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“AMIGOS VAGABUNDOS, UNI-VOS” Raimundo Carrero Assim proclama o personagem de “Irene”, confessando-se a um amigo que a cada dia se transforma em um animal diferente. Mas que livro é esse onde o personagem inominado tem consciência de que é personagem, ora cão, ora automóvel, vive com uma mulher que também se sente personagem, diminuindo, diminuindo, até atingir a dimensão de uma mulher normal? Que espécie de livro: um romance, um poema, um delírio, um monólogo psicodélico – para usar uma palavra antiga – que desconhece tempo e espaço, movendo-se numa velocidade de assombrar o vento? Pois é nesse ambiente de sol portátil e de imagens multifacetadas que está ambientada a narrativa de Sérgio Moacir de Albuquerque, o então jovem pernambucano que provocou uma verdadeira revolução literária no Brasil de 1974 quando o volume chegou às livrarias do país, para espanto e escândalo dos críticos e estudiosos. Vivendo em Paris e experimentando um momento histórico de absoluta liberdade, ainda naquele sentido do sem lenço e sem documento, revelou a sua força criadora com a ajuda de Hermilo Borba Filho, o autor de “Um cavaleiro da segunda decadência”, e que o recomendou à Editora Civilização Brasileira, para publicação, o que foi feito de imediato. Se Hermilo se mostrou inquieto com o livro, não menos ocorreu com Ênio Silveira, o lendário editor brasileiro que se tornou porta-voz da geração política e maldita do País, abrindo espaço para uma esquerda massacrada pelo regime ditatorial. Era um costume do autor de “Margem da lembrança” procurar editoras para os mais jovens, e era também um costume de Ênio abrir espaço para essa gente vigorosa que viria a romper padrões, com os melhores textos literários e revolucionários. De Paris, onde estudava, Sérgio enviou o livro a Hermilo e ele fez a ponte com Ênio. Não demorou muito, e o próprio editor perguntaria na quarta capa do livro: “Uma explosão literária? Uma aventura do espírito? Uma delirante realidade? Um happening em termos de ficção? Sim, Irene é tudo isso e muito mais. Novela de inquietante beleza formal, que lançará sobre a moderna prosa brasileira um vendaval renovador, apresenta-nos um jovem autor pernambucano – Sérgio Albuquerque – que não segue modelos nem respeita fronteira, escrevendo com a liberdade e a força de criação que caracterizam os escritores natos. Irene – tanto prenderá como libertará seus leitores”. Não era para menos. O livro tem um ritmo uniforme, com ligeiras alterações no andamento, seguindo uma paixão desesperada e enlouquecedora do personagem – que no fim das contas é o próprio Sérgio, que nós conhecemos Sérgio Moacir, e que foi transformado em Sérgio Albuquerque, ele próprio parecendo se transformar a cada momento, em homem e personagem, autor e narrador. É possível escutar os Beatles, os Rolling Stones e Caetano Veloso, naquele instante em que as rosas se transformam em lírios, os lírios em guitarras, as guitarras em homens e os homens em bichos. E, sobretudo, Irene – pairando sobre todas as coisas. O leitor pode perceber a paixão e a leveza deste texto: “Uma flor de papel de seda enfeitando minha solidão de claustro. Irene. Uma flor de papel de seda azul-creme abrindo o batismo, a festa da manhã inaugurada sem manchas. Irene. Um papel rodando em seus olhos sem mensagem alguma de dor ou paz. Paz. Dor. Dor ou paz? Ninguém que soubesse. Se alguém sabia, calou-se. Desafiando a mim mesmo, coberto de solidão”. Já reconhecido como a grande vocação de romancista de sua geração, a mitológica Geração 65, Sérgio embarcou para Paris onde estudaria Ciências Sociais, na Sorbonne, depois de concluído o curso de Ciências Sociais na Universidade Federal de Pernambuco, em cujo prédio, da Rua Nunes Machado, na Boa Vista, ocorreram muitos enfrentamentos entre estudantes e militares nos anos de chumbo da ditadura que se instalou no Brasil a partir de março de 1964. Antes, publicara um livro de poemas, “Murais da morte”, reeditado há pouco tempo pelo Instituto Maximiano Campos, com versos vigorosos e cortantes, que falavam sobre a dor do desaparecimento material, sobretudo aquele promovido pela injustiça e pela fome dos nordestinos. Em Paris, tornou-se amigo de Roland Barthes, estudando na École Practique Des Hautes Études, além do mestre em Sociologia, Jacques Lennhardt. Reconhecido pelos amigos e por todos que tiveram acesso à sua obra – ainda publicou “Sinfonia”, 1990, e “Cantos da definitiva primavera”, 1998 –, também foi muito elogiado pelos críticos da época da publicação, como o escritor João Antônio, para quem “comparar o seu texto à força de certos poemas de Maiakovsky provavelmente ganhará maior sentido se lançarmos mão ainda de uma outra referência: a poesia de Rimbaud”. Em “Sinfonia” escreveu, profeticamente, talvez o texto que mais o definirá: “Haveria sempre esta teórica possibilidade, levando-o a outras conjecturas: se dele falariam, lembrariam certos fatos, ocorrências vivenciadas porém não de todo compreendidas”. É natural que um livro desse mereça uma reedição imediata pelo que representa literariamente para toda uma geração pernambucana, e é claro, brasileira, sem esquecer os aspectos históricos e políticos. De Paris, ele não esquecia o drama de um povo que continuava sobre a força opressora de uma ditadura, cujos tentáculos ameaçavam avançar no século, o mesmo século XX das ditaduras. Sérgio Albuquerque morreu, no Recife, numa tarde de setembro em 2008. LEIA POEMA DE LUCILA NOGUEIRA SOBRE SÉRGIO NO SABER +
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