Pernambuco 36

Page 1

jan 09 fev

Suplemento Cultural do Diรกrio Oficial do Estado

sorria

pernambuco36.indd 1

6/1/2009 16:49:07


I néditos

Carolina Pires EDITORIAL Uma publicação da

Companhia Editora de Pernambuco - CEPE

Circulação mensal integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco

2

pernambuco36.indd 2

Durante o processo de organizar/editar/montar essa edição, uma frase não saía da nossa cabeça: a mudança faz você dançar. Tradução (livre) do título de uma música de Donald Byrd, “Change (makes you wanna hustle)”, que o nosso designer Flávio Pessoa não parava de repetir enquanto arquitetava um plano para ilustrar o caderno. Coisas de dezembro... A ideia inicial era usar variações dessas palavras para ilustrar o primeiro Pernambuco do ano, o que acabou não acontecendo. Ainda assim, o suplemento foi produzido com a perspectiva da mudança: nenhuma imagem nas páginas internas, apenas os títulos servindo como ilustração. A exceção é o Inéditos, que ficou nas mãos de Carolina Pires, que tem encontrado formas inusitadas de flagrar casamentos. A imagem que você confere logo acima revela, por si só, o talento da moça. Nossa preocupação, a cada mês, é trazer algo diferente para o leitor, sem medo de experimentar. E quer momento melhor do que

janeiro, quando todo mundo parece que está ensaiando algum tipo de mudança? Com a iminente posse de Barack Obama, nossa ideia foi fazer um especial sobre o novo presidente dos Estados Unidos, figura que polariza a esperança e os receios que o mundo tem, diante da atual crise econômica. A proposta partiu da jornalista Caroline Almeida, que polemizou a ideia de igualdade, o todos-juntos-agora, que marcou a vitória do democrata. Durante as eleições, era comum a gente escutar que negros, brancos, hispânicos, asiáticos, índios, gays e heteros estavam unidos por uma só causa. Mas seria essa união algo concreto? “Como a história bem ensina, algumas máscaras caem e disfarces só servem enquanto têm um objetivo claro”, questionou Carol. O especial conta ainda com um artigo de Liv Sovik, professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialista na obra de Stuart Hall. Na última edição da Fliporto, a professora promoveu um excelente debate sobre a ideologia de

GOVERNADOR DO ESTADO DE PERNAMBUCO Eduardo Henrique Accioly Campos

PRESIDÊNCIA Leda Alves

DEPARTAMENTO DE SUPLEMENTOS Raimundo Carrero

Vice-GOVERNADOR DO ESTADO DE PERNAMBUCO João Lyra Neto

DIRETORIA ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA Bráulio Mendonça Meneses

SUPERINTENDÊNCIA DE CRIAÇÃO Luiz Arrais

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Luiz Ricardo Leite de Castro Leitão

DIRETORIA DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo CONSELHO EDITORIAL Mário Hélio: Presidente Cristhiane Cordeiro José Luiz Mota Menezes Luís Augusto Reis Luzilá Gonçalves

SUPERVISÃO DE REDAÇÃO Schneider Carpegianni REDAÇÃO Mariza Pontes Gilson Oliveira (revisão)

cores que marcou a vitória de Obama. A nosso pedido, ela repete a reflexão. Ainda colaborando com o especial, o cientista político Túlio Velho Barreto e o escritor Fernando Monteiro, que ironizou com o jeitão dos Estados Unidos em divulgar para o mundo seu modo de pensar. O editor do jornal literário Rascunho, Rogério Pereira, volta a colaborar com uma entrevista com Ignácio de Loyola Brandão, que levou o Jabuti de Livro do Ano pelo infantil “O menino que vendia palavras”. A problemática da literatura infantil dá o tom no Saber + com entrevistas com gente que sabe tudo do assunto, Ana Maria Machado e Ronaldo Correia de Brito. A gente aproveitou o momento para aumentar o número de inéditos em ficção, estreitando a perspectiva do Pernambuco de divulgar quem está produzindo novidade, seja em texto, imagens ou ideias. É isso. Boa leitura e excelente Ano Novo, Schneider Carpeggiani

ARTE Flávio Pessoa (edição) DIAGRAMAÇÃO Militão Marques SUPERVISÃO DE DIAGRAMAÇÃO E ILUSTRAÇÃO Joselma Firmino DEPARTAMENTO DE PRODUÇÃO GRÁFICA Júlio Gonçalves

SUPERVISÃO DE IMPRESSÃO Eliseu Souza SETOR DE PRÉ-IMPRESSÃO Roberto Bandeira

CONTATOS COM A REDAÇÃO 3183.2786/3183.2787 redacao@suplementope.com.br ATENDIMENTO AO ASSINANTE 08000 81 1201 3183.2750 cepecom@cepe.com.br Distribuído exclusivamente pela Companhia Editora de Pernambuco - CEPE Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro. CEP 50100-140 Fone: (81) 3183.2700 FAX: (81) 3183.2741

Pernambuco_Jan 09

6/1/2009 16:49:17


T ransição

Com a entrada de Renato L na Secretaria de Cultura do Recife, a polarização entre mangue beat e armorial volta a virar discussão

EM NOME DO PAI

Carolina Leão

Recife passa por um momento sui generis em sua história cultural. Mais de trinta anos após a idealização do Armorial, movimento de contornos estéticos claramente baseados na cultura rural, o conceito de regionalismo criado por Ariano Suassuna retorna em 2007, com a nomeação do escritor ao cargo de secretário de cultura do estado. Entre os direcionamentos da nova gestão, a interiorização da cultura e a descentralização da Região Metropolitana do Recife. No outro lado do ringue, a mesma pasta, no setor municipal, passa a ser ocupada em 2009 pelo jornalista Renato L, um dos ideólogos do movimento mangue beat, fenômeno pop urbano dos anos noventa que agora também polariza com seu antagonista na esfera pública. Outrora arqui-inimigos, armorial e mangue ultrapassaram o paradigma estético para serem contemplados como cartilha ideológica. É claro que, embora ambos estejam neutralizados no poder, há diferenças entre os dois momentos. Ariano pertence a um grupo de artistas que se consolida no campo cultural através de instituições e espaços de produção erudita como as universidades e as academias literárias. O armorial surge em meio à estabilização de uma indústria cultural brasileira e sua missão fora a de recuperar a simbologia da cultura popular nordestina como ideal. O mangue beat é a estética dos festivais, dos mercados culturais, dos agentes anônimos, sem o sobrenome tão peculiar à tradição nordestina. A política da qual Ariano fez parte com Hermilo Borba Filho nos anos sessenta está relacionada à esquerda regionalista e seus intelectuais e políticos de formação acadêmica, cujo discurso será pontuado pela ligação com os movimentos populares do campo e, em menor proporção, com uma incipiente força sindical. Essa esquerda não

adotou as ideias sociais liberais e a relação com os movimentos feministas, gay ou de grupos culturais minoritários como os afrobrasileiros – do mesmo multiculturalismo que virou atualmente direcionamento e conceito da cultura municipal. Nos anos noventa, a entrada do mangue no circuito pop criou uma nova agenda política que apresentou à cidade um novo código simbólico de cultura e sociabilidade através dos signos utilizados como identificação (caranguejos, elementos visuais dos folguedos populares, parabólica na lama). A relação que o mangue beat manteve com os seus antecessores estéticos expôs também a noção que a cultura popular assumiu diante das configurações ideológicas resultantes de um processo de resignificação do seu conceito e de sua utilização diante da lógica de mercado e consumo. Mas uma volta no tempo nos mostra que fora pela sua novidade pop que o mangue beat retomou suas autoridades mais tradicionais à arena artística. Fora através do novo que o pas-

sado acabou, afinal, voltando à tona com seus fantasmas e satisfações. Consumido como modernidade, o mangue se exauriu na lógica da indústria cultural, pautada por efemérides e esquecimento, mas seu processo de legitimação institucional aponta para o caminho do “envelhecimento” estético em virtude de sua ascendência ao posto de autoridade. O oficial é sempre velho e ambíguo porque assim é toda autoridade. A dialética da distinção (a institucionalização) ao mesmo tempo em que conferiu status político ao mangue beat, o transferiu para o território da legitimação cuja existência e desenvolvimento o põe imediatamente em contraposição aos “novos” artistas e produtores que, para se diferenciar do oficial, vão criar novos discursos de oposição estética. O primeiro grande exemplo dessa conexão entre o conceito de cultura mangue beat e o Estado foi a inclusão de uma versão mangue do “Hino de Pernambuco”, com a gravação de um CD promocional produzido pelo Governo do Estado, durante a gestão do governador Jarbas Vasconcelos (PMDB), e lançado no carnaval de 2002. Antes disso, a morte de Chico Science colaborou para essa rápida legitimação. A morte no auge da carreira retira do artista o seu envelhecimento natural, e contraditoriamente no âmbito oficial, o fossiliza em sua juventude e vigor. A popularidade do mangue beat acabou reservando à mitificação do artista um posto no panteão das nobrezas institucionalizáveis pelos feitos heroicos/políticos/estéticos em prol da identidade cultural local. As escolas, museus, instituições públicas e até mesmo o espaço urbano, com monumentos e homenagens em logradouros, são os locais onde o mangue beat vem penetrando desde o seu surgimento.

A crença que sustentou o mangue beat fora a diversidade cultural da cidade, que institucionalmente absorveu esse discurso como crença no campo político. Este revela a associação da nova esquerda à estética mangue quando a sua política cultural deseja se diferenciar da tradicional (ligada, enfim, aos setores de direita que sempre se alternaram na administração pública no Estado) articulando-se aos agentes, urbanos, contemporâneos, antenados, que se distanciam da ortodoxia política. Fred 04, porta-voz do movimento, sempre negou o rótulo de institucionalizado. A razão para esta “descrença” na legitimação explica-se pelos próprios mecanismos de identificação do pop. Sendo democrático, em sua influência punk, e portanto anárquico, o mangue beat não deveria se colocar como uma dominante cultural. A imposição, no entanto, é uma construção social. Ela é sorrateira. E seu mecanismo de atuação é justamente o poder simbólico que é ignorado em sua arbitrariedade. Já a palavra institucionalização é pesada para qual-quer jovem identificado com um movimento vanguardista. O problema é que o mangue beat envelheceu, esteticamente, em sua absorção pelo discurso político porque percorreu as instâncias públicas se estabelecendo como influência simbólica determinante. E isso se reflete nos movimentos estéticos locais numa dinâmica de oposição/transgressão saudável para o mercado de bens simbólicos recifense. Mais uma vez, porém, voltamos, se a analogia psicanalítica nos permite, ao nome do pai e à velha problemática da negação da autoridade paterna. Em busca de sua própria condição de sujeito único e soberano de sua personalidade, o que faz o filho senão reafirmar a hierarquia nesse confronto de personas?

Pernambuco_Jan 09

pernambuco36.indd 3

6/1/2009 16:49:18


E ntrevista / Ignácio de Loyola Brandão

Rogério Pereira

Em outubro, o experiente escritor Ignácio de Loyola Brandão, 72 anos, levou um baita susto ao ganhar o Prêmio Jabuti na categoria “Melhor livro do ano de ficção” por “O menino que vendia palavras” (Editora Objetiva). Ao receber o prêmio, disse: “Eu tinha certeza de que este prêmio era do Cristovão Tezza”. Na premiação, o poeta Ivan Junqueira teve de cutucar Loyola: “É você, vai lá”. Nesta entrevista ao Pernambuco, Loyola fala da grande surpresa, principalmente porque “O filho eterno”, de Tezza, era o “favorito” para levar o Jabuti. Além disso, “O menino...” ficou em segundo lugar na categoria “Infantil”, atrás de “Sei por ouvir dizer”, de Bartolomeu Campos de Queirós. O autor também comenta os preconceitos que rondam a literatura infanto-juvenil, a sua longa produção iniciada na década de 1960, os caminhos que podem levar as crianças aos livros, a sua militância pela leitura, entre outros assuntos.

“ vai lá é você,

Ao receber o Prêmio Jabuti de livro do ano por “O menino que vendia palavras”, o senhor se mostrou muito surpreso (“Eu tinha certeza de que este prêmio era do Cristovão Tezza”, disse). Por que a surpresa? Devido ao sucesso de “O filho eterno”, do Tezza, ou porque o seu livro é infanto-juvenil? IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO: Surpresa por duas razões. Eu sabia que o livro do Tezza era forte (ele é muito bom) concorrente e tinha vindo de quatro premiações importantes: Portugal Telecom, APCA, revista Bravo! e o próprio Jabuti para romance. Um rolo compressor. Toda a imprensa, principalmente a Folha de S. Paulo, vinha insistindo no Tezza e afirmando: esta noite ele fecha o circuito. Com meu livro, eu tinha ganhado o segundo lugar na categoria infantil, tendo perdido para um concorrente de peso, o Bartolomeu Campos de Queirós (com o livro “Sei por ouvir dizer”). Além de tudo, o meu livro era infantil. O que poderia aspirar? Verdade que eu vinha de uma premiação boa, ganhei o Melhor Infantil do Ano da Fundação Biblioteca Nacional, num júri presidido por Laura Sandroni, cuja severidade e conhecimento do segmento é conhecido. E a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil tinha dado ao meu livro o diploma de “Altamente recomendável”. Estava sossegadinho com meu Jabuti, tanto que me assustei, nem ouvi direito, foi preciso o Ivan Junqueira me cutucar: “É você, vai lá”. O que o pessoal da Câmara me contou depois é que na apuração dos votos, no meio da contagem Tezza e eu estávamos empatados. Depois, “O menino” disparou sem parar. Claro que um infantil, que muitos consideram subgênero (assim como consideram — ou consideravam — o policial), vencer um blockbuster foi inesperado. Mas, alegria, alegria. E você precisava ver como a plateia reagiu, aplaudindo em pé. O senhor concorda com a reclamação de muitos autores de que a literatura infanto-juvenil sofre preconceito tanto na imprensa quanto entre escritores de “literatura adulta”? LOYOLA: Existe, muitas vezes, entre autores adultos, o ressentimento de alguns porque há autores infantis e infanto-juvenis que vendem milhares e milhares de exemplares, são adotados em escolas, adaptados para televisão, tornam-se populares. Verdade que há livros “infantis” detestáveis, oportunistas. São os livros escritos de encomenda sobre determinado tema que as escolas querem (droga, marginalidade, sexo etc), mas esta é outra discussão. Nossa classe não tem a união e a solidariedade que se apregoa. Quanto à mídia, concordo que há uma certa reserva, muitos consideram que literatura séria é a adulta, e a infantil é peça descartável. Azar deles. No pódio há gente como Tatiana Belinky, Ruth Rocha, Lygia Bojunga, Pedro Bandeira etc. Lembre-se de que Ruth Rocha acabou de ser eleita para a Academia Paulista de Letras. Quais as fronteiras entre a literatura infanto-juvenil e a adulta? Ou não há fronteiras? Estes rótu-

pernambuco36.indd 4

los servem apenas para o mercado, pouco importando aos leitores? LOYOLA: Pergunta a ser respondida por teóricos, ensaístas. Nós, que fazemos literatura, escrevemos. Lembro-me que, com doze anos, eu lia Jorge Amado na Biblioteca Municipal de Araraquara. Jorge é infantojuvenil? Há livros e livros. Como determinar fronteiras? Os contos de fadas com suas perversidades (madrastas judiando de enteadas, Branca de Neve sendo levada para ser morta, João e Maria soltos na floresta para se perderem etc.) eram infantis? Não, eram contos populares que se tornaram infantis. O pó de Pirlimpimpim do Lobato não seria uma droga? Cocaína? LSD? O que você escrever tornando a fantasia verdadeira, fazendo o impossível possível; tudo o que ronda o delírio, você sendo verdadeiro, sincero, vai cair no gosto da criança. Ela não tem limites na mente. Quais as suas preocupações ao escrever um livro que tem, em sua maioria, leitores em formação, como pode ser o caso de “O menino que vendia palavras”? LOYOLA: Minha preocupação é narrar, contar histórias, transformar em ficção o que me captura, de memórias de infância a situações à minha volta. Escrever me liberta de certas lembranças, obsessões. Conto do jeito que eu gostaria de ouvir, de forma direta, sem rodeios. Assim como uma tia-avó que eu tive, a Margarida, me contava, contava aos sobrinhos-neto. Ela era paralítica mas vivia com mil reinos na cabeça. Ela era clara, assim como procuro ser claro, objetivo. Invento expressões, de vez em quando, assim como palavrinhas engraçadas que ouvi na rua. Ir aos fatos sem rodeios, deixar uma ponta de mistério, deixar enigmas que despertem a curiosidade, provocar. Quero que, ao ler, eles sintam que é possível escrever desse jeito. Acho importante sempre deixar uma linha de sombra no texto. “O menino que vendia palavras” é uma homenagem à literatura, à leitura, aos livros. Em determinado momento, lê-se: “Quanto mais palavras você conhece e usa, mais fácil fica a vida”. Aos bons leitores, isso parece algo óbvio. No entanto, como convencer mais pessoas a percorrer a deliciosa aventura que é a literatura? Quais os melhores caminhos para seduzir mais leitores, para que “suas vidas fiquem mais fáceis”? LOYOLA: Já respondi esta pergunta em 1970, em 1980, em 1990, em 2000. Porque ela tem sido feita e precisa ser feita, refeita. O que respondi, respondo de novo. Respondemos todos, nós escritores. Há congressos para isso, simpósios, seminários. Que atitudes foram tomadas? O que as câmaras de livros, os ministérios, as secretarias de educação e cultura fizeram? Nada! Nada de nada, de nada! Não é só comprar livros e distribuir gratuitamente. É formar o hábito de leitura. Há movimentos isolados aqui e ali. No Ceará me comovi com universitários que, levando uma estante de livros às costas, vão de bicicleta à periferia das cidades, aos sítios, fazendas, levando livros e lendo com as pes-

Pernambuco_Jan 09

6/1/2009 16:49:18


soas, emprestando livros. Eu gostaria de saber o que fazer a mais, que atitudes tomar. Tudo começa com os pais, continua com os professores. Mas olhe a escola de hoje! Analise os currículos. É tudo tecnicismo, modernidade. Não há um olhar para as humanas. Olhe os professores mal pagos, mal formados, tendo de dar oitocentas aulas por mês, correndo de uma escola para outra, sem tempo sequer de ler, preparar aula, entrar em classe relaxado e disposto a contar uma história, a incentivar a criatividade. “O menino...” é dedicado a quatro professoras do primeiro grau. Que importância elas tiveram em sua vida como leitor? O senhor acredita que a escola atual consegue despertar nos estudantes a paixão pelos livros, um objeto “tão conservador” em um tempo dominado pelas tecnologias (internet, celular, MP3 etc.)? LOYOLA: No meu tempo de primário (primeiro grau) havia aulas diárias de português e uma redação semanal obrigatória. Lourdes Prada dava um tema. Inventem uma história sobre isto. Outras vezes, mostrava uma gravura: inventem em cima disto. Havia ainda um momento em que ela dizia: vamos ler um livro e vocês vão recontar a história. Tanto ela quanto Ruth Segnini insistiam no vocabulário, na sinonímia (daí nasceu “O menino...”). Lourdes nos dizia: Um final deve ser surpreendente, deve espantar o leitor. Nunca mais esqueci isso. Ruth: Cuidado com o lhe, ele mela as frases, estraga a sonoridade. Coisas que ditas a uma criança ficam. Elas davam listas de livros, emprestavam livros, a gente buscava pelas casas, pelos parentes, meu pai comprava. Daysi Albertini (ainda viva, morando em Rio Claro, SP) foi quem me deu “Robinson Crusoe” e “Pinóquio” para ler. Tive uma parenta, Maria do Carmo, que tinha toda a coleção da Biblioteca Infantil Melhoramentos e me emprestava um a um. Ela está citada no meu romance “Zero”, é dela a bunda branca que o personagem José, quando criança, vê na luz furtiva de um corredor; foi num domingo à noite, depois da reza na Igreja de Santa Cruz, quando os adultos e o padre conversavam na sala e fiquei no escuro, porque sabia que ela ia para o banheiro. Acredito em outra utopia: no fetiche do livro. No pegar o livro e carregá-lo, abri-lo, virar as páginas, sentir o cheiro. Será que sou romântico, superado? Gostaria que o senhor comentasse como surgiu o seu amor pela literatura. Que importância o seu pai teve em sua vida como leitor? LOYOLA: Com meu pai, que lia muito. Com os gibis. Com o cinema e os filmes seriados. Com uma vizinha, a Odete Malkomes, que me emprestava “O tesouro da juventude”. Com minhas professoras. Por causa de minha solidão e de minha introversão. Com a leitura das revistas “Tico-Tico” e “Pequeno missionário”. Com as idas diárias à biblioteca Mário de Andrade em Araraquara desde os doze anos. Vendo meu pai escrevendo e lendo textos em festas da igreja do Carmo. Ele era aplaudido e comentado. Escrever e ser aplaudido. Falavam do meu pai porque ele escrevia. Será que nasceu ali?

A literatura já lhe causou alguma grande tristeza ou frustração? LOYOLA: Tristeza senti ao ler “Uma tragédia americana”, de Theodore Dreiser. Ou “Luz em agosto”, de Faulkner. E “Balada do café triste”, de Carson McCullers? Tristeza pelos personagens, pelo tema. E por pensar que eu jamais atingiria este nível. Terrível. Tristeza, senti quando meu livro “Dentes ao sol” foi completamente esquecido por décadas. Tristeza, senti quando “Zero” foi proibido pela censura. Frustração: não conseguir escrever um grande romance, tipo “O tempo e o vento”, sobre minha cidade São Paulo. No poema “Com licença poética”, Adélia Prado escreve: “Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina”. O senhor também encara a literatura como uma sina, uma boa sina a ser encarada? LOYOLA: Um destino ao qual estou acorrentado. É isso. Ele me puxa, é a danação que me carrega, diria Faulkner A sua obra compõe-se de romances, contos, novelas, crônicas, teatro, infanto-juvenil e biografias. Em qual destes gêneros o senhor se sente mais à vontade, qual lhe dá mais prazer como escritor? LOYOLA: Cada momento é o momento de uma coisa. Mas adoro ser cronista, recortar a realidade, o cotidiano de São Paulo e transformá-lo em textos, adoro os personagens anônimos, os esquecidos, reproduzir o dia-a-dia, a fala, os hábitos. Tentei uma mudança com um formato diferente de romance em “A altura e a largura do nada”. Ninguém prestou atenção, não reparou. Talvez tenha sido cedo. Os contos ainda me atraem, mas os romances, não sei, não. Talvez em tenha esgotado a “veia romanesca”. Mas pode ser que amanhã eu desminta tudo isso! Em que projeto literário o senhor trabalha atualmente? LOYOLA: Penso numa continuação de “O menino que vendia palavras”. A sequência mostrará as relações do menino com suas professoras. Já encontrei um gancho. Não por oportunismo. É que acho fundamental essa questão das professoras, resgatá-las. As minhas e as de todos, de todas as gerações. Se você se lembrar, professores sempre foram um tema recorrente para mim. Tenho um texto na antologia da editora Gente chamado “Meu professor inesquecível”, em que descrevo o Machadinho, meu professor de química, um sujeito incrível. Sempre falo em minhas palestras do Ulisses, professor de matemática. Aliás, inicio todas as minhas palestras com ele. A professora de história do ginásio, Cidinha Valério, me ensinava o “poder de síntese”. Tenho um esboço igualmente de outra memória de infância. Sobre meu avô, um marceneiro que era um artista, um escultor e que montou um carrossel no início do século 20 numa pequena cidade do interior, vizinha a Araraquara. Tenho o título, “Os olhos loucos dos cavalos cegos”. Fiz apenas uma versão, preciso ir com paciência e elaborar e reelaborar. Penso, às vezes: como a minha infância pobre foi rica, milionária.

Pernambuco_Jan 09

pernambuco36.indd 5

6/1/2009 16:49:19


C apa

Especial procura entender o fenômeno Barack Obama, que toma posse na Casa Branca no dia 20 de janeiro. Para começar, um debate sobre o real valor da identidade hoje

Carol Almeida

5! 4! 3! 2 “Remember, remember, the 5th of November.” Guy Fawkes, o homem por trás da rima era o dono e tutor da pólvora. Sua refinada habilidade com explosivos seria responsável por destruir, no dia 5 de novembro de 1605, todo o parlamento inglês. Mas o plano dos insurgentes católicos contra a monarquia protestante fracassaria. Guy Fawkes seria enforcado pela coroa e para sempre lembrado com festas que queimavam uma representação sua em bonecos de pano. A data que até hoje é lembrada na Inglaterra foi usada como artifício simbólico nos quadrinhos de Alan Moore conhecidos como “V de vingança”, adaptados em filme homônimo. Nessa história, V, arquiteto da libertação da contemporânea e fictícia Inglaterra de um sistema ditatorial, relembra Fawkes ao usar seu rosto como uma máscara da unidade, do um por todos, todos por um. Igualmente habilidoso com a pólvora, V consegue explodir o parlamento inglês e, na conclusão em dó maior, uma multidão usa a mesma máscara de Fawkes para observar o espetáculo de uma destruição agora vitoriosa e não mais vingativa. Na última cena, a povo retira suas máscaras e indivíduos de causas e objetivos distintos se revelam. A multidão de uma só máscara é a identidade das diferenças. Foi um dia antes da tradicional celebração britânica pela morte de seu Judas particular, em um 4 de novembro, que uma só máscara elegeu Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. A vitória – e vingança – não era mais de um partido político. Era da unidade das diferenças, de identidades distintas em um reconhecimento mútuo por salvação. Nunca houve no mundo uma eleição absolutamente pautada pela emancipação de diferentes identidades em uma só voz. Ao lado de cada propaganda sobre o crescente desemprego na América, do fracasso da Guerra do

pernambuco36.indd 6

Iraque, de um sistema de saúde falido, era inevitável não prestar atenção no atributo mais evidente do profeta libertador: a cor da sua pele. Antes de qualquer proposta política, era essa cor, negra, a representação maior da “mudança”, palavra que serviu de slogan maior ao candidato democrata. Eis a grande ruptura da hegemonia. Eis o mais latente símbolo da mudança. Ou não? Durante as eleições, “negros, brancos, hispânicos, asiáticos, índios americanos, gays, héteros”, para citar algumas das diferenças mencionadas durante o discurso do candidato eleito, vestiram a mesma máscara e, tal como na trama de Alan Moore, se disfarçaram da mesma ideia. Mas, como a história bem ensina, algumas máscaras caem e disfarces só servem enquanto têm um objetivo claro. É preciso frisar que há uma diferença entre ideias e identidades. Uma máscara ideológica não pode ser tomada como a representação de um grupo de pessoas que se reconhece como um coletivo. Ser negro, latino ou gay não é uma ideia. No entanto, dentro de qualquer grupo de indivíduos, ideias circulam. E são elas que sustentam o discurso – e não o sentimento – de ser uníssono. Em cima desse discurso subjetivo acolhedor, políticas (e presidentes) se constroem. E política, tal como a entendemos hoje, sempre é a quebra do fluxo coletivo do fazer. E antes que a corrente se quebre, uma breve explicação tomada emprestada de um irlandês, professor de Ciências Sociais de uma universidade autônoma no México, John Holloway, que trabalha com dois conceitos simples sobre o poder e a frustrante tentativa de tomada dele pelo povo. Holloway fala de um “poder-fazer” e um “poder-sobre”. O primeiro é a capacidade que o homem como ser social tem em construir algo novo, em criar. O poder-fazer é, dessa forma, a natureza de realização gerada pelo entrelaçamento humano e pela ideia social de ir além.

O poder-sobre acontece quando um determinado grupo de indivíduos quebra esse fluxo social para ter controle do fazer. “O fazer-como-projeção-mais-além se rompe quando algumas pessoas se apropriam da projeção-mais-além do fazer (da concepção) e comandam as outras para que executem o que elas conceberam.” Em outras palavras, o que Holloway chama de poder-sobre é o poder que nossa literatura e nossa história conhecem. É o faraó, rei, imperador, czar, ditador, primeiro-ministro, presidente... apenas dê um nome. O discurso acolhedor da campanha e da vitória de Barack Obama evocava a todo momento o poder-fazer do povo. A união era pela realização, pela ação da diferença manifestada em um voto, pela “mudança”, palavra que, embora seja usada por dez em cada dez candidatos políticos de oposição, nunca esteve tão embutida da carga simbólica de uma fênix. Pode-se dizer que, sim, em um momento muito particular, vários grupos se encontraram em uma mesma identidade manifestada justamente pela exaltação da diferença na imagem de um afro-americano como presidente dos Estados Unidos. Foi essa distinção o rosto impresso na máscara dos eleitores de Obama. O poder-fazer identitário dessas eleições não exclui o fato de que ele existiu em função da cristalização de um poder-sobre, representado neste caso pelo partido democrata dos EUA. O rompimento do fluxo social do poder-fazer é inevitável, mas será essa a fissura que irá desvelar a máscara da unidade americana? O que Holloway não debate é que a quebra de uma identidade guiada pela energia de realização pode se manifestar ainda dentro da construção dessa identidade. É nesse processo que os disfarces se vão. Dois fatores muito distintos nos levam a crer que há uma fratura do tamanho do Grand Canyon no desenvolvimento desse ser coletivo americano.

Pernambuco_Jan 09

6/1/2009 16:49:19


2! 4/11/08! Um de ordem econômica, outro de natureza propriamente identitária. A se falar do primeiro caso: quando os candidatos republicano e democrata já estavam na quinta marcha da campanha presidencial, eis que as peças de dominó começam a despencar umas sobre as outras. Tal qual um prenúncio simbólico da queda do vigor econômico americano projetado no esfacelamento das torres gêmeas do World Trade Center, a América pós-11 de Setembro começou a sofrer com a crise no mercado hipotecário e de subsequentes medidas econômicas que retraíram as linhas de crédito. As apostas de alto risco dos especuladores que vendiam casas préfabricadas a uma população sem condições de pagar sua dívida passaram a ruir. Na ponta mais alta dessa aposta, os bancos, grandes pilares do capitalismo financeiro, viram suas colunas dóricas rachar. E com essas fissuras, começa a se desfazer a primeira e mais sólida identidade do que conhecemos quando falamos no povo americano: a dos contemporâneos colonizadores do planeta. Quando se fala na imagem desse colonizador, é preciso pontuar que não se trata de uma identidade comungada sentimentalmente por grupos de pessoas, a não ser, claro, se estamos falando dos CEOs geralmente representados por homens brancos. A associação dos americanos como os novos romanos é ideológica, pautada em cima de uma projeção de um mundo, assim como na Roma Antiga, novamente unipolar. Uma grave recessão econômica internacional cujo epicentro parte dos Estados Unidos coloca em xeque essa representação que é interna e, de uma maneira muito forte, externa ao povo americano. Assim como é interna e externa (graças à Hollywood e a máquina do entretenimento americano) a ideia do americano como um povo com poder de decisão sobre seu futuro, o suprassumo

do livre-arbítrio. Mas as mesmas eleições que nomearam Obama presidente provaram que o discurso pronto do “nós somos livres” não é suficiente para impedir que os Estados Unidos permaneçam moralmente engessados quanto às suas próprias diferenças. Quando a Proposição 8, que vetava o recém-adquirido direito de casamento gay, passou na Califórnia, muitos questionaram por que a maior parte dos votos de outras minorias políticas, tais como negros e latinos, foram a favor da extinção do casamento gay. Por que os diferentes votaram contra os diferentes?, era mais ou menos a pergunta. Várias explicações foram dadas, sendo a maioria recheada de preceitos religiosos e/ou moralistas que, vale frisar, foram em alguns momentos compartilhados pelo próprio candidato Barack Obama. Fragmentada externamente e internamente pela economia em colapso e intrinsecamente por diferenças que vão além do sentimento minoritário, a “comunidade americana” tenta manter agora a máscara da “esperança”, a segunda palavra mais usada durante a campanha do candidato democrata. Diante de tantas cisões internas, algumas mais evidentes do que outras, existe um receio de que essa mesma esperança se torne num futuro não distante uma amnésia cristalizada. Para de fato romper com a natureza de identidade do poder hegemônico, é preciso um fluxo social de ações e ideias muito mais tolerantes com as diferenças. Se Obama, muito antes de assumir a presidência, foi coisificado como a personificação dos novos tempos, é preciso lembrar que “toda coisificação é um esquecimento”, pontuariam Horkheimer e Adorno. E para o bom funcionamento do fazer social, esquecer não é uma opção. Antes que isso aconteça, resta à unidade americana construir seu próprio mantra: Remember, remember, the 4th of November.

Pernambuco_Jan 09

pernambuco36.indd 7

6/1/2009 16:49:20


C apa

A complexa ideologia de cores por trás da vitória de Barack Obama Liv Sovik O que até um ano atrás era inimaginável, aconteceu. Nos Estados Unidos, um negro foi eleito presidente. Mas ele é negro, mesmo? Vive expressando sua gratidão filial à mãe e avó brancas. Herdou sua aparência negra de um pai ausente, um imigrante queniano que permaneceu muito pouco nos Estados Unidos. Ainda criança, teve a experiência extraordinária de viver na Indonésia, com o padrasto muçulmano. No entanto, afirma ser americano por excelência (“em nenhum outro país no planeta minha história seria sequer possível”), até por causa da diversidade que lhe compõe. Afirma tudo, inclusive a relação nominal com o islã, tabu americano do momento: na posse ele será Barack Hussein Obama. Ele não parece inteiramente negro por isso: pelas múltiplas associações e pelo poder que conquistou e emana. Mas nos Estados Unidos, ninguém duvida de sua negritude: nas palavras do vice-presidente eleito Joe Biden, “ele é meio branco e meio negro... Ele é um homem negro porque a sociedade não permite que ele seja outra coisa”. Ele abraçou sua identidade negra e se arraigou em Chicago, cidade com forte presença demográfica e cultural negra, se integrou à familia negra de sua mulher, frequentou uma igreja negra. Imigrante à comunidade negra, o pertencimento de Obama a ela é ratificado pela aparência, o casamento, a paternidade e a atuação política. Mesmo assim, quando concorreu a deputado contra um militante negro histórico, perdeu. Na campanha presidencial, não assumiu as bandeiras tradicionais da militância negra, como a ação afirmativa, mas reconhecia que “quem tem minha aparência” geralmente não teve tantas oportunidades. Depois de eleito, sem comentá-lo, nomeou número abundante de negros a altos cargos de seu governo, em um país em que só uma pessoa em oito é negra. Mesmo com essa complexidade de imagem e ação, muitos achavam que o racismo derrubaria sua candidatura. Até os últimos dias da campanha, saíam artigos na imprensa sobre os eleitores brancos para quem ele ser negro incomodava. De fato, sua vitória não foi esmagadora, mesmo com o descrédito dos Republicanos, maior

gro a se candidatar por um dos principais partidos, nem ao se eleger presidente. Indagado na primeira entrevista televisiva depois da eleição sobre a emoção pública que esse fato gerou, desviou a atenção para a sogra. Diz que imaginava como era para ela, que se tornou adulta sob o regime de segregação racial em Chicago nos anos 50. Relatou que, enquanto assistiam aos resultados da eleição, ela tomou sua mão e a apertou, mas não falou nada. No silêncio e no gesto: assim é que, no quadro cultural dos EUA, Obama registra sua negritude como algo que compartilha com outros negros, mesmo que a maioria sofreu mais os resultados do racismo do que ele. O silêncio não é completo. Ele encontra força retórica, política e pessoal na tradição cultural negra na qual ele não foi criado, mas se criou. Seus discursos e slogans de campanha ecoam imagens tiradas dos discursos de Martin Luther King: Change we can believe in, yes we can, ambas refletem o sonho de redenção da diáspora negra. Obama fala com a multidão, muitas vezes, com a mesma atenção e entonação de um pregador negro, repetindo refrões na espera da resposta do público. Depois de sofrer ataques pessoais de Hillary Clinton em um debate em Pennsylvania, Obama disse que assim era a “política de Washington”. Hillary aprendeu a atacar quando ela própria foi atacada, diz e repetiu, e fez gestos de tirar a poeira do ombro, em uma referência ao videoclipe do rapper Jay-Z, “Dirt off your shoulder”. O público veio abaixo. O gesto e o discurso são de superioridade na adversidade, são cool, a quintessência da melhor atitude negra americana diante da sociedade que a agride. Como tantos negros americanos, Obama é mestiço, mas, o que nao é comum, a mistura é recente. Isso lhe criou conflitos pessoais ao longo da juventude, mas na campanha eleitoral ele aproveitou a ambiguidade da condição de mestiço, criando um discurso múltiplo. Geralmente manteve silêncio sobre sua negritude, enquanto a mostrou e demonstrou constantemente. Seu discurso múltiplo foi interpretado por alguns comentaristas no Brasil como uma superação da identidade

do que nunca. A atenção da imprensa à questão de sua identidade racial foi constante e se perguntava, nos primeiros meses de 2008, quando Obama se posicionaria explicitamente a respeito. O momento chegou com a divulgação “viral” e na imprensa do sermão do polêmico pastor Jeremiah Wright, condenando “a América”, por causa da escravidão e do racismo. Muitos comentaristas apostaram que o escândalo se estenderia, mas Obama respondeu com um discurso que foi bem recebido, em que um dos pontos de destaque era quando falava de sua dor ao saber dos estereótipos racistas de sua avó branca. Para muitos ouvidos brasileiros, o discurso era sobre a mestiçagem como síntese dos discursos conflitantes sobre raça, racismo e identidade. Para muitos ouvidos de brancos acostumados com a polarização racial, Obama pedia que escutassem os negros e que entendessem a sensibilidade e a experiência do pastor Wright. Para esses ouvidos, Obama fala a partir de uma compreensão complexa e pessoal da história de seu país. A adesão dos negros americanos à candidatura de Obama foi de quase cem por cento. Sua vitória quebrou um veto ao negro em espaços de poder que, embora esteja longe de universal, hoje, como o foi, cinquenta ou sessenta anos atrás, ainda lança uma sombra sobre a sociedade. Mas Obama não mencionou ser o primeiro ne-

negra como discurso político. Caetano Veloso, em seu show “Obra em progresso”, em agosto de 2008, disse: “Me contaram que outro dia, ele falou para um jornalista brasileiro, ‘eu não pareço brasileiro?’” Depois de alguns devaneios, concluiu: “O fato é que a gente vê que Barack Obama está querendo imitar os brasileiros e muitos brasileiros, imitar os Estados Unidos pré-Barack Obama”. Caetano está acompanhado por outras figuras na imprensa, como Ali Kamel, diretor-executivo de O Globo, e o colunista Demétrio Magnoli. Festejam o fim das categorias raciais estanques nos Estados Unidos, querem que elas não sejam mais claramente definidas no Brasil. Kamel e Magnoli dizem, até, citando a prêmio Nobel de Literatura Toni Morrison (surpreendentemente, não captam sua ironia), que Bill Clinton teria sido o primeiro presidente negro. Mas talvez o discurso racial de Obama nao seja muito fácil de traduzir para o Brasil, pois ele estava em muito maior tensão com seu contexto do que transparecia. Ele vivia e comunicava o valor de sua negritude no limite do possível. Ao dar o recado de sua identidade racial, sua tática foi a mesma de Cassius Clay/Muhammed Ali: Float like a butterfly, sting like a bee. Em sua campanha eleitoral, Obama flutuou como borboleta. Mas não voou por cima do racismo, deu uma ferroada na inferiorização do negro.

quem tem minha aparência

pernambuco36.indd 8

Pernambuco_Jan 09

6/1/2009 16:49:20


ia

Túlio Velho Barreto

invasão

Em dezembro último, a revista “Time” – semanário norte-americano de maior prestígio e influência dentro e fora dos Estados Unidos – apontou o presidente eleito daquele país, Barack Hussein Obama, como a personalidade mais importante do ano em todo o mundo. Em sua justificativa, os editores da “Time” lembraram que há apenas dois anos o jovem senador pelo estado de Illinois era praticamente um desconhecido da maioria da população dos Estados Unidos. O que não impediu, segundo eles, que Obama “chegasse à cena americana como um trovão, pusesse de pé nossa política, rompesse com décadas de senso comum e superasse séculos de uma ordem social hierárquica”. Para quem acompanhou as primárias democratas, disputadas voto a voto pela poderosa senadora Hillary Clinton, conhecidíssima esposa do popular ex-presidente Bill Clinton, e o então “azarão” senador Obama, e a disputa eleitoral entre este e o republicano John McCain, há de concordar que o sentimento dos editores da Time reflete manchetes e editoriais de grande parte dos jornais e a opinião de muitos dos analistas políticos em vários países. Tudo isso a despeito, é importante frisar, de estar em jogo o cargo de presidente da mais longeva e estável democracia – pelo menos do ponto de vista formal, ou seja, do funcionamento de suas instituições – do planeta. De fato, para um país acostumado à alternância de poder, ainda que restrita aos partidos Democrata e Republicano, e à estrita observância das regras do jogo democrático, sem golpes internos nem interferências externas, o “trovão Obama”, para usar a expressão da “Time”, fez barulho e causou surpresas, além de gerar enormes expectativas. Ou seja, provocou fenômenos mais observados em países com menos tradição democrática, em que personagens assim são tidos como “salvadores da pátria” ao serem catapultados ao poder a cada sucessão de crise, seja ela política ou econômica. Para tanto, Obama apoiou-se em ideias que podem ser resumidas em uma única assertiva: “Sim, nós podemos fazer as mudanças que a América deseja e precisa”. A origem e o perfil sociais de Obama – um jovem afro-descendente, de 47 anos, que nunca ocupou cargo executivo – e a terrível conjuntura econômica – iniciada com a crise do crédito imobiliário nos Estados Unidos, que logo contaminou a economia do país e do mundo –, conjuntura na qual se realizou parte da campanha eleitoral, são ingredientes que, aliados aos problemas advindos das ocupações do Afeganistão e Iraque, podem gerar um verdadeiro “estadista” ou apenas mais um “salvador da pátria”. Nos Estados Unidos, espera-se e deseja-se que Obama se mostre um estadista. Mas se transferíssemos os atores e os cenários para um dos chamados países emergentes e de pouca experiência democrática, assim como o Brasil, será que a maneira de ver e o tratamento dispensado ao presidente eleito seriam os mesmos? Como agiriam os mais pobres, as classes médias e as elites econômicas e políticas brasileiras? Ainda que aqui não pretenda ser conclusivo, penso que este é um momento interessante para refletirmos sobre “nós” e o “outro”. Antes de prosseguir, uma explicação. A ideia de propor tais reflexões em um artigo sobre possíveis significados da eleição de Obama resultou do convite para colaborar no Pernambuco. Na

Por que até um grupo de sem-teto do Recife homenageou o novo presidente americano?

C apa

ocasião, ainda refletia sobre a (quase) unanimidade mundial favorável ao recém-­eleito presidente norte-americano e sua capacidade de resolver os problemas da magnitude dos que ele terá pela frente. Então, agora, podemos nos indagar se os desafios de Obama não são similares às enormes tarefas que muitos tidos apenas como “salvadores da pátria” prometem realizar diante de cenários semelhantes em países com as características já apontadas. E não precisamos ir longe. Com efeito, alguns já notaram e destacaram as semelhanças, mas também as diferenças, entre as trajetórias políticas e as histórias pessoais de Obama e do presidente Lula, por exemplo. (Aqui, interessa destacar em especial as semelhanças.) Ou seja, para chegar ao poder, ambos tiveram que enfrentar enormes preconceitos: o retirante, metalúrgico e líder sindical Lula, sobretudo o preconceito de classe; o negro (ou mulato) Obama, formado em Harvard, o preconceito racial. E mais: ambos jamais tinham ocupado cargos executivos antes de assumir a presidência de seus países; ambos encarnam anseios de mudanças e esperanças de setores socialmente excluídos e, por isso mesmo, podem ter em suas mãos missões ou “sonhos” quase impossíveis de cumprir ou realizar. Portanto, de alguma forma, situações-limites como a que os Estados Unidos enfrentam parecem propícias, mesmo em países com elevado grau de institucionalização de sua democracia, a transformar políticos carismáticos em potenciais “salvadores da pátria”. (O que não significa dizer que eles não possam negar ou confirmar prognósticos e se mostrar autênticos estadistas.) Talvez por representar os socialmente excluídos, apesar de não ser um deles, Obama já tenha despertado a atenção de parte dos sem-tetos do Recife, que o homenagearam antes mesmo das eleições presidenciais norte-americanas. E deram seu nome à “invasão” – os sem-tetos usam o termo ocupação – do antigo Edifício Shopping Praia Hotel, abandonado há cinco anos, em Boa Viagem. Nada mais simbólico considerando que Obama prometeu usar os recursos e o poder do Estado para enfrentar as desigualdades sociais em seu país. Afinal, quem é Obama: “salvador da pátria” ou estadista? Bem, ainda é difícil saber em que medida a resposta de seus eleitores norte-americanos coincidirá com a de seus admiradores brasileiros. Ou dependerá do lugar (social e espacial) de onde cada um fala?

Pernambuco_Jan 09

pernambuco36.indd 9

6/1/2009 16:49:21


Fernando Monteiro Escritor ironiza com as inúmeras máscaras de cores e sexos que marcam a política americana

C apa

10

presidente negro Presidentes negros em filmes americanos de Hollywood (não é pleonasmo, há uma diferença enorme, se você não sabe, entre as produções da chamada “meca do cinema” – alguém ainda a chama assim? – e filmes, por exemplo, da enxuta escola novaiorquina, que começou na TV, com o hoje esquecido Martin Ritt e o ainda cult John Cassavetes), isto é, da Hollywood de Kevin Costner (ou Robert Redford), são presidentes de alma branca, negros irrepreensivelmente vestidos com aquela elegância kennedyana que faz o mais alto mandatário do mundo ter de cruzar as pernas, no Salão Oval (opa!), quando as Monicas Levinskys estão por perto. Negros presidentes não se arriscam a ser sugados pelas máquinas da propaganda – diz a propaganda da máquina de criar esperanças altas e alvas demais, talvez, para presidentes não-brancos. Os que se arriscam são justamente os bofes rosados, os bifes mal passados da hora antes da alva: presidentes alourados ou grisalhos, de brancos cabelos bem penteados e calçando longos sapatos modelo social (pretos, naturalmente) que agora vão estar mais do que nunca na moda. Negros presidentes ianques vistos pelas câmeras politicamente corretas da indústria etc, são esguios como o presidente black do seriado “24 horas”, que, na minha modesta opinião, ajudou – e muito – na recente eleição de Tio Sam, isto é de Pai Tomás, agora que eles têm, pela primeira vez (sempre tem uma primeira!) um presidente que, esperam, não seja de segunda apenas porque tem a pele mais escura do que mais ou menos oitenta por cento da população do Grande Irmão do Norte. Os americanos que compareceram – de tênis – às urnas do complicado sistema eleitoral do Grande Brother, também esperam que ele, o negão eleito, não seja um novo pai d’égua – como foram alguns brancos cowboys-presidentes tomando uísque sem água na seca voracidade pelos obscuros negócios da Casa Nostra. Mas, voltemos ao assunto propriamente dito: presidentes mulatos de filmes color começaram a aparecer, na tela branca, há somente alguns anos, eleitos pelo grosso alvo-azedo da maioria dos eleitores cujo voto teria sido realmente revolucionário se Barack Obama também fosse boiola e não fosse um próspero advogado, porque – oba! – Barack então seria pobre, preto e... Seja como for, o Buracko é mais em cima. Presidentes negros, na América, precisam ser mais corretos e mais limpos do que Bush

tipo kevin costner

(o que é muito fácil), dono de um chulé arrasa-quarteirão, entre outros, digamos, defeitos de fabricação. É assim que a história o verá, ou já o vê, pelas costas: fedendo à distância, ao tirar os sapatos debaixo da mesa das saudades de Bill Clinton, o presidente que melhor lembrava o maior de todos os fantasmas da Casa Negra: John Fitzgerald Kennedy, branco de alma negra (?), herói sem nenhum caráter mesmo, mocinho às avessas, veterano de guerra que sempre parecia muito moço nas fotos, sentado numa cadeira de balanço que hoje é relíquia da história recente dos Estados Unidos ao norte de nada. Nada será como antes, por sinal, após um Mister-President “colored”, ou depois de um Nat King Cole formado em Harvard que nasceu no Havaí e que ganhou, primeiro, a indicação por sobre a Hillary-dragão ameaçando riscar o Irã do mapa. E o resto virá por acréscimo: eles elegerão até a Marta Suplicy, caso nos faça, a Martinha, a gracinha de levar seus botoques para mais longe do que Miami, junto com o argentino parisiense que vive de contrabando de perfume paraguaio, pomadas japonesas e outras miudezas. Barack não é lá muito branquinho? Tudo bem. Nasceu no Havaí? E daí? – perguntaram os americanos brancos que votaram nele (para não votar em branco). E já estão cantando, também lá: o Havaí seja aqui... e onde tu sonhares, todos os lugares, as ondas dos mares, meu caro Barack, são um pouco mais abaixo do Equador e da Bolívia (cuja capital não é Salvador, você sai ser o primeiro que sabe, depois das aulas do Mangabeira Unger). Traduzindo do português para o alemão, Unger der Linden: é bem mais fácil ser um presidente preto em filmes eastmancolor que procuram mostrar como pretos podem ser serenos, sábios e sensatos quando a coisa fica negra (nas crises nucleares, por exemplo). Na hora mais escura, eles não fumam, não bebem e continuam a caprichar na escolha da gravata. Sabem combiná-las com meias de seda de todas as cores, e, quando eventualmente despertam os amores de alguma assessora branca da silva, louríssima (porém inteligente), os pardos presidentes de filmes e seriados, então mostram como sabem se comportar o mais discretamente possível, como se fossem o cantor Al Jolson pintado de breu para o primeiro filme sonoro da indústria americana do cinema – a qual terá que rever os seus restos de pesadelos com pretos, pobres e

parentes de George W. Bush, o primeiro mandatário branco realmente impopular da história recente de “intervenções” de araque para garantir abastecer o carro com combustível mais barato. O caro presidente preto de um filme – imagino – produzido por alguma dupla chata como Costner & Redford, faria o quê, de imediato? Pararia com a guerra, é claro. Aliás, com as guerras, uma vez que a América da pomba gosta de manter mais de uma guerra ao mesmo tempo, e luta em duas, três ou quatro frentes, se for necessário e para o bem da Democracia como eles a entendem: algo bom para se citar em discursos ainda antes dos longos créditos de filmes de Redford & Costner etc. Neles, as tais “intervenções” americanas são suspensas – pelo Pelé presidente –, apenas meia hora depois do cara assumir o posto mais importante do planeta, com um discurso de boa vontade ouvido de Pequim a Taperoá. Com seu terno impecável – ao lado do jeca que deixa a casa suja – e suas maneiras elegantes, seu inglês perfeito, sua Michelle (My Girl) que sabe que a África é um continente (ao contrário da Palin) e tudo o mais, vemos, então, o charmoso presidente de cinema também assinar, logo em seguida, as propostas de fechar Guantánamo, levantar o embargo de Cuba, e, ainda mais ousadamente, ordenar que os generais americanos conduzam seus soldados de volta para casa, a caminho do lar em Alabama, Texas, Califórnia, Colorado... Enfim, um presidente negro de cinema tudo pode. Com “ph” and all. É um momento solene, no filme da dupla de americanos louros: ele nos olha, diretamente, fixando a câmara escura, e começa a pronunciar as palavras escritas para a história: “Senhores e senhoras (ou melhor, senhoras e senhores), fiquem certos de que eu levarei a indústria bélica norte-americana dos falcões deste país à mais completa falência”... E é nesse instante, fora das salas escuras, que soam os tiros que derrubam o presidente negro de verdade, no coração de pesadelo das trevas em que vive o país que um dia já foi o do gentil Walt Whitman de “Leaves of grass”. Sobre a grama bem aparada da Casa do Trono Manchado de Sangue, esperemos que o corpo caído seja o do assassino de um tempo de assassinos – e não o corpo magro de Obama. E que o filme da realidade (saravá!) possa terminar com Barack ainda vivo, daqui a quatro anos ou oito anos.

Pernambuco_Jan 09

pernambuco36.indd 10

6/1/2009 16:49:22


M amma mia

Valmir Costa Existe uma trilha sonora gay? Foi o que perguntou uma lista da revista americana “Out”

ESCUTA ESSA! Vira e mexe aparece uma lista de músicas como sendo a melhor do ano, da década, do século. Influenciado pela revista “Rolling stones”, que listou os cem melhores discos de todos os tempos, o editor da revista gay americana “Out” questionou aos leitores: “Quando você vê a lista de cem discos da ‘Rolling stones’ e não vê Abba nem Madonna, se sente representado nessa lista?”. Por conta disso, a revista elaborou sua própria lista com os cem discos mais gays. Quem liderou o ranking foi David Bowie, mas nomes como The Smiths, Elton John, Tracy Chapman, Judy Garland, Cyndi Lauper e Morrissey apareceram na lista. Claro que, até o centésimo posto, Madonna teve quase toda sua discografia citada. Além de questionar se o leitor se sentia representado, o editor da “Out” indagava outra possibilidade. “Se existe uma música para os gays, também deveria existir uma música hétero?” Sua observação é curiosa, sobretudo, porque fala o quanto se emocionou em ter visto Meryl Streep cantando “The winner takes it all”, no filme “Mamma mia”. Segundo ele, aquilo lembrou o momento em que percebeu que era gay quando criança. Mas ele se questiona: “Por que o Abba me fez achar que eu era gay?”. Tais questões do editor são pertinentes e fazem lembrar a frase de Simone de Beauvoir no seu livro feminista “O segundo sexo”: “Não se nasce mulher; torna-se mulher”. Isso não no sentido biológico, mas no construto social de gênero. Da mesma forma não se nasce homem, gay ou lésbica. Torna-se! O espaço social em que cada um se enquadra absorve os elementos culturais. Como a música não pode ser dissociada da cultura, ela tanto absorve quanto se apropria ou demanda elementos para sua massificação. É o caso da cultura masculina, feminina, lésbica e gay. Como a vida é contada e embalada como uma trilha sonora, os grupos sexuais de gênero se apropriam de estilos musicais e de ídolos para representá-los. Tal distinção é fruto do início do século 20, quando se criou o termo “homossexualismo” sem criar a heterossexualidade. Só depois é que ela aparece como contraponto a este grupo “pervertido”. Logo, respondendo à primeira pergunta do editor da “Out”, não existe uma música hétero, mas várias. Quase todas elas. E nem todo mundo vai se sentir representado na vasta gama de gêneros musicais. Mas escute essa! A musicalidade foi atrelada à homossexualidade a partir do momento em que o homem deveria ser contido, dono de si e policiar o seu corpo. Ele não poderia ser “contagiado” pela música e de “se permitir” a certas emoções. Médicos compartilhavam desta ideia, como o neuropsiquiatra alemão Richard von Krafft-Ebing, que tratava o homossexualismo como distúrbio dos nervos. Já o britânico Havelock Ellis afirmava que todos os músicos eram “invertidos”. Para ele, o homem com aptidão para a música tinha predisposição ao nervosismo, que leva ao “homossexualismo”. Homens dançavam e cantavam pouco. Assim, a música se tornou algo feminino, representado pelas divas. Tal tipo de pensamento era remanescente dos séculos 16, 17 e 18 com a figura do “castrati” (castrado). Símbolo maior da música, ele era uma divindade da voz. A igreja tomava a decisão de castrar os garotos porque não acolhia meninas, mas precisavam da voz aguda. Os “castrati” eram adorados por homens e mulheres. Como não eram considerados nem um nem outro, relacionavam-se com ambos os sexos. O livro “Cry to heaven”, de Anne Rice, e o filme “Farinelli” abordam este tema. Todos estes acontecimentos deixaram resquícios nos tempos mais atuais. Ele dança? Quem com mais de trinta anos não ouviu este comentário de um homem que dançava solto? E quem não ouviu o comentário de homens que dançavam “música lenta”, embalado pelo álibi da mulher com rostinho e corpinho colado ao seu? Homem até cantava, mas não as músicas das cantoras; só dos cantores. Como hoje, quando a letra tinha o pronome masculino, era e ainda é modificado para o feminino. Qual homem teria a audácia

de cantarolar “Meu homem”, de Fafá de Belém? As cantoras até cantam letras de outros compositores sem alterar o pronome “ela”. O inverso não ocorre. A não ser “esse cara”, chamado Caetano Veloso, que com a licença poética que lhe coube cantou “Ah, esse cara tem me consumido...”. Homens que dançavam e cantavam tais coisas eram os “suspeitos”. O tempo inteiro havia, e ainda há, o patrulhamento do masculino pela família e pelo entorno social. Quem dançava e cantava as músicas da Gretchen nos anos 80? Os Menudos cantavam “Não se reprima”, mas quem se soltava era tachado de gay até mesmo sem saber do que se tratava. Dos anos 90 aos 2000, as coisas ficaram mais liberais como um processo evolutivo. É o resultado do final dos anos 60, que trouxe mudanças com a revolução feminista e homossexual. Logo, impulsionou variações do homem lidar com o corpo. Nos chamados guetos gays dos anos 70, a disco music foi corporificada e Gloria Gaynor, Donna Summer, Village People, Weather Girls ficaram como emblemas para esse grupo. Alguns por ocasião; outros pela situação, como o Village People, que foi criada no gueto gay de Nova Iorque. Satirizava as figuras másculas americanas e instituições religiosas como a Young Men’s Christian Association (YMCA), ou seja, a Associação Cristã de Moços (ACM), aqui no Brasil. O grupo pôs a boca no trombone e cantou a “pegação” que os moços faziam. Mas nem toda música cantada por um cantor gay vai ser considerada como tal, como por exemplo, Cazuza, Renato Russo, Ney Matogrosso, Marina Lima. Tampouco uma canção com tema gay vai ser considerada uma música gay, como por exemplo, “Robocop gay” (Mamonas Assassinas), “Amor proibido”, de Agnaldo Timóteo, que cantava “Já ficou entendido, que o amor que vivemos, é um amor proibido”. E ainda tinha gente que não entendeu. Mas a música também tem seus expoentes na área masculina e viril. No “Fantástico”, se um jogador marca três gols sempre pede um sertanejo ou um pagode. Outro gênero viril é o heavy metal, mas com alguns deslizes. É que o vocalista Rob Halford, do grupo britânico Judas Priest, criado em 1973, serrou as correntes do metal e se assumiu gay em 1998. Algo inédito neste estilo musical considerado machista. Do grego musiké téchne, a palavra música significa “arte das musas”. Dizem que ela surgiu quando o ser humano tentou reproduzir o som da natureza, numa sucessão de som e silêncio. É fato que a música faz despertar sensações emotivas nesse império dos sentidos que nós somos e nos formamos. No entanto, a canção se torna algo totalizante não por si só, pois ela não significa a mesma coisa para todo mundo, pois cada indivíduo usa suas emoções para dar sentido a ela. Isso de acordo com nossa bagagem social, cultural, nossas vivências e nossas lembranças. Mas uma coisa é fato: a orientação sexual não se sente pelo ouvido. Então, respondendo a última pergunta do editor da revista “Out”, o Abba não tinha o poder de fazer alguém descobrir ser gay lá na infância. Ele recorda a repressão sofrida naquele corpo masculino infantil, que deveria se comportar. Hoje adulto e cheio de saberes culturais, consegue decodificar e ligar o Abba aos gays. Claro que é uma forma emblemática construída e absorvida. Como a imagem da música é ligada à imagem feminina, que é relacionada à imagem do gay. Por isso, o conceito de música voltada aos gays está atrelado à figura da diva. Coube a elas representá-los ao longo das décadas pré e pós o surgimento da cultura gay. Marlene Dietrich, Mae West, Edith Piaf, Zarah Leander, Barbra Streisand, Judy Garland, Liza Minelli… Madonna! Muitas divas ganharam este emblema de artista gay, muitas vezes, pejorativo. O homem sente medo da Madonna para não ser rotulado de gay, mesmo com o corpo contagiado por sua música. Mas entre rótulos e rotulados existe ela: a música. E, antes de tudo, a pergunta crucial: a quem dar ouvidos?

Pernambuco_Jan 09

pernambuco36.indd 11

11

6/1/2009 16:49:22


E u te amo, te amo ainda mais

Como bem assinalou Zuza Homem de Mello, no ensaio “Vozes da alcova”, ser cantora sexy hoje em dia é moleza. Precisa nem cantar, basta ter um corpinho joia, usar uns shortinhos ousados, decotes idem, e fazer caras e bocas. Estão aí Madonna, Britney, Beyoncé, Shakira e outras menos votadas, comprovando a asserção. Na verdade, hoje não. Maria Odete, a popular Gretchen, ganha o pão de cada dia graças aos trajes sumários que usava quando se apresentava num programa de TV, em meados dos anos 70. Não lembro mais o nome do programa, mas quando Gretchen aparecia rebolando, cantando aquelas musiquinhas, o que dava de namorada fechando a cara ou ameaçando ir às vias de fato com os respectivos namorados, não estava no gibi de Carlos Zéfiro. Como disse antes, com pouca roupa é moleza, quero ver só no gogó, como comenta Homem de Mello em seu ensaio. Lembro que passava férias em Campina Grande, em 1969, e um amigo chamou a gente pra casa dele. O cara dizia que estava com um compacto e todo mundo ia ficar de queixo caído quando ouvisse o que havia nele. Era de um cantor e uma cantora que nenhum de nós conhecia. Uma baladinha, normal, boazinha, só que, de repente, foi uma tal de gemedeira, que ficou assim aquele ambiente meio incomodativo, porque havia moça no recinto (e moça naquele tempo era moça mesmo, no duro). Aliás, moças, as irmãs do dono do disco. Havia a mãe também, que quando entendeu do que se tratava, se mandou pra cozinha resmungando que era só o que faltava:

Os quarenta anos da gemedeira de Serge Gainsbourg que forjou o imaginário sexual de várias gerações José Teles

vergonha

“pouca

A pouca vergonha no caso era do casal Serge Gainsbourg e Jane Birkin, cantando “Je t’aime (moi non plus)”, que virou o plus dos assustados das férias. Quando se botava o disquinho nas festas, havia sempre um gaiato que apagava as luzes, a deixa pro “com licença, eu vou à luta”. Isto com os marmanjos, claro. A luta era pra convencer a moça a facilitar o abraço, e não se valer do famoso “macaco”, que era quando interpunha o braço, semiestendido entre ela e o cavalheiro. Acho que “Je t’aime” provocava a lubricidade nacionalmente, porque logo, logo, a música foi proibida em todo o território brasileiro, e quem tinha o compacto não o emprestava, ou o vendeu a preço de ouro. Mas nisto de safadeza, a taça do mundo é nossa e com brasileiro não há quem possa. Com o nome de The Magnetic Sounds, o grupo de baile, e de estúdio, Os Carbonos gravou um disco inteiro na cola de “Je t’aime”, inclusive a própria. Foi o início da série “Super erótica”, com os cantores Gilbert e Norma Aguiar, esta última, no quesito gemedeira, botou Jane Birkin no bolso. Em época de repressão não apenas política como sexual, dá pra imaginar a libido dos adolescentes o quanto se incendiava nas tardes dos domingos, quando rolavam os assustados animados a gemidos. Tá certo que em algumas faixas, a cantora mais parecia estar com uma crise de asma. Mas aí ficava por conta da imaginação de cada qual. Curioso é que enquanto proibiram a “Je t’aime” original deixaram rolar solto “Super erótica”, ou então uma dupla brasileira que emulava o francês Gainsbourg e a inglesa Jane Birkin. Nunca soube quem eram Giselle et Julien (quem souber me dê um toque), que gravaram um compacto com as músicas “Je t´adore” e “Le monde erotique de Giselle”, a maior gemedeira, com roupagem meio funk. O disquinho se tornou peça de colecionador.

12

até em disco”.

Mas feito as moças de poucas roupas, com gemidinho também é moleza. Quero ver é cantando, excitando sem intenção de fazê-lo, como fez a americana Julie London, em “My heart belongs to daddy”. Julie trabalhava como ascensorista quando foi descoberta por Sue Carol, mulher do ator Alan Ladd, começou como cantora, mas logo passou a atriz. Tímida, avessa a aparições públicas, Julie London era sexy sem forçar a barra inclusive na aparência. Cantora ainda adolescente, ela atuou em alguns filmes em Holywood, casou e largou a carreira. Em 1953, separada, foi redescoberta por Bobby Troupe que a levou a gravar o antológico “My name is Julie”. Na capa a louríssima Julie London aparece com um decote generoso (e bota generoso nisso), e canta com voz pausada, sussurrante. O disco vendeu três milhões de cópias, e fez de sua versão de “Cry me a river” um clássico instantâneo. Julie London, também sem querer, acabou influenciando a bossa nova. Quer dizer, quem influenciou foi o guitarrista Barney Kessel, que tocava em seus discos. A turma que fermentou a bossa nova era fissurada na forma de Kessel tocar, harmonizando enquanto acompanhava. Julie London gravou mais de trinta discos, e nos anos 60, ainda tinha fogo para uma incendiária versão de “Light my fire”, dos Doors. Menos sexy do que Julie era Peggy Lee, que tocou fogo na imaginação da jovens dos anos 50 com uma sensualíssima interpretação de “Fever”. Quando cantava, com voz cálida “Todos tem a febre / isto é coisa que todos sabem / a febre não é algo novo / a febre começou muito tempo atrás”, o que provocava a tal febre estava explícito na voz da moça. Uma canção preferida deste pessoal, talvez por dar mais asas à imaginação, era a citada “My heart belongs to daddy” (mais uma pérola de Cole Porter). Orson Welles considerava a

cantora e atriz Eartha Kitt a voz mais sensual do mundo. Ela também gravou “My heart belongs to daddy”, mas foi com a aparentemente inocente “C’est si bon” que Eartha botou a turma pra tremer. Voltando a “My heart belongs to daddy”, a grosso modo “Meu coração pertence ao paizinho” (o paizinho aí obviamente não se trata do genitor da moça), ela foi gravada de forma matadora por Marilyn Monroe, que, dizem, era sensual até respirando. Canta com timbre de garotinha travessa, acompanhada por uma orquestra contrastando, num maior hard swing. “My name is Lolita”, sussurra Marylin, antes de começar a canção que, vai ver achando pouco, tem um trecho em francês. Mas voltando aos tempos em que os gemidos substituíram o cantar de mormaço, caliente, a cantora trocando o microfone pelo rebolado aeróbico, o primeiro volume da série “Super erótica” tem no repertório um sucesso de final dos anos 50 intitulado “Teach me tiger”. Esta versão, em sensualidade interpretativa, é uma pálida cópia da gravação original, feita em 1959, por April Stevens, cantora americana que nasceu pra coisa. A sexualidade era tão sugestiva em sua “Teach me tiger”, que a música foi banida de quase todas as rádios dos EUA. Moça de família não cantava daquela forma, nem ouvia músicas tão lascivas. A moça tem outras no mesmo tom de voz, pelo menos uma tão sensual quanto “Teach me tiger”, e com um título que gera ainda mais expectativas fesceninas, “I want a lip”: “Quero um lábio / em seguida outro lábio / quero dois lábios / que me beijem o tempo todo”. Cacem a moça na Internet, que agora neste departamento o que se tem é mais matéria do que espírito, mais vulgaridade do que sensualidade. Saudosismo à parte, those were the days!

Pernambuco_Jan 09

pernambuco36.indd 12

6/1/2009 16:49:23


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.