é compreendido como oposição. Basta elogiar algo de sua cidade que ele vira turista. Repete os programas, para ser encontrado. Comparece quatro vezes ao mesmo lugar, até ser reparado. Continua aparecendo até ser esquecido. Há poucas bancas nas ruas, se comparado a Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Recebe jornal em casa, debaixo da porta, como um tapete. Adepto da locução escrita; ler para conversar. Morre bem informado. Trata os escritores como se fossem músicos. Conversa sobre suas obras no ônibus, na lanchonete, no meio da rua. Seu suspiro é um autógrafo. Bebe para discutir, não discute para beber. A bebida é anzol do chiste. Abole a frase inicial para ficar com a última. O que valoriza é a reputação. Faz as pazes no dia seguinte, quando ama. Quando odeia, bem, dirá que nunca o conheceu. Seu time é o melhor do mundo, sua cidade é a melhor do mundo, sua carne é a melhor do mundo. Às vezes é tão gaúcho que conta que é gaúcho para os próprios gaúchos. Ele se elogia com receio de não ser lembrado. Porto Alegre é uma cidade para se atravessar a pé. Com o último botão da camisa aberto. Quem toma chimarrão, ronca acordado. É engraçado passear pela Usina do Gasômetro ou Brique da Redenção no domingo. A térmica é um filho aprendendo a caminhar. Balançando de mãos dadas com seus pais. O crepúsculo do Guaíba transforma a orla no teto de uma igreja. Dá vontade de amar alguma yy santa e pecar bem mais do que se viveu.

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P assaporte

o gosto Sabores e dissabores à chinesa Ana Addobbati

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olimpíada passou. O frenesi passou. O McChina também. Pois é, um simples sanduíche “jogada de marketing” merece ser comentado. A mistura de pão com carne não chegou em solo chinês. Ficou no Brasil. E tão pouco chega perto do que se come na terra onde cão pequinês no prato é coisa cara. Esqueçam. Aquela rua famosa do bairro do Espinheiro não representa o mundo gastronômico do Império do Meio. Leitores, vocês não estão aqui para ler receita ou crítica gastronômica (Ops, chineses não levem essa palavra “crítica” ao pé da letra). Eu sei. Mas, a relação que o chinês tem com o prato é algo que merece ser comentado. E advertido. Aqui, existe um ditado: “Não experimente tirar comida do prato de chinês. Esse povo aparentemente pacífico consegue se unir para derrubar qualquer imperador ou ditador”. Parece razoável, certo? Só que eu arriscaria estender essa máxima extremista para algo além da fome. Para o orgulho. A comida chinesa é um patrimônio. Por ela, os chineses vão do ódio ao amor. Eu preciso dizer que qualquer convite para uma refeição típica, para mim, é algo desafiador. Meu primeiro churrasquinho chinês – descrição da cena: Minha amiga chinesa pega um pé de galinha, com direito a unha, do espeto, coloca na boca e diz “delícia!”. Meu primeiro jantar com uma família chinesa – descrição da cena: A dona da casa quer demonstrar hospitalidade e joga na minha tigelinha o pedaço da gordura amarela do peixe. Eu tenho de comer. Não passa na garganta. O resto vocês imaginam o que aconteceu. Não quero estimular preconceitos. Todo mundo sabe que na China se come escorpião, sapo (esses são comprados vivos, no supermercado. O cliente aponta qual ele quer, o funcionário coloca numa rede e leva para o caixa) e outras coisas. Não faça cara de asco. Lembre que no nosso Brasil come-se calango, javali, rã e outras carnes exóticas. É só costume. A culinária chinesa é tão diversificada quanto as etnias que vivem no país, proporcional ao tamanho do seu imenso território. Mas, vamos combinar: sou humana, tenho direito a não gostar de certas coisas, Ok? Só que meu direito não vale para os chineses. Não comer comida chinesa ou simplesmente dizer que você não gosta de apenas um prato é tão criminoso quanto xingar Mao Tse Tung. No mínimo, você será taxado de inimigo ou terá cometido um suicídio social. Que estejam todos advertidos: esse é o preço para ter amigos chineses. Eu fui avisada a tempo. Antes de embarcar para o roteiro de Marco

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dos outros Polo, imigrantes chineses no Brasil disseram para que eu não ousasse deixar comida na tigela. Tem que comer o que se colocar no prato. Eu não imaginava quão sério isso é. Cenas recentes da minha vida: Saio para jantar com a minha housemate chinesa. Vamos a um restaurante local. Eu me antecipo e peço logo um prato que é uma mistura de amendoim com legumes e frango, de gosto familiar. Durante a conversa: “A esposa do meu chefe é uma idiota. Insuportável. Para começar, ela não come comida chinesa. Existe alguém no mundo que preste e não coma comida chinesa?”. Sim, eu gosto de arroz frito, rolinho primavera e outros pratos. Existem comidas deliciosas. Mas, reservo-me ao direito de não gostar de alguns pratinhos, oras! Mas, desistam. Quer fazer negócio com olhinhos puxados? Ofereça um jantar chinês ou coma o que eles colocarem na mesa. Sim, depois que você acertar o contrato, eles vão te levar para uma sala com mesa redonda (significa união, ciclo sem fim, elo inquebrável) e vão te servir as iguarias locais. E você tem de comer. Felizmente, sempre tem comidinhas gostosas. Se não gostou, problema seu. O chinês não te dá esse direito. Ponto. A comida local é algo que eles querem proteger dentro por uma Grande Muralha. A sobremesa mais popular nos fastfoods locais é o pastel de Belém. Isso mesmo. Esse docinho com gosto de infância em Portugal e Pernambuco é comido vorazmente por aqui. Chegou por Macau, a colônia chinesa que foi dominada pelos “tugas” e se espalhou entre os comunistas. Claro que não perdi a chance de comentar que isso foi uma criação lusitana. Resposta? “Eles não teriam competência para criar algo tão gostoso. Isso foi criado por chinês!”, me disse a minha ex-chefe. À chefe a gente não responde, né? Mas, se eu pudesse... Então, agora, você já sabe. Se um amigo chinês perguntar se você gosta de comida chinesa, diga que sim, que ama. Se ele estender um convite, haverá pratos deliciosos. Se você cruzar com algo que você não gosta, não vale fazer cara feia, tá? Mas, vamos às ponderações: como você reagiria se alguém dissesse que a brasileira é feia? Pois é, cada um com sua Cidade Proibida. Aproveitando o espaço, quero terminar falando do saldo positivo da Paraolimpíada. É um acalanto para o coração ver chineses reconhecendo a coragem e o sucesso de seus para-atletas. Ver Beijing adaptada para cadeirantes e deficientes. A China, como foi isolada por uma bolha por muito tempo, não conseguiu se acostumar com o diferente. E isso inclui pessoas especiais. Lembro-me de ter colocado no colo uma bebezinha com Síndrome de Down e minhas amigas comentarem: “A mãe dela deveria deixá-la escondida dentro de casa”. Num lugar onde se pode ter um único filho e o aborto é liberado, onde há essa mistura de pressão e liberdade, certas coisas pareçam ilógicas. Não importa. Como não podia ser diferente, a Paraolimpíada trouxe uma chuva de medalha. Tenho a certeza que muitas coisas já mudaram e vão mudar. Basta os chineses terem orgulho. E é por isso mesmo que a relação deles com o prato yy nunca vai mudar.

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