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D ois EDITORIAL Há uns anos, a profissão da moda era ser DJ. Havia gente colocando música de todas as formas, em todos os lugares; de profissionais a amadores, todo mundo queria ostentar as duas letrinhas. Agora é a vez dos chefs assumirem o coração da (literalmente) cadeia alimentar profissional. Mas o que não podemos esquecer é que ser chef (assim como um dia aconteceu com os DJs), mais que uma questão monetária, tem a ver com distinção, com o fato de você fazer um trabalho que lhe torna especial aos olhos dos outros. A relação comida X status não pára por aí. É só dar uma olhada em jornais, revistas, programas de TV, para se perceber que a gastronomia é o assunto da
vez. O que você come, onde come e quem cozinha para você, diz muito sobre o lugar que se ocupa na sociedade. Exagero? Nem pensar! Sobre a problemática da relação comida X poder (que não é nova, mas que vive novo boom), o sociólogo da UFPE, Jorge Ventura, escreveu um ensaio em que explica, a partir das idéias de Pierre Bourdieu, como nossa relação com a comida está longe de ser funcional. Essa é a primeira colaboração de Jorge Ventura com o Pernambuco, mas, em nossas conversas sobre esse ensaio, surgiram inúmeras idéias para futuras colaborações. Este mês, Heloísa Buarque de Holanda conta como fez as suas duas antologias
poéticas que, em momentos diversos, balançaram as estruturas da literatura brasileira. Heloísa é uma ótima aquisição para a nossa seção em que escritores comentam o insight que gerou suas obras. E revela: “antologia vicia”. Nossa designer, Jaine Cintra, caprichou na hora de ilustrar um trecho da dissertação de mestrado da jornalista Lydia Barros sobre o Alto José do Pinho. Ela imaginou um Alto feito de aparelhagens de som. Um excelente trabalho visual para acompanhar uma importante reflexão sobre a relação entre música e sociedade. O editor do jornal curitibano “Rascunho” também colaborou com a gente este mês, entrevistando Cristovão Tezza
que, com seu romance “O filho eterno”, se transformou no grande nome literário deste ano. O Saber + traz um especial sobre Marcelino Freire. Vale ressaltar que a parte gráfica do caderno foi toda montada a partir daquelas imagens que causam ilusão de ótica. É só olhar para elas, que rola uma tontura – mais ou menos o que acontece com a leitura de Marcelino Freire, autor que é impossível largar com indiferença. Não deixem de ler, ainda, a reflexão que Artur Rogério faz sobre a obra de Marcelino. É ficção sobre uma outra ficção! Até o próximo número, Schneider Carpeggiani
I néditos
Jonathas Andrade
Uma publicação da
Companhia Editora de Pernambuco - CEPE
Circulação mensal integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco
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como o novo entra no mundo
Autora das antologias que fixaram a idéia de poesia brasileira contemporânea, crítica carioca relembra caçadas poéticas Heloísa Buarque de Holanda
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u sou viciada em poesia. Eu leio um poema, olho um poema, ouço o poema. Isso me fez ler sempre muito poesia. E por isso, os poetas novos sempre me mandam seus trabalhos e comecei a perceber como é forte a poesia enquanto expressão de uma época. Talvez pelo péssimo motivo de a poesia não ter mercado, ela é bem mais livre do que a prosa para experimentar, divagar, traduzir o ethos de um momento. Foi assim que, de leitora de poesia, passei a usar a poesia também para compreender meu momento. Quando nos anos setenta, o consenso era de que havia-se aberto um inexorável vazio cultural diante da censura e dos limites impostos pela ditadura, observei que a poesia começa exatamente a se proliferar de modo ainda inédito na história. Eram muitos os poetas, eram muitos os livros de poesia que circulavam de mão em mão. Comecei a me deter um pouco mais naqueles textos de jovens poetas e pareceu claro para mim a importância do testemunho geracional que aquela poesia continha. Para além de uma saudável desierarquização do campo da poesia, os jovens poetas marginais, que armaram suas barricadas contra o circuito comercial do mercado de livros, exprimiam de forma contundente a asfixia de uma geração sem acesso à informação, à livre expressão e mesmo ao livre trânsito nas rua. Não resisti em reunir essa poesia, dispersa por seu próprio caráter de produção independente e fiz a antologia “26 poetas hoje” (1976) procurando desenhar o quadro da expressão poética do que passou a se chamar de “geração do sufoco” ou “geração AI5”. É interessante porque na época do lançamento dessa antologia a critica a rejeitou veementemente definindo-a como descartável e antiliterária. Hoje o cânone poético é estruturado em função desses autores como Francisco Alvim, Waly Salomão, Torquato Neto, Cacaso, Ana Cristina César e tantos outros. E a antologia vem tendo reedições sucessivas por ser adotada nos vestibulares de letras....
Acho que a feitura de uma antologia é na realidade uma escrita crítica. E bastante autoral. São vários os motivos que levam um crítico ou um poeta a organizar uma antologia. No meu caso é a curiosidade do que é sinalizado no horizonte futuro do nosso tempo. E nesse caso, a escolha é muito particular. Certamente as tendências entram em jogo e a redefinição do que seria qualidade para aquele momento e para aquela geração literária. Porque, vamos combinar, qualidade é uma construção cultural e política como todos os demais conceitos que informam nosso método crítico e de análise....
A segunda antologia, “Esses poetas” (1998), também partiu de uma busca do zeitgiest do final do milênio quando a cultura era acusada de ter se rendido ao mercado, e a poesia à critica especializada. Novamente, o que encontrei foi um panorama bem diverso do anunciado pelos apocalípticos. A poesia jovem dos anos noventa passou a cobrir uma gama enorme de dicções, de diversidade de gêneros e estilos. Uma poesia culta na qual as várias vozes da sociedade começaram a se consolidar: é a poesia feminina (cinqüenta por cento do mercado na época), a poesia negra, a poesia gay, a poesia judaica (fato raro nas letras brasileiras). Portanto, a diversidade e a volta ao profissionalismo no trato com a linguagem foi a marca desse novo momento contra o apregoado “fim da poesia e da liberdade poética” . Não há melhor I-CHING do que a poesia para se ler um período histórico, eu garanto.
Com essas duas antologias que realizei, um paradigma eu não criei mas uma interpelação certamente. Quando você faz uma antologia você de alguma forma está elegendo um sentimento de época. O incluir num conjunto e, principalmente, excluir desse conjunto, está feito um modelo critico que tem tudo para se tornar uma polêmica. Quando uma antologia não gera polêmica, ela não cumpriu adequadamente sua função.
A gente começa reunindo, pesquisando, e, de repente, num passe de mágica, sua mesa está coberta de livros, poemas, poetas. A carência da área de poesia se revela em toda sua extensão quando alguém se interessa por poesia. Aí você vê como o poeta não tem interlocutor e/ou leitor. É impossível pela própria estreiteza do mercado de poesia ter acesso a uma quantidade razoável de trabalho. Então o levantamento acaba mesmo sendo meio aleatório, meio intuitivo. No ano passado fiz mais duas antologias: uma de poesia argentina e brasileira contemporâneas publicada pela editora Fondo de Cultura, e outra em forma de exposição, chamada BLOOKS ou seja Blogs + Books, a poesia que rola no ambiente da internet. Agora estou fazendo mais uma para ser publicada na Espanha: poetas mulheres que começaram a produzir a partir dos anos noventa. Novinhas e cruéis. Como você vê, antologia vicia. yy
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uase vinte anos depois de despontar na cartografia cultural da capital pernambucana, pelas lentes da imprensa, o bairro do Alto José do Pinho, no Grande Recife, segue o seu destino de periferia, incapaz de resistir ao sonho de um projeto de transformação social coletivo, alicerçado na riqueza cultural do bairro, como alardeara a mídia e as projeções mais otimistas de alguns moradores na década de noventa. Ainda assim, sobrevive ali uma energia de renovação que possibilita a sua regeneração enquanto comunidade territorializada, que mantém acesa uma tradição roqueira que se renova de tempos em tempos graças à sobrevivência de grupos veteranos e o surgimento de novas bandas de garagem e subgêneros, mesmo que fora do foco midiático. Nessa perspectiva, o bairro reafirma a vitalidade do rock enquanto força transgressiva e locus de mobilização, resistência e experimentação, indo de encontro às teorias mais pessimistas que apontavam a sua morte. O estudo de caso do Alto José do Pinho cristaliza bem o perigo das essencializações. Ali, a rebelião simbólica do rock, independente de sua assimilação pelo mercado e do conseqüente desfazimento da memória de sua cultura apontado pelos críticos, continua operando sua lógica. Está enredada numa trama social onde a afirmação do localismo – o orgulho de pertencimento a um espaço de produção simbólica a partir do qual é constituída uma identidade cultural no imaginário coletivo da cidade – também funciona como resposta à fragmentação cultural e à idéia de “tela” do mundo, de onde o local foi deletado. A produção subcultural do bairro aponta em duas direções simultâneas, uma vez que é construto de uma “neo-tribo”, no interior da qual se estabelecem relações pontuais e voláteis; e local de solidariedades mais sólidas, de afetos partilhados na materialidade do cotidiano, ao longo de uma existência em comum. O fenômeno musical dessa periferia cristaliza uma série de contradições e um alto grau de ambivalência quando observado numa perspectiva crítica: ele opera sua inserção tanto no contexto da cultura de massa globalizada, ao ressignificar produtos e valores originados em um centro propagador; quanto na perspectiva de fechamento de uma partilha de sentidos, no campo social da comunidade, onde se estabelecem negociações paroquiais. Por outro lado, ocupa posição simultânea de marginalidade, como expressão juvenil subcultural, e de sintonia em relação ao mercado institucional, como produto consumido e diluído pelas indústrias culturais. É sobre essa aparente incompatibilidade de posições que se debruça este artigo, fragmento da dissertação “O Alto José do Pinho por trás do punk rock”. Trata-se de uma pesquisa de base etnográfica, que aponta, em um primeiro momento, para a aceitação do movimento de música alternativa pela comunidade – onde antes não encontrava acolhida – em função da representação positivada constituída pelos meios de comunicação massivos do movimento; e, depois, para uma reelaboração das estratégias discursivas dos grupos visando a sua inserção no mercado institucional de bens culturais.
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É inegável o impacto da imagem constituída pelos meios de comunicação em torno da cena musical daquela periferia na formação do pensamento da comunidade, e o seu papel mediador na construção das representações que repercutem sobre as interações e mudanças valorativas no bairro. Tal fato pode ser comprovado em conversas informais, nos depoimentos colhidos em campo, e no discurso constituído pelos media, que sempre enfatizaram as transformações ali ocorridas a partir da conquista dessa visibilidade. Há, no entanto, uma rede de sociabilidade que antecede a repercussão da imagem publicizada pelos MCM e que articula a trama social do bairro, baseada em valores constituídos na pertença – material e simbólica – a um determinado território, espaço de referência que organiza a relação da comunidade com o mundo e cujo mecanismo de funcionamento determina as formas de recepção à informação midiática. Essa perspectiva material de território remete aos pressupostos defendidos por Haesbaert, que ressalta a ambivalência das máximas que atestam o “encolhimento” do mundo, a fragilização das fronteiras e a crise da territorialidade. Para o geógrafo, para cada perspectiva de abordagem da desterritorialização – econômica, política ou cultural – há sempre a correspondência de uma territorialização em novas bases. Sob esse enfoque, a idéia de radicalização da chamada modernidade tardia, encontrada em autores como Anthony Giddens, para quem mecanismos como o “desencaixe” retira a atividade social dos espaços culturalmente localizados para reorganizar as relações sociais através de grandes distâncias espaço-temporais; parece inapropriada à organicidade das relações estabelecidas no Alto. Não se trata, é claro, de negar a propriedade das análises críticas que atestam a mobilidade e a instabilidade das relações e agrupamentos sociais contemporâneos, a idéia de rompimento da estabilidade do eu, que marca a fragmentação do homem pós-moderno. Afinal, a presente análise parte de um objeto cultural (o punk rock) cujo consumo permite a geração de sentidos coletivos e cria socialidades que não estão necessariamente atreladas a um recorte territorial, mas à difusão global de um produto cultural propagado pelos aparatos midiáticos, e que atravessa o mundo criando identidades grupais voláteis e desterritorializadas. O que se está tentando argumentar é que a mecanicidade racional da modernidade pode ser extrapolada pelos afetos e afiliações, ainda que efêmeras, capaz de formar um ambiente estético. Entende-se que a legitimação do punk rock pela comunidade está relacionada a um processo de desinvindualização que antecede – e talvez sustente – os sentidos coletivos constituídos pela mídia e a sua leitura positivada do movimento musical do Alto José do Pinho. Ainda que ressalte o envolvimento emocional que tem como traço distintivo a iminência da dispersão, a frivolidade e a superficialidade, o sociólogo Michel Maffesoli defende uma perspectiva holística sustentada pela globalidade social e natural, constituída no meio ambiente pelos sujeitos sociais, que parece adequar-se à dinâmica social do Alto José do Pinho. O declínio do individua-
Dissertação analisa as contradições cristalizadas pelo Alto José do Pinho durante a década de noventa Lydia Barros
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Disputar em cada freqüência
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lismo aqui persegue a lógica do nós, ou, como prefere este autor, busca o vínculo entre ética e estética, o laço coletivo e o sentir em comum. A sensibilidade coletiva é privilegiada no Alto, também, em função de uma identidade de classe que ofusca a idéia de distinção identitária como uma construção cultural deliberadamente assumida. A teoria subcultural se opõe à ideologização das subculturas, a dimensão política de suas práticas discursivas e simbólicas, adotando um posicionamento mais reflexivo em relação às identidades subculturais, que podem ser administradas e negociadas no contexto das circunstâncias diárias. Sob esse enfoque, as questões de classe parecem superadas ou pelo menos atenuadas pela autonomia dos sujeitos. Pode-se, no entanto, problematizar essa perspectiva teórica lembrando que as expressões culturais periféricas carregam a carga simbólica do enraizamento territorial, uma vez originadas entre as massas excluídas, que precisam conviver com a instabilidade socioespacial e a fragilidade dos laços entre os grupos sociais. A dinâmica de exclusão observada na pós-modernidade, como ressalta Haesbaert, está diretamente relacionada ao capitalismo pós-industrial, que empurra as massas para um tipo de mobilidade que é compulsória, já que está atrelada à luta pela sobrevivência, e isso, por certo, não é uma questão de escolha. Nessa mesma linha de raciocínio, embora aplicado a outro contexto, Kenan Malik afirma que a perspectiva pós-moderna de construção social das identidades, despreza os determinantes sociais em benefício da indeterminação e das diferenças que dão sentido às formas sociais, tornando-se, desse modo, incapacitada de explicar historicamente os fatos sociais. “Se pudéssemos escolher nossas identidades da mesma maneira que escolhemos nossas roupas, (...) a hostilidade racial talvez não fosse diferente dos desacordos entre os admiradores de Mozart e os que preferem Charlie Parker”. Segue-se aqui o argumento deste autor para afirmar que as identidades não estão necessariamente desconectadas dos determinantes sociais e para lembrar que o território comporta uma dimensão material de natureza político-econômica, indissociável de sua dimensão simbólica. Existem barreiras historicamente construídas e a partir delas são estabelecidas afirmações culturais, em alguns casos, produtos dessa identificação social – o que permite compreender tanto a identificação dos jovens do Alto José do Pinho com o punk rock, quanto a comunhão de objetivos políticos-sociais entre os moradores do lugar. Pode-se afirmar que houve um enquadramento da cena musical do Alto José do Pinho no espelho midiático, levando a sua adequação à ideologia e à estética do punk rock “social”, através da qual pode legitimar-se em seu território original e no mercado cultural institucional. Assim, os músicos ratificam a identidade proletária do movimento punk, mas, principalmente, se inserem no contexto atualizado da expressão punk deste início de milênio, abandonando a fúria e o niilismo marcados historicamente neste movimento, para se alinhar às muitas vertentes de engajamento social e político da cena punk atual. A cena punk aqui encontra afinidades inclusive com movimentos como o straightedge, cujos adeptos, fãs do hard core, deixam para trás a idéia hedonística do uso de drogas associada ao universo roqueiro. Ao contrário dos straightedge, que constroem na internet uma narrativa de oposição à cultura mainstream, no Alto, observa-se entre os grupos uma necessidade de rom-
per as fronteiras da periferia e fazer circular a sua mercadoria para muito além dos subterrâneos subculturais, mesmo que para isso precisem ser incorporados valores consensuais – não por acaso, a cena punk do Alto foi rejeitada pelo movimento punk recifense, sob acusação de estar “se rendendo” ao mercado. Cannibal, baixista e líder do grupo Devotos, um dos principais expoentes musicais do bairro, assume que eles não têm interesse em falar para um gueto. É na retórica pacifista e na adoção de um estilo de vida “limpo” das drogas, que eles enxergam a possibilidade de ingressar em um circuito institucional de produção e consumo culturais. Não que o punk do Alto José do Pinho ratifique a idéia de harmonia social, projetada pela camuflagem estética da democracia racial , o mito de origem da sociedade brasileira propagado por autores como Gilberto Freyre; ou que ignore o poder de fogo da retórica da diferença cultural, através da qual negocia e fortalece o calibre de sua inserção no mercado. Acontece que a organicidade da vida cotidiana no Alto, na qual a busca por legitimação passa pela construção de uma identidade cultural coletiva, carrega fortes componentes de emotividade e da demanda por reconhecimento, que remetem à teoria da cordialidade de Buarque de Holanda e a outras tantas heranças que constituem a formação cultural brasileira. A intencionalidade dessa produção cultural é de transformação do punk em um ambiente de solidariedades. Retira-se aqui o caráter negativo da crítica ao abrandamento da natureza do homem brasileiro, segundo George Yúdice, um mito produzido pelas elites para aplacar o temor da diferença, para ressaltar que, embora o punk do Alto José do Pinho testemunhe uma realidade de exclusão social e reivindique o direito à voz de uma periferia, a lógica que lhe move é a do consenso, interno e externo. A preocupação mercadológica das bandas pode ser melhor compreendida na perspectiva defendida por Herschmann, a propósito da capacidade das expressões periféricas explicitarem o fosso social brasileiro, rompendo a ilusão criada ao longo dos anos de um Brasil pacífico e ordeiro, o que as colocaria sob a mira dos preconceitos e discriminações. É visando uma identidade distintiva que lhes permita ocupar uma posição no mundo que jovens funkeiros, segundo o autor, acabam se vendo forçados a se adequar aos padrões de noticiabilidade dos mass media. Plasticidade observada entre as bandas punks do Alto, que se esforçam em tornar real a sua representação midiática – a música como agente de transformação social –, a partir da qual reivindicam cidadania e satisfazem as demandas da comunidade. As contradições que emergem no cotidiano do Alto José do Pinho permitem afirmar tanto a legitimidade do território como espaço de significação simbólica para jovens socialmente excluídos, quanto a necessidade desses sujeitos se apropriarem e reprocessarem as informações disponibilizadas pelos aparatos midiáticos a fim de constituírem suas identidades distintivas, globalizadas, desterritorializadas. Da mesma forma, é possível afirmar que, ainda que a inserção das bandas do Alto José do Pinho na esfera de produção e consumo culturais possa ofuscar a vocação experimental e de resistência do rock, naquela comunidade, o rock – e os seus subgêneros – mantémse como lócus de mobilização, articulação e reafirmação identitária, quase vinte anos depois da cena musical do bairro ter vivido seu auge. yy
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m todas as sociedades desiguais, ao lado das diferenças econômicas, há outro tipo de hierarquia social: a simbólica. Com efeito, para ficarmos nas sociedades contemporâneas, pessoas no topo da hierarquia social procuram criar e usar símbolos e comportamentos que as façam diferentes, distintas, daquelas que ocupam as escalas mais abaixo desta hierarquia. Este tipo de fenômeno social em que símbolos e comportamentos são usados para marcar distâncias sociais hierárquicas foi objeto de análise do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002). Bourdieu nomeou-o de distinção, que constitui o título de um dos seus principais livros (publicado no Brasil em 2007). Nele, o autor francês analisa uma série de comportamentos em termos de consumo de moda, de automóveis, práticas de esportes, gastronomia (freqüência a restaurantes ou prática da culinária) etc, que são utilizados pelas classes mais abastadas para marcar as diferenças sociais em relação às menos abastadas. Neste artigo, mesmo que de forma breve, vou utilizar o trabalho deste autor para analisar um fenômeno social que tem recebido crescente atenção – da mídia e das pessoas em geral – no nosso país e como ele tem sido objeto de práticas sociais para marcar hierarquias entre pessoas ou grupo de pessoas de diferentes classes: a gastronomia. Considere-se, em primeiro lugar, a procura recente pela carreira de chef, provocando inclusive a criação de cursos universitários de gastronomia. Com efeito, há muito que na Europa – particularmente na França – a carreira de chef já traz embutida, além das recompensas monetárias, as devidas glórias advindas do prestígio e honrarias a ela ligados. Neste sentido, o famoso “Guia Michelin” tem construído (e destruído) reputações. No caso do Brasil, muito lentamente a carreira de chef começou a aparecer como algo capaz de conferir prestígio e distinção, além, é claro, de trazer recompensa monetária. E sem qualquer surpresa estes jovens chefs, geralmente advindos de famílias relativamente afluentes, fazem sempre questão de apresentar seu pedigree em termos de formação profissional: geralmente, as mais conhecidas escolas de culinária francesas, reputadas como as melhores do mundo. Se a carreira, anteriormente pouco valorizada, pode trazer bons dividendos monetários – em um mercado em que muitas profissões tradicionais não remuneram tão bem – é de se atentar para o fato de que ela precisa ser revestida de certo charme, de certo intelectualismo, de prestígio e de distinção. Porém, prestígio e distinção, como marcas de manutenção da hierarquia social – especificamente como marcas simbólicas de desigualdade social – se alimentam daquilo que Bourdieu chama de capital cultural, isto é, o conhecimento dos códigos sociais necessários para a sobrevivência no mundo de sofisticação a que aspira a gastronomia mais refinada, o conhecimento que permite a leitura e o entendimento e a apreciação dos ingredientes, mesmo os mais exóticos, das etiquetas, dos gestos refinados, o consumo de publicações especializadas etc. É neste sentido que se pode compreender porque dificilmente jovens oriundos das classes populares alcançarão o topo da profissão. Não estou dizendo impossível; somente que é muito difícil. Eles podem ter o talento dito natural para a culinária, mas tenderão a permanecer nos escalões intermediários da profissão – um sub-chef, quem sabe? –, pois lhes falta o controle dos códigos sociais requeridos, por exemplo, a fala, as palavras corretas, talvez também não consigam expressar com naturalidade o trato dos ingredientes sofisticados e da decoração refinada... Um outro ponto de distinção em termos de gastronomia tem a ver com a apropriação por chefs e gastrônomos de tradições culinárias populares. Não seria uma contradição para o tipo de explicação que estou advogando aqui o fato de que a dita cozinha sofisticada incorpore ingredientes e pratos da cozinha popular ou que pratos da cozinha popular ganhem por vezes concursos de alta gastronomia? Não! Embora o vetor de difusão cultural, em sociedades desiguais como a nossa ou qualquer outra como a francesa, a inglesa, a americana etc, tenda a ser de cima para baixo, isto é, as elites intelectuais e econômicas tendem a criar e a impor para baixo, na hierarquia social, suas modas e modos, seu consumo e suas preferências, não é raro que se apropriem de formas de expressão cultural das classes menos favorecidas. Mas isto é feito com controle absoluto. Isto é feito
Artigo de sociólogo da UFPE revela os lugares que a
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através da dita releitura de um prato ou de uma peça de artesanato. A releitura envolve, no caso da culinária, não somente a correção de ingredientes (diminuição de temperos fortes, mais equilíbrio de sabores etc), mas também a apresentação do produto final (montagem de um prato ou embalagem mais delicada) e a venda em locais pouco acessíveis às camadas menos abastadas da população. Lembremos da chamada Nouvelle Cuisine! Simplificação no trato de produtos naturais e sofisticação de apresentação, para simplificarmos a fórmula. Aqui em Pernambuco, isto é fácil de se perceber inclusive na trajetória de um produto como o bolo-de-rolo. Há bolos-de-rolo e bolos-de-rolo, como se diz na expressão popular. Como ponto da distinção, que é a marca de expressão das desigualdades sociais das sociedades hierárquicas, é preciso somente atentar para a fama de que gozam os bolos-de-rolo de certas delicatessens do Recife. Estes são consumidos pela gente abastada da nossa cidade e exportados para letrados do resto do Brasil como expressão da nossa cultura. Por outro lado, bolos-de-rolo são também vendidos em uma gama variada de locais (mercados populares e grandes cadeias de supermercados). Há de atentar, então, para dois pontos. No primeiro caso, este produto tão popular – no sentido de ser bastante comum na mesa pernambucana – é montado, nas lojas finas, de forma que denota perícia e cuidado, com boa apresentação e é vendido em embalagens especiais. No segundo, bem diferente é o destino dos bolos-de-rolo vendidos nas grandes cadeias de supermercado: são expostos amontoados e vendidos em embalagens baratas; sua apresentação denota talvez a falta de delicadeza, a fabricação caseira e a montagem pouco cuidadosa. Aqui temos em um mesmo produto a expressão mais clara de como um mesmo bem – no caso, alimentício –, com presença nas mesas de famílias de um espectro social bastante amplo, pode ainda assim expressar formas de distinção social, manutenção das barreiras impostas pela hierarquia social, dependendo simplesmente da forma como é apropriado pelas elites culturais e econômicas de um dado espaço social. Finalmente, entre outros exemplos possíveis, gostaria de chamar a atenção para o consumo de alimentos/culinária tidos como exóticos em referência ao nosso próprio paladar. Refiro-me à freqüência a restaurantes japoneses e como isto se relaciona a marcas de distinção no sentido de Bourdieu. O antropólogo Thomas Bestor, de Harvard, chamou a atenção para o fato de que, no Vale do Silício, na Califórnia, ícone da nova indústria da informática, os jovens, com altos salários proporcionados nesta área, adotaram a comida oriental, principalmente a japonesa, como símbolo de status, ou de distinção, na linguagem de Bourdieu. Os restaurantes japoneses se tornaram símbolos da riqueza “Ponto Com” (.com). Guardadas as devidas diferenças, proponho que se observe uma típica noite em um restaurante japonês aqui no Recife. Quem vamos encontrar? Vamos encontrar artistas, jornalistas, intelectuais em geral, advogados, profissionais da informática etc. Elite intelectual e profissionais liberais que constituem parte da elite econômica de Recife. E o que isto tem a ver com distinção? Observemos as roupas, as jóias, os relógios, os carros estacionados, o jeito de falar, de se comportar à mesa, mas principalmente o domínio do vocabulário – possessão de capital cultural – para comentar os sabores, a apresentação dos pratos, a combinação de ingredientes etc. Cada um desses elementos pode e é usado para marcar uma distância social com relação a outras pessoas entendidas como, em estando abaixo na escala social, como não portadoras de conhecimento suficiente para a apreciação da cultura gastronômica “exótica” dos outros, no caso, dos japoneses. Considere-se o simples fato de que se alguém diz que não aprecia tal tradição culinária e gastronômica, um desses apreciadores é capaz de desfiar um enorme repertório de adjetivos e de recursos logísticos para justificar a apreciação, e isto vem normalmente acompanhado de argumentos que procuram expressar tal apreciação como superior. Por exemplo, um paladar mais inclusivo (inclui minha comida mais as dos outros) é tido necessariamente como superior àquele menos inclusivo (aprecio somente a comida da minha região). O paladar é mais refinado se, além da apreciação de ingredientes exóticos, incluir a capacidade de distinguir diversos sabores em contraposição ao paladar daquele(a) que somente aprecia os temperos locais e não faz muita diferença entre as sutilezas de diferença de sabor de cada um deles. A lista poderia ser estendida, mas corre-se o risco de ficar repetitiva. Vale, então, concluir. O presente interesse generalizado entre certos setores das classes sociais mais altas da sociedade brasileira por gastronomia a partir do que expressei mais acima revela marcas de imposição de distinção social entre classes sociais que servem simbolicamente para reforçar as hierarquias existentes. yy
gastronomia nos leva a ocupar
Jorge Ventura de Morais
Lição 2:
Se quiser, pode elogiar a decoração, os pratos, o que você quiser, mas seja discreto.
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008 é o ano literário de Cristovão Tezza. Com uma carreira iniciada nos oitenta, o autor acaba de ganhar destaque em todo o país graças ao sucesso do romance “O filho eterno”, lançado no final de 2007, que trata da relação de um pai e o filho com síndrome de down. Trata-se de um romance autobiográfico com um instigante detalhe: a narrativa é em terceira pessoa. Portanto, Tezza refere-se a si mesmo como “ele”. A estratégia ficcional, segundo o autor, deu-lhe muito mais liberdade para tratar do assunto que o rondava havia vinte e sete anos. A consagração chegou rapidamente. Ano passado, “O filho eterno” ganhou o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte. Agora, acaba de vencer o Jabuti da categoria “Melhor romance” e o Portugal-Telecom de Literatura. Cristovão Tezza nasceu em Lages, em 1952, mas vive em Curitiba desde a década de sessenta. É autor de “Trapo”, “Juliano Pavollini”, “O fantasma da infância”, “Breve espaço entre cor e sombra”, “O fotógrafo”, entre outros. Nesta entrevista ao Pernambuco, o autor fala do sucesso de “O filho eterno”, de sua carreira, projetos, mercado editorial, leitura, internet.
O senhor sempre deixou claro que “O filho eterno” é uma espécie de acerto de contas. O processo de escrita do romance, provavelmente, tenha sido um dos mais difíceis em sua obra. Como foi esse processo? Por que o senhor levou tanto tempo [seu filho, Felipe, tem hoje vinte e sete anos] para publicar este livro? CRISTOVÃO TEZZA - Definir como escrevemos nossos livros é sempre um processo a posteriori, em que de alguma forma, com algumas mentiras piedosas, damos sentido ou “explicamos” o caos da própria produção. Por entrar numa espécie de “ponto cego” temático, passei anos sem nunca pensar em escrever sobre minha experiência como pai do Felipe — é como se esse fato não pudesse jamais fazer parte do mundo da literatura. Era um problema pessoal, e devemos livrar os leitores de nossos problemas pessoais, que são chatíssimos e exclusivos. Tudo que entra na literatura tem de transcender o mundo pessoal. Isso eu não conseguiria fazer, portanto aboli o tema. Lentamente, a idéia de enfrentá-lo começou a me provocar — nos meus cinqüenta anos, por aí, quando eu não era mais aquele sujeito de trinta anos antes. Não foi fácil achar a linguagem. Comecei pensando em ensaio, depois em depoimento pessoal e finalmente mergulhei na ficção. Isso significa: enfrentar fatos biográficos com a arma da ficção, e não da confissão. No momento em que me transformei em “ele”, o livro avançou e foi tomando corpo. Depois de começado, o livro se escreveu com razoável facilidade — é como se a minha alma já tivesse uma maturidade de que eu sequer suspeitava. O segredo, eu acho, é que nunca perdi de vista o fato de estar escrevendo um romance, uma peça literária, e não me derramando num confessionário. Por se tratar de um romance autobiográfico, o senhor se expõe de maneira bastante forte durante toda a narrativa. O leitor está diante de um autor em construção, com seus medos, sonhos, acertos, erros etc. Muitas vezes, o narrador é impiedoso. A imagem que o senhor construiu de si mesmo lhe agrada ou lhe assusta? CRISTOVÃO TEZZA - Não quero ser chato, mas não sou eu que me exponho – o narrador é que se expõe. O pai do Felipe, no livro, é uma construção mental com começo, meio e fim. Em duzentas e vinte e duas páginas há a representação concentrada de uma vida. Eu gostei muito da imagem, porque, como escritor, não tenho, não posso ter piedade dos meus personagens. Não é figura de linguagem: de fato, o “ele” do livro é um outro. A força do personagem provém do meu profundo conhecimento dele, mas jamais esqueci de que se tratava de um personagem, o que me deu uma imensa liberdade. Eu jamais conseguiria falar de mim mesmo naqueles termos. O senhor considera que a abordagem de um tema
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delicado [o relacionamento de um pai com um filho com síndrome de down] e presente na vida de muita gente foi preponderante para o sucesso comercial do romance? CRISTOVÃO TEZZA - Seria ótimo que o livro chegasse a ser um grande sucesso comercial! Estou na torcida. Para os padrões brasileiros, é apenas um livro que está indo bem. Não, não acho que o tema por si seja motor de sucesso de um livro. Dependendo da faixa de leitores, ele até pode atrapalhar. Por exemplo, se leio na orelha de um livro que se trata de uma história dos Templários, minha tendência é sair correndo; sobre “O filho eterno”, li alguns blogs com comentários do tipo “deve ser mais um livro sentimental de final edificante, argh!” Um reflexo semelhante, aliás, ao que eu mesmo sentiria se me falassem do tema do livro. Esse foi o meu único medo ao começar a escrever: que o tema simplesmente enterrasse o registro literário do livro. Felizmente isso não aconteceu. Em recente entrevista ao jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, o senhor disse que “O filho eterno” trata-se de um livro de maturidade, que não mente nem faz média”. O senhor acredita que há muito livro que “mente e faz média” somente para angariar leitores? CRISTOVÃO TEZZA - Mea culpa — todos os livros em certa medida “mentem e fazem média”; é o preço de toda representação estética. Não temos acesso às “coisas em si”. Assim, foi uma pequena bravata que escapou do escritor, conversando com o jornalista ao telefone. Eu repeti o que me haviam dito sobre o livro, que a força de “O filho eterno” estava em não mentir e não fazer média com o tema, que já tem um “discurso social” pronto para uso. A idéia de que eu tenha conseguido isso no romance me envaideceu... Sobre livros que “fazem média” só para agradar os leitores, sim, acho que há pilhas deles. São textos tranqüilizantes, que repetem chavões e lugares-comuns — mas não são propriamente textos literários. O senhor é sempre apontado pela crítica como um dos principais autores urbanos da literatura brasileira, que explora a cidade (no caso, Curitiba) e lhe dá vida, transformando-a também em personagem. Que importância tem a cidade em sua obra e o que Curitiba representa como figura literária? CRISTOVÃO TEZZA - A descoberta da cidade colocou minha literatura no chão, o que eu achei ótimo. Com “Trapo”, em 1982, descobri que Curitiba, a cidade concreta, de carne, osso e prédios, poderia fazer parte integrante dos meus livros. Sinto-me à vontade nela. E Curitiba tem algumas peculiaridades muito interessantes. É uma cidade meio soturna, introspectiva, sem carnaval, e com um espírito crítico muito aguçado. Não por acaso Dalton Trevisan e Wilson Martins, por exemplo, são daqui. Gosto da solidão curitibana. A sua obra também é bastante cinematográfica e visual. O senhor gostaria de ver algum de seus livros transposto para o cinema? “O filho eterno” daria um bom filme? CRISTOVÃO TEZZA - Costumo dizer que só escrevo o que vejo. Sim, o cinema tem sido uma influência marcante em tudo que escrevo, ainda que seja mais pelo olhar da câmara, em geral, do que por qualquer cineasta em particular. Gostaria, sim, de ver meus livros nas telas, mas sei a terrível via crucis que é a produção de um filme no Brasil. Já houve uma proposta para filmar “Trapo” (que, aliás, foi um grande sucesso no teatro, com Marcos Winter fazendo o papel principal, com direção do Ariel Coelho, nos anos 1990), mas não foi adiante. “O filho eterno” um bom filme? Acho que sim. Há um grande potencial imagético no livro, eu acho. Acho também que “O fantasma da infância” daria um ótimo filme. Já um livro como “O fotógrafo”, por exemplo, sobre o qual muita gente já me disse que daria um bom filme, eu acho que é apenas um “filme mental”, exatamente para ser lido, não visto.
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Como é o seu processo de criação? Há uma rotina? CRISTOVÃO TEZZA - Como escritor, sou uma espécie de funcionário público de mim mesmo. A situação ideal é ter manhãs livres de segunda a sexta — escrevo três horas por dia, em geral, não mais. O segredo é escrever todo dia, e isso não estou conseguindo há mais de um ano. O engraçado é que escrevi todos os meus livros à mão, exceto dois: “O fantasma da infância”, de 1994, e “O filho eterno”. Agora finalmente me acostumei a escrever literatura no computador. Não que eu seja avesso à tecnologia — pelo contrário, sou viciado em informática e tudo que gira em volta de computadores. Mas na hora da literatura, pegava a caneta. Que poder tem a literatura sobre o indivíduo? Qual a importância da ficção na vida cotidiana das pessoas? CRISTOVÃO TEZZA - A boa literatura é sempre o espaço de uma linguagem não-oficial, de uma resposta imprevista, não solicitada pela sociedade. A literatura tem um poder sutil de transformação; ela trabalha, na nossa cultura, com um poderoso imaginário universalista. Há sempre um horizonte de utopia na ficção, mas uma utopia não esmagada pela racionalidade. A literatura produz um mundo paralelo em que o homem é visto de fora e posto à prova de uma forma mais completa e mais intensa do que em qualquer outro olhar, científico ou religioso. A literatura reinterpreta todos os discursos sociais, virando-os do avesso, e “ao vivo”, digamos assim. Ao mesmo tempo, os documentos mais relevantes e mais profundos de qualquer época da cultura estão sempre na boa literatura. Nenhum olhar do Brasil do final do século dezenove foi mais longe que o olhar de Machado de Assis. Todos os outros estão datados — o dele não. No início da década de oitenta, o senhor estreou na literatura com o livro de contos “A cidade inventada”, para em seguida abandonar o gênero. No entanto, recentemente o senhor publicou o conto “Um dia ruim” (revista Arte & Letra, Curitiba). Como foi este retorno? O senhor pretende dedicar-se novamente ao conto? CRISTOVÃO TEZZA - Voltei a escrever contos por encomenda e um pouco por desejo. E de fato me aconteceram algumas idéias que eram contos, não romances. Na verdade, eu nunca escolhi minha linguagem; é como se essa opção não existisse. Neste ano, o senhor estreou como cronista semanal do jornal Gazeta do Povo. Como está sendo esta experiência? O trabalho como cronista pode influenciar sua produção ficcional? CRISTOVÃO TEZZA - Resisti bastante mas acabei aceitando o trabalho semanal de cronista. Estava muito inseguro. Ao contrário do que parece, a crônica é um gênero muito difícil e que nos dá pouca liberdade de fato. A presença do leitor “externo”, isto é, o cidadão que compra o jornal e vai nos ler, é muito forte. Não se pode falar de tudo e nem do jeito que se quer; a crônica tem a responsabilidade jornalística. Não pos-
so escrever palavrões, descrever cenas de sexo; não posso ser hermético; não posso, enfim, ignorar o leitor. E ignorar o leitor é uma das delícias da literatura propriamente dita. Até a extensão do texto é firmemente controlada. Quando escrevo um romance, a liberdade é total, completa; o leitor sou apenas eu, aquele “duplo” que dá sentido às nossas palavras. Numa crônica, você está em praça pública. Como já se disse do gênero, ser cronista é viver em voz alta. Mas estou gostando sim — é uma relação instantânea com o leitor que a literatura em geral não dá. Não, não acredito que minha atividade de cronista vá afetar de algum modo minha ficção. O que está acontecendo é justamente o contrário — a literatura tem invadido bastante a minha crônica semanal. O senhor sempre se mostra muito simpático à internet. Qual é o impacto da internet sobre a literatura e sobre os leitores? CRISTOVÃO TEZZA - A internet está tendo um impacto fantástico sobre a vida de todo mundo, mudando a nossa noção de tempo e espaço, as relações de produção e a própria vida familiar, o cotidiano das pessoas. Para a literatura, acho que a internet foi extremamente positiva, em primeiro lugar pelo fato simples de devolver a palavra escrita à ribalta, digamos assim. O império da televisão foi um período ágrafo, de pura oralidade; na internet, não há uma só página sem uma palavra escrita. Em outro aspecto importante, a internet multiplicou por mil a circulação dos livros — ela quase que realiza a utopia da biblioteca universal. Ao mesmo tempo, é um espaço inicial de produção de milhares de escritores. Claro, estou falando tudo em tese — a turbulência dessa passagem não é fácil. O tempo ficou mais curto, as pessoas não descansam mais em finais de semana, a praga dos e-mails é um dos horrores da vida moderna, uma aporrinhação abissal e incontrolável, a falta de privacidade como valor social chegou ao paroxismo etc. Muito do que estou falando aqui é apenas saudosismo de um velho senhor, portanto dê-se o desconto. Mas o saldo é bastante positivo. E estamos apenas vivendo uma passagem. Não sei como ela vai se consolidar daqui a duas, três décadas. O mercado editorial brasileiro passa por uma profunda transformação nos últimos anos, principalmente com a chegada de grandes grupos estrangeiros. Além disso, há uma quantidade muito grande de novos autores surgindo. Estes dois fenômenos (para citar apenas dois) têm impactos concretos sobre a qualidade dos leitores? Há um ambiente mais favorável à literatura atualmente, sem esquecer que os autores vivem reclamando que os leitores são “animais em extinção”? CRISTOVÃO TEZZA - Essa é uma área para especialistas — sem dados concretos na mão, estatísticas precisas, ficamos apenas no “chutômetro”. Tenho um dado inicial a pensar: até pouco tempo atrás, um best-seller vendia no máximo cem mil exemplares; hoje o limite são quatrocentos mil. Isto é, o número potencial de leitores ativos multiplicou-se por quatro. O acesso ao livro da população brasileira vem aumentando, muito devagar, é verdade, mas sempre, ano a ano. O que se percebe é que esse “novo leitor” não é mais o leitor típico de antigamente, que vinha de uma classe média urbana letrada e escolarizada, inserido numa tradição literária de pai para filho. É um leitor “novo” mesmo, que está começando o processo civilizador agora, digamos assim. Um exemplar de “A montanha mágica” e outro de “Seja feliz em 10 lições” são mais ou menos equivalentes para esse novato que está diante de uma livraria disposto a gastar, digamos, quarenta reais num livro. Veja-se a lista de best-sellers – não significa que desapareceu ou mesmo diminuiu o leitor de boa literatura; apenas que ele passou a ser uma minoria porque uma nova leva de leitores entrou no mercado, com um sistema de referências muito diferente daquele do leitor “clássico”. Mas não acredito que estamos às portas da barbárie por causa disso. O simples fato de o livro voltar a ser um “valor social” já é altamente positivo. yy
Após o sucesso de “O filho eterno” em que projeto o senhor trabalha? Como será? CRISTOVÃO TEZZA - “O filho eterno” me deu visibilidade no Brasil inteiro, de um ano para cá. Posso dizer que, finalmente, sou um escritor razoavelmente conhecido no país, o que não é pouco. Isso me requisitou muito e eu entrei num embalo de palestras e viagens quase que toda quinzena. Foi muito bom, uma ótima experiência, mas agora estou cansado. E escrevi muito pouco: alguns contos, apenas, grande parte por encomenda de antologias e revistas. Um desses contos começou a crescer por conta própria e se transformou num projeto de romance. Estou querendo me organizar para levar adiante esse livro no ano que vem. E tenho um outro romance iniciado, que quero escrever com calma em 2010, por aí. Preciso desesperadamente de tempo e de ócio. A urgência de tudo está me angustiando.
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xiste uma literatura feminina? Nada obstante as definições conhecidas encerrarem um excesso de subjetividade conceitual, o que torna tal conceito gelatinoso e controverso, sou levado a crer – se fé deposito nas teses, livros e ensaios publicados sobre o tema – na existência do conceito. Assim, crente nos discursos que defendem a existência de tal literatura, tentarei, nesse mar controvertido, responder ao enunciado que abre este parágrafo. Ou melhor, tentarei colocar para mim mesmo ordem conceitual onde encontro excesso de adjetivações. Parto, assim, como pontapé inicial, de duas perguntas: se existe uma literatura que pode ser tida como caracteristicamente feminina (e acredito que os meus pares não estejam apenas sendo retóricos quando afirmam tal verdade), trata-se, então, de um gênero literário? Em caso negativo, a literatura feminina seria uma forma literária, assim como o cômico, o fantástico ou o maravilhoso, por exemplo? Confesso que a resposta à primeira pergunta não é nada animadora. Quando me encaminho às bibliotecas e livrarias sempre encontro, indiferente do sexo que assina a obra, os mesmos gêneros que são catalogados e que são do conhecimento não apenas dos leitores e críticos literários, mas também daqueles que se valem destes para traduzir seus pensamentos: o romance, a novela, o conto, o épico, as formas líricas e dramáticas. Nenhum gênero novo. Desolo-me ainda mais porque nenhum desses gêneros é adequado apenas a um tipo de discurso, seja ele moral, religioso, bélico, político, amoroso, existencial ou social; muito menos a um tipo de escrita, seja ela masculina ou feminina. Os gêneros literários, para o meu desapontamento, não escolhem este ou aquele gênero humano para que possam ser expressos adequadamente, é completamente democrático para Adão e para Eva. Mesmo quando um escritor/escritora re-oxigena um determinado gênero (como Joyce fez com o romance, Mallarmé com a poesia, e Beckett com o teatro) isso não implica que tal recurso formal passa então a ser de uso privilegiado somente de mulheres ou de homens, de brancos ou de negros, de heteros ou de gays, de ricos ou de pobres, de jovens ou de velhos. Se o monólogo interior foi criado por Édouard Dujardin, em “Os loureiros estão cortados” (1887), nem por isso Joyce, Virgínia Woolf e Clarice Lispector se furtaram de empregar essa nova técnica narrativa. Gêneros e técnicas literárias ou narrativas não possuem sexo, credo, cor, classe social, nacionalidade, idade ou orientação sexual. Isso eu sempre desconfiei, pois sou um leitor razoavelmente instruído, mas também sou pio das verdades que me dizem o inverso, apesar de manter um pé atrás sobre as veleidades apregoadas. É, lamentavelmente não existe um gênero literário que só sirva a um dos sexos. Mas eu não desisto. Respiro fundo e sigo, pois não é pelo fato da literatura feminina não ser um gênero que ela não deve possuir características específicas. Se assim
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fosse, como tantos estudiosos da ciência da literatura iam defender algo inexistente? Afinal, tudo que foi dito em sua defesa foi apenas puro diletantismo intelectual? Não creio. Professores e pesquisadores galgam suas cátedras exatamente pela importância do que dizem e publicam. Não vou desistir, pois não sendo a literatura feminina um gênero literário seria, então, uma forma literária? Acredito que aqui iniciamos o caminho da resposta. Como vício de profissão (para o bem ou para o mal sou professor de literatura), preciso explicar ao leitor, pois assim evito ruídos, que as formas literárias se caracterizam por determinadas regras ou recursos retóricos, de imagens, de sintaxe, de sistemas estróficos, ritmo, rima, assonâncias, estrutura narrativa etc que dado escritor utiliza para compor um texto narrativo, poético ou dramático. Colocado os pontos nos is, penso aqui com os meus botões: se lemos uma obra cômica, um texto fantástico ou uma obra do realismo maravilhoso os traços formais que encontramos nessas obras são os mesmos que acusamos em textos similares? Novamente constato que também não há procedimentos formais específicos que possamos detectar nos textos literários produzidos por mulheres, indiferente do gênero literário escolhido. Mas a regra não só é valida para as escritoras, também serve para os escritores. Ainda bem. Pois indiferente de quem inventou uma dada forma literária, ela pode ser empregada por ambos os sexos, além de poder ser prescrevido em qualquer tempo, por qualquer escola literária ou corrente de vanguarda. Um exemplo é o Fantástico: formalmente todos os textos usam recursos semelhantes, como as elipses ou as interpolações narrativas, o recurso da figuratividade e da surpresa. O mesmo se dando com as obras destinadas ao público infanto-juvenil. Há nestas certos procedimentos narrativos, herdados da narrativa oral, particularmente das chamadas formas simples – “era uma vez”, “foram felizes para sempre” que se repetem como fórmulas de sucesso, isso tanto nos livros de Monteiro Lobato quanto nos de Ruth de Souza. Não queria apelar, mas será que o caminho para chegarmos ao conceito de literatura feminina seria o campo temático? Não levanto tal hipótese em vão, pois não fora esse um dos critérios - ao lado da língua e da nacionalidade do escritor - para se definir as literaturas nacionais? Neste caso, mudando o que deve ser mudado, existem temáticas que são específicas da literatura feminina? Viro e reviro os livros de literatura e constato que os temas abordados são vastos e terminam por ser explorados de maneira eqüitativa por ambos os sexos. Se o critério temático, ao longo dos séculos dezenove e vinte, revelouse fugidio para se definir uma dada literatura nacional (como ver “cor local” em Kafka, Dino Buzzati e Jorge Luís Borges?), apesar de todos os esforços dos críticos em urdir ideologicamente a literatura com o conceito de Estado-nação, o que dizer de algo ainda mais fugidio, a exemplo das experiências radicalmente individualizantes de homens e mulheres nas sociedades modernas? Indivi-
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dualidades que, indiferente do sexo, passam por posições e práticas ideológicas, sócio-econômicas, profissionais e culturais diversas. Como conciliar temáticas e concepções de mundo tão distintas como as perseguidas por uma Adélia Prado católica e dona-de-casa e uma militante das causas sociais como Marilene Felinto? Entre uma escritora católica como Marie Noël e a ativista política Susan Sontag? São escritoras que podem até versar sobre o mesmo tema, mas a partir de posições ideologicamente diversas. Logo, são discursos que se estranham, repelemse. Gilberto Freyre dizia que mesmo quando há humour no diálogo entre duas pessoas, “pode haver divergência até profunda de idéias”. Parto para outro ponto de vista: se não existem temáticas que são específicas da literatura feminina, há temas que são abordados de uma maneira específica quando são tratados por mulheres? De certa forma já respondemos esta pergunta no parágrafo anterior. No entanto, Virgínia Woolf afirmava que sim. E ninguém melhor para nos apoiarmos do que a escritora inglesa. Pois bem, em ensaio de 1929 – “Mulher e ficção” – a autora de “Orlando” afirmava que “a forma da frase masculina não lhe é adequada: é demasiado desgarrada, demasiado pesada, demasiado pomposa para uso das mulheres”. Woolf não se atém ao tema em si, e sim no como abordá-lo – no caso, a própria forma da “frase masculina”. Noto, porém, que Woolf não emprega a palavra “forma” na acepção que já discorremos acima, mas numa acepção que está mais próxima da de “estilo”. Estilo que seria característico dos homens quando escrevem, ou seja, na maneira como se expressam, na freqüência com que empregam certos recursos lingüísticos, indiferente da escola literária ou do tempo histórico. Como discordar de tal “estalo de Vieira”? Eis a definição: tudo se resume ao modo de narrar, pois é por esse modo específico que a subjetividade feminina e/ou masculina é expressa. Os gêneros são os mesmos, as formas e os temas literários também, os estilos – estes sim – entre homens e mulheres é que são diversos. Vejamos: se “a forma da frase masculina não lhe é adequada: é demasiado desgarrada, demasiado pesada, demasiado pomposa para uso das mulheres”, então o estilo das frases de todos os escritores são uniformes? Isto é, todos os homens se expressam da mesma maneira? Por subtração, todas as mulheres também se expressariam de um mesmo modo? Homens e mulheres são unidades estanques, uniformes, a-históricos. Sendo, então, unidades uniformes, é indiferente a individualidade entre um Ser e outro. Neste caso, Homero escrevia tal qual Shakespeare? O estilo barroco de Cervantes é tão desgarrado, pesado e pomposo quanto o de Ítalo Calvino? Diante de tanta dúvida, penso em dois escritores simbolistas brasileiros (para ficarmos em um dado tempo histórico e numa mesma escola literária). Seleciono dois excertos de versos. O primeiro: “Todas as cousas têm o aspecto vago e mudo/ Como se as envolvesse
uma bruma de incenso;/ No alto, uma nuvem, só, num nastro largo e extenso,/ Precinta do céu calmo a cariz de veludo”. Agora o segundo: “Os jasmineiros estão floridos/ Pelas devesas que vais trilhar./ Invejam a alvura dos teus vestidos.../ Os jasmineiros estão floridos,/ Sabendo ao certo que vais passar...”. O leitor deve ter percebido que o primeiro verso parece mais hermético, ou tortuoso, do que o segundo. É que no primeiro verso encontramos três palavras pouco usuais — “nastro”, “precinta”, “cariz” —, enquanto no segundo apenas a palavra “devesas”. O emprego de tais palavras torna o primeiro verso mais “pesado” e “pomposo” do que o segundo. Pois é: os versos pesados e pomposos são de Francisca Júlia, intitulam-se “Crepúsculo”; o outro — “Versos campesinos” – é de Arcangelus de Guimarães. Poderíamos escrever um outro texto só comparando obras literárias, mas não precisamos abusar do latim para descobrirmos o que toda a filosofia e a antropologia do século vinte já discorreu: homens e mulheres não são unidades estanques, uniformes, e a-históricos, logo, por dedução, não podem encerrar um só estilo de narrar, de compor versos ou de escrever diálogos dramáticos. Ser desgarrado, demasiado pesado e pomposo não é um traço uniforme dos homens, nem o inverso são as obras literárias produzidas pelas mulheres. Os versos simplórios de Marceline Desbordes-Valmore pouco ou nada têm de semelhantes com os de Marina Tsvetáieva, Ana Akhmátova ou a prosa densa de Clarice Lispector. Os escritores/escritoras, os usos diversos das formas literárias e os estilos individuais são mais complexos do que definições retóricas. Infelizmente, ao longo dessa selva conceitualmente escura, encontramos leituras e conceitos mal digeridos e, principalmente, o modo como os estudos literários são conduzidos na contemporaneidade. Voltamos ao modelo da crítica oitocentista (“fora do texto, dentro da vida”), i.e., trocamos o cientificismo pelos novos conceitos das Ciências Sociais e Humanas, e jogamos pela janela tudo o que foi arregimentado pela teoria literária ao longo do século vinte. Esquecemos que diverso de Homero, onde o divino, o sensível e o mundo faziam parte de um todo, escritores como Shakespeare e Cervantes inventaram a “produtividade do espírito”, o Eu como a “única substância verdadeira” (Georg Lukács). A totalidade ontológica entre o Eu e o Outro dissolveu-se. É dessa triste realidade que trata toda a literatura moderna; realidade verticalizada ainda mais pela geração romântica e por todos os discursos estéticos do século vinte. Se a literatura que nasce com Shakespeare e Cervantes “busca descobrir e construir, pela forma, a totalidade oculta da vida”, como notou Lukács, como falar de literatura feminina ou de qualquer outro gênero, se cada autor constrói seu discurso a partir de si e não mais como voz de uma dada comunidade? Eis uma complexidade formal que os estudos de gênero não respondem, e não respondendo se peryy dem em adjetivações e conceitos gelatinosos.
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Série Sobreposições/Autor: Eduardo Queiroga
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Por debaixo da minha pele Fotógrafo revela as várias camadas urbanas que ele projeta na série de fotos “Sobreposições” Eduardo Queiroga cidade se constrói e evolui através de camadas. Sobreposições resultantes de ações – do homem ou não – ao longo do tempo. A cidade é como um palimpsesto, onde é possível perceber essas superposições. Como os pergaminhos antigos que eram raspados ou lavados para serem reaproveitados. Desse modo, eles eram reescritos várias vezes ao longo de sua existência. Essas raspagens, no entanto, não eram suficientes para apagar as camadas anteriores, fazendo com que, por baixo de escritos mais recentes, se pudessem ver marcas das suas utilizações mais antigas. Este é o sentido do palimpsesto: o escrito atual está lá, mas também estão as outras marcas. Textos inteiros puderam ser lidos através de caligrafias posteriores. O presente e o passado estão fixados, presos numa mesma superfície ou imagem. Não é enxergar o passado ou distinguir tempos diferentes, apenas. A imagem traz o acúmulo desses vários instantes. Como um inventário de tempos percorridos. Na série de fotografias intitulada “Sobreposições”, trabalho que venho desenvolvendo desde 2007, o fio condutor passa por essas várias camadas do tempo, superpostas, acumuladas numa mesma fachada-imagem. Lá está a construção original, o casario que remete ao início da cidade, à sua fundação. Estão também a reforma, o reboco novo, o abandono, o grafite contemporâneo, o musgo, a grade enferrujada, o poste, os fios, camadas, camadas e camadas do tempo. O olhar atento permite que se avance – ou retroceda - nos vários tempos daquela paisagem. Em cada momento, uma utilização e utilidade deixaram sua marca. Por vezes, nenhuma. Ocupações. Os objetivos e a tecnologia disponível são determinantes para a construção do espaço. O Bairro do Recife – Recife Antigo para alguns – é o ponto de partida para o surgimento da hoje capital pernambucana. É também o limite geográfico deste ensaio. Uma ilha. Foi vila no tempo dos holandeses, porto, bairro de prostituição e boemia romântica, passou por revitalização – conceito difícil esse - com fachadas pintadas em cores fortes. Hoje é pólo tecnológico, tem shopping center e centros culturais, num contraste que inclui pobreza e abandono, de prédios e homens. Essas sucessivas ocupações podem ser vistas nas fachadas dos casarios. Uma justaposição das várias ações do homem e desenvolvimento do espaço urbano. Aqui a cidade é vista como uma simbologia – complexa – da existência humana. Cada esquina, cada rua do Recife Antigo traz em suas construções os registros dessas várias ocupações e contradições. Riqueza e miséria, avanço e atraso, existências revitalizadas e reformadas. É inevitável a relação dessas imagens-fachadas com a fotografia, na sua característica fundamental de corte
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temporal. Fotografar essas fachadas é quase um movimento de looping, de retorno, em sua essência. É falar não apenas da cidade, mas também da fotografia em si. O instante congelado – ou vários instantes. São pegadas na areia. Impressões da passagem do homem. Um instante que pode ser bem mais duradouro que uma fração de segundo – como geralmente é lembrado o ato fotográfico, que traz fundamentalmente um acúmulo de muitos instantes. De uma continuidade, ou um instante esticado e possuidor de vários tempos. Olhar para esses casarios e enxergar apenas o presente – ou apenas o passado, como querem uns – seria como alcançar a objetividade utópica de uma fotografia: um espelho da realidade, sem tirar nem pôr. Essas imagens trazem tantas coisas mais, como qualquer construção, que têm nos espectadores-leitores seus também autores. Afinal, a leitura que cada obra tem está diretamente vinculada à experiência de quem a lê. A fotografia abre mais caminhos do que dá respostas diretas. Sua capacidade está mais em evocar do que contar, de sugerir em vez de explicar. É feita de várias peles superpostas. Umas mais transparentes. Umas mais espessas. O fotógrafo, enquanto autor, imprime sua marca, seu arranhão, dá uma direção para a interpretação, intuitivamente ou conscientemente. Mas a construção final do sentido se dá pelo leitor a partir de sua bagagem, seus objetivos, seu estado de espírito. A objetividade não existe. A realidade é diferente para cada um que a contempla. As camadas estão lá, mas podem ser ou não percebidas. O espectador encontra nas imagens – estou falando da série “Sobreposições” ou das fachadas nas ruas do bairro – a base que remonta ao início da cidade: o prédio em si, com sua forma/estilo de uma época; os vestígios dos tempos intermediários: reformas, símbolos de um tempo ou de um uso – ou mesmo do desuso; e os traços atuais, contemporâneos: o grafite, o fiteiro, a demão de tinta, a sombra do poste. Aliás, nada mais atual que a sombra, projeção do agora, que se desfaz de um momento para o outro. Embora as primeiras edificações construídas na ilha tenham sido demolidas para a construção de uma nova cidade, muito do que vemos hoje nos remete para traçados de ruas originais e até aproveitamento de material, não perdendo assim essa referência com o início da cidade. Para não deixar de citar Italo Calvino, “a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas (...), cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras”. São as dobras do tempo se justapondo, numa memória onde os vários momentos se confundem, fixados nas fachadas-imagens. yy
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