Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco nº 38 - Distribuição gratuita 1
Qual o papel e o futuro dos cadernos de cultura? Editores do Viver, Caderno C e Programa definem as diretrizes das suas pautas
HÉLDER TAVARES
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ESTREIA
Raimundo Carrero desvenda o jogo de sedução por trás dos diálogos em sua nova coluna
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A Cosac Naify e a importância do livro como objeto de desejo
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GALERIA
DAM I ÃO SAN TAN A Damião é designer e professor de fotografia da Aeso Barros Melo. A foto foi realizada com uma Holga, uma câmera médio formato totalmente de plástico, usando cromo Kodak com dois anos de expirado, revelado em processo cruzado, e tirada no inverno de 2007, na praia de Maracaípe/PE.
CA RTA DO E DITO R No primeiro dia de uma aula do curso de Letras, você escuta a pergunta que continuará a ouvir repetidamente, até o fim dos tempos e, como acontece com todas as boas perguntas, a resposta é o que menos importa: “O que é literatura?”. São tantas definições e tantas certezas incertas que, ainda bem, nunca se chega a um consenso. E talvez seja o fascínio por essa indefinição que mobilize a equipe que faz o Pernambuco em sempre querer se renovar e levar para o leitor, a cada mês, um produto novo, explorando as várias possibilidades da relação do homem com a palavra. A partir deste mês, o jornal passa por uma série de mudanças. A primeira, é claro, é visual, com novo projeto gráfico e formato, que deixam o conteúdo mais ágil, melhor de ler, sem abrir mão da nossa principal meta editorial desde o princípio: aprofundar as discussões. Raimundo Carrero estreia uma coluna mensal em que, no formato de uma conversa com o leitor (sempre cheia de humor, como é seu estilo), dá prosseguimento às suas famosas oficinas literárias. Em Novo olhar, um artista vai ser convidado a cada mês para
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reinterpretar um trecho de uma obra literária. Como estamos em clima de começos, o ilustrador Raul Aguiar repensa o nascimento de um personagem, como uma vez imaginado por Osman Lins em Avalovara. Cheia de humor, a seção Descanse em paz vai “desenterrar” obras que, de tão frutos do seu tempo, ficaram presas nele. A estreia ficou nas mãos de Flávia de Gusmão, que disseca o romance Medo de voar. A reportagem de capa analisa o jornalismo cultural a partir do trabalho feito nos suplementos dos jornais. Para materializar a discussão, convidamos os editores de Cultura dos três maiores jornais locais para definirem o perfil dos seus cadernos. Para acompanhar, um artigo da jornalista e doutora em sociologia, Carolina Leão, polemiza que jornalismo cultural parece, mas não é jornalismo. A discussão continua com a entrevista que Rogério Pereira, editor do Rascunho, teve com Heloísa Buarque de Holanda, um dos nomes mais atuantes e polêmicos da cultura brasileira, prestes a completar 70 anos. Esperamos que vocês gostem das mudanças. Boa leitura!
GOVERNADOR DO ESTADO DE PERNAMBUCO Governador Eduardo Campos SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Ricardo Leitão COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO - CEPE Presidente Leda Alves Diretor de Produção e Edição Ricardo Melo Diretor Administrativo e Financeiro Braulio Menezes CONSELHO EDITORIAL: Mário Hélio (Presidente) Cristhiane Cordeiro José Luiz Mota Menezes Luís Augusto Reis Luzilá Gonçalves Ferreira
SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO Adriana Dória Matos SUPERINTENDENTE DE CRIAÇÃO Luiz Arrais REDAÇÃO, ARTE E REVISÃO Raimundo Carrero, Schneider Carpeggiani, Flávio Pessoa, Marco Polo, Gilson Oliveira, Mariza Pontes, Militão Marques, Flora Pimentel PRODUÇÃO GRÁFICA Júlio Gonçalves, Joselma Firmino, Eliseu Souza, Sóstenes Fernandes, Roberto Bandeira MARKETING E PUBLICIDADE Armando Lemos, Alexandre Monteiro, Rosana Galvão COMERCIAL E CIRCULAÇÃO Gilberto Silva
PERNAMBUCO é uma publicação da Companhia Editoras de Pernambuco - CEPE Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife CEP: 50100-140 Contatos com a Redação 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
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BASTIDORES
Apenas mais uma de amor?
Escritor gaúcho descreve os conflitos com os limites ficcionais que geraram o romance Cordilheira Daniel Galera
O AUTOR Daniel Galera publicou ainda Mãos de cavalo e Até o dia em que o cão morreu, ambos pela Companhia das Letras, e mantém o site www.ranchocarne.org.
O LIVRO Cordilheira Editora Cia. das Letras Páginas 176 Preço R$ 37
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IMAGENS: DIVULGAÇÃO
“Eu queria mesmo ter filhos aos cinquenta ou sessenta. Até lá a medicina já vai permitir isso”. A guria que me disse isso era brasileira e tinha vinte e poucos anos. Era uma tarde de abril de 2007 em Buenos Aires, numa calçada da Avenida Corrientes. Como participante do projeto Amores Expressos, eu estava passando um mês na capital argentina para pesquisar um novo romance. A frase que escutei aquela tarde – como tantas outras coisas que escutei, vi e experimentei naquela cidade – acabou entrando em Cordilheira. Mas as idéias por trás desse romance nasceram antes, ainda em 2006, pouco depois do lançamento de Mãos de cavalo. Primeiro foi a leitura de O negro dorso do tempo, de Javier Marías. Numa época em que eu andava refletindo sobre o significado de coisas como autoria, identidade, exposição da privacidade e os limites entre biografia e ficção na literatura, o romance de Marías forneceu a faísca inicial para meu projeto seguinte. Decidi que queria escrever um romance ao redor de uma intriga literária em que noções de realidade e ficção se borrassem. Tratar das formas como a literatura pode interferir na vida de autores e leitores, dos mistérios e enganos que cercam a vida literária. Imaginei uma jovem autora às voltas com um grupo de escritores excêntricos que se interessa nem tanto por ela, e sim por um de seus personagens. Uma autora, e não um autor. Naqueles dias eu já tinha decidido que meu próximo livro seria protagonizado por uma mulher. Além do mero desejo de variar meu tema, estava convicto de que as mulheres contemporâneas, com suas vidas atribuladas por novos objetivos e valores, davam assunto bem mais complexo e intrigante do que os estagnados narradores masculinos. Um conflito em particular me interessou: o choque do instinto materno com os ideais de independência, realização afetiva e sucesso profissional que fazem muitas jovens mulheres adiarem cada vez mais a realização do desejo de ser mãe. Assim nasceu Anita van der Goltz Vianna (sobrenome emprestado de uma amiga minha, sempre adorei e queria colocar numa personagem). O convite para ir a Buenos Aires surgiu quando ainda elaborava esses temas e personagens na imaginação. Calculei que a cidade daria um cenário ideal para a história. Eu queria um grande centro urbano, e tanto melhor que fosse palco de uma tradição literária rica e fascinante em que os livros são levados a sério, às vezes até demais. Não foi a primeira vez que narrei de um ponto de vista feminino, mas uma coisa é se colocar no lugar de uma mulher pela duração de um conto, outra é adotá-la pelas 200 páginas de um romance. Escolhi a terceira pessoa, mas achei o resultado artificial. Só encontrei o tom desejado quando cedi à primeira pessoa. Concluí que, em termos literários, não há diferenças fundamentais entre a voz masculina e a feminina. Quis, inclusive, fazer frente a uma certa voz feminina homogênea e enfadonha que assombra muitos romances narrados por mulheres, não importa o gênero do autor. Boa parte das mulheres que conheço não se expressa numa derivação da lengalenga delicada e metafísica da prosa de Clarice Lispector. Levei isso em conta ao pensar na linguagem de Anita, que é uma mulher cínica, detalhista, carente de familiares e de um homem que lhe dê segurança, tão obcecada em ser mãe quanto desvairada em relação a todo o resto. O livro abre e encerra com rápidas visões masculinas dessa autora que não quer escrever, que quer ser apenas, nas palavras dela, a mulher de um homem. O resto é narrado do ponto de vista dela. O livro esconde o que ela esconde de si mesma, é confuso a respeito do que a confunde, reflete sobre o que ela reflete. A primeira versão ficou pronta em seis meses. Após a leitura de amigos e editores, fiz duas outras versões. Até o texto definitivo, foi pouco mais de um ano de trabalho. A primeira coisa que escrevi foi o capítulo final do livro de Anita, que é lido num evento de lançamento em Buenos Aires. Ali estaria a âncora da protagonista, que ironicamente é uma personagem criada por ela própria. Holden (que não é referência a Holden Caulfield; quem fizer questão de uma referência pode escolher
O romance inaugurou a coleção Amores expressos
entre o Juiz Holden de Cormac McCarthy ou o ator William Holden) se aproxima de Anita apenas por causa dessa persongem, Magnólia. Os limites entre autores e personagens, entre realidade e ficção, vão se confundindo e refazendo. Os protagonistas se exploram e representam papéis. Se isso pode ser chamado de uma história de amor, cabe ao leitor decidir. O título vem de uma frase citada no livro e extraída das memórias de um colonizador da Terra do Fogo. Li essas memórias num bar de Buenos Aires, como Anita. A cordilheira é símbolo da proteção, da domesticidade e do afeto que Anita procura e que o mundo, de acordo com ela, parece disposto a lhe negar. Me comovi com a mesma frase que ela e demorei um pouco para me dar conta, na ocasião, de que estava lendo aquilo pelos olhos da minha personagem.
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RICARDO MELO
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Raimundo
CARRERO
Todas as coisas se amam, e as artes também. Aliás, todas as coisas se amam é o título de um ótimo livro do padre Ernesto Cardenal, um dos militantes que promoveram a revolução na Nicarágua, no tempo em que os padres levavam o povo ao poder. Com amor e com a cruz. No Brasil, cantando e frevando. Mas não é de revolução política que vou escrever. Me desculpem – de revolução sim, porém da mais radical de todas as revoluções - a que envolve os fenômenos literários. Sempre alertando: em primeiro lugar existe o ato criador, a materialização. E só depois vêm as técnicas. Ninguém pode esquecer. No amor das artes, elas se acarinham e se devoram, se destroem e se revelam. Alimentam-se das próprias dores, comem as próprias carnes. Tornam-se encantadas e participam da construção do Belo. Isso mesmo. E, sendo assim, não é esquisito que o romance moderno – aquele que nasce com Dom Quixote e que é chamado de romance burguês – tenha se alimentado, por exemplo, das seivas do teatro, para definir mais tarde os próprios caminhos. Vieram, então, nas páginas da ficção em prosa, os diálogos tradicionais, marcados por dois pontos e travessões, além das marcações – que também é coisa do teatro, e do teatro mais antigo, que hoje não se usa mais. Os autores e narradores preferiram aboli-los, em muitos casos. Basta agora lembrar com rapidez, sem muita reflexão. Como é o diálogo tradicional? Assim:
— Você vai ao cinema? — Perguntou ele. Ela respondeu: — Se você me acompanhar.
A obra é minha ninguém tasca eu vi primeiro Artista que se preza seduz o leitor com manha de malandro
Marco Polo
MERCADO EDITORIAL
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Estão aí os elementos do diálogo tradicional: depois de Assim, dois pontos, que abrem a possibilidade do diálogo, através da voz externa do personagem masculino, com um travessão, o breve sinal que aparece antes de Você. Surge a voz do personagem: “-Você vai ao cinema?”. E agora, depois de um novo travessão, a marcação, ou seja, a identificação de quem fala: “-Perguntou ele”. Vendo bem, além do diálogo, o romance herdou aí a marcação. Só uma lembrança: a marcação no teatro, que hoje nem existe mais, era feita pelo autor para ser realizada pelo ator, de acordo com a direção. E era escrita da seguinte maneira: Ator dirige-se à esquerda e pergunta: “Você vai ao cinema?”; “Se você me acompanhar”, responde a atriz, aproximando-se do ator, rindo com leveza e malícia. Hoje, não é mais escrito assim porque a responsabilidade da cena é transferida para o diretor. Na tradição norte-americana o travessão é substituído pelas aspas, como ocorre, por exemplo, no romance de John Updike, considerado um dos três grandes do século 20, nos Estados Unidos, ao lado de Norman Mailer e Philip Roth, também consagrado pela crítica brasileira. Updike
procurou ser o intérprete da vida norte-americana com uma obra marcada pela crítica social e pela criação de personagens representativos dessa área. É assim que ele escreve os diálogos:
Coelho pergunta: “Cadê o menino?” “Na casa da minha mãe? O carro está com a sua mãe e o menino com a minha. Meu Deus. Você á um fracasso”. Ela se levanta, a sua gravidez o irrita, aquela voluminosidade teimosa”. Além da marcação – “Coelho pergunta”, “Ela se levanta” - é acrescentado um comentário: “...sua gravidez o irrita, aquela voluminosidade teimosa”. Duas técnicas diferentes, embora com um pequeno avanço. Na primeira: fala mais marcação; na segunda, fala mais marcação mais comentário. E com as novas conquistas da ficção, veremos que algumas soluções foram encontradas, distanciando-se do teatro, rebelando-se, avançando. Amando-se e devorando-se. Surge o discurso indireto livre, e aí o romance começa a ganhar autonomia, como queria Gustave Flaubert, o inventor do romance sofisticado. Alguns chamam essa técnica de estilo indireto livre e que prefiro chamar de diálogo indireto livre. Para Mario Vargas Llosa, essa é a maior contribuição de Flaubert ao romance moderno. O diálogo indireto livre consiste em aproximar tanto o narrador do personagem que o leitor não percebe, em geral, a diferença de vozes. Aqui evitam-se, portanto, o travessão, as aspas e, em certos casos, até a marcação. As vozes do narrador e do personagem se confundem, com a retirada dos sinais. Numa única frase, as vozes entrecruzam-se e dão ao texto uma leveza que deixa o leitor mais à vontade. No caso acima, de Updike, ficaria dessa maneira:
“Coelho perguntou pelo menino e ela respondeu que estava na casa da mãe dele, ... que ficou surpreso indagando se na casa da sua mãe... Ela então esclareceu que o carro estava na casa da mãe dele e o menino na casa da mãe dela, acrescentando que ela era um fracasso. Ela se levantou, a gravidez o irritava, irrita, aquela voluminosidade teimosa”. Sentiu? As vozes se cruzam, entrecruzaram-se, procuram se ajustar e o escritor se desespera. Mas não custa lembrar a questão da mudança do tempo verbal. Para haver o diálogo indireto livre é preciso sair do presente do indicativo para o pretérito perfeito. Várias vozes numa única frase. E, numa só frase, o narrador e o personagem têm vozes internas sem sinal de mudança ou advertência. Para ilustrar ainda mais, vamos agora tomar o exemplo de “Pedro Páramo”, romance de Juan
PREMIAÇÃO
COMUNIDADE
CANGAÇO
Jabuti tem nova categoria em sua próxima edição
Sustentabilidade comunitária oferece premiações que variam entre R$ 5 e 30 mil para projetos
Toda vaidade de Lampião é revelada
Considerado o mais tradicional e prestigioso prêmio literário brasileiro, o Jabuti terá, em sua 51ª edição, uma nova categoria neste ano. Como contribuição para o Ano da França no Brasil vai premiar as melhores traduções de obras de ficção do francês para o português. Os três primeiros colocados em cada uma das – agora - 21 categorias serão conhecidos no dia 28 de setembro.
Dez projetos escolares apresentando soluções de sustentabilidade comunitária serão contemplados com prêmios que variam de R$ 5 mil a R$ 30 mil para sua execução. O prêmio Minha comunidade sustentável tem patrocínio da Editora Saraiva e recebeu, nesta sua primeira edição, mais de 500 projetos vinculados tanto às escolas públicas quanto às
Frederico Pernambucano de Mello, um dos maiores conhecedores da história do cangaço, assinou contrato com a Escrituras Editora, que vai lançar seu livro Estrelas de couro: a estética do cangaço. Segundo Pernambucano de Mello, os vaidosos cangaceiros criaram uma estética particular nas roupas e adereços que usavam.
privadas. A iniciativa partiu da revista Carta na escola, em parceria com a ONG Ação Educativa e visa estimular e apoiar a criação de práticas sustentáveis que provoquem transformações no cotidiano de instituições de ensino e na própria comunidade circundante. A revelação dos contemplados ocorrerá no dia 20 de outubro, em São Paulo.
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REPRODUÇÃO
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Rulfo, que, basicamente, criou os fundamentos do romance latino-americano. Preste atenção:
“Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo. Minha mãe que me disse”. Percebeu? Aproxime mais os olhos e a curiosidade, se possível use uma pinça para as frases que vamos isolar. Aparentemente, as frases parecem convencionais, comuns. Nada de estranho. Mas com a aproximação dos olhos percebe-se a repetição do verbo dizer, no plural e no singular. Ou não é? Como um escritor de alta qualidade faria isso? Onde andaria a limpeza do texto? Para responder, pegamos logo a pinça e isolamos as frases. “Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo”. É certo, portanto, que as pessoas ou desconhecidos “disseram” que ali vivia o pai do personagem, Juan Preciado. Ótimo. É isso mesmo. Na outra frase está dito que foi a mãe quem “disse”. Afinal, quem disse que ali vivia Pedro Páramo, as pessoas ou os desconhecidos ou a mãe? O narrador não sabe de nada? Sabe, e sabe muito. Sabe mais do que nós todos. Na primeira frase foram essas pessoas que “disseram”, mas foi somente a mãe, com todo o ódio que guardava no coração, que “disse” uma expressão: “um tal de Pedro Páramo”, rancorosa. São duas vozes para uma só narrativa. Ou seja, um diálogo indireto livre. De forma indireta, como se tem ressaltado, sem qualquer sinal, aspas ou travessão, e com apenas uma marcação, revelada no verbo dicendi – “dizer”. Assim o autor possibilita, de maneira subjetiva, que narrador e personagem conversem, ou se manifestem. Numa linha narrativa direta, escrita numa primeira versão, a frase ficaria dessa maneira:
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John Updike procurou ser o intérprete da vida norte-americana com uma obra marcada pela crítica social
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“Vim a Comala porque as pessoas me disseram que aqui vivia meu pai, a quem minha mãe chamava de um tal de Pedro Páramo, com toda a raiva do coração”. Tem coisa mais óbvia e mal feita? É aí que entra o artesanato, a qualidade essencial do escritor. José Saramago, o português Prêmio Nobel de Literatura. Ele procura um caminho diferente, uma variante da técnica, fazendo com que a primeira letra da fala do personagem apareça em maiúsculo, o que facilita a compreensão do texto:
“Sete-Sóis soergueu-se na enxerga, e também inquieto, Estás a mangar comigo, ninguém pode olhar por dentro das pessoas, Eu posso, Não acredito...” É possível observar, com clareza, que as palavras “estás”, “eu” e “não” têm a primeira letra no maiúsculo para assinalar a mudança de vozes. E aí sem a necessidade da marcação, ou seja, dos clássicos “disse”, “perguntou”, “respondeu”, “falou”, “acrescentou”, o que, quase sempre, deve ser mesmo evitado, porque o leitor está entendendo muito bem. Dessa forma, a literatura de ficção ganha uma espécie de tecido único, sem interrupções desnecessárias para os olhos do leitor. Em certo sentido, fica mais agradável e atinge – no conto, na novela e no romance – um alto grau de sutileza que pode surpreender o leitor a cada momento, impondo encanto e sutileza, com a verdadeira qualidade de um sedutor, que é, afinal de contas, o objetivo de toda a arte. No entanto, não se pode a rigor chamar essa técnica de diálogo indireto livre porque as maiúsculas tornar a conversa direta. Substituem as aspas e os travessões. E também é por isso que o amor entre criaturas – mesmo que sejam elementos da arte – resulta em fogo devorador. Pouco a pouco, o teatro, que cedeu material para a evolução da arte romanesca, foi perdendo a influência e a ficção se tornava autônoma, a ponto de iluminar sozinha o seu palco. Claro, um escritor pode e deve construir a sua obra como queira. Não estamos falando de regras, mas de técnicas. O romano Horácio pretendeu estabelecer rígidas regras poéticas e não foi feliz. Ninguém manda na mão do criador. Ele continua – e continuará – tendo a absoluta liberdade para estabelecer o próprio caminho, conquistando novas posições, determinado e seguro. O artista estará alerta para defender a liberdade e o destino de criador em absoluto, protegendo o direito de inventar, pessoal e intransferível, absorvendo as informações de outras artes, mas seguro de sua individualidade. Daí porque soa a sua voz de vencedor: “A obra é minha ninguém tasca eu vi primeiro”.
BILÍNGUE
CINEMA
Clássico romance do escritor Oscar Wilde retorna às livrarias em inglês e português
Criador de Bourne tem romances adaptados
Especializada em edições bilíngues de grandes clássicos da literatura universal, a Editora Landmark está lançando o romance O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde (foto), em sua primeira versão, com treze capítulos, publicada no jornal norteamericano Lippincott’s magazine, em 20 de junho de 1890. No ano seguinte a editora inglesa Ward Lock and
Criador do famoso agente Jason Bourne, Robert Lundlun, editado no Brasil pela Rocco, terá dois romances adaptados para o cinema: O círculo Matarase e O protocolo Sigma. O primeiro, com Tom Cruise e Denzel Washington, será dirigido por David Cronemberg.O segundo, terá direção de José Padilha (Tropa de elite).
Company, para publicar o livro na Inglaterra vitoriana exigiu que fossem feitas alterações amenizando o relacionamento do protagonista com os outros personagens e a influência negativa de seu amoral e hedonista guru, Lorde Henry. Essa versão, foi a que se perpetuou. Agora, surge a chance de se conhecer a crua estória original.
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ENSAIO
O cozinheiro é sempre o culpado Sociólogo analisa a estranha relação entre a literatura policial e a gastronomia Jorge Ventura
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James Bond, um dos mais famosos agentes secretos da ficção cinematográfica, pode ser classificado na categoria mais ampla de detetive, já que cuida de desvendar crimes (assassinatos de seus companheiros, roubo de foguetes, roubo de planos secretos, planos de megalomaníacos com pretensões a dominar a terra, quiçá, o universo etc). Nesta condição, este herói, às vezes, participa de jantares sofisticados. Suas preferências gastronômicas revelam-se no seu gosto pelo caviar beluga, embora seus detratores digam que, como britânico legítimo, ele goste mesmo é do café-da-manhã inglês: ovos com bacon, torradas e café. Além disso, é famosa sua apreciação de champanhe e do famoso vodka-martini (“batido, não mexido”). Esta faceta de Bond é tão reconhecida que recentemente o Times publicou uma lista de cafés em Londres, que certamente seriam aprovados pelo famoso agente, onde seus fãs poderiam se deleitar enquanto esperam pela próxima sessão de Quantum of Solace. Aliás, você pode ver as preferências culinárias e etílicas de James Bond no endereço www. tjbd.co.uk/james-bond-food.htm. Bond faz parte de uma legião de detetives que têm preferências gastronômicas bem firmes e sofisticadas. Sou um leitor voraz de literatura, principalmente a inglesa e a russa. E, embora não possa afirmar com 100% de certeza, não há outro gênero literário onde haja tal profusão de gastrônomos do que no romance policial. Por exemplo, o comissário italiano Guido Brunetti, criatura da escritora ítalo-americana Donna Leon, também gosta de comer bem. Leonardo Padura Fuentes faz com que o tenente Mario Conde, da polícia de Havana, volta e meia, esteja na cozinha da mãe de seu melhor amigo para saborear iguarias caribenhas. Pode-se citar ainda o Comandante Adam Dalgliesh, da New Scotland Yard, personagem principal de P.D. James, como um sujeito de excelentes hábitos gastronômicos, pois, não raro, o encontramos em algum restaurante de luxo, talvez estrelado pelo Michelin, durante o desvendamento de algum crime intrincado. Está marca é tão forte que Robert Courtine chegou a publicar um livro – existe tradução para o português pela L&PM – sobre as receitas preferidas de Georges Simenon, as quais, algumas vezes, aparecem como pedidos do comissário Maigret
em vários restaurantes parisienses. Mas sobre isto não posso me estender já que não sou fã de Simenon e li somente um ou dois livros de aventuras do seu detetive. Porém, posso dizer com segurança que Manuel Vázquez Montalbán e Rex Stout construíram personagens francamente amantes da boa mesa, com excelente entendimento dos mistérios da preparação de bons pratos. Pepe Carvalho, de Montalbán, é um ex-comunista desencantado (eis uma de suas frases típicas: “Deus está morto, o homem está morto, Ava Gardner está morta, Marx está morto, Bromuro está morto e eu próprio não me sinto muito bem”) que perdeu também a fé na literatura (queima os livros de sua biblioteca para se aquecer nas noites frias), que entre um caso e outro volta para seu escritório onde mantém um ajudante-faz-tudo, que, além de qualidades dignas de um assistente de detetive, é um excelente cozinheiro da culinária mediterrânea. O próprio Pepe é um cozinheiro impecável. Já Nero Wolf, de Stout, é personagem excêntrico, que à moda de Sherlock Holmes, fica em casa somente deduzindo o culpado pelo crime, a partir das pistas descobertas pelo seu fiel assistente Archie Goodwin. Wolfe é um sujeito para lá de estranho. Montenegrino emigrado para os Estados Unidos, ele tem uma inteligência tão acima da média, que se permite ficar em casa enquanto seu assistente enfrenta a dureza dos socos e tiros dos meliantes na tentativa de descobrir as pistas vitais para o desvendamento de um crime complicado. Como é muito gordo, Wolfe raramente sai de casa. Cultiva hábitos metódicos em que o estrito cumprimento de horários é sagrado. Mais importantes do que o desvendamento de um crime qualquer são o cuidado com as suas orquídeas e as refeições, em horários rígidos, sempre preparadas pelo seu excelente cozinheiro. Stout chegou a publicar um livro com as receitas preferidas de Wolf. Mas vamos por partes! Se eu tivesse de ler somente um livro de cada um destes autores tendo em mente o mote gastronomia, os preferidos seriam: O labirinto grego, de Montalbán, e Cozinheiros demais, de Stout. Vamos a eles.
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Obviamente, não vou revelar o enredo de nenhum dos dois livros, mas posso dizer que Pepe Carvalho costuma vagar pela noite de Barcelona na tentativa de resolver seus casos. Neste O labirinto grego, Carvalho nos conduz por uma aventura maluca em ruelas perigosas por quase toda esta cidade. Enquanto isso, ele recebe clientes com vinhos e aperitivos, marca encontros em botecos onde são servidas iguarias da cozinha catalã e prepara um belo jantar para seu vizinho e amigo como pretexto para desafogar as mágoas existencialistas de seu desencanto com o mundo capitalista. Os conhecimentos gastronômicos de Pepe Carvalho entram em cena logo no início do romance quando, ao receber novos clientes, franceses, em resposta a uma pergunta sobre o que ele teria para lhes oferecer como bebida, ele diz: “Pouilly Fumé 1983, Sancerre de 84 e um Chablis de 85”. Coleção típica de um bom amante dos vinhos. Os clientes escolhem o Pouilly e logo depois Biscuter, o ajudante-cozinheiro, chega com o vinho e alguns canapés (taramá), que encantam os franceses. No decorrer de sua investigação (na verdade, são duas investigações paralelas), ao almoçar com um antigo conhecido, Carvalho tem a oportunidade de criticar os que se refugiam da boa mesa e correm para “uma salada italiana e um peixe branco grelhado”. Mas há de se notar que seu acompanhante se controla o tempo todo para não fitar a capitota con safaina do nosso detetive-gastrônomo. Porém, o melhor ainda está por vir em meio às investigações. Em uma parada estratégica para se reabastecer, Carvalho para em um restaurante e vejam o que lhe é servido: “lagostins no alho, microscópicas lulas e polvos, filhotes de enguias com presunto de pato e rodelas de kiwi, meias lagostas, um enorme robalo cozido na telha e levado ao forno”. Tudo isto acompanhado de um Veja Sicilia. Ficaria cansativo e talvez repetitivo enumerar mais almoços ou jantares de Pepe Carvalho. Mas vale salientar que a descrição da preparação de um jantar que nosso detetive faz para um amigo ocupa mais de três páginas. Vale apenas, para deixarmos Pepe e partirmos para os saberes gastronômicos de Wolfe, relatar que ao final desta última refeição, Carvalho se revela também um conhecedor dos cafés ao oferecer ao seu amigo uma bebida cujos grãos são uma mistura de “oitocentos
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gramas de café colombiano e duzentos de café dominicano”. Um gourmet, o nosso Pepe. Se Carvalho é um detetive da Barcelona dos 1990 e início deste século, Nero é um homem da NYC dos anos 1930 a 1950, mais ou menos. Como eu disse acima, Nero Wolfe raramente sai de casa. Já perdi a conta das suas aventuras que li e só lembro de duas ou três ocasiões em que ele saiu de casa. Este Cozinheiros demais é uma dessas ocasiões. O título é por demais sugestivo e referese a uma reunião anual dos maiores cozinheiros do mundo na qual Nero – para dar aqui uma indicação de sua importância como gastrônomo – é convidado de honra para proferir a palestra de encerramento cujo tema é, em francês, Contribuitions américaines à la haute cuisine. Como me nego a revelar o enredo, não cometo nenhuma inconfidência ao dizer que obviamente há um crime (poderia ser outra coisa?) nesta reunião e que, depois de desmascarar o criminoso e livrar um inocente (um dos famosos cozinheiros guardião de uma receita supersecreta de uma salsicha, a saucisse munuit) da cadeia, Wolfe pede como pagamento por seu trabalho esta mesmíssima receita. Se os pratos de Carvalho parecem “pesados” diante da “salada italiana com peixe branco grelhado”, você não imagina as preferências de Nero Wolfe. A contribuição americana à alta cozinha é americana no nome, mas francesa – e das antigas – na inspiração. Com efeito, quando Wolfe, em discussão com um cozinheiro francês que ousara duvidar se o título de sua palestra teria alguma base real, começa a desfiar as tais contribuições americanas já sentimos um peso na barriga: “cágado refogado na manteiga com caldo de galinha e xerez”, “filé grelhado servido na tábua, com cinco centímetros de altura, soltando seu rubro suco na faca (seria nosso churrasco?), guarnecido com salsa americana e fatias de lima cortadas na hora, acompanhado de purê de batata que derrete na boca e rodeado de fatias grossas de cogumelos frescos malpassados” e “presunto Boone County do Missouri, assado com vinagre, melado, Worcestershire, sidra e ervas”. Nada recomendado pelos nossos médicos muito preocupados em que alcancemos 100 anos de idade comendo salada de alface e bife de soja e bebendo suco de broto de trigo.
As discussões se sucedem enquanto o crime não acontece e os grandes cozinheiros e gastrônomos do passado, tais como Brillat-Savarin, Vatel e Escoffier, são invocados para apoiar pontos de vista divergentes. O jantar da primeira noite também toma umas três páginas: foram servidos truta, pato assado, salada de broto de mostarda, agrião e alface etc. Antes de revelar o assassino, Wolfe discursa durante umas quatro páginas em que revela quais são as contribuições americanas para a alta cozinha, ao mesmo tempo em que as entremeia com citações dos clássicos já citados acima. E para coroar o encontro (não o livro, o que ocorrerá quando Wolfe, fazendo uso das mais brilhantes deduções lógicas, anunciar a identidade do vil assassino), foi servido o seguinte jantar, que cito tal como no original:
JANTAR AMERICANO Ostras ao Forno em sua Concha Cágado Maryland Pãezinhos Sovados Peru Novo em Caçarola Croquetes de Arroz com Geléia de Marmelo Feijão-de-lima Sally Lunn Abacate Todhunter Sorbet de Abacaxi Pão-de-ló Queijo Fresco de Wisconsin Café A culinária de Pepe Carvalho é mediterrânea, é catalã na tradição, mas atual, daquele tipo aprovado por Anthony Bourdain, em Em busca do prato perfeito. No caso de Nero Wolfe, como se pode ver, jantares certamente com tons americanos, mas baseados na velha tradição culinária francesa, antes da revolução da nouvelle cuisine, é claro. Somente para dar uma ideia, os pratos à base de cágado relembram as invenções do grande Antoine Carême no já distante século 19. Para finalizar – e não precisa ser Sherlock Holmes nem Nero Wolfe – é fácil deduzir: comumente onde há um crime a ser resolvido, uma excelente refeição ajuda a solucioná-lo.
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ENTREVISTA
Heloisa Buarque de Hollanda
Viva e marrenta
Prestes a completar 70 anos, Heloísa Buarque de Hollanda repensa a função do jornalismo cultural e conta seus planos de desvendar a poesia que se alastra na internet
MARCO ANTÔNIO TEXEIRA/AGÊNCIA O GLOBO
PERNAMBUCO - A principal crítica que se faz hoje ao jornalismo cultural, principalmente ao dos veículos impressos, é ser demasiadamente pautado pelo mercado em todas as áreas: cinema, literatura, teatro, etc. A senhora concorda com esta crítica? O jornalismo cultural da grande imprensa a seduz ou a irrita? Eu acho que temos que dar um desconto para os suplementos e não pensar como se eles fossem independentes do jornal. Os suplementos fazem o que podem e, o que é mais importante, sobrevivem. Tenho certeza de que os jornalistas, especialmente na área da literatura, que é a minha área, adorariam publicar matérias de tudo o que sai e fazer uma política editorial inovadora e de traços independentes. Mas o próprio jornal está com grandes problemas financeiros e a primeira coisa a ser cortada, é claro, seriam os cadernos literários. É claro que o sonho é que esses suplementos tivessem um perfil independente. Mas nesse momento, dou graças a Deus por eles ainda existirem.
Entrevista a Rogério Pereira, Editor do jornal Rascunho Heloisa Buarque de Hollanda é incansável. Nos seus quase setenta anos de vida (a completar em 26 de julho próximo), já fez muito barulho, causou muita polêmica e nunca fugiu das discussões culturais que a cercaram. Seu nome está visceralmente ligado à poesia. É uma curiosa: sempre em busca de novos autores. Em 1975, organizou uma das mais conhecidas (e polêmicas) antologias da poesia brasileira: 26 poetas, da qual constavam nomes como Antonio Carlos Secchin, Francisco Alvim, Chacal e Zulmira Ribeiro Tavares. Nos anos 1990, outra antologia buscava radiografar a produção poética daquela década. O tempo mostra que em ambas coletâneas há mais acertos que equívocos.
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Mesmo atuando no mundo acadêmico — um mundo, quase sempre, voltado aos mortos e ao passado —, Heloisa Buarque mantém os pés fincados no presente, com amplas discussões sobre a atual produção cultural brasileira. No momento, está “enredada tentando desvendar a literatura na internet e a literatura de periferia”. Como se vê, terá muito trabalho pela frente. Além disso, é professora de Teoria Crítica da Cultura da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Também é curadora do Portal literal (www.portalliteral.com.br) e diretora da Editora Aeroplano. Nesta entrevista ao Pernambuco, Heloisa Buarque de Hollanda fala do atual jornalismo cultural, da participação da imprensa no processo de difusão da cultura, do fenômeno da internet e, obviamente, de poesia e poetas.
PE - De que maneira o jornalismo cultural consegue ser um retrato da produção atual brasileira? Ou é apenas um esboço, levando em consideração a verdadeira avalanche que inunda a imprensa diariamente? A vastíssima produção do mercado editorial brasileiro é um exemplo claro da angústia que ronda qualquer editor de cultura. O jornalismo cultural retrata uma parcela significativa da produção atual brasileira. Não consegue retratar de uma forma mais completa. Mas hoje a internet dá uma grande abertura para os novos autores mostrarem seu trabalho e, de repente, até descolarem um editor ou um apoio mais do que bem-vindo. Falo de blogs de autores, de suplementos literários como o Idéias, do Jornal
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Eu acho que temos que dar um desconto para os suplementos e não pensar como se eles fossem independentes do jornal
do Brasil, aqui no Rio de Janeiro, ou de portais como o Overmundo (www.overmundo.com.br) e Portal literal (www.portalliteral.com.br) que são web 2.0 e emitem a postagem direta de trabalhos. O destaque que terão na página vai depender dos votos dos usuários dos portais. Mais democrático impossível. Isso corrobora minha posição de que a imprensa está muito emparedada e que temos mais é que abrir canais alternativos de divulgação para nossos trabalhos.
PE - A internet tem conseguido cumprir um papel interessante como veiculo de divulgação e crítica da produção cultural contemporânea? Ou ainda é uma vasta terra de ninguém em que a quantidade sobressai à qualidade?
Acho que esse papel ainda não foi totalmente explorado, mas certamente é uma boa aposta para a divulgação dos “excluídos” do mercado. A questão da quantidade X qualidade é um problema de filtro e de capacidade crítica do leitor e não de quem posta seus trabalhos. Por enquanto pelo menos, o espaço da internet continua aberto a todos.
PE - Qual seria o tipo de jornalismo cultural ideal para a senhora? É possível chegar a um equilíbrio entre o interesse do mercado, do público e dos artistas/criadores?
O jornalismo cultural ideal para mim é o que tento fazer no Portal literal do qual sou curadora. Procuro estabelecer mecanismos de valoração do público, além de manter um espaço para a crítica profissional, em princípio, mais qualificada.
PE - A periferia (aquilo que está à margem nas grandes cidades e também a produção distante do “coração” cultural brasileiro: Rio de Janeiro e São Paulo) é
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discriminada pelos cadernos de cultura dos grandes jornais? A visão burguesa ainda impera?
Essa relação é complexa porque a própria voz da periferia e da produção fora do Rio e São Paulo é de fato discriminada, ou, pelo menos, não dispõe de canais eficientes para se expressar. Mas no caso da literatura marginal ou de periferia, a imprensa está estabelecendo um namoro razoavelmente intenso.
PE - Como tem sido a experiência do Portal literal, quais as dificuldades e desafios para se manter um projeto desta natureza na internet? A ressonância causada lhe satisfaz? A experiência levou a uma mudança radical de projeto editorial no ano passado. Reformatamos o espaço onde era a revista literária Idiossincrasia e abrimos um canal livre para a postagem de obras e para o exercício crítico de nossos usuários. A ressonância do Portal aumentou incrivelmente após essa reformatação. Acho que esse caminho nos levará a algumas surpresas. Espero. PE - A Aeroplano Editora desenvolve projetos culturais e se diferencia do trabalho de uma grande editora. Como é estar à margem do mercado? Esta “aventura” é possível ou está fadada à ruína?
É fascinante e inviável ao mesmo tempo. Para manter essa linha independente, precisamos sempre de patrocínio — o que está cada vez mais raro. E, por enquanto, a crise é, segundo nosso presidente, apenas uma marola...
PE - A antologia 26 poetas é de 1975. O tempo mostra que houve mais acertos do que equívocos naquela antologia. O que significa hoje ter realizado uma antologia em que figuram nomes como Antonio Carlos Secchin,
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Francisco Alvim, Zulmira Ribeiro Tavares, Chacal, entre outros?
Isso me dá uma sensação muito boa de dever cumprido. Comprei uma barra pesada com ataques violentos da academia e da imprensa que insistia no fato de que essa poesia não era literatura. Agora, praticamente todos os 26 entraram para o cânone e são matéria de vestibular. E, o que é mais importante, eu ainda estou viva e marrenta.
PE - Em seguida, a senhora organizou Esses poetas — Uma antologia dos anos 90, com autores que hoje têm uma expressiva produção literária. Qual a diferença entre a produção dos anos 1970 e 1990?
As diferenças são muito grandes, mas eu receio definilas assim em quatro linhas. O que posso dizer, de forma bem irresponsável, é que a poesia dos anos 1970 tinha um projeto alternativo tanto às regras do mercado quanto ao próprio lugar elitista que ocupa a literatura em nosso país. Já a poesia dos anos 1990 volta a esse espaço mais tradicional da literatura, valoriza seu acervo cultural e, o que é maravilhoso, consegue abrir a ideia de literatura para as diferentes vozes, projetos e supostos “guetos” literários. É uma literatura sem perfil único, é multicultural e teve um forte impacto democratizante.
PE - Dá para se dimensionar o impacto da internet na atual produção literária? A senhora acompanha os novos prosadores brasileiros? Qual a sua opinião?
O impacto é bem grande. Não só na criação literária como na disseminação da leitura e da expressão individual. Os novos prosadores, inclusive, mesmo em seus livros impressos apontam para uma nova persona de narrador e para uma multiplicidade de inputs na sua percepção e tradução de mundo.
A questão da quantidade versus qualidade é um problema de filtro e de capacidade crítica do leitor e não de quem posta seus trabalhos PE - De que maneira o livro pode se fazer mais presente na vida dos brasileiros? A senhora acredita na força da literatura num processo de transformação pessoal e social?
LIVROS DE HELOÍSA
Sem dúvida alguma, a palavra está dominando a cena no século 21. É só ver o sucesso de mobilização dos festivais literários, a intensificação da leitura nas camadas jovens que usam a internet e os usos das palavras em obras de convergência de mídias, de deslocamento da literatura do espaço da página. Umberto Eco diz uma coisa bastante promissora: “Se o século 20 foi o século da imagem, o século 21 é o século da palavra”.
PE - A senhora se define como “irritantemente otimista”. A literatura, para a senhora, é fonte de otimismo ou de inquietação? Claro que dos dois.
PE - Quais autores compõem a sua biblioteca afetiva? Quais nunca a abandonam?
Vai de supetão sem pensar: Murilo Mendes, João Cabral, José de Alencar, Dostoiévski, e muitos novos autores que estão mostrando um trabalho mais do que instigante. Exemplos aleatórios e não representativos: Marcelino Freire, Cecília Gianetti, Bruna Beber, Claudia Roquette, Alice Sant’Anna e vai por aí.
PE - Que tipo de poeta é imprescindível na vida de qualquer leitor?
Aquele que você olha (olha de olhar a página mesmo, como se fosse uma escultura ou um quadro) saboreia devagar e lê tudo de novo.
PE - Em que projeto a senhora trabalha atualmente? Estou enredada tentando desvendar a literatura na internet e a literatura de periferia. Haja trabalho pela frente.
Cultura em trânsito - da repressão à abertura (org.) Editora Aeroplano Páginas 336 Preço R$ 38, Impressões de viagem Editora Aeroplano Páginas 240 Preço R$ 40 26 poetas hoje (org.) Editora Aeroplano Páginas 272 Preço R$ 32 Esses poetas - uma antologia dos anos 90 (org.) Editora Aeroplano Páginas 320 Preço R$ 32
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A pedido do Pernambuco, editores dos cadernos de cultura do três maiores jornais diários do Estado refletem sobre o que produzem no dia-a-dia
FOTOS: FLORA PIMENTEL
CAPA
IVANA MOURA
DIARIO DE PERNAMBUCO > VIVER
Críticas, divergências e acertos
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“É o ator social que nos interessa” O poeta português Fernando Pessoa lembra que viver não é um processo exato, sem sobressaltos e que o percurso é repleto de imprevistos. São muitas variáveis pelo caminho. A pedra de Drummond, a educação pela pedra de João Cabral. A história está sendo erguida agora. Com erros e acertos. Ao refletir sobre o Jornalismo Cultural, lembrei-me de Pessoa. Mas também de Arnaldo Antunes com a letra de Meio fio (“... todos os instantes que vivi estão aqui, os que me lembro e os que esqueci...”). E dos editores com quem convivi. Do momento de aprendizagem cercado pela ética e pelo estímulo de Lêda Rivas, à rápida passagem de Sebastião Araújo; da força juvenil e da enriquecedora divergência de opinião da fase de Rodrigo Carrero. Cresci com todos. Além da parceria deliciosa com a amiga de uma vida inteira Lydia Barros, que me deixou de herança esse desafio: tocar a editoria sem perder a instigação. Uma tarefa e tanto, que vai sendo tocada por mim junto com Kéthuly Góes e uma equipe de corajosos repórteres. Num flash, são quase duas décadas de Diario de Pernambuco. Dos artistas, dos colegas, da memória, da construção diária e da perspectiva do amanhã, vieram reflexões das práticas das redações e do que é indispensável combater para dar sentido ao que considero mais pulsante no Jornalismo Cultural, que é a aventura. Enxergar o mundo sintonizado com a diversidade do pensamento contemporâneo, respeitando o outro nas suas singularidades, para descobrir suas riquezas. Sem medos. Com a possibilidade de encontrar o desconhecido. É um exercício constante para fugir do óbvio e dos clichês. Dispostos a sujar os pés na lama para encontrar a pérola preciosa. Com o risco de cortar os pés, as mãos ou a cabeça. Quem trabalha com Jornalismo Cultural tem que aprender a negociar. Com o capital simbólico em constante mutação. O que era inovador na década de 1990 está institucionalizado. E em Jornalismo Cultural não dá pra viver do passado glorioso. Ou não só disso. Principalmente quando se trabalha
com jornalismo diário. É preciso estar de olhos abertos e com todas as sensibilidades aguçadas para entrar em novas conectividades. Sair da acomodação que tenta nos fisgar a todo o momento. Buscamos dialogar com o nosso tempo, com todas as suas contradições. Nossa baliza são os direitos culturais, o patrimônio contracenando com a inovação, e a sociedade civil como ator cultural. O ator social nos interessa sobremaneira. Estabelecemos essa conectividade como na primeira matéria publicada sobre a Orquestra Criança Cidadã Meninos do Coque. Ou no mapeamento das rádios comunitárias. Ou na sintonia com os artistas plásticos contemporâneos, sem esquecer os espaços para todas as outras linguagens. Ou ao nos debruçarmos com um olhar diferente sobre o cordel, como no caderno de Leandro Gomes de Barros. Pensamos no jornalismo cultural crítico. E não apenas da crítica de seus produtos culturais. Da contextualização na composição de uma reportagem, na interpretação da realidade, tendo como eixo central a humanização. Um campo tão complexo na sua constituição discursiva, o Jornalismo Cultural é feito de muitos embates silenciosos e muitas pressões. Mas não nos contentamos com os sentidos oficiais que são oferecidos, com as rendas simbólicas apresentadas; queremos ir além nesse corpo-a-corpo da história. A política cultural em suas várias instâncias, mesmo sendo um território árido, complexo e cheio de meandros burocráticos, é uma das nossas apostas. As agendas são assuntos obrigatórios, mas tudo isso pode ser feito com um pouco mais de imaginação, e a isso nos dedicamos. Por outro lado, nossa opção é encontrar mais espaço para quem está fora do mainstream, da corrente principal da produção cultural. O desafio é grande. Vencer as limitações de tempo e de recursos. Lutar contra qualquer tipo de deslumbramento, porque, como diz o Eclesiastes, tudo é vaidade! E entender que existem opiniões diferentes. Mas só não podem faltar doses generosas de respeito e responsabilidade.
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PERNAMBUCO, MARÇO/ABRIL 2009
SIMONE LIMA
FOLHA DE PERNAMBUCO > PROGRAMA
MARCELO PEREIRA
JORNAL DO COMMERCIO > CADERNO C
“A gente busca pautas diferenciadas”
“É preciso saber respirar e sintetizar”
Antes de assumir a chefia do caderno Programa, isso há bem pouco tempo, tinha a nítida impressão de que os cadernos de cultura – não só em Pernambuco – estavam encolhendo. De uns meses para cá, desde que me tornei editora do caderno de cultura da Folha de Pernambuco, tive a total certeza de que não se tratava apenas da minha impressão como leitora atenta e fã desta seção. À frente do cargo carrego, talvez, o mais correto título de chefia empregado a quem comanda os cadernos culturais em Pernambuco: “Programa”. Digo isso com total propriedade, como leitora e profissional da área. O que percebo é que, na última década, o jornalismo cultural passou por um processo de mudança: a produção cultural foi intensificada de tal maneira que apenas a sorte de opções da agenda cultural já é mais do que suficiente para preencher as cada vez mais escassas páginas dos cadernos de cultura. E é isso que vivencio todos os dias ao chegar à redação. O que sobrou de espaço nos cadernos ficou reservado às agendas culturais, o que também é muito justo. O Programa, porém, vive muito pouco dessa transformação, visto que já foi criado dentro desta nova concepção. E eu menos ainda, que assumi Programa há apenas cinco meses. Com a demanda – sem julgamentos do que será ou não aproveitado – o tempo também parece não ser mais o mesmo dentro das redações. A gente faz muita coisa por telefone, muita coisa por internet e perde-se um pouco o contato com a realidade cultural. Um dos cuidados que é preciso ter é não se ater à pauta dada pela agenda, que é uma pauta que iguala todos os cadernos de cultura – são todos lançamento disso, daquilo. A gente busca, cotidianamente, uma pauta diferenciada, produ-
O Caderno C do Jornal do Commercio reflete hoje a pluralidade de uma cidade cosmopolita, periférica, nordestina, pernambucana, e por isso, contraditória e irrequieta, como o Recife. Navegando em ilhas de wi-fi de apartamentos de luxo, bares e shopping centers ou com suas parabólicas fincadas na lama e nas casas humildes dos morros, a capital pernambucana capta sinais da última novidade do planeta cyber pop ao mesmo tempo em que convive com a mais arraigada tradição afro-lusitana, tropical, brasileiraamericanizada e a miséria das palafitas e morros, onde se subverte a lógica da marginalidade cultural, com suas bibliotecas feitas de sonho, suor e doação, a música visceral que pulsa ao som de guitarras, alfaias, samples e rimas quebradas de hip hop, através de alto-falantes comunitários. Múltiplas linguagens que se imbricam no morro e no asfalto à beira-mar ou beirario. Da dança quilombola ao grafite. Da arte contemporânea conceitual ao heavy metal. Do forró à videodança. Do novo cinema à literatura que busca o território perdido. É preciso respirar, mastigar, deglutir, sintetizar. É esse Recife, em particular, e Pernambuco, em toda a sua extensão, a principal fonte que nutre as pautas do Caderno C, pela riqueza de sua seiva cultural. Desde os anos 1990 a cultura pernambucana passou a ter uma visibilidade e importância mais acentuada no País, alcançando uma boa repercussão também no exterior, ao se tornar mais contemporânea e aberta às diversas vias de fluxo da informação/transformação, sem esquecer o passado, porém já não estando mais preso irremediavelmente a ele. Tudo que vem de fora nos interessa, antropofagicamente. Entre o deslumbre e a reflexão, reprocessamos a cultura estrangeira, o olhar e o saber do outro, procurando romper fronteiras, estabelecer relações de proximidade e distanciamento. Não há como fugir do inevitável agendamento que vem no fluxo alucinante de
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zida, com tendências locais, porque somos um jornal local e a Folha tenta não perder essa característica. Saindo da agenda, indo para a rua, indo aos locais, à produção, você sai um pouquinho dessa agenda unificada. Mas acaba sendo inevitável, também, que a gente atenda essa demanda da agenda. O grande desafio, porém, está em ajudar o leitor a separar o joio do trigo no meio a essa overdose de “eventos culturais e opções de entretenimento”. Sem falar na produção intensa dos nossos “artistas”, que enchem as redações de livros, vídeos, exposições e espetáculos. Fazer a triagem do que é arte: esta é uma obrigação nossa, e muitas vezes ingrata. E, se já estamos com pouco espaço para a cultura dentro dos jornais, que espaço existe ainda para a arte dentro dos cadernos culturais? Antigamente, achava que o critério principal deveria ser a qualidade. Hoje, me pego discordando de mim mesma, das minhas utopias como estudante de jornalismo. Definitivamente acho que não pode restar à imprensa o julgamento de uma “qualidade” artística. Falo porque vejo, hoje, que muitos jornalistas não vão a eventos, porque muitas vezes a informação que os artistas enviam não é suficiente para um julgamento ou simplesmente porque muitos profissionais da área nem se interessam por arte. Sobre o caderno Programa, especificamente, me orgulho em participar e acreditar que ele não é apenas um mero caderno de entretenimento, ou divulgador de eventos e artistas. No Recife há muitas cabeças pensantes, tanto para fazer os textos, como leitores inteligentes para a leitura. E a Folha se preocupa em ajudar ainda muito mais no desenvolvimento cultural do Estado.
informações midiáticas, de lançamentos de uma indústria cultural tentacular (cinema, música, livro, principalmente) e da proliferação de eventos-festivais culturais e ou turísticos (alguns tantos banais). Cabe ao Caderno C filtrar, depurar e valorizar a expressão e a produção locais que possam interessar ao público leitor diverso, difuso. Mais do que simplesmente seguir rumores e tendências que vem de fora. Por outro lado, o Caderno C não sofre (talvez infelizmente) a pressão econômica de anunciantes. As empresas de publicidade não investem no veículo impresso, embora, no caso, o Caderno C seja a principal porta de entrada de um público jovem, moderno e formador de opinião do jornal de maior circulação paga no Norte-Nordeste, segundo o IVC. O reflexo disso é a diminuição do espaço editorial para uma formatação mínima que permita a sua sustentabilidade. Impasse que na atual conjuntura de crise global está longe de ser superado. O espaço para a reportagem tem um concorrente sério, do qual não se pode furtar: o leitor fiel e que considera indispensável a manutenção de sessões fixas, como colunas sociais, horóscopo, história em quadrinhos, jogo dos erros, resumos de novela, programação de televisão, roteiro de cinema, teatro e shows. É preciso saber conviver com a adversidade. Tentar superá-la. A equipe do Caderno C é hoje altamente especializada, tem investido na formação acadêmica, o que permite recortes mais instigantes dos assuntos, sem cair no ranço próprio do jargão da Academia. A clareza do texto e a informação precisa, todavia, são ideais sempre buscados, assim como se procura fugir do lugarcomum. São múltiplas vozes, de tons e timbres diferentes, a processar uma contemporaneidade voluptuosa, sedutora e efêmera. Sem perder de vista o legado histórico, quando se volta para ele é na perspectiva de situá-lo no contexto do momento em que se vive.
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CAPA
Não se engane: isso não HÉLDER TAVARES
Doutora em sociologia analisa as contradições que diferenciam os cadernos de cultura
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é um jornal ARTIGO Carolina Leão Todos os dias os cadernos culturais do Brasil fecham suas edições ignorando uma falácia. Jornalismo cultural não é jornalismo. O argumento que movimenta o exercício jornalístico é a representação da realidade. O jornalismo tenta provar que é possível resumir ou apresentar a vida cotidiana em níveis de complexidade que vão , por exemplo, do prosaico do dia-a-dia à pedagogia das crises e da mudança. O noticiário quente é ainda o parâmetro básico de toda a redação de jornal em qualquer lugar do mundo. No entanto, o jornalismo cultural tem como notícia o universo da arte, que também se coloca como representação do real, mas de um real metaforizado, simbólico, e distancia-se, portanto, em diversas instâncias (linguísticas, estéticas, comerciais, culturais) do hard news que determina a confecção e a produção jornalística. Um dos elementos que separam o jornalismo de cultura dos outros cadernos é a própria ideia de cultura, além do efeito que esta tem na dinâmica dessa área. Ao contrário de cadernos factuais, como os de economia ou vida cotidiana, que relatam, descrevem, apresentam em relatos panorâmicos o andamento de um fato mas não são condicionados pelo fato, os suplementos culturais caminham conforme o desenvolvimento do objeto de sua narrativa. Pensando em quanto a cultura e suas singularidades refletem-se nesses cadernos, apresento aqui algumas ideias que formam a estrutura desse campo. O cerne do debate do jornalismo cultural se encontra na subjetividade de sua linguagem. O jornalismo no Brasil seguiu a tradição francesa do exercício panfletário. Em nenhum outro lugar do mundo os escritores deram tanto pitaco na vida cotidiana do que na França, onde uma bastilha moral poderia ser derrubada a cada dia com a intervenção retórica de seus literatos. Em nenhum lugar do mundo a França ditou tanto as regras como no Brasil fin de siècle. Assim como a literatura no século 19, época do desenvolvimento da imprensa nacional, o jornalismo no Brasil incorporou a postura crítica e ideológica dos folhetins gauleses, produzidos em híbridos de relatos e crônicas diárias associadas ao estilismo da literatura. Foi a época do jornalismo manifesto, que chegou ao seu êxtase, pelas bandas parisienses, na virada do século, com o J’accuse, de Émile Zola, cujo texto rechaçava o julgamento do oficial do exército Alfred Dreyfus, judeu acusado de alta traição num golpe de estado com características antissemitas. Foi a época do jornalismo messiânico. O jornalista, o antena da raça, deveria descortinar a realidade, conforme o ideal platônico do mito da caverna, e provocar o debate em sua investigação crítica dos fatos, tal qual a racionalidade pleiteada pelos entusiastas do Iluminismo. Nasceram assim, nos períodos de revoluções e crises, os grandes jornais mundo afora, tal qual o Diario de Pernambuco, criado pelo mestre tipógrafo Antônio José de Miranda Falcão, que ajudou Frei Caneca a imprimir o Typhis Pernambucano, participando da linha de frente da Confederação do Equador. Foi somente há cerca de duas décadas que os anos seminais do jornalismo, e sua missão heroica, foram solapados pela ascensão de um outro tipo de narrativa e dinâmica, a do jornalismo mercantil. A mudança para esse novo tipo de mentalidade começa décadas antes, entretanto. Os anos 40 e 50, com o rádio e a TV, aceleram o processo de composição de uma incipiente indústria cultural que se estabelece modificando o padrão de modelos jornalísticos até então vigentes. Os valores da cultura americana transmitidos pelo cinema e pela publicidade ganham as páginas dos veículos nessa épo-
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ca. O desenvolvimento de uma racionalidade capitalista nas empresas jornalísticas brasileiras é produto da consolidação do mercado de bens culturais, que, segundo Renato Ortiz, surge em consonância a um estado modernizador, com o Regime Militar, nos 60. Esse estado, embora ditatorial, censor, vem promover as condições necessárias para a consolidação de uma segunda revolução industrial no País, como a abertura para o mercado estrangeiro e facilidade de aquisição de produtos como os eletrodomésticos. Essa expansão integra o mercado nacional à indústria cultural que surge em meio ao desenvolvimento de uma cultura de consumo e bens simbólicos, isto é, de discos, livros, filmes e suas respectivas modas e tendências. A missão heroica atribuída ao jornalismo é ofuscada. O jornalismo passa a atender à demanda do mercado, realiza pesquisas, molda sua linguagem ao perfil de consumidor e classe que deseja atingir. O advento da imprensa comercial sinaliza a desvinculação de um discurso político direto e marca o signo do cálculo, da racionalidade que, finalmente, passa a orientar a produção jornalística brasileira na virada da década de 70. O papel da arte na cultura contemporânea, e, sobretudo, a ascensão de um mercado de jovens consumidores e produtores de cultura pop que surge nessa época, redirecionou a linha editorial da maior parte dos suplementos do gênero. Eles modificaram design,
Não importa se dançamos conforme a indústria, o jornalismo cultural é pensamento diagramação e linha editorial exatamente para atender a um crescimento que corresponde, afinal, à arte como bem de consumo. Conceituada como sublime, a arte desce de seu pedestal para acompanhar a vida cotidiana. É a partir daí que a estrutura econômica do lead, que orientou a linguagem jornalística a partir do pós-guerra, passou a ter ampla disseminação na imprensa do país quando a indústria cultural finalmente se estabelece na cultura brasileira, com a chegada de revistas especializadas e de um mercado de bens simbólicos definidor de uma nova sensibilidade, a do consumo. Por esse “novo leitor”, a linguagem mais sinuosa e barroca que a literatura fornecia à narrativa jornalística teve que ser remodelada para garantir uma leitura rápida e fácil, sem os apelos estilísticos do padrão anterior. Não é exagero até afirmar que uma linguagem própria do jornalismo se forma nesse rompimento – e que o jornalismo cultural se cria aí independente e autônomo aos outros cadernos. Ironicamente, é a indústria cultural amaldiçoada por Adorno que forma uma nova geração de jornalistas que, através da linguagem identificada com os valores da cultura de massa, traz à tona o culto/repúdio ao personalismo, característico dos anos iniciais do jornalismo heroico. A partir do pensamento subjetivo, da marca da assinatura, da construção intelectual de um homem só, o jornalismo cultural vai se afas-
tando da objetividade de outras esferas pelas quais o real é apresentado nesse campo. Nesse caso, o jornalismo cultural passa a ser o local de atuação de um jornalismo de autor, no qual se ouve ecos da histórica tradição francesa. O jornalista continua a ser o antena da raça, mas ainda o descobridor de novidades, cuja atuação deve apontar novas estéticas e pensá-las dentro do contexto de um jornalismo diário. Entenda-se: o jornalista deve circular, ter ideias bacanas, seduzir o leitor com um texto idem e fazê-lo pensar sobre elas. O caráter dialético da crítica ou mesmo sua densidade devem estar de acordo com as limitações, principalmente espaciais, do veículo. Não importa se estamos falando ou dançando conforme a indústria cultural, taxada como superficial e alienante. O jornalismo cultural é a produção de um pensamento, é a história de uma ideia. Não importa se hoje ele funciona como agenda, vitrine ou almanaque diário. A sua linguagem ainda é pautada pela crítica estética que, conforme já coloquei em outro artigo publicado nesse suplemento, vincula-se mais ao campo da arte do que do jornalismo propriamente dito. Essa singularidade desequilibra a balança da impessoalidade que deve orientar a narrativa jornalística ao promover à figura de criador aquele cuja função é apresentar a criação. Nesse caso, a ousadia é colocar uma ideia original numa página de um caderno, onde, tal qual tantas outras esferas sociais da cultura brasileira, as relações são afetivas e a dinâmica funciona intercalando valores comerciais do contemporâneo e as nostalgias irracionais do passado. O personalismo é uma característica elementar do jornalismo cultural. Enquanto outros cadernos se propõem a mostrar uma visão panorâmica de um fato, com a multiplicidade de opiniões contrabalançando as diferenças sociais, o jornalismo cultural permite, pela crítica que ainda constitui grande parte de todos os cadernos do gênero no Brasil, revelar a autoridade de um homem só. E revela-se não somente pelo fato de sua linguagem permitir uma construção narrativa menos padronizada. Revela essa autoridade na medida em que a linguagem é pontuada pelo afeto do escritor. Exemplo popular? Ficaram para a história não apenas as críticas de teatro de Paulo Francis ou Barbara Heliodora. Ficaram para a história a arrogância e elitismo de seus autores. Nesse caso, voltamos a uma outra questão fundamental, que entrecorta o problema da linguagem. Em primeiro lugar, o distanciamento dos cadernos culturais do formato estético de outros cadernos jornalísticos é condicionado pelo polissêmico conceito de cultura. Num dos seus inúmeros significados, cultura se confunde com civilidade. Por esta, entenda-se a aquisição de bons modos, que incluem desde princípios básicos de educação e polidez à formação de um repertório social culto, com a leitura de livros canônicos, passagem pelas teorias filosóficas e política e a audição de músicas clássicas. A cultura, nesse caso, sempre foi status simbólico. Não há como dissociar o jornalismo cultural local desse princípio. Ainda que a indústria cultural forme o repertório de conhecimento e experiência dos jornalistas contemporâneos e que seja para este perfil de leitor que os suplementos se direcionem atualmente, a ideia de cultura como distinção e privilégio de poucos, sejam os eleitos pela classe, pedigree ou formação intelectual, ainda determina a produção jornalística. Essa herança encontra-se, por exemplo, na desconfiança que cerca todo profissional de jornalismo cultural. Quem está gabaritado para escrever sobre aquilo que se encontra num nível simbólico? Quem pode? Quem “acumulou” conhecimento suficiente para ir à praça pública defender seu ponto de vista? No âmbito profissional, a dúvida é fruto da idealização da cultura como status. Fora das redações, a desconfiança revela a dificuldade que os produtores e artistas têm de lidar com a autoridade, muitas vezes apelando para julgamentos morais e não estéticos. Alheio à falácia que o movimenta, o jornalismo cultural segue apresentando suas novidades, ditando e orientando tendências, pensando, mesmo em instantâneos reflexivos, uma cultura que é seduzida pelo efêmero mas com a qual quer se chegar à marca indelével da memória.
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IMPRENSA REPRODUÇÃO
À prova de pragas e ética
Os perigos sedutores do jornalismo transgênico Adriana Santana
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Tenho medo, muito medo mesmo, dos puristas. Mas antes um puritanismo às claras do que a cultura do deus-dará disfarçada de avant garde. O campo minado do jornalismo é terreno fertilíssimo para a defesa da anarquia e frouxidão da ética disfarçadas de mudernidade. Quem insiste num mínimo de rigor de método e respeito a regras simples no jornalismo pode ser facilmente taxado de démodé nos dias contemporâneos, acusado de ir contra a maré da democratização do polo emissor, de querer refrear a onda libertária da comunicação de todos para todos ou de viver numa era que já passou. Eu sou a favor de tudo isso: democratizar o acesso, proporcionar que outras fontes e outras vozes não só apareçam na imprensa, como também produzam conteúdo, de se fazer um jornalismo sobre o comum das gentes, calcado não apenas em efemérides e em fatos “obrigatórios”. Mas nem por essas razões eu me permito aderir à hibridização do jornalismo com a publicidade, por exemplo. E que não me venham com a já enfadonha e indigesta discussão do “não existe objetividade e imparcialidade possível” na atividade jornalística. E não existe mesmo, naturalmente, mas Walter Lippman já cutucava os possíveis detratores dos jornalistas, na década de 20 do século passado, lembrando que o método de investigação jornalística é que precisa ser objetivo, não os jornalistas. Mesmo descontando o tom, por vezes, catastrófico (do qual comungo), o pesquisador em Comunicação Leandro Marshall cunhou o termo “jornalismo transgênico” para descrever o que seria essa forma “híbrida” entre os gêneros jornalístico e publicitário. Essa hibridização responderia pelo fato de um gênero com finalidade publicitária (release ou texto produzido por uma assessoria de imprensa para divulgar temas de interesse de um cliente) trazer o formato de um gênero de domínio jornalístico (matéria, reportagem, texto jornalístico). Esse filhote intergêneros pode ser visto facilmente, quase que todos os dias, em veículos de comunicação mundo afora. Um exemplo são os famigerados encartes, sem diferenciação tipográfica ou mesmo de estilo editorial, publicações pagas por instituições públicas e privadas, geralmente um resumo – em forma de reportagens – do que tal empresa realizou num determinado período de tempo. Prefeituras e estatais são campeãs desse tipo de “serviço jornalístico”, que, não custa ressaltar, mui-
tas vezes não vem identificado como material de cunho publicitário, e não poucas vezes é escrito, fotografado e editado pelos mesmos profissionais que fazem parte do corpo de jornalistas contratados desse veículo. Ou seja, os jornalistas que escrevem esses textos “encomendados” são os mesmos que trabalham para levar ao público informações conseguidas através do trabalho diário de apuração. É claro que são os anúncios que fazem o jornalismo andar e existir, e a relação entre essas duas esferas, apesar de tantos aspectos diferentes em relação à forma, conteúdo e até objetivos, possuem vários pontos de convergência. A passagem do jornalismo com função propagandista para a informativa, por exemplo, só foi possível após a desvinculação econômica dos jornais dos financiamentos políticos, ainda no século 19, como ressalta o teórico português Nélson Traquina. Só com as receitas publicitárias, ou na transformação do jornalismo em negócio e não mais apenas instrumento de disseminação ideológico-partidária, é que os veículos adquiriram mais independência. No Brasil, o primeiro jornal diário a circular, o Diário do Rio de Janeiro, fundado em 1821, inaugurou o periodismo de anúncios e informações no País. Publicava preços de produtos, anúncios de compra e venda, informes de propaganda e particulares e, assim, apresentava um panorama do dia-a-dia dos 160 mil habitantes da cidade de então. O nó da questão reside no propósito, no compromisso maior – ao menos em teoria – desses dois lados da moeda. Natural que o jornal ou a revista não irá publicar, com raras exceções, notícias que sejam prejudiciais aos proprietários, aliados políticos e parceiros comerciais. Mas o compromisso final, aquele que deveria nortear as suas ações, continua sendo o interesse público. Ao passo em que o fim e o meio do campo publicitário e comercial é o cliente. O jornalismo desenvolvido via acordos comerciais, apesar de se valer de algumas técnicas e preocupações inerentes à atividade jornalística, aproxima-se sobremaneira do terreno publicitário. O que não seria nenhum pecado capital caso ficasse claro, ao leitor, de onde e por quem se fala. Dar nome aos bois já seria uma tremenda atitude de lealdade e respeito para com o cidadão que pensa estar comprando uma lebre de informação, mas que no final das contas acaba levando mesmo é gato disfarçado.
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UM NOVO OLHAR
Avalovara, de Osman Lins
O ilustrador Raul Aguiar, do studioaurora reinterpreta a criação do personagem no texto inicial de romance mais experimental do autor pernambucano “No princípio, vejo apenas o halo do rosto e reflexos da cabeleira forte, opulenta, ouro e aço”. Assim, o escritor pernambucano Osman Lins explica o processo criativo do personagem, sugerindo perguntas e oferecendo respostas. Mas, de onde vêm os personagens? E como nascem? Ele sabe. Em Avalovara, num grande exercício de imaginação, o narrador começa a encontrálos no mistério secreto da criação, em formação, para que vençam o espaço da mente, cheguem levemente no ambiente de trabalho do escritor e, finalmente, repousem na página. E ali iniciam a vida sem que lhe custe qualquer dor ou qualquer sofrimento. Existem. E pronto. Logo se entrelaçam, homem e mulher, dão-se ao conhecimento mútuo, respiram o ar, pisam no chão do romance para uma experiência única e permanente. Para sempre. Nunca se separam, ainda que ocupem o mesmo espaço. O trabalho revolucionário do pernambucano Osman Lins é um desafio da mais pura e absoluta criação literária, sem com isso afastar o leitor de suas páginas. Imediatamente ocorre a cumplicidade entre o escritor, o texto e o leitor, de uma maneira que surpreende mesmo aqueles que não estão preparados para ler este intelectual renovador. É claro que, assim, a primeira página de Avalovara é, de imediato, um estranhamento, um encontro que emociona, porque o leitor é chamado a participar da criação dos personagens, os primeiros a acompanhá-lo durante muitos anos. Ao procurar os movimentos iniciais da criação, na verdade da gestação dos personagens, mostrando-se nos seus movimentos iniciais, o escritor estabelece um movimento ainda mais ousado e espontâneo: pede que o leitor também participe dessa criação. Ou seja, que o leitor seja, igualmente, o criador dos personagens, também responsável pela maravilha da vida. É curioso, portanto, que o leitor deixe de ser, por assim dizer, passivo, que abandone sua cômoda posição de olhar preso no papel, para também criar letra a letra, frase a frase, personagem a personagem. (Raimundo Carrero)
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PROJETO EDITORIAL
Os feios que nos perdoem Os bastidores do design inovador da editora Cosac Naify Patrícia Amorim
No alto : detalhes do projeto de Moby Dick; capa e ilustração de Hare Lanz e uma reprodução da Harper’s new monthly magazine Na página ao lado: Bartleby, o escrivão, livro onde é necessário descosturar a capa para começar a leitura
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Nas mãos de Woody Allen, Moby Dick é a causa de um dos mais peculiares e hilariantes casos de distúrbio psicológico já mostrado pelo cinema norteamericano, no excelente Zelig, de 1983. Ano passado, dessa vez sob os cuidados da Cosac Naify, o clássico oitocentista de Herman Melville foi novamente razão de um empreendimento notável. Ganhou uma edição definitiva em capa dura, onde os esforços editoriais e gráficos conferiram à obra elementos dignos de sua relevância, e amealhou, em consequência, importantes prêmios de design. Despontando entre as peças-chaves para o entendimento dos atuais rumos da produção de livros no Brasil, esta edição vai além. Ao traduzir com elegância visual a magnitude de um clássico que não perde o viço, reforça categoricamente o protagonismo da Cosac Naify no mercado editorial. Fundada há doze anos por Charles Cosac e Michael Naify, a editora paulista tem defendido um ambicioso projeto cultural. Reunir em seu catálogo tanto autores consagrados quanto os menos conhecidos, publicar obras internacionais e nacionais, clássicas e contemporâneas e investir em novas apostas literárias e traduções. Como premissa, a excelência no processo de edição, escolha do conteúdo, projeto gráfico e acabamento. Nesse percurso, marcado inicialmente por dificuldades administrativo-financeiras – superadas em 2001, com a chegada de Augusto Massi na direção
editorial (atual presidente) –, a Cosac Naify publicou mais de 700 títulos. Abrangendo áreas como arte, literatura, arquitetura e design, cinema e teatro, ensaio, fotografia, moda, música e dança, além do segmento infantil, onde atua com bastante destaque. Uma das características de maior impacto dessa produção, a qual tem feito arregalar os olhos de leitores e também daqueles que acompanham de perto a trajetória do design editorial no país, é a forma visual e gráfica de seus livros. Para a editora, cada obra é singular, sendo cuidadosamente pensada para expressar fisicamente a alma de seu conteúdo. Predomina, desse modo, uma abordagem projetual onde o livro se transforma num objeto que interpreta o texto. NOVAS PERSPECTIVAS DE LEITURA Em Moby Dick, por exemplo, as partes pré e póstextuais distinguem-se por suas páginas em verde turvo, remetendo à cor dos mares profundos em dias nebulosos. Nelas, ilustrações (sem autoria) da pesca baleeira criadas para a revista Harper’s new monthly magazine, de 1874, garantem sabor genuíno à atmosfera iconográfica do livro. Em paralelo a essas imagens, o sumário e o glossário náutico ilustrados funcionam como infográficos, com traço sintético baseado na cartografia e no desenho técnico. Elaborados por Hare Lanz, fornecem re-
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IMAGENS: DIVULGAÇÃO/COSAC NAIFY
ferências geográficas da cruzada marítima deflagrada pelo vingativo e monomaníaco capitão Ahab em perseguição ao grande cachalote branco, bem como detalhes estruturais das embarcações descritas no texto. Tais recursos, ainda incomuns em projetos de livros de ficção, possibilitam novas perspectivas de leitura a partir de uma interpretação da obra do ponto de vista do design. Para as alvíssimas 567 páginas onde estão ancorados os 135 capítulos desse relato monumental, apenas a fonte Swift – de serifas pontudas e impulso horizontal –, aplicada à massa de texto, e a eloquente Gotham, aos títulos dos capítulos. O projeto gráfico de autoria de Luciana Facchini chama a atenção ainda pelas páginas capitulares, cuja margem superior oscila continuadamente, sugerindo o movimento das ondas; além dos títulos dos capítulos, os quais se deslocam, flutuando e submergindo ao longo da leitura. “A vantagem de trabalhar com livros é poder criar a partir do que ele diz”, reforça Luciana, em sintonia com o compromisso editorial assumido pela Cosac Naify e seu time de designers, equipe da qual faz parte e de onde também coordena os projetos infantis. Essa postura projetual, entretanto, merece ser mais bem observada em razão do modo distinto como prioriza as referências norteadoras do processo criativo, das interpretações que provoca acerca do papel do designer nesse processo e do tipo de livro que resulta de uma intervenção como essa. Nesse sentido, deslocando para o conteúdo a matriz criadora, muitas vezes é possível visualizar a história entranhando-se na materialidade do livro e as interpretações gráficas que dela se originam sendo servidas aos leitores. Estes, por sua vez, ao contrário de fornecerem o denominador comum de um imaginário que, através de pesquisas com público-alvo, por exemplo, serviria de instrumental para a criação de um projeto gráfico amigável e
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de forte apelo comercial, têm prazer em serem surpreendidos por um design marcadamente autoral. Um produto ousado, embebido no discurso literário e ao mesmo tempo consciencioso em sua técnica. Contexto onde o designer, portanto, pode ser reconhecido como coautor da obra (re)visitada, e o projeto gráfico, de coadjuvante ascende ao primeiro plano. PIONEIRISMO E ORIGINALIDADE É importante lembrar, contudo, que, ao contrário do que se possa pensar, a história do livro brasileiro, além de antiga – começa no final do século 19 –, é caracterizada desde o início pelo pioneirismo e pela originalidade, principalmente no segmento de capas ilustradas. Já na década de 1920, por sua vez, projetos gráficos de livros cuidadosamente elaborados era prática comum. Devendo-se reconhecer ainda iniciativas memoráveis como o Gráfico Amador, nos anos 1950. Prova da inventividade e do apuro estético dedicados à criação editorial, conduzida por Aloísio Magalhães, Gastão de Holanda, Orlando da Costa Ferreira e José Laurenio de Melo, aqui mesmo em Pernambuco. Frente a esse passado de êxitos, a perspectiva inovadora que a Cosac Naify desbrava com bastante propriedade é encarar o livro como objeto artístico. Não se restringindo ao campo bi-dimensional, explorando a semântica de seu suporte físico (papel, acabamentos, tipos de impressão, tintas...) em função do conteúdo, amplificando assim os sentidos da leitura. Como bem lembra Elaine Ramos, diretora da equipe de designers e coordenadora do conselho de design da editora, “algumas vezes, ser silencioso é um dos objetivos do projeto”. E nesses momentos, os contornos do livro ganham um tratamento mais convencional, focado na legibilidade e na funcionalidade, com apelo visual subordinado à melhor fruição das informações contidas
no texto e nas imagens, sem, entretanto, abrir mão do charme. Fazem parte desse rol importantes títulos publicados sob a supervisão da editoria de design da Cosac Naify (O mundo codificado, de Vilém Flusser, Objetos de desejo, de Adrian Forty, e a série sobre design brasileiro, para citar alguns), núcleo também conduzido por Elaine. A propósito, a diretora de arte, formada em arquitetura pela FAU-USP e há nove anos na editora, dedica-se atualmente à elaboração da primeira edição brasileira do fundamental A history of graphic design, de Philip Meggs, com previsão de lançamento para setembro. “Além da tradução, estamos fazendo o projeto gráfico e tratando as imagens. É um trabalho colossal”, diz. Autora, entre outros, do premiadíssimo projeto gráfico da coleção Moda brasileira I e II – espécime notável pelo modo como explora elementos comuns ao livro e à roupa –, é mesmo em Bartleby, o escrivão, que Elaine vê seu melhor trabalho e onde se esconde um dos mais preciosos experimentos da Cosac Naify. O caminho, no entanto, até o cheiro acre dessas páginas é mais longo do que se pode imaginar. Como uma alegoria da relutância de Bartleby em atender aos pedidos de seu chefe e da sentença que irá proferir com veemência ao longo deste conto, Acho melhor não, o livro recusa-se insistentemente em ser aberto. Costurado na lombada e na lateral oposta, o leitor deverá puxar uma linha vermelha na margem direita para, então, soltar e virar a capa, encontrando, no interior do livro, o marcador de acetato que irá auxiliá-lo a rasgar as páginas pelas bordas, como nos envelopes de correspondência. Unidas duas a duas, o texto parece emparedado pelas folhas de papel e sua textura de concreto, em clara referência à empena cega que Bartleby encara por dias a fio no escritório onde trabalha em Wall Street (Rua da Parede). Uma vez separadas, as páginas revelam que a diagramação e a escolha tipográfica mantêm o jogo alusivo inaugurado na capa. A grade com generosas margens externas e inferiores, típicas da construção geométrica do diagrama de Villard, e a fonte Goudy Old Style, aplicada no texto em itálico, fazem referência sutil ao cotidiano formal e burocrático do escrivão, sempre mergulhado em cópias de documentos, letras manuscritas e pãesde-mel. Arrematando o cenário gráfico deste conto publicado originalmente em 1853 e de autoria do mesmo Melville, criador de Moby Dick, está uma discreta capa verde, em papel cartão de fibras aparentes, a qual envolve, como uma pasta-arquivo, uma vida que preferiu se eximir. Para Kafka – autor cujo universo comumente vem à tona quando o assunto é Bartleby, o escrivão –, só merecem ser lidos livros que mordam e piquem. Que atinjam o leitor como o pior dos infortúnios, “como um machado para o mar gelado de dentro de nós”. E se preciso for, correndo o risco de forçar limites, indo até onde a costura da lombada aguenta para manter seus cadernos unidos.
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Fernando Farias
INÉDITOS
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Alexandria Depois que meu crânio foi esmagado descobri que dentro é maior do que fora. Foi quando fui para o inferno e conheci meu amigo. Meu inferno é uma casinha branca, de portas e janelas azuis. Dentro apenas uma mesa rústica, três cadeiras e a estante com alguns livros. Uma pequena biblioteca. Um homem cego me esperava com as mãos cruzadas sobre a bengala. Alto, calvo, finos cabelos brancos e vestindo um terno preto impecável. Um bibliotecário. Sem falar, pois aqui não se fala, e percebendo as minhas dúvidas, explicou que meu inferno seria assim: uma singela biblioteca e condenado a ler todos estes livros na eternidade. Ele deve ter percebido que eu ri. Uma punição irônica aos meus pecados ou brinde aos meus desejos? Então o Borges, colocando a bengala de lado, descreveu a minha angústia em vida. A de querer ler todos os livros do mundo. Os clássicos, os grandes filósofos, os mais belos romances dos milhares de mil e uma noites da história. O sonho de ter em casa as coleções e obras completas sem as quais ninguém poderia ser um leitor inteligente. Saber citar aforismos magníficos de qualquer autor. — O inferno é aquilo que desejamos por toda vida e que se prolonga pela eternidade. Agora tens o que sempre desejaste. Eis o teu inferno. Primeiro uma brisa fez ondas nas imagens das estantes, como uma pedrinha na lâmina de um lago. E eu vi, mesmo sem ter olhos, as fileiras de prateleiras se estenderem em linhas paralelas. Miríades de livros saltaram das estantes. Prateleiras abarrotadas, como serpentes, se enroscavam. Carrossel de capas, rodas gigantes de encadernações, moinhos de papiros. Salas e mais salas amontoadas, corredores de andares e escadas em aspirais, peles de animais, inscrições em pedras, encardenações luxuosas e em brochuras. O cheiro de tinta gráfica e de mofo. Livros, muitos livros enfileirados jogados ao chão, empilheirados. A casinha branca agora tinha milhões de quartos e corredores. As paredes cobertas de estantes. Dentro era muito maior do que o lado de fora. Não pude ver mais onde as linhas de estantes se perdiam. Mas continuei percebendo o distante som de novos livros surgindo, como quem passa rápido as folhas encadernadas, a cada instante mais e mais textos e pensamentos estão sendo escritos. Bilhões de livros diante de mim. Se em vida não consegui ler quase nada, agora, mesmo com a imortalidade isso não seria possí-
vel. Meu amigo Jorge parecia sorrir. Eu estava mesmo numa sala dentro da casinha branca, de janela azul, onde estavam todos os livros da Terra. Sentei em umas das três cadeiras e comecei a ler divinas comédias e contos de fadas ao som distante das novas fileiras que iam surgindo, o som das folhas misturadas a bips eletrônicos. No inferno não temos o tempo para contar o tempo. Perdi o cálculo dos livros que ia lendo. Aos poucos meu amigo me orientava e me sugeria volumes. Descrevia para mim até os livros queimados em Alexandria e nas torres medievais. Contava-me sobre a vida confusa dos escritores, nunca coerentes com a beleza do que escreviam. Encontrava humor no trágico e a hipocrisia na comédia. Inicialmente eu não entendi porque tínhamos três cadeiras na sala. Percebi que eu lia em todos os idiomas e que bastava tocar, mesmo sem ter as mãos, a minha mente absorvia o que estava escrito. Dispensei, assim, as traduções. Confesso que o silêncio me incomodava. Ele ali parado com o queixo apoiado nas mãos e as mãos sobre a bengala. Havia monotonia no inferno, bem pior do que a do céu e alguns casamentos. É possível se irritar, também, no inferno. Borges e seu sigilo chato e imponente. — E você. Por que não lê um pouco desses livros? Fica aí calado com este rosto de faraó mumificado. Afinal, você aqui é o bibliotecário. Nada a fazer? Nem ao menos ler? — Mas eu sou um cego. Não tenho olhos para ler. Já morri no escuro. — Mas você sabe que não se precisa de olhos para ler aqui. Nem que seja para sair desta inércia de esfinge. — Meu silêncio é dinâmico. Não preciso ler, sou muito anacrônico e por isso sou mais evoluído que você. — Você fala um paradoxo. — Eu não leio estes símbolos mortos. Antes dos livros só havia a voz. Escuto a oralidade sutil dos mestres, a imaginação que deu origem aos livros. Tu vês e lês livros e mais livros. Eu escuto os murmúrios narrados, seleciono os que me interessam e assim medito dialogando com cada pensamento. Jorge Luis Borges, um arrogante como devem ser todos os demônios. Trata-me como um discípulo incompetente ou um escravo. Vigia meus gestos, faz cara de desdém a todas as minhas opiniões, quanto mais eu leio mais ele parece insatisfeito.
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— Neste caso, você é um demônio ou um condenado? Posso deduzir que se estamos no inferno e você aqui me acompanha, então, Borges, você é o meu demônio? — Sempre fui um demônio. Todos nós somos. Não somos deuses. Aqui sou apenas mais um condenado maldito. E assim como tu, estou aqui pagando minhas ilusões entre estantes de livros mofados. Esperei um pouco antes de perguntar. Li todas as Bíblias publicadas. Comparei os versículos que se alteravam de acordo com os interesses dos grupos religiosos de cada época. Simplificações e hermetismos. Traduções de traduções de traduções incompreendidas. Até que perguntei. — Mas quais foram então os seus pecados? O que tanto desejou de impossível em vida? — Tentei usar os livros para mudar as formas de pensar dos leitores, como forma de evoluir o pensamento coletivo da humanidade. Mais que isso, tentei com meus escritos fazer as pessoas pensarem por suas próprias cabeças. — Mas isso será um crime? — Acelerar a órbita natural das ideias vai contra as leis divinas da evolução lenta da espécie. Constrangido, voltei minha atenção aos livros de autoajuda, religiosos e outras ilusões. Demorei o bastante para sentir a longa expansão do universo, até ficar impossível, da Terra, ver as galáxias. Neste período, não mais resisti e fiz a pergunta que não devia ter feito. — Por que você está aqui? E como você está sendo punido? O velho voltou o rosto em minha direção. — Tu és o meu castigo. Baixei a cabeça e li em voz alta todos os 90 mil poemas do Mahabharata e do Harivamsa. Decorei cada um dos dois milhões de palavras e suas histórias. E o Borges voltou a me dizer. — Vou esperar até que leias milhões de livros e até que consigas te libertar e possas pensar por ti mesmo. Que tenhas tuas próprias opiniões sobre a vida. — Mas eu já tenho minhas opiniões sobre tudo que li. — Sem repetir ou citar o que já foi dito antes? Tu apenas relês o que já foi pensado e escrito. Nada de novo. Mesmas coisas ditas com outras palavras. Simples repetição. Imitando os gregos, os judeus e os vedas. O eterno retorno das palavras. Tua cabeça está cheia dos pensamentos dos outros. Não pensas por ti mesmo.
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— Posso concluir que sou eu, então, o demônio de Jorge Luís Borges. Não penso por mim mesmo. Só aprendi a ler os pensamentos das mentes dos outros. Nada que digo aqui é novo ou original. Logo eu, que queria escrever algo tão belo como ele me ensinou em seus contos, sou um fracasso. — Impossível, gritei com o Borges, jamais poderei sair deste inferno. — Poderás num milênio qualquer, quem sabe. Mas para isso terias que deixar de ler, esquecer tudo que já aprendeste e pensaste. Tornar-te inocente como uma criança, capaz de contemplar o universo sem os olhos da razão e da ciência e tirar as mais ingênuas conclusões. — Você acha que eu conseguiria deixar de pensar? Se aqui sou apenas uma gota de elétron de um pensamento? Borges, meu amigo, me responda o que é o inferno? O que é o Inferno? Em suas mãos surgiram uma folha de papel amarelada e uma caneta. Começou a desenhar uma letrinha miúda e leve. Olhei para o chão da casa. Não havia chão. Nossos pés estavam suspensos sobre galáxias como espumas coloridas. Escutei mantras de baleias de um planeta distante. Percebi uma nuvem de borboletas brincando sobre a folha amarela que a mão de Borges me passou. E assim o mestre me disse: — No inferno, não terás com quem contar. Não adianta pedir, não serás atendido. Falas e não serás escutado. Não terminarás tuas frases, serás interrompido e os pensamentos serão tolhidos. No inferno, há muitas direções. Mas não se chega a lugar nenhum. Tentas sair, tentas mudar, mas tudo é estático. Becos sem saídas e ladeiras altas. Acredite. O Nada existe. O Nada toma conta da vida. Nada se cria e nada se pensa. Não há ação. O Nada é o tudo. E o tudo é pobre. A alma é pobre. A cultura é pobre. Somos uma ilha cercada de mediocridades e mesmices. No inferno, morre-se de coisas estranhas. A morte chega em frases estúpidas como: perdão, eu não queria te fazer mal; esqueci de desligar a energia; eu não percebi você; quem tirou a escada que estava aqui? Foi sem querer. Desculpa-me, foi por amor. No inferno, também existe a união. Muita solidariedade para eliminar, impedir e abortar as ideias. Dissipam-se fantasias. Nada se cria. Tudo se destrói. No inferno, não há o choro. As lágrimas evaporam-se antes que saiam dos olhos. Ficam presas e molham o coração, que esfria. E o coração gelado não chora. Não. No inferno não há o sim. Não é não. Tudo é não. Todas as frases começam com o não, não podem ser ditas a não ser com o não. Os verbos são no pretérito. Não há miragens de futuro. Aqui, tudo que é castrador começa com a letra P. Professor, pastor, pais, patrão, país, padre, presidente. Papa, polícia, poder, pendências, Paulo. Propriedade privada, políticos primatas, povo paciente, primas putas. Brilham estrelas no céu, no céu do inferno. Mas as cabeças estão sempre baixas. E a lama escura não reflete brilhos. Sabemos que estrelas existem, mas estão tão distantes, que são impossíveis. Então, não há porque olhar para os astros. O inferno é cercado de um muro. Feito de tijolos de resignação, de conformismo, da submissão. Acomodam-se os desejos. Pois, foi Deus quem quis assim. Há muitas normas no inferno. Normas normais. Leis, regras, dogmas, artigos, códigos, manuais, estatutos, regimentos, cartões de pontos, avisos de proibido fumar, proibido pensar, pisar na grama. Muitos advogados, muitos chefes, censores e sogras. É por isso, que no inferno, o nascer é trágico, sangra, dói e se chora. Já a morte, nem sempre é trágica, nem sempre dói ou sangra. Aqui, o amor é puro. Puro aproveitamento. Não vais poder amar e ser amado como cantam as antigas orações franciscanas. Hás que carregar tanto amor e não encontrar ninguém para receber. Sentirás uma intensa necessidade de te doar, afagar e beijar. Mas receberás a frieza e a indiferença. Uma eterna espera. A tolerância calada, a paciência das filas, saudades antes da partida, medo de si mesmo, uma ameaça constante de não ser. O servir humilde, grito represado, o tesão contido, a esmola negada, um óvulo não fecundado, a voz desafinada. Lugar dos pecadores. Cometem esperanças, insistem em ser felizes e até acreditam em céus e deuses. Insistem em viver. Seguem os instintos. Hereges que acreditam que o destino é imutável. E acima de tudo, o pecado imperdoável de querer a liberdade. Sem a clemência do humor, e o pecado mortal de amar. Existe a paz. A paz dos desertos, a paz dos cemitérios. O silêncio dos torturados que não se confessam. Onde há o esquecimento. Depois de algum tempo, nem mesmo as ervas daninhas vão crescer na cova de terra seca. Nem os vermes perderão tempo com teus ossos. O inferno é aqui. O inferno é a solidão. Quando terminei de ler a folha amarela vi que ele estava com o rosto severo e havia lágrimas. E agora estamos calados há várias eras. Mesmo assim eu continuo na leitura de mais livros e ele no perene silêncio. Às vezes olho através da janela azul desta casinha branca. E vejo você lendo este livro. Percebo ao meu lado a cadeira vazia. É sua esta cadeira. Você logo vai estar aqui, comigo, ao meu lado, junto a estas estantes infinitas. Não tenho pressa. Estou esperando. Quando você chegar, nós vamos reler tudo. Novamente.
SOBRE O AUTOR Fernando Farias faz parte dos grupos Nós pós e Urros masculinos. Publicou, entre outros, O livro vermelho, espelhos obscenos e O livro verde, fantasia manchada de batom carmim.
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Gustavo Fontes e Ana Karina
INÉDITOS
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Lá fora a flora farta. O dia, irradia com crueza suas cores. Infindo, o real se oferta fulgás. Divino esplendor que meu olhar capta, cria... reverencia.
No mar de lua, navega a nuvem. E meu olhar vago, enverga um léxico que já não voga, na expressão deste anoitecer. Frente ao esplendor, creio e calo. Celebrar ou agradecer, apenas minhas maneiras mudas de orar.
SOBRE OS AUTORES Gustavo Fontes é escritor, pesquisador e angoleiro, no Recife. Ana Karina é designer e artista gráfica, responsável pelos desenhos que acompanham as poesias.
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DESCANSE EM PAZ REPRODUÇÃO
Os zíperes abertos de uma geração Erica Jong quis liberar o prazer feminino no best-seller sexual favorito dos anos 1970 Flávia de Gusmão
Onde estava você em 1973? O que estava acontecendo no mundo em 1973? Nós, brasileiros, entre outras coisas, discutíamos a escalação da seleção brasileira para a Copa do Mundo no ano seguinte, que não mais contaria com Pelé, Gérson, Clodoaldo, Carlos Alberto Torres e Tostão. Prenúncio de uma atuação pífia que garantiria apenas o quarto lugar com três vitórias, dois empates e duas derrotas. No mundo, o ano de 1973 trouxe vários desdobramentos: Grã-Bretanha, Irlanda e Dinamarca entram para a Comunidade Econômica Europeia; um cessar-fogo é assinado e as tropas norte-americanas são retiradas do Vietnã; os Estados Unidos param de bombardear o Camboja após doze anos. No Chile, Salvador Allende é deposto e Pinochet assume; Marlon Brando envia um índio para receber, em seu nome, o Oscar pelo filme O poderoso chefão e, na mesma área, O último tango em Paris e O exorcista arrebentam a boca do balão. Embora não tenha exatamente ficado na memória, este também é o ano em que acontece um desses fortuitos pseudo-fenômenos literários: o lançamento do romance Medo de voar (Fear of flying) da, até então, não repercutida autora Erica Jong. Comendo pelas beiradas, enquanto todos esses figurões e assuntos bombásticos aí de cima pareciam querer o monopólio dos meios de comunicação de massa, Jong entrou para a curta história dos best-sellers que todos leram, mas depois ninguém lembra exatamente porque. Não foi o primeiro e, certamente, não será o último que nos despertará a seguinte autorreflexão: “Onde é que eu estava com a cabeça?”. A de vocês, eu não sei, mas a de Erica Jong estava em jogar uma pá de areia no ventilador da então buliçosa e, ao mesmo tempo, recatada sexualidade feminina. Hoje, podemos encontrar o livro de Jong à venda em sites de livros usados a preços que variam entre 6 reais e 13 reais. Triste fim para quem já foi aclamada como a feminista da vez, vendendo mais de 20 milhões de cópias pelo mundo afora. Mesmo se fôssemos proceder
ONDE ENCONTRAR? Você não precisa sujar mais as mãos nos sebos em busca desse clássico da literatura soft porn; após um tempo fora de catálogo no Brasil, Medo de voar foi reeditado pela Best Bolso por R$ 19,90.
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esta conta nos dias de hoje, com o prestígio do livro empurrado na direção oposta à de “raridade”, dava para ter faturado uns bons trocados: 180 milhões de reais, considerando o preço médio da venda. E, se em algum momento de nossas vidas nos passou pela mente a ideia de nos tornarmos milionários às custas de nossa arte de escrever, é bom levar em consideração o que, nesse distante ano de 1973, causou tanto furor uterino. Se quisermos executar a mesma fórmula que nos anos 2000 deu a J.K. Rowling mais dinheiro do que ela (ou qualquer pessoa) precisaria ganhar, é necessário entender que a diferença entre vender milhões de exemplares ou apenas alguns milhares está, não na capacidade de formatar as palavras com precisão, mas de dizer aquilo que uma geração necessita ouvir/ler com urgência. Só assim justificamos a existência de outros “fenômenos” do gênero. Tipo Fernão Capelo Gaivota, romance de Richard Bach publicado três anos antes com o sincero objetivo (pelo menos é minha crença) de nos atormentar. Não tinha, então, criança, adolescente, pós-pubescentes e adultos abilolados que não achassem absolutamente imprescindível para toda uma geração desfrutar dos ensinamentos de “uma gaivota (!!!!, exclamação nossa) de nome Fernão, que decide que voar não deve ser apenas uma forma para a ave se movimentar”. E tem mais, a história desenrola-se em três etapas (I, II e III) sobre o fascínio de Fernão pelas acrobacias, e em como isso transtorna o grupo de gaivotas do seu clã. “É uma história sobre liberdade, aprendizagem e amor”, dizia o slogan de venda. Erica Jong e o seu Medo de voar ao menos era mais, como direi? Safadinha. Ganhou notoriedade ao cunhar o termo zipless fuck, que pode ser livremente traduzido como “foda sem zíper”. Sua protagonista de nome pomposo — Isadora Zelda White Stollerman Wing — formatou toda uma geração de mulheres de 29 anos, encapsuladas em seus casamentos, que mal podiam esperar para por em prática esta expressão idiomática. E elas correram como loucas de calça aberta para a prateleira das livrarias para garantir seus exemplares. “Uma zipless fuck é absolutamente pura. É despida de motivos ocultos. Não existe jogo de poder. O homem não está ‘pegando’ e a mulher não está ‘dando’. Não é uma tentativa de chifrar o marido ou de humilhar a esposa. Ninguém está tentando provar nada ou obter algo de alguém. A zipless fuck é a coisa mais pura que existe. E é mais rara que unicórnio. E eu nunca tinha tido uma”. E foi assim, com as palavras certas, na hora exata — e que hoje soariam como alguém tentando ensinar a alguém que açúcar engorda —, que Erica Jong fez os zíperes se abrirem.
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RESENHAS IMAGENS: DIVULGAÇÃO
Seis letras que choram: leitor
Atacado pelo excesso de técnica e pelo texto incompreensivo, o leitor pede desculpa e sai Raimundo Carrero
NOTAS DE RODAPÉ
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É triste mas é a realidade: o leitor está acenando de longe e se distanciando da literatura. Não demora, some de vez. Quem diz isso, com todas as letras e com todos os soluços, é o ícone do estruturalismo, o húngaro Tzvetan Todorov, no livro A literatura em perigo, publicado pela Difel, com tradução de Caio Meira, direto do francês. Ele vê a dramática situação em dois planos: a falta de leitura pelos estudantes de Letras e, um pouco mais além, o currículo desse Curso de Letras. Se a falta de leitura é grave na Europa (o autor mora em Paris desde a década de 60 do século passado), imaginem no Brasil, onde os estudantes, mesmo os estudantes, não costumam ler nem bula de remédio, sequer espelho de banheiro, marcados por frases, denúncias, declarações e escrachos.
Ele constata, sobretudo, que o estudante de Letras chega à universidade sem ler. Este é o primeiro plano de sua inquietante e desesperada denúncia que, aliás, nem nova é. Tem sido analisada em vários níveis por escritores, editores, jornalistas, mas merece atenção especial pela assinatura do autor. O livro parece uma autobiografia de um jovem que começa os estudos na Hungria, vence a ditadura comunista e desembarca em Paris cheio de esperanças. No primeiro capítulo mostra como foi atraído pelos livros. Em casa, havia biblioteca e ele lia até à mentira. Diz que leu um livro de mais de 260 páginas em duas horas. Pode parar, pode parar Todorov. Está certo que exalte suas qualidades de leitor, critique até à morte a falta de leitura nos outros, mas não precisa
investir no campo sombrio da invencionice. Nem por isso A literatura em perigo perde a força nem a verossimilhança. E só uma mentirinha de nada. Virando a página rápido, esqueça, esqueça, Todorov passa para o outro plano da denúncia – ou seja, a questão dos currículos universitários. É aí que ele critica impiedosamente os cursos de Letras. E, é claro, sem atacar os professores. Para ele, os professores cumprem muito bem a tarefa. O que lhes resta, todavia, é o excesso de didatismo, imposto pelos ministérios de Educação. É claro que reconhece o valor das técnicas. Adverte, no entanto, que, embora os alunos não tenham culpa no cartório, também agravam a situação, porque continuam distantes da prosa e da poesia. Investem, quando muito, na leitura
dos livros didáticos, distanciando-se ainda mais do leve e terno prazer de uma leitura descompromissada, onde podem encontrar versos, frases, histórias e personagens. Embora de maneira indireta, o crítico lança um breve debate à obra de Gustave Flaubert, o escritor francês que deu uma nova vida à prosa, escrevendo com objetividade e razão. Para isso, faz uma análise de cartas trocadas entre o autor de Um coração simples e a escritora George Sand. Um capítulo muito especial. Ali ele transfere a questão da crítica à artista francesa, que não concorda com a teoria da ausência do autor na obra literária.
TEORIA A Literatura em perigo Autor: Tzvetan Todorov Editora: Difel Páginas: 96 Preço: R$ 25
INTERNET
FERNANDO LYRA
EDUCAÇÃO
Blog reúne entrevistas sobre fotografia
A transição democrática brasileira dos anos 1980 por quem viveu a história de perto
Nietzsche além da filosofia e literatura
O blog Olha, vê, criado pelo fotógrafo Alexandre Belém, ex-integrante da equipe do Pernambuco, inicia a temporada de entrevistas de 2009 com Alan Marques, repórter fotográfico da Folha de S. Paulo - sucursal Brasília e autor do livro Caçadores de luz. Os doze entrevistados do ano passado podem ser lidos no arquivo do blog: www.olhave.com.
“A história do Brasil é pouco contada e muito mal contada. Muita coisa que eu li não correspondia ao que eu sabia, ou que eu próprio tinha testemunhado. Por isso resolvi escrever `Daquilo que eu sei´, para dar oportunidade à juventude de saber mais sobre o período da transição democrática e as figuras que sustentaram a defesa da democracia, como Ulisses
Guimarães”. Assim o exministro da Justiça e atual presidente da Fundação Joaquim Nabuco, Fernando Lyra, justifica o lançamento de suas memórias políticas, que focalizam principalmente o período entre 1983 e 1985. “Não obedeci um cronograma. O que há é uma série de fatos, alicerçados em entrevistas realizadas desde os anos setenta”, esclarece.
O filósofo Friedrich Nietzsche foi um grande crítico do sistema educacional na Alemanha do século 19. No livro Nietzsche educador, lançado pela Scipione, a professora Rosa Maria Dias mostra que seu pensamento é perfeitamente aplicável ao sistema de ensino brasileiro atual. Um dos tópicos que ela aborda é a questão da incultura moderna.
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Os 45 anos de um clássico FICÇÃO O coronel e o lobisomem Autor: José Cândido de Carvalho Editora: José Olympio Páginas: 400 Preço: R$ 39
Efemérides são sempre bem vindas. Comemorando 45 anos, O coronel e o lobisomem, romance de José Cândido de Carvalho, volta a receber resenhas e o nome (meio esquecido) de José Cândido de Carvalho retorna à mídia. Publicado originalmente em 1964, o livro encantou autores como Érico Veríssimo, Lígia Fagundes Telles e Clarice Lispector, graças à inventiva linguagem com que o personagemnarrador, Ponciano de Azeredo Furtado, coronel da Guarda Nacional, descreve suas memórias. Misturando
realismo maravilhoso e resíduos de uma decadente sociedade patriarcal, registra causos estapafúrdios e aventuras fantásticas, ocorridas na região de Campos de Goitacazes, das quais o ápice é o embate com um lobisomem. À medida que perde seus bens e se revela toda sua loucura, fica patente a inadequação do coronel, personagem símbolo de um mundo rural, patriarcal e dominador, aos valores de um mundo urbano, dominado pela nova política e novos costumes que se instalavam no Brasil. Considerado um clássico da literatura brasileira, o romance virou filme e minissérie da TV Globo. A obra vale ser redescoberta porque é dos poucos flertes da nossa literatura com o realismo maravilhoso .
Multinacionais reveladas JORNALISMO O mundo segundo a Monsanto Autora: Marie-Monique Robin Editora: Radical Livros Páginas: 372 Preço: R$ 54
O Brasil é o primeiro país latinoamericano a traduzir O mundo segundo a Monsanto, sucesso escrito pela jornalista investigativa francesa Marie-Monique Robin, que aborda o lado obscuro de práticas empresariais seguidas por multinacionais. Baseada em pesquisas científicas e depoimentos, a autora questiona a hegemonia do maior fabricante de sementes transgênicas do mundo, a empresa americana Monsanto. Marie-Monique produziu primeiro um documentário sobre a empresa, que denuncia contrabando de
sementes, manipulação de dados científicos e propostas de suborno a entidades sanitárias reguladoras, entre outros crimes, inclusive ambientais. Grande sucesso na Europa, o material resultou também no livro, com direito de tradução negociado para mais de dez idiomas. Detalhes sobre o Brasil aparecem no capítulo “Paraguai, Brasil, Argentina: a República Unida da Soja”, que fala sobre o cultivo nesses países, que estão entre os maiores produtores de soja do mundo graças a uma política que obrigou as autoridades a legalizar centenas de hectares plantados com grãos contrabandeados. Com apresentação da sempre combativa ex-ministra brasileira do Meio Ambiente, Marina Silva, o livro foi lançado pela editora Radical Livros.
BIOGRAFIA O diário de Bernardina Autora: Bernardina Magalhaes Editora: Jorge Zahar Páginas: 120 Preço: R$ 29
Isso é o que se pode chamar de confissões de adolescente. Um dos episódios mais marcantes da história brasileira, aquele que ditou os rumos da soberania nacional ao conduzir à República, é relatado por Bernardina Botelho de Magalhães, filha de Benjamin Constant Botelho de Magalhães, um dos principais articuladores da conspiração que resultou no golpe militar que derrubou a Monarquia brasileira, provocando o exílio do imperador Dom Pedro II e sua família. Durante muitos anos perambularam entre membros da família
Botelho de Magalhães os quatro cadernos de anotações sobre seu cotidiano, escritos por Bernardina, então uma jovem de dezesseis anos, até serem resgatados pelo antropólogo social Celso Castro e pelo historiador Renato Luís do Couto Lemos Neto, estudiosos do período. Eles selecionaram textos de dois cadernos, aqueles que constituem uma prova documental da participação de Benjamin Constant na articulação do movimento revolucionário, estendendo-se até os primeiros dias da República, quando ele se transformou numa das figuras centrais do processo de implantação da nova organização política do País. O livro contempla o período de quatro meses, entre 7 de agosto e 15 de novembro de 1889.
DOM HELDER
AUTÓGRAFOS
Cartas do Dom refletem sobre papel da Igreja na América Latina
Rio Capibaribe é tema de novo livro de poesias
Cerca de 600 cartas do exarcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara, escritas durante o Concílio Vaticano II, entre 1962 e 1965, foram reunidas em livro, editado pela Cepe em comemoração ao centenário de nascimento do homem que dedicou a vida à justiça social. Dom Helder escreveu sobre temas religiosos, sociais e culturais, refletindo sobre o período de
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Bastidores da República
convulsão social e instalação de ditaduras na América Latina; defendeu ideais e valores, como o ecumenismo; e propôs reflexões sobre problemas da humanidade. As cartas serão lançadas em dois volumes: Circulares conciliares, organizado por Luiz Carlos Luz Marques e Roberto de Araújo Faria; e Circulares interconciliares, organizado por Zildo Rocha.
O jornalista e poeta Robson Sampaio lança seu segundo livro, Eu sou Capibaribe - poemas, no Gabinete Português de Leitura, dia 29, às 19h. Editado pelo Instituto Maximiano Campos e Edições Bagaço, o livro discorre sobre um dos ícones de Pernambuco, o rio Capibaribe. Chama atenção as belas ilustrações de artistas plásticos como Paulo Bruscky.
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a ores
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CRÔNICA Adelaide Ivanova ADELAIDE IVANOVA
LEANDRO BUGNI
SOBRE A AUTORA Adelaide Ivanova é fotógrafa do site Chic e escritora.
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Existem três tipos de cegos: os deprimidos, os apaixonados e os paulistanos. Paulistanos não veem ninguém. Trombam uns nos outros porque não se enxergam, porque sequer enxergam a cidade em que vivem. Não têm tempo a perder com contemplação – quem contempla não ganha dinheiro e tem que almoçar churrasco grego. Apaixonados moram em qualquer lugar do mundo, e também não veem ninguém. Todo apaixonado é prepotente e contempla, porque sim. Os deprimidos, bom, vocês sabem, os deprimidos veem a vida em preto e branco, como Bob Richardson, o pai de Terry, diria. A Lei Cidade Limpa entrou em vigor há mais ou menos dois anos. E a coisa que mais me chamou a atenção não foi a ausência de uma Gisele gigante na Consolação. Foi ver Kassab xingando, live, um colador de outdoor de “vagabundo”. Isso porque o pobre foi argumentar com o prefeito: como vou pagar as contas agora? Kassab não tinha resposta. Ele ia dizer o quê? “Eita, ó, nem tinha pensado nisso”? Assim como não pensou que em São Paulo nunca houve projeto de iluminação pública. Sem os spots que iluminavam as propagandas, a cidade, até então acesa, ficou sem luz. A cidade que nunca dorme nem foi dormir porque não há luz – faz tudo às escuras, mesmo. E assim se segue. Ninguém nunca mais discutiu os desdobramentos da Lei Cidade Limpa, a parte dois, a evolução do projeto, o aprimoramento da medida. Tiraram as propagandas dos prédios, puseram os outdoors na ilegalidade... E tchau. Muito se falou sobre a lei desde que foi implantada. Eu já tive umas doze opiniões a respeito. De modo que, precisando de um ponto de vista que eu respeitasse para ter o meu próprio, fui pedir ajuda aos universitários. A Pio Figueirôa, mais precisamente (não que ele seja universitário, mas é sabido e leonino, então confio nele). Pio, para quem não sabe, é um dos meninos da Cia de Foto e me falou várias coisas interessantes. E bem simples. Mas deixa eu falar de mim mais um pouquinho. Logo que me mudei para cá, sentia falta da praia para me localizar. Passei a usar como Norte a Avenida Paulista, que era meu equivalente ao mar de Bêvê, quando eu me perdia. Para Pio, meu paciente herói, foi assim com os outdoors: “Quando eu cheguei em SP, usava as propagandas para me localizar. Sabia que estava perto de casa quando passava por uma placa de propaganda cheia de tomates. Era um jeito ‘auTOMATIzado’ de me localizar”. Ou seja: sem perceber, o olhar da gente se anestesia. E a propaganda, como um pé de oiti ou o mar de Bevê, passa a fazer parte da paisagem, elemento básico,
Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara
coisa orgânica. E assim, organicamente, respondemos aos estímulos passados por ela, em forma de deleite ou repulsa – mas, em ambos os casos, inconscientemente. A poluição visual só passa a ser incômoda (assim como a do ar, como a do som) quando alguém nos lembra que é. E a gente vai com o olhar inerte viver a vida. Mas pelo amor de Isaac, a inércia visual está nas pessoas, e não na propaganda de Rexona com um suvaco do tamanho de três andares (bem lembrada, Pio!). Esses dias meu benzinho dilatou as pupilas e foi tão bonitinho de vê-lo, todo animado com a novidade – os semáforos em forma de halo, as luzes estouradas; eu, a namoradinha desfocada. E eu fiquei pensando: o olhar só se renova com o inesperado? Só se motiva com a novidade? Isso é coisa de geminiano – e eu não quero viver assim.
A lei me apresentou a uma metrópole higiênica, no sentido ritual do termo. Um espaço urbano sem contrastes, sem coisas para gente falar mal no farol (“minha gente, meu Deus, pela Virgem, que coisa horrorosa Donatella na propaganda da Arezzo!”). A boa publicidade, assim como a boa moda, a boa música, a boa arte, desperta desejo (e desde quando desejo é ruim?) e impulsiona seus pensamentos a irem de um canto a outro, seja lá que canto for esse. Então não dá pra simplesmente sair arrancando dos muros toda propaganda. Talvez se devesse, em vez de fazer o exercício aeróbico de arrancar outdoor a torto e a direito, fazer o exercício anaeróbico de repensar nossa publicidade. Teve quem dissesse que a retirada dos outdoors permitiu que se visse a arquitetura da cidade. Hum, é. E quando foi despida, percebeu-se que
essa tal arquitetura precisava de uma recauchutada, de reparos, e de um bom banho – afinal, por trás desses banners, foram anos e anos de pombos fazendo paintball de cocô ali atrás. De modo que a Cidade Limpa revelou que, além de escura, a cidade precisava de um bom banho. A Lei não faz a menor diferença no dia-a-dia das pessoas – quem tá apaixonado não vê nada, quem não tá só olha para baixo. Mas virou um ótimo assunto para discutir com seus amigos sabidos na mesa de bar. Ou para mocinhas insolentes como eu darem sua opinião por escrito. Só que, enquanto eles (os amigos sabidos) se engalfinham pra ver quem faz a melhor análise semiótica, eu, que nada vejo, só penso na hora em que vou chegar em casa, depois de passar batida por trezentos mil outdoors, para dormir de conchinha com meu bem.
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