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“AMIGOS VAGABUNDOS, UNI-VOS” Raimundo Carrero Assim proclama o personagem de “Irene”, confessando-se a um amigo que a cada dia se transforma em um animal diferente. Mas que livro é esse onde o personagem inominado tem consciência de que é personagem, ora cão, ora automóvel, vive com uma mulher que também se sente personagem, diminuindo, diminuindo, até atingir a dimensão de uma mulher normal? Que espécie de livro: um romance, um poema, um delírio, um monólogo psicodélico – para usar uma palavra antiga – que desconhece tempo e espaço, movendo-se numa velocidade de assombrar o vento? Pois é nesse ambiente de sol portátil e de imagens multifacetadas que está ambientada a narrativa de Sérgio Moacir de Albuquerque, o então jovem pernambucano que provocou uma verdadeira revolução literária no Brasil de 1974 quando o volume chegou às livrarias do país, para espanto e escândalo dos críticos e estudiosos. Vivendo em Paris e experimentando um momento histórico de absoluta liberdade, ainda naquele sentido do sem lenço e sem documento, revelou a sua força criadora com a ajuda de Hermilo Borba Filho, o autor de “Um cavaleiro da segunda decadência”, e que o recomendou à Editora Civilização Brasileira, para publicação, o que foi feito de imediato. Se Hermilo se mostrou inquieto com o livro, não menos ocorreu com Ênio Silveira, o lendário editor brasileiro que se tornou porta-voz da geração política e maldita do País, abrindo espaço para uma esquerda massacrada pelo regime ditatorial. Era um costume do autor de “Margem da lembrança” procurar editoras para os mais jovens, e era também um costume de Ênio abrir espaço para essa gente vigorosa que viria a romper padrões, com os melhores textos literários e revolucionários. De Paris, onde estudava, Sérgio enviou o livro a Hermilo e ele fez a ponte com Ênio. Não demorou muito, e o próprio editor perguntaria na quarta capa do livro: “Uma explosão literária? Uma aventura do espírito? Uma delirante realidade? Um happening em termos de ficção? Sim, Irene é tudo isso e muito mais. Novela de inquietante beleza formal, que lançará sobre a moderna prosa brasileira um vendaval renovador, apresenta-nos um jovem autor pernambucano – Sérgio Albuquerque – que não segue modelos nem respeita fronteira, escrevendo com a liberdade e a força de criação que caracterizam os escritores natos. Irene – tanto prenderá como libertará seus leitores”. Não era para menos. O livro tem um ritmo uniforme, com ligeiras alterações no andamento, seguindo uma paixão desesperada e enlouquecedora do personagem – que no fim das contas é o próprio Sérgio, que nós conhecemos Sérgio Moacir, e que foi transformado em Sérgio Albuquerque, ele próprio parecendo se transformar a cada momento, em homem e personagem, autor e narrador. É possível escutar os Beatles, os Rolling Stones e Caetano Veloso, naquele instante em que as rosas se transformam em lírios, os lírios em guitarras, as guitarras em homens e os homens em bichos. E, sobretudo, Irene – pairando sobre todas as coisas. O leitor pode perceber a paixão e a leveza deste texto: “Uma flor de papel de seda enfeitando minha solidão de claustro. Irene. Uma flor de papel de seda azul-creme abrindo o batismo, a festa da manhã inaugurada sem manchas. Irene. Um papel rodando em seus olhos sem mensagem alguma de dor ou paz. Paz. Dor. Dor ou paz? Ninguém que soubesse. Se alguém sabia, calou-se. Desafiando a mim mesmo, coberto de solidão”. Já reconhecido como a grande vocação de romancista de sua geração, a mitológica Geração 65, Sérgio embarcou para Paris onde estudaria Ciências Sociais, na Sorbonne, depois de concluído o curso de Ciências Sociais na Universidade Federal de Pernambuco, em cujo prédio, da Rua Nunes Machado, na Boa Vista, ocorreram muitos enfrentamentos entre estudantes e militares nos anos de chumbo da ditadura que se instalou no Brasil a partir de março de 1964. Antes, publicara um livro de poemas, “Murais da morte”, reeditado há pouco tempo pelo Instituto Maximiano Campos, com versos vigorosos e cortantes, que falavam sobre a dor do desaparecimento material, sobretudo aquele promovido pela injustiça e pela fome dos nordestinos. Em Paris, tornou-se amigo de Roland Barthes, estudando na École Practique Des Hautes Études, além do mestre em Sociologia, Jacques Lennhardt. Reconhecido pelos amigos e por todos que tiveram acesso à sua obra – ainda publicou “Sinfonia”, 1990, e “Cantos da definitiva primavera”, 1998 –, também foi muito elogiado pelos críticos da época da publicação, como o escritor João Antônio, para quem “comparar o seu texto à força de certos poemas de Maiakovsky provavelmente ganhará maior sentido se lançarmos mão ainda de uma outra referência: a poesia de Rimbaud”. Em “Sinfonia” escreveu, profeticamente, talvez o texto que mais o definirá: “Haveria sempre esta teórica possibilidade, levando-o a outras conjecturas: se dele falariam, lembrariam certos fatos, ocorrências vivenciadas porém não de todo compreendidas”. É natural que um livro desse mereça uma reedição imediata pelo que representa literariamente para toda uma geração pernambucana, e é claro, brasileira, sem esquecer os aspectos históricos e políticos. De Paris, ele não esquecia o drama de um povo que continuava sobre a força opressora de uma ditadura, cujos tentáculos ameaçavam avançar no século, o mesmo século XX das ditaduras. Sérgio Albuquerque morreu, no Recife, numa tarde de setembro em 2008. LEIA POEMA DE LUCILA NOGUEIRA SOBRE SÉRGIO NO SABER +
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D ois EDITORIAL “Tem gente que chega aqui, pega uma revista, faz as unhas e, mesmo depois que termina, vai para o sofá e fica horas ali lendo a Caras”. Esse é um depoimento que resume bem o universo da reportagem da jornalista Fabiana Moraes, que toma quatro páginas desta edição do Pernambuco. Na sua pesquisa em andamento para o doutorado em Sociologia pela UFPE, ela estuda o consumo de revistas sobre celebridades nos salões de beleza do subúrbio. Pedimos que ela fizesse uma espécie de resumo da sua pesquisa para nós. O resultado foi, ao mesmo tempo, revelador e divertido de ler. “Revistas como ‘Caras’, ‘Quem’ e ‘Contigo!’ atuam como verdadeiros catalisadores: de suas páginas, onde se veem estrelas (ou candidatas ao posto) relaxando em banheiras de espuma ou mostrando o novo apartamento, nascem comentários que servem para aglutinar clientes leitoras, revelando desejos coletivos e demonstrando que a vida vivida pelos outros pode servir como exemplo para entender a nossa própria existência”, destaca Fabiana. O trabalho de Fabiana fica ainda mais completo com o ensaio fotográfico que Bárbara Wagner realizou especialmente para o Pernambuco. A fotógrafa acompanhou a pesquisadora pelos salões de beleza, com um resultado sensacional: imagens que roubam nossa atenção pelo estranhamento, com as leitoras se tornando parte integrante das revistas que consomem. Uma amostra do trabalho de Bárbara você confere logo abaixo.
Raimundo Carrero realizou um desejo antigo – escrever uma resenha da novela “Irene”, de Sérgio Moacir de Albuquerque, falecido ano passado. Segundo Carrero, esse foi um livro revolucionário na estrutura, na temática, no conteúdo e na construção de personagens, que se alteram e se transformam em bichos, automóveis e líderes políticos. Uma obra que, ao mesmo tempo, entusiasma o leitor e é um meta-romance que discute a montagem de um texto e de suas derivações. A idéia de escrever essa resenha é, na verdade, um apelo para que o livro, relíquia em sebos, seja relançado depois de quase três décadas da primeira edição. O Pernambuco abre com uma crônica de Fabrício Carpinejar que faz uma poética explanação do papel da literatura; e Luiz Ruffato escreve sobre o processo de composição do romance “O livro das impossibilidades”, quarto e penúltimo capítulo do projeto “Inferno provisório”, um levantamento da história das classes operárias no Brasil. O Saber + traz um dossiê de Walther MoreiraSantos, pernambucano dono de uma das prosas mais singulares da literatura brasileira contemporânea, ainda pouco conhecido no Estado. Isso sem falar dos poemas inéditos da nova fase de Lucila Nogueira, que ela, falando bem a sério, gosta de dizer que tem forte inspiração emo. É isso, até março e bom Carnaval Schneider Carpeggiani
Bárbara Wagner Uma publicação da
Companhia Editora de Pernambuco - CEPE
Circulação mensal integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco
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GOVERNADOR DO ESTADO DE PERNAMBUCO Eduardo Henrique Accioly Campos
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C rônica
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oltava para casa às seis horas, depois de dançar, beber e tentar ser honesto com a alegria como sou com a minha dor. Busquei repetir a minha adolescência e fui a pé pelas últimas quadras do trajeto. As ruas silenciosas, poucos carros, a movimentação mais ativa dos esgotos do que dos arranha-céus. A letra de Cazuza coçava a língua, como a agulha hesitante no vinil. Ousei sufocar, mas a voz escapou: “O mundo inteiro acordar. E a gente dormir, dormir. Pro dia nascer feliz”. Arrepiante acompanhar a claridade jorrando devagar em Porto Alegre, puxando o cobertor, tirando as cortinas, recolhendo os jornais. Olhar para o lado e de repente não encontrar mais o escuro. Transgressão que somente o boêmio suporta: andar na contramão do corpo. Enquanto os outros despertam, vou me encaminhando para dormir. Perdi de ser vigilante, zelador de prédio, médico plantonista. Usar a minha insônia para ganhar dinheiro, e não perder como costumo fazer nos bares e restaurantes. Na subida da lomba da rua Lageado, encontrei a escritora e amiga Martha Medeiros no meio de sua caminhada. Com iPod nos ouvidos e um ritmo esportivo acelerado. Desenhamos um abraço de alguns minutos. Com papel vegetal do suor. Eu estava de camisa brilhante, jeans e uma fumaça seca que cobria os traços. Quase pálido como uma vela de igreja soprada por não-praticantes. Ela, imponente, de legging preta e uma disposição ultrajante de maratonista. Dourada como uma chama de primeira comunhão. Dois fusos: ela recebendo a luz, eu fechando as janelas. Naquele momento, pensei que deveria fazer o mesmo e mudar de vida: dedicar as folgas para a minha saúde, acordar e dormir cedo, cuidar do pulmão, não sugar minhas forças com o “Jack Daniels” e gritos parados. Ardi em inveja de sua despretensão disciplinada, da longevidade que praticava, do capricho hidratado com a boca, do modo como beijava o vento barbeado. Ela tomaria o café da manhã com calma e simplicidade, desfrutaria da manhã inteira para escrever, algo que somente faria depois do almoço quando curasse minha ressaca. Se o telefone tocasse, não veria mal nenhum em atender. Não sofreria como eu de uma infalível enxaqueca. Entristeci seriamente entre o oi e o tchau. Mas Martha também transparecia irritação. Ao me flagrar regressando de uma festa, vestido com as roupas justas e escandalosas, como se houvesse um alfaiate ensandecido da pele, talvez tenha pensado que deveria fazer o mesmo e mudar de vida: dedicar mais tempo para as baladas, doer os pés com as canções prediletas, recuperar coreografias da adolescência, rir no balcão de um bar, sair mais com os amigos, não se preocupar com a hora de voltar e a hora de amar. Ardeu de inveja de meu desleixo, da aventura inconsequente, da irresponsabilidade corajosa. Concluiu que dormiria até tarde, não me preocuparia com o café da manhã, não precisaria atender ao telefone, descobriria os problemas familiares quando já solucionados e cumpriria a solidão com saborosa preguiça. Nunca estamos satisfeitos por mais que sejamos felizes. Literatura é esse ciúme insuportável que nos põe a imaginar o que o outro faria em nosso lugar. E o que faríamos no lugar do outro. Não estamos nem na gente nem naquele que descrevemos. Se alguém me achar, me devolva. yy
Dedicado a Martha Medeiros
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C omportamento
(EU NÃO CONSIGO)
SATISFAÇÃO Jorge Ventura de Morais
Sociólogo cai em campo para analisar o quanto o que você não come diz sobre quem você é
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ma sociologia da gastronomia com inspiração na obra de Pierre Bourdieu leva-nos a olhar o consumo de alimentos pelo viés de uma hierarquia social particular: é uma espécie de luta pelos bens escassos da recompensa simbólica. Em outras palavras, a luta por distinção. Neste sentido, enfatiza-se o que determinadas classes ou categorias sociais estão propensas a consumir. Tende-se a fazer generalizações do tipo: “Os burgueses comem isto, não comem aquilo”; “Os trabalhadores gostam de comida ‘pesada’”; “Isto parece com um prato de trabalhador” etc. Todas denotam também os pré-conceitos que marcam as distâncias sociais através das quais organizamos nossas vidas e conferimos sentido às nossas ações e às dos outros. No entanto, às vezes, nos deparamos com casos que desafiam a explicação sociológica. Por que, mesmo fazendo parte de um determinado grupo social, desafiamos as generalizações sociológicas e nos comportamos em não conformidade com o esperado, isto é, nos desviando do que os sociólogos e outros cientistas sociais preveriam em termos do nosso comportamento social? Por que, algumas vezes, desafiamos nossas origens sociais em termos de gosto musical, literário e gastronômico? Por que causamos perplexidade nos outros a ponto de perguntarem: “Como você não gosta disto se você é pernambucano (ou nordestino ou sertanejo)? Não acredito!”. Por exemplo, sendo recifense de nascimento, mas tendo vivido parte de minha vida, desde a infância até meus dezenove anos, em Arcoverde, além disso, por mais cinco anos, sob a ditadura militar de 1964, sempre fui cobrado por não gostar da música de Chico Buarque – música de protesto, de gente consciente, não alienada – e preferir os Beatles, Pink Floyd e Led Zeppelin, rock, enfim, coisa de gente alienada, música imperialista. Mais: eu era sertanejo, pelo menos de adoção. Por que então música estrangeira? Recentemente me deparei com mais um caso assim, só que agora no que diz respeito aos hábitos alimentares e me senti inspirado a escrever este artigo. Vamos a ele! Jeffrey Steingarten escreve, em “O homem que comeu de tudo”, que ao receber o convite para se tornar crítico gastronômico da “Vogue” – antes ele era um bem sucedido advogado em Nova York – estabeleceu para si mesmo, antes de aceitá-lo, o compromisso de provar tudo que era comida de que não gostava. Para ele, não se pode ser crítico gastronômico com preconceitos. É razoável! Havia uma lista infindável – mesmo para o homem que comeu de tudo – de
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comidas que ele não conseguia encarar. Entre elas, anchova enlatada. Depois de percorrer o mundo e comer anchovas frescas grelhadas em algum lugar da costa italiana, terminou por aceitar as anchovas de qualquer forma. Porém, ao final, ele continuou sem conseguir encarar comidas “azuis” e sobremesas indianas. Por que? Não sei, e Steingarten não dá resposta. Só sei que este é o tipo de problema que desafia a explicação sociológica... Pois bem! Fiquei fascinado por um aspecto dessa história, o negativo, digamos assim! Ou seja, do que é que continuamos a não gostar mesmo depois de toda a educação gastronômica pela qual passamos ao longo de nossas vidas? Obviamente, não estou pensando em interdições médicas ou religiosas. Gostaria de relatar uma coleção de “desgostos” gastronômicos que são em si mesmos engraçados, ou trágicos, a depender do ponto de vista. E, se possível, oferecer uma explicação sociológica, mesmo que parcial, para alguns dos casos. Começo por mim: não tolero jerimum (à vista de um já me vem à mente porcos se alimentando). Inclusive, quase que já provoquei uma pequena “tragédia familiar”, um mal-estar, por causa dos meus maus modos, no dia em que fiquei com fome porque minha sogra resolveu servir um cozido com jerimum. Quiabo e maxixe também me enojam, pois ambos me lembram de alguém babando nas “últimas” horas. Decidi, então, ir a campo – como se diz em sociologia e antropologia – e perguntar a alguns dos meus amigos o que é que eles não conseguem comer. Inquiri-os acerca do que é que lhes irrita o paladar, que lhes provoca ânsias e náuseas. Com a maioria desses amigos e amigas referidos abaixo já tive excelentes experiências gastronômicas: já cozinhamos juntos, já fomos a restaurantes juntos, já participamos juntos de almoços e jantares comemorativos. Ou pelo menos já conversamos sobre gastronomia... Ou seja, de alguma forma, todos cultivam a gastronomia. Tenho um amigo, que é curador na área de artes plásticas, e com quem frequentei boas lojas de vinho e queijos durante nosso doutorado em Londres. E eis que ele me respondeu que fígado não tem vez com ele, porque, nas suas próprias palavras, “‘aquilo’ não irá se desmanchar nunca ‘lá dentro’”. Talvez a sensação daquela coisa meio gosmenta, de aspecto meio horripilante dançando intacta dentro de si. E uma amiga, que é médica, me disse que detesta acarajé e qualquer coisa que leve azeite de dendê. Simplesmente não consegue encarar. Mas não sabe a razão. Dado o seu conhecimento da biologia humana, chegou a apelar para a
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DOCE AZEDO SALGADO
existência de um hipotético “gene gastronômico” que a faz recusar de forma peremptória a iguaria baiana. Um colega de trabalho citou qualquer tipo de “papa”, de aveia e de outros tipos como não tendo vez com ele. Acrescentou, além disso, arroz doce e, para minha glória, jerimum. As razões? Não sabe! Talvez alguma terapia o ajude a recuperar a culpa de sua mãe nisto tudo na sua infância. Uma ex-orientanda minha em sociologia e com excelente trânsito na obra de Pierre Bourdieu não come beterraba (porque tem sabor de terra), frutas cristalizadas (têm texturas que lhe dão ânsia de vômito) e cebola crua e pimentão verde, cujas texturas lembram plástico. Por fim, ela recusa o popular frango guisado com pele, pois parece lembrar-lhe a ingestão do “bicho vivinho da silva”. Outro colega de trabalho, grande amigo e cozinheiro de primeira, que uma vez cometeu o erro de me oferecer farofa de jerimum – em um almoço especialmente feito para mim, quando voltei ao Recife depois de quatro anos em Londres, a qual tive o desplante de, sem disfarces, recusar peremptoriamente sem atenção ou delicadeza para com ele –, por sua vez não quer ver pela frente fruta-pão. Além disso, não lhe ofereçam aquela mistura que faz a alegria de nossas crianças (e também de alguns adultos) em nossas “pizzarias”: pizza com maionese e catchup. Mas aqui, somente neste segundo “desgosto”, acho que temos uma possível explicação sociológica: certamente, dado o alto grau de seu capital cultural (o estoque de conhecimentos que temos e exibimos na interpretação dos bens simbólicos), este amigo aprendeu que a pizza não combina com tais ingredientes, a não ser para crianças, ainda sem educação gastronômica, e adultos rudes no que respeita ao montante de capital cultural adquirido. Mais um colega de trabalho, parceiro em algumas pesquisas em sociologia. Ele detesta qualquer tipo de prato à base de vísceras, o que inclui buchada, sarapatel e assemelhados. E me deixa escandalizado, pois adora jerimum. Outra amiga, que é arquiteta e artista plástica, tendo viajado por muitos lugares e experimentado as mais diversas tradições culinárias, me respondeu que, por causa do cheiro, não aguenta nem pensar em dobradinha ou buchada, tal como o amigo referido no parágrafo anterior. Ela concorda comigo que quiabo e maxixe têm um aspecto horripilante, e acrescenta que não suporta ova de peixe. Minha querida esposa, que me acompanha nas minhas aventuras culinárias e gastronômicas, na nossa cozinha e em restaurantes das mais diversas tradições, e que me instiga
nesta busca sem fim pelos sabores que consigam nos levar a um sempre novo êxtase gastronômico, concorda com a nossa amiga arquiteta, e torce o rosto, faz careta e foge em disparada de ova de peixe. Mas a resposta mais engraçada, se assim posso falar, que recebi foi a de um caríssimo amigo, que não suporta... a inocente graviola. A repulsa, que vem desde a mais tenra infância, recebeu uma explicação, em conversa com um pescador de uma praia perdida no vizinho estado de Alagoas, que disse que graviola é “a única fruta ruim, pois tem fesso”. Meu amigo nunca soube o que fesso (a gente nem sabe se se escreve assim) quer dizer, por mais que perguntasse ao pescador, mas guardou a explicação para quando alguém lhe pergunta do inusitado “desgosto” pela inocente fruta: “É por causa do fesso!”. Ou seja, somos todos nordestinos e pernambucanos, pelo menos de adoção, mas há de se notar que ninguém citou comidas exóticas, de outras paragens, do tipo “comida japonesa, pois não tenho coragem de comer peixe cru”. Entre nós há aqueles que não comem frutas (graviola) e tubérculos (beterraba) ou carnes/vísceras (buchada) comuníssimos à nossa mesa regional. É isto que me fascinou neste tópico: o aparentemente inexplicável no nosso (des)gosto em termos de gastronomia. Comecei dizendo que tais “desgostos” desafiam a explicação sociológica, mas isto não significa que não possamos tentá-la. Realmente, não tenho nenhuma pista acerca do porquê não se gostar de alguns legumes e/ou frutas. Talvez seja o caso de, se tivesse a competência acadêmica, recorrer à psicologia. No entanto, vou procurar oferecer uma resposta, em termos socioantropológicos acerca da repulsa pelas vísceras. Aqui vai! Percebemos que os outros (des)gostos referem-se a vísceras ou órgãos. Podemos recorrer ao dualismo sagradoprofano de um dos pais fundadores da sociologia – Émile Durkheim – para entendermos o problema. O sagrado não se refere somente às coisas da religião, pois se espraia aos significados que são atribuídos aos atos e objetos da vida social. O mesmo fenômeno ocorre com a categoria de profano. Dessa forma, podemos entender porque muitos recusam vísceras/órgãos. Eles são vistos como carregando a nossa sujeira (=profano) interna, como aquilo que tem a função de eliminar a poluição dos nossos corpos. Assim, alguns de nós carregamos uma interdição com relação a tais alimentos. E você não tem fome de quê? yy
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Pesquisa da pós-graduação em Sociologia na UFPE analisa como as revistas de celebridades são consumidas nos salões de beleza
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dia começa do mesmo jeito ordinário de sempre: ela acorda ao lado do marido e dirige-se ao banheiro vestida com a velha camiseta de algodão (na qual pode estar escrito desde “Terceiro Encontro da Turma de 72” a “Mamãe, você é tudo para mim”). Olha-se no espelho, confere a sobrancelha por fazer e o esmalte descascado: ilumina-se. O dia, enfim, não é tão ordinário assim. Tem hora marcada com a cabeleireira, a manicure, a depiladora e uma dezena de celebridades de papel. É sábado, quando ela religiosamente passa pela porta do maravilhoso mundo salão de beleza e renova a fé em uma semana mais feliz a partir do momento em que escolhe entre um esmalte vermelho-tomate ou um rosa-areia para colorir as unhas. O sentimento de esperança se repete nos cerca de quatro mil salões existentes em Pernambuco, locais onde a solução para o casamento arruinado daquele par de famosos ou o olhar de admiração para as novas madeixas exibidas pela atriz da novela das oito são fatores constantes. Nesse sentido, revistas como “Caras”, ”Quem” e “Contigo!” atuam como verdadeiros catalisadores: de suas páginas onde se veem estrelas (ou candidatas ao posto) relaxando em banheiras de espuma ou mostrando o novo apartamento, nascem comentários que servem para aglutinar clientes-leitoras, revelando desejos coletivos e demonstrando que a vida vivida pelos outros pode servir como exemplo para entender a nossa própria existência. “Tem gente que chega aqui, pega uma revista, faz as unhas e, mesmo depois que termina, vai para o sofá e fica horas ali lendo a ‘Caras’”, conta Sayonara, loura responsável por arrancar os pelos indesejáveis das clientes que procuram seu salão nas Graças. Ali, em um grande centro quadrado, estrategicamente posicionado entre dois sofás de veludo laranja, repousam dezenas de edições das supracitadas publicações semanais (são mais de cinco assinaturas), além de revistas de fitness, noivas e jornais do dia. Várias delas estão com o aspecto bem gasto – já rodaram na mão de tantas mulheres que, apesar de novas, parecem objeto do ano passado. Algumas tiveram suas páginas arrancadas. “É que a cliente vê uma celebridade com um vestido bonito aí quer copiar. Tem gente que pede a revista toda, mas outras levam a página sem a gente saber”, conta Say (como a depiladora é costumeiramente chamada), há quinze anos trabalhando em salões. Assim, por conta das folhas surrupiadas, é comum, ao folhear uma revista, dar de cara com apenas a metade do rosto do famoso ou só uma parte de um casal de celebridades (horror maior: é comum perder o desfecho de uma entrevista “reveladora” de uma estrela há alguns dias longe dos semanários). No salão no qual Sayonara passa até doze horas por dia, a “Caras” é a revista mais procurada, enquanto a “Veja” não tem lá esse Ibope todo. Geralmente, quem lê o último semanário são os homens. Eles, ao que parece, até arriscam uma olhadinha nas fotos quase gastronômicas dos semanários de famosos, mas temem ter suas masculinidades arranhadas se pegos com uma “Quem” nas mãos. Os jornais locais são outra leitura procurada pelo público masculino, que muitas vezes adentra o sacrossanto espaço do salão de beleza apenas para acompanhar a querida companheira. Ali, enquanto está com os pés em um recipiente cheio de água, ela olha o corpo da mocinha que perdeu quinze quilos e suspira. “Elas conseguem isso porque têm dinheiro”, é um comentário comum. Nas outras cadeiras do salão movimentado, ainda ouvem-se outras falas localizadas entre a inveja, a compensação e algum despeito. “Olha só, teve dois filhos e ainda tem esse corpo”. “A gente pensa que isso não acontece na vida de gente famosa, mas olha aí”. “Se eu usasse isso, o povo ia falar que era ridículo”.
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EUVEJOAVID Fotos: Bárbara Wagner
Fabiana Moraes
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IDAMELHORNOFUTURO
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al falatório, é curioso observar, não se repete com a mesma força em locais frequentados por clientes de maior poder aquisitivo. O fato é comprovado tanto pela depiladora Say, que trabalhou em um salão num grande shopping do Recife, quanto pela manicure Cecy, exfuncionária de um centro estético grã-fino que hoje cuida de unhas e sobrancelhas de mulheres de classe média. “No lugar mais chique, se conversa menos. A cliente chega, lê a revista, faz a unha e vai embora muitas vezes sem comentar nada”, conta ela. “No shopping, as mulheres falam bem menos sobre revista, mas sabemos sobre suas vidas”, complementa Sayonara, que entrega uma prática comum entre as bem-sucedidas clientes de seu ex-local de trabalho: para muitas, o salão serve como desculpa para encobrir encontros extraconjugais. “Elas marcavam hora e não apareciam. Mas se o marido ligava para saber se elas estavam por lá, confirmávamos”. A manicure Carmem, que não gosta muito das revistas de celebridade – até folheia, mas não tem paciência para ler as matérias, “só quando a fofoca é boa” – conta que, diversas vezes, as agruras passadas por uma mocinha famosa (ainda que ela tenha mais de sessenta anos) já provocou verdadeiros debates dentro do salão de beleza. Da escolha da roupa até a escolha do marido, tudo pode ser motivo para pequenas e inflamadas conferências realizadas ao som monótono dos secadores de cabelo. As mulheres mais maduras, conta a tímida Carmem, são as que mais se envolvem na fofoca, enquanto as adolescentes preferem ler as últimas sobre o casamento de Sandy, o show dos Jonas Brothers, a namorada do príncipe William, e guardar tudo para si. Numa enquete rápida realizada entre as profissionais entrevistadas para esta matéria, as oito mais do hit-parade do salão de beleza são Juliana Paes, Suzana Vieira, Ivete Sangalo, Xuxa, Ana Maria Braga, Luiza Brunet, Deborah Secco e Adriane Galisteu. As mais comentadas, as mais criticadas e sucessivamente copiadas. “Quero o cabelo igual ao dela”, pede a jovem senhora com uma Ana Maria Braga de papel na mão ao cabeleireiro Edmilson, “uma grife”, como ele mesmo diz, no bairro do Vasco da Gama. “O cabelo dela ainda é muito pedido, faço muito. Não tem jeito, é a televisão que determina o que mais se vende”, comenta o rapaz (ele agradece se for chamado de Ed, “porque Edmilson é nome de mecânico,
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não de um homossexual como eu”). Em seu pequeno salão, onde os pagamentos são feitos invariavelmente com cartão de crédito (Hipercard), não há tantos semanários de famosos – culpa de alguns clientes, que, como no salão das Graças, também levam uma revistinha de souvenir. Por outro lado, também são vários deles que oferecem a Ed títulos como “Arquitetura e construção”, “Bravo”, “Estilo” e “Piscinas” – além, é claro, de publicações como “Caras”. Apesar da diferença substancial de renda familiar (a renda média de um morador das Graças é de R$ 3.589,62, enquanto no Vasco é de R$ 317,76)*, o salão do Vasco da Gama ainda guarda outra similaridade em relação ao salão das Graças: no sofá de Ed, várias clientes também passam boa parte do dia entre revistas e comentários sobre a vida da vizinhança. “Algumas entram aqui, pegam logo quatro revistas e só vão embora depois que leem tudo. Tá lavando o cabelo e agarrada com a revista. Termina o cabelo e continua no salão”, diz ele, que critica uma das práticas da revista “Caras”. “Ela é cruel, já abre a matéria entregando a idade do povo”. Leitor contumaz das publicações e solidário com a vida doida das celebrities (“eu também sou uma pessoa pública, entendo o que elas passam, por isso defendo”), Ed faz uma interessante e reveladora distinção entre os semanários de famosos e as revistas “de informação”. “Eu leio ‘Veja’, ‘Época’ e os jornais para me informar, e no caso isso não é possível com uma revista de celebridade”. Pela terceira vez no salão para continuar seu tratamento capilar – está fazendo uma escova progressiva, que custa cerca de setenta reais cada sessão – Márcia (nome fictício), concorda com Ed e confirma o lugar meramente lúdico que os leitores conferem às celebrities magazines. “Eu às vezes folheio, mas prefiro ler jornal, ler livro”, diz ela. Interessante mesmo é o comentário de Ed sobre a tal procura pelos jornais: “Pode ter certeza que a página de televisão é a mais procurada”. Pois é: o significado de uma matéria sobre Galisteu muda um bocado caso ela seja publicada em um caderno cultural ou numa “Contigo!”, mas a vontade ancestral de saber o motivo do coração partido daquele famoso, seja ela no jornal sério ou na revista de celebridade, certamente é a mesma. yy * Dados referentes ao ano de 2000, publicados no “Atlas de desenvolvimento humano do Recife”, realizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).
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Patrícia Amorim
Nem tudo é superfície na longa e extravagante carreira das suas revistas de celebridade
Fotos: Bárbara Wagner
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Splash Grafismo sintetizando uma explosão
Serifa Traço adicionado ao início ou ao fim dos traços principais de uma letra, como na fonte Times New Roman Caixa-alta Letra maiúscula Bullet Ícones que marcam a entrada de itens numa lista
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e algum dia na vida, por uma dessas razões que a gente desconhece, você se encontrar vagando pelas ruas da Estônia, esteja certo de uma coisa: na banca de revistas mais próxima será possível repousar a vista cansada das novidades bálticas sobre um petardo midiático bastante familiar. É que mesmo sem entender uma linha de estoniano, não há como ignorar os farfalhantes contornos gráficos de uma suculenta revista de celebridades. Na capa de “Just!”, uma das publicações dedicadas à cobertura das peripécias de astros e estrelas da Europa Setentrional, splashes em amarelo e ciano disputam a atenção do leitor em meio a inúmeras chamadas salpicadas entre fotos de louras sorridentes. Numa das fotos menores, encaixada em moldura circular, uma moça com olhar tenso dá pistas de que nem tudo são flores no Olimpo. Já na foto maior, o ator Rain Tolk ganha um beijinho de uma bonita morena, e duas largas e eloquentes faixas amarelas na diagonal anunciam, com letras garrafais em ciano e magenta, que o rapaz vai mesmo “saab isaks!”. Seja lá o que isso for, ele parece gostar. Assim, nada em “Just!” é muito diferente do que estamos acostumados a ler em bancas e salões de beleza tupiniquins. É bem verdade que os editores estonianos dispensam a tarjinha preta que oculta o que Britney Spears e Lindsey Lohan esqueceram de cobrir um dia. Mas estão igualmente determinados a cavar o escândalo da próxima semana e a descobrir o tanto de letras, cores e fuxicos que é possível acomodar numa folha de papel couché de 20cm x 26cm. Seguindo essa receita, revistas de celebridades em todo o mundo conseguiram assegurar não apenas um lugar recheado de cifras no mercado editorial, mas também uma identidade visual singular, e o mais impressionante, compartilhada internacionalmente. Um feito e tanto para um exemplo de design gráfico de gosto, digamos, duvidoso, na maioria das vezes. Mas nem por isso menos eficaz, afinal, em qualquer idioma, basta bater o olho na capa para saber se é fofoca. Atenta à poderosa semântica desse tipo de discurso visual, a publicação canadense anti-establishment “Adbusters” não pensou duas vezes em recorrer à inconfundível estética das populares revistas de celebridades para criar o layout de capa de sua edição de março de 2008. Condenando, em sua matéria principal, o estilo “cool” de ser segundo o departamento de marketing das grandes corporações, a revista decidiu mudar de cara especialmente para aquele número. Redesenhou seu logotipo ao estilo da “People”, abusou das cores vibrantes, fotos e elementos gráficos em suas chamadas, abriu uma foto de Paris Hilton fazendo beicinho em um talk-show e bradou em Akzidenz Grotesk Super (fonte perfeita para ser lida a distância): “Cool colapses! Can it make a comeback?”. O recado estava dado. A evolução desse léxico graficoeditorial remonta aos tablóides e pulp magazines americanos publicados nos anos vinte e trinta, com suas cores vívidas, chamadas insidiosas e tipografia impactante, características de revistas como “Whisper” e “Hush-Hush”. Já no Brasil, o interesse em ler sobre a vida e a intimidade dos artistas começa na década de 1940, com a “Revista do rádio” e “Radiolândia”. Em ambas as publicações era comum o emprego de poucas chamadas de capa. Visualmente discretas, mas nem por isso menos sensacionalistas (“Cantor faz sucesso... depois de morto” , “Quem acabou com Maysa...”), muitas vezes concentravam-se em uma das margens laterais da página. Nesse layout, coroada por um indefectível logotipo em amarelo, vermelho e preto, cabia a uma única foto o papel de seduzir as coquetes leitoras da era do rádio. Os anos 1970, por sua vez, marcaram a febre das telenovelas e o surgimento das revistas especializadas em TV, como “Contigo!”, “Intervalo”, “Amiga”, “Sétimo Céu” e “Cartaz”. Nesse período, o apelo irresistível dos folhetins eletrônicos acabou por suplantar as fotonovelas, sucesso no Brasil desde a década de 1940, levando publicações de entretenimento a estamparem em suas capas as estrelas da televisão e seus dilemas, fossem eles reais, ficcionais ou mesmo inventados. É nesse momento que o padrão gráfico “clássico” das capas de revistas de fofoca e celebridades começa a se cristalizar no país. O logotipo, como acontece em “Amiga”, é reduzido e alinhado à esquerda, tornando fácil a identificação da revista nas bancas e abrindo espaço para mais chamadas. O número de fotos também aumenta, permitindo que o conteúdo da edição seja melhor explorado. Quanto ao tratamento tipográfico, fontes sem serifa, como a Arial, predominam, aparecendo em caixa-alta e negrito. Ao uso das cores amarelo, vermelho, branco, magenta e ciano, somam-se elementos visuais como splashs e faixas, molduras para as fotos menores, quadros e bullets . Segundo tais combinações tipográficas, foram impressas, durante décadas, chamadas de capa como “Conheça os feios que estão na moda” (“Sétimo Céu”), “Fofoca. A verdade sobre a separação de Ivan e Lucinha Lins” (“Amiga”), “Etty Fraser conta como é fácil viver com seus 115 quilos!” (“Ilusão”), “Grátis! Presente especial para as crianças. Um poster do Bozo” (“Amiga”), “Jesus e Madonna. As primeiras polêmicas deste romance” (“Tevê Brasil”). No miolo da revista, o design também desempenha papel importante na valorização (ou não) do que é noticiado. Uma matéria de dez linhas sobre a gravidez da atriz Samara Felippo, que numa revista ganhou um quarto de página, em outra ostentou uma chamada de capa e uma página interna inteirinha. Tudo isso à base de fotos e fontes maiores, além de balões e quadros realçando as declarações da futura mamãe. Falar numa estética própria das revistas de celebridades, entretanto, não significa dizer que todas são iguais. Entre os títulos semanais mais populares atualmente, que custam entre R$ 1,89 e R$ 2,90, como “Tititi”, “Minha novela”, “Conta mais”, “Tevê Brasil” e “Guia da Tevê”, confirma-se que a diagramação tende a ser mais caótica nos títulos produzidos por redações com baixo orçamento. Ali as editorias de arte são reduzidas e, muitas vezes, um ou dois funcionários com pouca ou nenhuma base teórica em design são responsáveis pelo visual de toda a publicação. A revista “Tititi”, por outro lado, tem conseguido articular, com bom senso, o repertório visual extravagante que lhe é apropriado, da capa ao miolo. Indo assim de encontro à crença de que leitoras da classe C não dão importância à elegância visual ou a textos mal escritos. Entre os principais nomes desse segmento, como “Caras”, “Quem acontece”, “Istoé gente” e “Contigo!”, o vermelho e o furor tipográfico na capa permanecem, mas o foco no público feminino das classes A e B vem impondo maior apuro ao projeto gráfico. É verdade que, nesse quesito, “Caras” fica em débito, com um layout interno caduco. Mas a bem realizada “Contigo!” e, especialmente, a relançada “Chiques & famosos“ – a qual destaca-se pela valorização dos brancos da página e pelo belo arranjo tipográfico capitaneado pela fonte Bodoni –, apontam que a fofoca pode sim ser classuda, pelo menos visualmente. yy
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ara falar do meu mais recente “romance”, “O livro das impossibilidades”, quarto e penúltimo volume do projeto “Inferno provisório”, torna-se necessário voltar bastante no tempo. Quando, em 1979, entrei no curso de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora, passei a conviver, entusiasmado, com um grupo de jovens idealistas que amavam, com igual fervor, a literatura e a política. Vivíamos os estertores da ditadura militar e deixávamos que os eflúvios da poesia contaminassem a rudeza da militância ideológica. Naquele ano, incentivado por um amigo, poeta infelizmente desaparecido, José Henrique da Cruz, publiquei uma pequena plaquete, intitulada “O homem que tece”, que trazia a singela dedicatória: “Aos operários de Cataguases”. Evidentemente, tratava-se de poemas de parco rigor técnico, mas que apontavam para uma preocupação que iria me perseguir pela vida afora: a literatura como forma de engajamento político. A partir desta primeira tentativa, passei a querer compreender o processo da escrita como forma de expressão. Eu dominava um tema, que me era bastante caro e próximo, a vida operária (eu e meu irmão, torneiros-mecânicos; minha irmã, tecelã; meus amigos, industriários), mas não possuía os instrumentos necessários para edificar uma obra. Para mim, não fazia sentido dissertar sobre a questão do proletariado usando a forma do romance burguês tal qual o conhecemos, uma narrativa que, mesmo quando se quer caótica, pretende, como fim último, a ordenação do mundo. Eu desejava algo que trouxesse, como forma, a própria essência do impasse da nossa sociedade. Passei quase vinte anos estudando esse problema. Autores da década de 1970 sugeriam alguns caminhos (“Zero”, de Ignácio de Loyola Brandão; “A festa”, de Ivan Ângelo), mas a chave encontrei-a em... Machado de Assis. Para além de ser um dos maiores escritores de todos os tempos em qualquer língua, Machado de Assis é também extremamente generoso com quem aceita compreendê-lo. Por meio dele, descobri Sterne e Xavier de Maistre; e, por seus olhos, reli Honoré de Balzac e Stendhal; e, por mecanismos descritos pelo
crítico Harold Bloom como “angústia da influência”, busquei a literatura de vanguarda francesa do fim do Século XIX (Baudelaire, Mallarmé), e a prosa de vanguarda do começo do Século XX (Dujardin, Joyce, Faulkner), e seus sucessores no tempo, o nouveau roman, o grupo Oulipo... e o pós-moderno Miguel de Cervantes. Em 1998, senti-me então pronto para iniciar-me como escritor: publiquei uma coletânea intitulada “Histórias de remorsos e rancores”, seguida, dois anos depois, por outra, “Os sobreviventes”, ambas tendo como tema a vida operária. Mas, frustrado, percebi que formalmente ainda não me satisfaziam... Somente com o lançamento, em 2001, do que chamo de “instalação literária”, “Eles eram muitos cavalos”, um livro que tem como personagem a cidade de São Paulo, é que compreendi o que queria. Então, durante mais quatro anos, refiz o projeto, já agora intitulado “Inferno provisório”, que objetiva refletir a respeito da formação da classe operária brasileira, sob a pergunta: Como chegamos onde estamos? Para isso, sacrifiquei meus dois primeiros livros, que, reescritos e reembaralhados, transformaram-se nos dois primeiros volumes do projeto “Inferno provisório”: “Mamma, son tanto felice” é uma reapropriação de “Os sobreviventes” e “O mundo inimigo”, uma reapropriação de “Histórias de remorsos e rancores”, ambos lançados em 2005. De lá para cá, saíram mais dois volumes, “Vista parcial da noite” e “O livro das impossibilidades”. Em suma, o que persigo é estudar o impacto das mudanças objetivas (a troca do espaço amplo pela exiguidade, a economia de subsistência pelo salário etc.) na subjetividade dos personagens. E para concretizar esse projeto, assumo o risco de problematizar também o conceito de romance: cada volume é composto de várias “histórias”, unidades compreensíveis se lidas separadamente, mas funcionalmente interligadas, pois que se desdobram e se explicam e se espraiam umas nas outras. Personagens secundárias aqui, tornam-se protagonistas ali; personagens apenas vislumbradas ali, mais à frente se concretizam. E a linguagem acompanha essa turbulência – não a composição, mas a decomposição. yy
Autor explica como sua obra procura transformar personagens historicamente secundários em protagonistas Luiz Ruffato
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um inverno cruel, ilhada pela neve, não resisti em espiar o carnaval do Galo da Madrugada pela Internet. Devido às maravilhas da tecnologia, pude ver as ruas apinhadas, sentir o cheiro de suor e o gosto da cerveja. Não consegui evitar a lágrima de saudade. A única coisa que aliviava a tristeza era saber que, enquanto todos queimavam a moleira, eu estava no ar condicionado terminando meu dia de trabalho. Eis que, para encerrar a noite, Asha, minha gerente, coça a cabeça, num gesto típico dos chineses de interrogação, e pergunta: “Você está triste por que não está aí?”. Termina a pergunta com uma cara de nojo. Asha se recusava a entender o que levava tanta gente para a rua, por que eles pulavam como loucos e qual o prazer de dançar de forma desordenada. “Como uma nuvem de gafanhoto entrando na roça”, ela definiu. Não adiantou explicar a vibe da liberdade, da confraternização, de celebrar todas as classes unidas. A julgar que liberdade para os chineses pode ser “demais”, confraternização significa estar sentado numa mesa redonda comendo até se empanturrar. Meus esforços seriam em vão. Certa vez, li num semanário brasileiro, que o povo chinês era urgente por felicidade. A repórter acabara de chegar à China da Olimpíada e fizera tal leitura tamanha a extravagância para preparar a capital Beijing para receber a pira e abrir a cerimônia dos jogos. Imediatamente, veio a cena à mente do que seria urgência por felicidade: à brasileira, uma ladeira de Olinda repleta de gente pulando como pipoca; ou a Sapucaí tremendo de tanta gente sambando.
OBS: Estamos no Ano Chinês do
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Felicidade é algo subjetivo. Claro. Mas, confesso que, para entender quando e como os chineses exprimem a sua alegria, custou um pouco. Poucos dias depois, começava o Ano Novo Chinês. Aí, quem fez cara de interrogação fui eu. É preciso entender a adoração do chinês pela comida. Ok, todo mundo gosta de uma tertúlia. Mas a possibilidade de a comida não acabar é mais que suficiente para ser a farra do ano. Depois das refeições, sempre vem o fatídico karaokê. Nem pensem que as pessoas vão cantar de forma relaxada, entoar o brega do ano ou aquela música de mexer os quadris. Começa uma competição louca para quem tem o melhor desempenho, no maior estilo “Qual é a música?”, do Sílvio Santos, ou desses programas de competição de calouros. O ritmo, para completar, é a melancolia. A mulher que foi largada. O casamento proibido. E tome açúcar. Claro que o meu tédio poderia ser compensado pelo belíssimo show de fogos de artifício e pelas curiosidades místicas que chegam com o Ano Novo Chinês. Em vez de saúde, deseja-se: “Fique rico”. No lugar do presente, uma sacola vermelha com dinheiro dentro. Com um detalhe: se você não quiser ser grosso, precisa carregar várias bolsas para entregar a qualquer “coleguinha” mais jovem que dispare: “Hong Bao Nao lai”. E tome golpe. Eu ainda pensava no Carnaval democrático de Pernambuco. Aí, lembrei, novamente, do comentário da repórter: “O chinês é um povo urgente por felicidade”. Como cabeça vazia deve-se preencher de uma forma apropriada, inventei de fazer as conexões com o passado para justificar esse jeito chinês de ser. A fixação pela comida? Claro! Anos de fome unidos ao orgulho nacional pela “melhor comida do mundo”. O karaokê? Bem dê a César o que é de César. Os chineses, com tamanhos “ins”, “ons” na fala, só podiam ter uma afinação daquelas. Sem falar que a falta de quadril na genética também desfavorece o requebrado. Ora, convenhamos! Já a melancolia das canções deve ser para que essa nação, onde a regra geral é “casamento é uma coisa, amor, outra”, se reconheça nas letras cheias de sofrimento. Perdão por toda essa liberdade “antropológica”. Desculpas pela ousadia em determinar “o que é bom, ou ruim”. Ah, esse povo que urge por felicidade... Terminei a experiência do meu primeiro carnaval longe das ladeiras desconfiada que isso, nós, brasileiros, temos demais. yy
, tempo de recuperação.
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