Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco nº 39 - Distribuição gratuita 1
PERNAMBUCO, MAIO 2009
Tudo o que você não precisa saber sobre sexo • A história verdadeira de um mito falso
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GALERIA
E UGÊ N I A BE Z E R R A A imagem faz parte de um ensaio fotográfico que a jornalista Eugênia Bezerra está desenvolvendo sobre os parques de diversão instalados em cidades do interior do Estado. Essa foto recebeu menção honrosa no 2º Concurso Universitário de Fotografia Sony-Fotografe.
C A RTA DO E DI TOR Qual a diferença entre um livro e uma pasta de dente? A pergunta pode até parecer um sacrilégio, já que esse é um jornal de literatura, que deveria tratar o livro e o escritor como seres sagrados, acima do bem e do mal ou ao menos quase isso. Mas vamos esquecer altares e devoções e entender que o livro, no final de contas, é o produto central de um negócio que faz circular milhões e milhões. É esse lado comercial da literatura que o Pernambuco procura focar este mês, com matéria de capa assinada pela sempre competente jornalista Carol Almeida, que entrevistou especialistas em marketing e donos de livraria para entender a inexplicável (e imperdoável) semelhança entre um livro e uma pasta de dente. “O livro da romântica e bolorenta capa dura verde-musgo cedeu espaço a projetos gráficos arrojados, elaborados por um conjunto de artistas e designers que foram ganhando um mercado cada vez mais exigente. Com a profissionalização do mercado, as maiores editoras decidiram contratar uma equipe de marketing.”, atesta Carol Almeida num dos trechos da sua reportagem. Vale ressaltar ainda o excelente trabalho do studioaurora,
SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO Adriana Dória Matos que criou a irônica capa deste mês do Pernambuco, com um livro (literalmente) vendendo seu próprio peixe. E continuando a falar das leis de atração do mercado, a cronista Adelaide Ivánova descreve o desconforto de ter pedido ajuda a um livro de autoajuda, quando se encontrou no meio de uma Fnac da vida para comprar o best-seller favorito do momento, Comer, rezar e amar; e Raimundo Carrero explica na resenha do mês que ser rejeitado por uma editora faz parte do jogo. Não podemos esquecer de citar aqui o ótimo perfil de Kcal, responsável pela biblioteca da Comunidade do Bode, localizada no bairro do Pina, realizado por Ana Braga. A repórter soube captar com sensibilidade essa iniciativa que deveria receber um apoio por parte das iniciativas públicas e privadas. Neste mês, cartuns de Samuca completam nossa edição. Nós aqui da redação agradecemos todos os e-mails e telefonemas recebidos elogiando essa nova fase do jornal, que, agora também vendido nas bancas, está mais próximo dos leitores. Esperamos contar sempre com essa troca no processo de realizar o Pernambuco. Até o próximo mês e boa leitura.
GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO Governador Eduardo Campos Secretário da Casa Civil Ricardo Leitão COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO - CEPE Presidente Leda Alves Diretor de Produção e Edição Ricardo Melo Diretor Administrativo e Financeiro Braulio Menezes CONSELHO EDITORIAL: Mário Hélio (Presidente) Cristhiane Cordeiro José Luiz Mota Menezes Luís Augusto Reis Luzilá Gonçalves Ferreira
SUPERINTENDENTE DE CRIAÇÃO Luiz Arrais EDIÇÃO Raimundo Carrero e Schneider Carpeggiani, REDAÇÃO Mariza Pontes e Marco Polo ARTE E REVISÃO Flávio Pessoa, Militão Marques, Flora Pimentel e Gilson Oliveira PRODUÇÃO GRÁFICA Júlio Gonçalves, Joselma Firmino, Eliseu Souza, Sóstenes Fernandes, Roberto Bandeira MARKETING E PUBLICIDADE Armando Lemos, Alexandre Monteiro, Rosana Galvão COMERCIAL E CIRCULAÇÃO Gilberto Silva
PERNAMBUCO é uma publicação da Companhia Editoras de Pernambuco - CEPE Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife CEP: 50100-140 Contatos com a Redação 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
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BASTIDORES
O original que nunca existiu O processo de (re)criação de um mito de formação Alberto Mussa
Meu destino é ser onça passou pelas mesmas etapas de composição de todos os meus outros livros. Para começar a escrever eu necessito de um estímulo intelectual. Não consigo (ou não me interessa) escrever sobre minhas experiências pessoais, observar e analisar o mundo ao meu redor ou expiar minhas próprias angústias. Preciso partir de um problema literário, de uma situação artificial que outros livros que leio me propõem. Por exemplo, quando escrevi O enigma de Qaf, o estímulo foi imaginar um processo de retroceder no tempo que, diferentemente das máquinas que fazem longas viagens pelo passado ou futuro, provocasse um recuo de apenas alguns minutos, dando ao observador a oportunidade de reviver a experiência pela qual ele acabara de passar. Em outro livro, O movimento pendular, quis discutir o problema de serem ou não finitas as histórias que podem ser contadas; no Elegbara, a ideia era transpor para a literatura questões ligados à mitologia do orixá Exu. Meu primeiro contato com a matéria do que viria a ser depois Meu destino é ser onça aconteceu em 1990, quando eu pensei em fazer um doutorado em linguística sobre as línguas tupi-guarani. Nessa época, li um livro chamado As religiões dos tupinambás, de Alfred Métraux. Foi a partir dessa leitura que comecei a me interessar pela mitologia indígena e li em seguida uma série de outros livros. Uns dez ou doze anos depois, fiz uma releitura do Métraux e só aí me dei conta de que o volume trazia um apêndice com passagens de uma obra importantíssima do frade André Thevet, que tinha estado onde seria a futura cidade do Rio de Janeiro, em 1555. E Thevet era de longe a fonte mais extensa sobre a mitologia e os ritos antropofágicos dos tupinambás. Minha primeira ideia foi apenas traduzir as passagens dos livros de Thevet que tratavam do Brasil, mas logo vi que estava diante de um material que podia me render um livro, um livro que tivesse alguma coisa minha, que fosse um pouco mais que uma simples tradução. Bem, Thevet andou por várias aldeias e colheu informações de mais de um informante, certamente. Ora, imaginei se não seria possível reunir todos os relatos e fragmentos de relatos de Thevet e estabelecer um vínculo entre todos eles, desenvolver logicamente uma narrativa única, coerente, que correspondesse a um grande texto mítico, à feição dos que existem em diversas culturas, como a Ilíada ou o Gênese, por exemplo. Mais ainda: pensei em utilizar todas as referências mitológicas constantes do demais cronistas dos séculos 16 e 17. O texto que eu produziria não teve, muito certamente, existência histórica, mas teria sido possível, ou seja, existe num nível teórico como possibilidade narrativa, poderia ter sido um original – e a operação de escrevê-lo (ou deduzi-lo) corresponderia, assim, a uma “restauração”. O estímulo, portanto, foi esse: restaurar um original que nunca existiu. Dado o estímulo, começou a segunda fase do meu processo criativo: as leituras preliminares. Nem sempre faço pesquisas sistemáticas. Mas no caso do Meu destino é ser onça, elas eram fundamentais. Tive que buscar e exaurir quanto possível, na literatura colonial brasileira e sobre o Brasil, todas as referências relativas à mitologia tupinambá (e pus no livro uma seção que reproduz todas as passagens utilizadas e que funciona como uma espécie de antologia colonial de mitologia tupi). A terceira etapa do processo é a elaboração da arquitetura abstrata do livro. Todos os meus livros, mesmo os de ficção, nunca partiram da folha em branco, nunca ficaram ao sabor do momento da escrita. Antes de começar a escrever, eu elaboro o plano geral, defino lugar e época da ação, as personagens com suas características, as cenas que vão ocorrer em cada capítulo e assim por diante. Faço às vezes até pequenos mapas. É a parte mais prazerosa, para mim. É quando sinto que estou realmente criando alguma coisa. Meu destino é ser onça é o único dos meus livros que revela a forma como foi construído. Para cada personagem do mito, ou assunto relevante, fiz uma relação de todas as informações disponíveis. A partir desse ponto é que fui montando o quebracabeças, vinculando os episódios, estabelecendo a cronologia interna, e fazendo escolhas, quando possuía duas variantes do mesmo trecho narrativo.
Alguns capítulos do mito “restaurado” foram difíceis de fazer, porque as fontes eram muito escassas. Foi o caso do episódio sobre a origem do canibalismo. Minha solução foi recorrer ao próprio ritual antropofágico e entendê-lo como uma dramatização de um possível mito. Em alguns casos, também recorri a mitos de povos aparentados, como os guarani, os urubu e os araueté. A terceira parte do livro se preocupa em explicar com detalhe esse processo. CRISTINA LACERDA/DIVULGAÇÃO
Quando cheguei à estrutura final da história que queria contar, comecei a última etapa, que consiste em escrever, no sentido estrito do termo. Para mim, é a mais difícil, mais trabalhosa. E a que evolui mais lentamente. Escrevo pouco, pouca quantidade de texto por dia, e sempre à mão (a não ser textos não exatamente ficcionais). No caso do Meu destino é ser onça, acabei escrevendo direto no computador, precisamente porque não cheguei a considerá-lo um livro de ficção pura. Essa característica funcionou, na verdade, como marca de gênero – embora eu ache que o livro fica numa espécie de umbral entre ficção e ensaio. Mas mesmo assim, escrevi lentamente, revi e retoquei o texto muitas vezes, como faço sempre. Quando essa revisão incessante se torna psicologicamente insuportável, o livro está pronto. O que não significa que eu esteja plenamente satisfeito.
O AUTOR Alberto Mussa publicou O movimento pendular, O enigma de Qaf e Elegebara, todos pela Record. Também é tradutor.
O LIVRO Meu destino é ser onça Editora Record Páginas 272 Preço R$ 39
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Raimundo
CARRERO Caos é aquilo que a gente não entende No universo de técnicas literárias, as interpretações causam confusão
Marco Polo
MERCADO EDITORIAL
A confusão é geral. Ninguém se entende. Solilóquio passa por monólogo, monólogo vira fluxo da consciência, fluxo da consciência se perde num emaranhado de definições, indefinições, buscas e encontros, tudo isso formando um universo de certezas e convicções, de equívocos, de risos e trapalhadas, e, o que é justo, todo mundo tem razão. Cada qual com seu cada qual. Num mundo de pós-modernidade, é o que dizem e asseguram, a verdade – sem discussão filosófica - não é terreno privado de ninguém. Por isso mesmo vale um debate de letrinhas. Dois pra lá, dois pra cá, vai começar a festa. De caos em caos, a literatura enche as páginas. É comum encontrar pessoas chamando de monólogo o famoso solilóquio do “ser ou não ser, eis a questão” do Hamlet, de Shakespeare. Não pode ser - ali há um solilóquio, e o solilóquio é matéria do teatro, nasceu com o teatro, vive com o teatro. Brilha no palco. Ou no cinema. Solilóquio é uma conversa íntima e interna de personagem para personagem, dele para ele, pedindo ouvido e colo, dirigido à plateia. Uma conversa para o horror da alma mesmo e com a esperança de que alguém o escute. Isso é fundamental. É básico. Assim, sem tirar nem por: sem ouvido não há solilóquio. Por isso deve ser lógico, coordenado, organizado. Pode estar no romance, na novela, no conto. Como técnica, sim. Hamlet:
“Ser ou não ser – eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma Pedradas e flechadas do destino feroz Ou pegar em armas contra o mar de angústias – E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir; Só isso”. Se alguém gosta de monólogo, às vezes, monólogo interior, então tudo bem. Chame-o como quiser. Tratando-se, portanto, de uma técnica, não deve ser lei nem regra. Mas se for possível consultar uma gramática que tem área para a estilística pode-se observar com clareza: solilóquio é diferente de monólogo. E bem diferente. Só mais uma coisa: no solilóquio o personagem está sob o domínio do narrador, feito ventríloquo. No monólogo o personagem tem liberdade. Está livre de tutela ou de comando. Fica só, sozinho, somente. É tresloucado. O monólogo é completamente diferente do solilóquio, pois sim. É típico da prosa de ficção. Sabe por quê? Porque não exige o ouvido, não pede o testemunho de ninguém. E como não pede ouvido nem o testemunho de ninguém
não precisa ser organizado, coordenado, lógico. Precisa de olhos, feito namoro e paixão. E, é claro, de mentes. Basta uma olhada no Ulisses, de Joyce. E, brasileiramente, do monólogo de Autran Dourado, em A barca dos homens. É fácil perceber que o pensamento do personagem não segue nenhuma direção lógica. Desaparece, muda de rumo, some. Faz caminhos nunca dantes navegados, com a licença de Camões. Um exemplo de monólogo, em Ulisses:
“E um desses espartilhos ajustadinhos eu queria anunciados como baratos na Fidalga com nesgas elásticas nas ancas ele endireitou o que eu tenho mas não é bom que é que eles dizem eles fazem uma deliciosa silhueta” E o fluxo da consciência? Aí, camarada, a porca torce o rabo, a vaca tosse e arara canta. Tudo trancado num quarto escuro, apertado e sem janelas. O solilóquio é lógico? Sim.O monólogo é ilógico? Sim. E o fluxo da consciência é o quê? Não é também ilógico? Sim, mas tem um passo adiante, é só enfiar os olhos no papel. O narrador precisa encontrar o inconsciente do personagem e expressar os pensamentos, a mente desorganizada e revelar barulhos, confusões, lembranças, memórias, tudo numa rapidez impressionante, sem atropelos mas com estrutura inimitável. A ilógica do monólogo é pouco, precisa ir até às aliterações, às rimas, ao jogo interno das palavras inteiras, cortadas, unidas, desfalcadas. É inimitável, também segundo Autran Dourado, que é exigente:
“O que é importante no stream-ofconsciousness de Finnegans Wake é a sua mudança de ritmo. As elipses, os lapsos, as aliterações, são o que fazem da obra final de Joyce uma obra maior do nosso tempo... Confundi-lo com estilo indireto livre ou o solilóquio é um erro de consequências fatais para quem o pratica”. E com o monólogo também. O exame continua com este exemplo de Joyce, tão diferente do monólogo. Vejam bem:
“Salamangra! Ai, ai, ai! Cheridas gênias, figatrifutrem-se! Ri eu, ri Ana. Wallenton. Essa foi a primeira putada de Wellenton, taco a taco. Hi!Hi!Hi! Este sou eu, Belchum com suas borrachosas de doze éguas chuá, chuá, chuá...” Há também autores que procuram o fluxo da consciência a partir do monólogo. É claro:
PREMIAÇÃO
INFANTO-JUVENIL
ECOLOGIA
Edições Bagaço com dois bons lançamentos
Grupo editorial promove prêmio de US$ 30 mil para iniciativas na literatura infanto-juvenil
Editora da UFF recebe o Selo Carbono Zero
A Edições Bagaço tem duas novidades fortes para este ano: o relançamento de toda a obra ficcional de Hermilo Borba Filho; mais uma coletânea do poeta popular José Laurentino. Capitaneada por Arnaldo Afonso, a Edições Bagaço surgiu há 26 anos na cidade de Palmares (PE). Atualmente estabelecida no Recife, tem em seu catálogo mais de 800 títulos.
Uma das principais empresas editoriais da América Latina, o Grupo SM está recebendo até o dia 30 de junho inscrições para o 5º Prêmio Iberoamericano SM de Literatura Infantil e Juvenil. Os candidatos deverão ser apresentados por uma instituição cultural ou educativa, associação ou grupo de pessoas relacionados com a literatura infanto-juvenil. Em outubro serão anunciados
os finalistas. A entrega do prêmio, no valor de US$ 30 mil, será no mês seguinte, na Feira Internacional del Libro de Guadalajara, México. Em 2008, o vencedor foi o escritor brasileiro Bartolomeu Campos de Queirós. Todo regulamento e fichas de inscrição podem ser acessados pelo endereço http:// www.grupo-sm.com/Images/ Basesportugues09.pdf.
A Editora UFF (da Universidade Federal Fluminense) recebeu da Ong Prima – Mata Atlântica e Sustentabilidade o Selo Carbono Zero, pelo seu programa Recicle Ideias, que envolve o replantio de árvores da Mata Atlântica, a substituição das embalagens de plástico pelas de papel ou papelão e o uso exclusivo de papel certificado ou reciclado.
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James Joyce criou o fluxo da consciência, quase sempre confundido com o monólogo, mas ambos são bem diferentes
REPRODUÇÃO
todo monólogo leva ao fluxo, mas nem todos sabem disso. Não é um desinformado; apenas não se preocupou com isso e tem toda razão: ficção é um ato individual e o autor pode ou não se tornar senhor de sua criação, sem qualquer conhecimento técnico. Outros conhecem o terreno em que pisam. Basta ver o caso do paraibano Rinaldo de Fernandes, em Rita no pomar, um romance e tanto. Ali o monólogo vai pouco a pouco cedendo espaço ao fluxo, porque a confusão mental procura a rapidez e, na rapidez, encontram-se os barulhos, os ruídos, as aliterações já assinaladas. O que há, ainda, é uma pequena confusão: há o fluxo da consciência na psicanálise, amplamente usado na literatura. Tudo bem. É um direito do escritor e um direito do crítico. Pode e deve ser usado. Mas em se tratando de literatura, deve-se usar a técnica criada e desenvolvida por Joyce. Costumo mesmo dizer, e até por brincadeira aos meus alunos da Oficina de Criação Literária que tudo pode e nada pode, depende de quem escreve. O que é correto é que a literatura precisa celebrar as suas conquistas e ir adiante com elas. Sem censurar qualquer pessoa, no entanto. Como já disse, no outro parágrafo, Rinaldo usa um fluxo da consciência excelente, que é tratado como monólogo. São coisas bem diferentes. Começa monólogo, é verdade, mas quando o autor paraibano usa as aliterações e as rimas, por exemplo, sai de um campo para outro, e avança. Avança muito. Numa técnica bem pouco explorada e, segundo Autran Dourado, inimitável. Rinaldo não imita. Cria a sua própria técnica, usando os elementos próprios da técnica em debate. Sem esquecer, ainda, que o fluxo começa a nascer com o discurso – diálogo – indireto livre, criado e também usado por Flaubert,
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porque esse tipo de técnica representa mesmo uma espécie de conversa entre o narrador e o personagem, sem qualquer sinal de intervenção, além da mudança do tempo verbal. Exemplo:
“Maria não vai ao cinema, porque não quer sair com o namorado” É só prestar atenção. O narrador diz: “Maria não vai ao cinema”, mas é a própria Maria quem afirma “porque não quer sair com o namorado”. A mudança do tempo verbal é bem clara: “não quer”, ao invés de “não quero”. Se deixar “quero”, transforma-se em diálogo indireto, com muita clareza. Por quê? Porque a voz de Maria fica muito clara, muito objetiva, e não esconde, porque assim dizer, a resposta da personagem. Depois desse discurso indireto livre, vem a criação do monólogo, que não começa com Joyce, mas com Eduard Djardin, escritor francês do século 19, e muito pouco publicado no Brasil. Há edições esparsas aqui e ali. Joyce percebeu o caminho, aprofundou
o monólogo e voou para mais distante ainda criando o fluxo da consciência. O solilóquio, porém, é mais antigo, bem mais antigo, e foi mais usado por Shakespeare, sobretudo naquele exemplo já citado. Um caminho objetivo: Solilóquio, discurso indireto livre, monólogo e fluxo da consciência. Mario Vargas Llosa avançou com os monólogos entrecruzados, o que também é uma novidade, a partir de A casa verde e chegando à sua sofisticação em Conversa na catedral, que entrecruza várias narrativas e usa esses monólogos entrecruzados. Esses são os caminhos que devemos ou não percorrer. Uma questão de preferência ou de liberdade. Pura liberdade para quem quer criar asas. Cada um entende à sua maneira. E cada um tem razão. No campo criativo não há verdades absolutas. Ou permanece a pergunta: Caos é aquilo que a gente não entende? Não custa ouvir, mais uma vez, Autran Dourado: “Na verdade, confesso humildemente, não consigo entender”. Está aberta a temporada de debates. Para nossa sorte.
PERSONAGEM
CINEMA
Continuação autorizada de Drácula será lançada no Brasil pela editora Ediouro
Audiolivro inaugura primeira loja em SP
A Ediouro comprou os direitos de Dracula: the undead, escrito por Dacre Stoker, descendente direto de Bram Stoker, e pelo historiador Ian Holt, com lançamento previsto para 2010. A história é baseada em anotações do criador do vampiro para uma possível continuação com os personagens sobreviventes do romance original, Drácula, como Jonathan e Mina Harker e o Professor
Abraham Van Helsing, 25 anos depois de enfrentarem o mortovivo. A versão cinematográfica está em andamento nos EUA, com direção de Jan de Bont (Velocidade máxima). Drácula é o personagem literário que mais vezes foi adaptado para as telas. São mais de 160 filmes nos quais aparece como um dos personagens principais. Já o vampirismo é tema de 650 filmes.
Acaba de ser inaugurada em São Paulo a primeira livraria da Audiolivro Editora, que já tem mais de 80 títulos de gêneros variados em seu catálogo. Além dos livros em CD serão comercializados arquivos para download: o MP3 do cliente é carregado com o título escolhido na hora, por um custo menor. Informações pelo fone (11) 2098 3331 ou pelo site www.audiolivro.com.br.
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ENTREVISTA
Luiz Arraes
O silêncio feito dor
Autor de 12 livros, Luiz Arraes prefere a solidão e o silêncio como os elementos essenciais de sua obra, cada vez mais condensada, dispensando palavras inúteis
FLORA PIMENTEL
A medicina e a literatura, juntas, tem grande tradição. Até que ponto uma se confude com a outra?
Acontece exatamente o contrário. A atividade de médico, exclusiva em hospitais públicos ou do SUS, permite que eu veja o mundo real, que não me encastele no Brasil oficial... Sem a realidade, assim como sem a imaginação, o inconsciente, as leituras, e tanta coisa que não sabemos de onde vêm porque não sabemos exatamente o que são, de que vai se alimentar o escritor? Tenho 26 anos de exercício médico. É a minha profissão. Realizo-me nela. Como escritor, estou caminhando, mais para solitário, debruçado sobre os livros que leio para aprender este duro ofício. Debruçado também sobre o que escrevo, sem exagero de autocrítica mas sem excesso de confiança...É uma atividade que demanda tempo. Neste ponto a medicina poderia atrapalhar. As vantagens que ela nos traz, contudo, são maiores do que isto. Escrever pode ser uma maneira, ainda que insuficiente, de preencher a dor existencial, o vazio que há em nós...
Um sobrenome forte e histórico pode pesar para o escritor?
Entrevista a Mariza Pontes e Raimundo Carrero A obra solitária de Luiz Arraes compreende um esforço cada vez maior para encontrar a essência do espírito humano, sua dor e sua marca. Nunca foi exuberante – nem no personagem, nem na história – porque vai sempre em busca daquele instante em que o homem se apresenta em toda a sua complexidade e, ainda assim, simples e humilde. Esta busca de humildade e de realização se faz na lenta e permanente construção de sua obra. O título de um de seus livros revela esta preocupação fundamental do escritor: Palavra por palavra. Mas, além da palavra – um dos elementos da narrativa – ele se ocupa em encontrar o ins-
tante, aquele em que a intimidade da palavra vai à frase reveladora. Exemplo: “O celular não estava funcionando. Nem eu”. Denso, direto, definido. Aí estão elementos que reúnem a modernidade e o eterno num encontro veloz e cortante. No entanto, para chegar nesse instante, foi preciso circular entre canetas e borrachas, entre teclados e apagões. Para isso, inclusive, Luiz Arraes teve de cortar cenários e digressões, privilegiando cenas e diálogos, que sempre concedem rapidez e concentração narrativas. Aquilo que, inicialmente, devia ser dito em duas, três páginas, agora ocupa uma linha, uma frase, uma cena, um corte. Mais uma razão para se observar que a essência desta obra está no silêncio, no absoluto silêncio, a exemplo do conto O silêncio, que é uma espécie de síntese deste trabalho ficcional.
Este sobrenome não me pesa. Ele me confere a responsabilidade de ser sensível a certas lições deixadas por meu pai, Miguel Arraes. Ele nunca nos impôs nada, uma maneira de dizer da importância de manter a independência e a liberdade, que considerava intocáveis. Ele conheceu a privação das duas.Outro valor que nos passava, era estudar. Meu pai carregava muita culpa por achar que, por conta de sua vida política, de compromissos que ele não podia desrespeitar em relação ao País e aos mais humildes, nos havia obrigado a uma vida não convencional, um tanto
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Como escritor, estou caminhando, mais para solitário, debruçado sobre os livros que leio para aprender este duro ofício
tortuosa. Minha mãe faleceu precocemente, deixando-o viúvo com oito filhos. Meu pai, reservado em certos assuntos, falava abertamente nisto e, com frequência, emocionava-se.Isto me fazia ter muita pena dele. Todos nós o compreendíamos e procurávamos ajudá-lo. A vida renasce.Tivemos a nos proteger, quando menores, nossas maravilhosas tias maternas, Hilda e Odete, e minha avó Carmem. O destino botou no caminho dele uma pessoa rara, de bondade imensurável, integridade inabalável, que foi o cimento da união, da harmonia entre tanta gente. Sua segunda esposa, mãe dos nossos irmãos Mariana e Pedro: Magdalena, Madá simplesmente. Os amigos e vizinhos (cita nomes) e a família paterna, contrabalançaram a balança. A vida tem as perdas, mas o espaço pode não ficar vazio. A lição que ele nos deixou foi que cada um fizesse seu caminho, que fosse honesto, correto, cumpridor de sua palavra, qualquer que fosse o caminho escolhido.Tenho orgulho disto!
No livro Tempo: o de dentro e o de fora, você fala do amor de seu pai pelos livros. Você diria que ele determinou sua definição pela literatura?
Na verdade, meu pai ficou muito contente com o fato de ter um filho médico.Para um homem de sua época, isto era muito significativo, carregava um peso simbólico já não visto hoje. Na minha formatura ele me deu um abraço que me levantou do chão. Não era um gesto dele... O ambiente familiar sempre rico em conversas, sugestões de leitura, a grande biblioteca da casa, devem ter facilitado meu interesse pela literatura.Tivemos também a oportunidade de conhecer e conviver com intelectuais, políticos, escritores, artistas. Foi um grande aprendizado assistir as conversas e o
embate intelectual entre essas pessoas. Cito Celso Furtado, Márcio Moreira Alves, Roberto Schwartz, Josué Guimarães, Caetano Veloso, como alguns dos brasileiros. De Portugal e países africanos lusófonos, pude conhecer Manuel Alegre, Amilcar Cabral, Mário de Andrade, Agostinho Neto, Piteira Santos, Fernando António Almeida, Pepetela, Agostinho dos Santos e tantos outros. É inesquecível a visita da escritora chinesa Han Suyin. Régis Debray era um frequentador de nossa casa. Não posso deixar de citar Gregório Bezerra, que começou a escrever as suas memórias em nossa casa ... Escrevia a manhã inteira. Joguei muito xadrez com ele. Ouvia as histórias de sua vida, sobretudo de sua infância pobre em Panelas, a vinda para a cidade grande... Nenhuma soberba, nenhuma demonstração de orgulho ou vaidade... Seu sorriso, fazia dele próximo de todos. Mais tarde meu pai foi sócio de uma livraria de literatura em línguas portuguesa e espanhola. Pude assistir a palestras de Cortázar, Vargas Llosa, Augusto Roa Bastos, Fernando Sabino; são os que me vêm à memória. Foi de alguma maneira ou mais do que isto, seguramente, um privilégio.
De que forma é trabalhada na sua obra a presença de Deus, vinda da família, e a materialidade política?
Na infância tive uma vida religiosa praticante. Naquela época o medo era um elemento muito presente na relação com Deus. Durante a adolescência, muitas dúvidas, o transitar entre a fé e a sua ausência constituíram-se num debate interior existencial muito doloroso. Readquiri a fé não por revelação, como acontece a outros, mas como uma exigência silenciosa que estava em mim. Sem fé, eu me
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imagino tateando no escuro à procura de uma saída que não sei aonde dará.A fé nos confere liberdade e responsabilidade. Vejo esses dois conceitos sempre juntos.
Você publicou seis coletâneas de contos, gênero tido como mais difícil que o romance. Quais as dificuldades técnicas que você encontra no conto?
Uma das minhas grandes frustrações é justamente a de não ter escrito um romance. Está no prelo um segundo livro, uma narrativa mais longa, a sair em um a dois meses; estou corrigindo as provas. É uma continuação de Tempo: o de dentro e o de fora, sendo mais detalhado. Quem sabe não é uma maneira de ir pegando a mão? Escrever é difícil. Muito difícil. Seja qual for o gênero. De toda maneira, acredito que um escritor geralmente sente-se melhor em um determinado gênero. Senão pela escritura, pelo menos pela leitura é mandatório o seu percurso por todos eles. Existiria ficcionista sem a poesia?
Quem são seus contistas preferidos? Alguém lhe influenciou?
Maupassant e Tckeckov são autores indispensáveis. Fico maravilhado como souberam manejar este gênero, o conto. Dizer tanto em tão pouco espaço; calam e continuam a nos dizer coisas, a nos tocar fundo, a mexer com as nossas cabeças. Na América Latina, me surgem à lembrança Borges e Cortázar. No Brasil, Machado de Assis e Guimarães Rosa. Dois gigantes. Gostaria, falando de influência, de mencionar o privilegio do convívio, da amizade e da generosidade de Ariano Suassuna, Maximiano Campos, Raimundo Carrero e de Everardo Norões.
Você identifica características próprias do conto latinoamericano? Identifica-se com a
A América Latina balançou a masmorra em que se encontravam a literatura europeia e americana, com jovens escritores literatura praticada na América do Sul?
A América Latina balançou a masmorra em que se encontravam a literatura europeia e americana, com a invasão de jovens escritores de grande porte... Não falo apenas do realismo mágico.A sofisticação de Borges, a grandeza de um Octavio Paz - esses não tão jovens - espantaram o mundo. Os cubanos, como José Lezama Lima, Cabrera Infante, Severo Sarduy e tantos outros. No Brasil explodia o fenômeno do conto, mais marcante em Minas. Se identificarse é admirar, gostar, ler e reler, a resposta é sim. A América Latina e a África me fascinam.Tenho procurado tirar o atraso do imperdoável desconhecimento que tenho da literatura deste continente.
Os minicontos e microcontos se propagaram nos últimos anos. Você considera que eles são uma vertente do gênero ou somente um modismo? Acho que há um certo modismo. Isto não é necessariamente pejorativo. O tempo o dirá. Eles existem porque algumas situações pedem apenas o tempo de um flash, de uma frase, de um grito, de um suspiro. “Pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem” ou “Pai, por quê me abandonastes?”. Jesus, na cruz, em duas frases revela a Sua grandeza e a do perdão, pilar fundamental de seus ensinamentos, e revela-se homem, a fragilidade do homem. Para quê dizer mais? Você me dirá: nesse caso tem todo o Novo Testamento até chegar nestas frases. Quem lê um miniconto tem também toda uma vida atrás de si.
A solidão e a perda são frequentes em sua obra, atingindo principalmente os personagens masculinos.
Em O remetente, os homens são esmagados pelos acontecimentos, não têm força para reagir. Essa solidão faz parte da condição atual do homem? Como você lida com as emoções?
Não sei responder com clareza uma pergunta tão pessoal, tão profunda...Conheci a perda praticamente ao nascer e a solidão é a companheira de todo ser humano. Necessária, mas perigosa ao mesmo tempo. Uma questão de dose, como nas bulas dos remédios.
A internet tem favorecido a relação de escritores com o público, por meio de blogs. Podemos esperar pelo blog de Lula Arraes?
Tenho vontade, sim. Seria uma forma de fazer um diário.Um gênero que gosto muito.Neste caso, um diário acompanhando o dia a dia.
Em que projetos literários você vem trabalhando ultimamente?
Estou terminando um livro de contos. Antes de escrever uma terceira parte do Tempo..., para a qual venho tomando anotações, pretendo escrever uma novela. Agora quero fazer as coisas sem pressa. Preciso passar um período de muita leitura, de muito treinamento.
PRINCIPAIS OBRAS O remetente Editora 7 Letras Páginas 58 Preço R$ 15 Tempo: o de dentro e o de fora Editora 7 Letras Páginas 80 Preço R$ 25 Silencio é de prata, a palavra é de ouro Editora 7 Letras Páginas 102 Preço R$ 25
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DESCANSE EM PAZ
E o mundo não se acabou
REPRODUÇÃO
Imagem de Toulouse-Lautrec ajudou Dr. Fritz a ilustrar o que é certo e/ou errado no enlace conjugal
Psicanalista relembra certo manual afetivo
Antonio Ricardo Rodrigues da Silva
Amor e felicidade no casamento – este título certamente poderia ser encontrado nas vitrines de nossas melhores livrarias nestes tempos de autoajuda. Poderia ter na sua capa um belo e sorridente casal, desses que encontramos nos anúncios publicitários – jovens e saudáveis. Ao abrir o livro você veria o nome do autor; um certo doutor Fritz Kahn e constataria que se trata do volume II – “A vida sexual”. O primeiro já saíra e talvez já estivesse esgotado. Tratava do “Matrimônio” e o terceiro, ainda por vir, será sobre os “Problemas conjugais”. O livro é ricamente ilustrado com gravuras de grandes pintores consagrados, como Rembrandt, Monet, Renoir, Toulouse-Lautrec, Degas, Botticelli, Modigliani, Rodin e apresentam na sua maioria mulheres nuas ou parcialmente vestidas. Os homens podem aparecer ao seu lado, em atitude de contemplação, mas estão sempre vestidos. Tudo muito clássico, universal para não deixar dúvida que se trata de uma obra séria. Há também a editora, denominada Boa Leitura – quer mais garantia? Nunca é demais. Quem é esse doutor Fritz Kahn você se perguntaria? A pequena nota biográfica na orelha posterior do livro diz tratar-se de um médico alemão nascido em 1888 e falecido em 1968. Ilustrador e escritor, autor de três outros livros: Nossa vida sexual, O corpo humano e Átomo. Um sujeito acima de qualquer suspeita. Sua obra Amor e felicidade no casamento que você agora tem nas mãos, é um verdadeiro “tratado científico” sobre os relacionamentos afetivos-sexuais-sociais. Você saberá também que se trata de uma obra editada no Brasil nos anos 60 e que foi um best-seller. Orientou milhares de jovens e famílias que se constituíam naquela ocasião, quem sabe até contribuiu para a revolução sexual que se deu no Brasil durante a década de 1960. O doutor Fritz sabe muito, talvez saiba tudo. Seu livro é um manual destinado a orientar dos menores detalhes da vida de relacionamentos até os grandes temas da condição humana. Deixe-o sobre o criado mudo e consulte-o antes de dormir. Se você tem alguns pruridos de falar de sexo com seus filhos, deixe uma edição de bolso para eles em cima da mesa de estudo ao lado do microsystem ou do iPod. Assim eles não repetirão os erros que você por ventura cometeu. Claro que sem querer, por não ter tido acesso a uma gama de informações como as contidas nesse generoso livro. Pois lá encontrarão como é e também como deve ser a vida sexual dos solteiros, a melhor idade para o casamento, como encontrar o cônjuge acertado, o tempo para o noivado e o que ele denomina de o dia feliz do casamento que finalmente chegou. Essa é a primeira parte do livro. Já a segunda, tratará da natureza da sexualidade. Dr. Fritz parece um liberal (ma non troppo) ao falar do prazer. Óbvio que ele considera que a sexualidade não serve apenas à reprodução, no entanto, vai escarafunchá-la de tal forma que acabará por erguer um tratado normativo sobre a sexualidade, tornando o erotismo um detalhe neste jogo onde as pretensas determinações instintuais-biológicas são apontadas como determinantes da atuação entre o casal amoroso. O Dr. Fritz esqueceu que nosso conhecimento é sempre interessado e que por trás de nossas concepções ditas científicas pode haver
simplesmente moralidade, pois “ao lado de todo laboratório há um oratório”, como dizia Lenoble. Do alto de sua autoridade científica e exercendo sua “neutralidade”, Dr. Fritz vai propagar e definir, como única, uma postura baseada na concepção de que existe um sujeito moral que é universal, transcendente. Assim o fazendo ignora ou repudia tudo que estaria fora deste cânone. Dr. Fritz chega a citar Freud, mas fora de contexto, numa leitura simplista e “interessada” da psicanálise para seus fins. Esqueceu também que os condicionamentos históricos, sociais e políticos moldam nossas concepções do mundo e também nossas práticas, sejam elas sexuais, amorosas, de amizades, de trabalho. E que nem sempre a sexualidade foi exercida e pensada da forma que é agora. Havia outras condicionantes como bem apontou o filósofo francês Michel Foucault. Para o filósofo, a propósito das morais na civilização ocidental, existiriam pelo menos duas, uma voltada para a Ética e outra para o Código. Na primeira havia a expectativa de se fazer da vida uma obra de arte pessoal, havia uma busca de uma ética e estética da existência a partir de um esforço para afirmar sua liberdade, dando à sua vida uma forma onde podia se reconhecer e ser reconhecido. A sexualidade seria um campo importante para este aprimoramento. Certamente havia um repertório de regras, mas elas nunca eram um imperativo a ser seguido tal qual, mas em conformidade com as escolhas orientadas pela temperança. Havia então uma “arte erótica” praticada em numerosas culturas antigas como a chinesa, japonesa, romana, grega e das nações árabes-muçulmanas. Já as morais voltadas para o Código foram se constituindo gradativamente a partir do cristianismo e foram orientadas para uma obediência a um texto considerado único detentor da verdade, um verdadeiro código de regras a ser seguido e obedecido. Como herdeira dessa tradição de referência ao código teríamos a partir do século 18 as ditas “ciências sexuais” cuja intenção seria a de dizer a verdade sobre o sexo e consequentemente sobre o sujeito. As noções de degenerescência e perversão são consequências dessa ordenação no âmbito da biologia, da sexologia e da psiquiatria. O livro do Dr. Fritz é herdeiro dessa tradição das ciências sexuais, cujo propósito é o de, esquadrilhando a sexualidade, dizer o que é normal (certo) e patológico (errado). Dr. Fritz esqueceu também que, para além dos manuais de “bons modos sexuais”, a sexualidade é sempre expressão de algo que nos escapa, que está para além de nossas consciências. A obra do Dr. Fritz é um bom exemplo de um livro que deve ser esquecido.
ONDE ENCONTRAR? O livro de Dr. Fritz é tão datado que é preciso sorte (?) para encontrá-lo nos sebos. Mas a gente encontrou alguns exemplares de Amor e felicidade... pelo site www.estantevirtual.com.br.
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UM NOVO OLHAR
A estrutura da bolha de sabão, Lygia F. Telles O designer Icaro Matias recria uma das cenas mais famosas da autora
A imprecisão é uma das principais (e melhores) marcas da literatura de Lygia Fagundes Telles. O leitor quase nunca sabe o que está acontecendo e quando suspeita que tem nas mãos o segredo do seu jogo, ela coloca o ponto final na ação sem maiores explicações. Ele fica apenas com a dúvida e com o melhor do que uma grande obra de ficção pode delegar — o vazio do que poderia ter acontecido. Lygia até gosta de dizer que o leitor é seu grande cúmplice na hora de preencher as lacunas dos seus textos. É como se fôssemos, todos nós, seus coautores. Talvez a imagem que melhor represente essa paixão pelo impreciso de Lygia esteja no conto A estrutura da bolha de sabão — uma história de amor, observação e descobertas tardias, que só comprova a capacidade da escritora em dizer muito falando bem pouco, nos deixando pela metade. A história parte de um pressuposto simples: mulher encontra ex-amante numa festa depois de anos. Ele já está com outra amante, mas o passado (sempre ele) acaba falando mais forte. Mas alguma coisa soa errada nesse reencontro, uma fragilidade que a narradora não consegue entender na hora, ali no meio da confusão da festa. É compreensível o desconforto: ela está diante de um homem que passou a vida atrás da estrutura da bolha de sabão. Seria a própria relação dos dois como essa estrutura, frágil e passageira? Seria nossa compreensão da vida também assim tão quebradiça? É com o espanto (ou seria fascínio?) diante da fragilidade que o conto tem início: “‘A estrutura, quer dizer, a estrutura’, ele repetia e abria a mão branquíssima ao esboçar o gesto redondo. Eu ficava olhando seu gesto impreciso porque uma bolha de sabão é mesmo imprecisa, nem sólida nem líquida, nem realidade nem sonho. Película e oco. ‘A estrutura da bolha de sabão, compreende?’
Não compreendia. Não tinha importância. Importante era o quintal da minha meninice com seus verdes canudos de mamoeiro, quando cortava os mais tenros, que sopravam as bolas maiores, mais perfeitas. Uma de cada vez. Amor calculado, porque na afobação o sopro desencadeava o processo e um delírio de cachos escorriam pelo canudo e vinham rebentar na minha boca, a espuma descendo pelo queixo”. Em seguida, a narradora completar cheia de dúvidas: “‘Mas e a estrutura? A estrutura’, ele insistia. E seu gesto delgado de envolvimento e fuga parecia tocar mas guardava distância, cuidado, cuidadinho. Ô! a paciência. A paixão”. Para registrar uma das passagens mais famosas criadas por Lygia Fagundes Telles, convidamos o designer pernambucano Icaro Matias, atualmente residente em São Paulo. E essa é uma excelente hora de lembrar o universo de Lygia Fagundes Telles. A partir deste mês, a Companhia das Letras inicia os trabalhos de reedição de toda sua obra, com novos projeto gráfico e posfácios. Um projeto semelhante ao realizado ano passado com Jorge Amado. Marcando essa nova fase, três livros que dão uma boa idéia da abrangência da sua obra: os contos de Antes do baile verde (posfácio de Antonio Dimas), com textos famosos como As pérolas e Natal na barca (esse aí belo registro do mistério em sua literatura); o romance As meninas (posfácio de Cristóvão Tezza), que realizou um corajoso depoimento contra a ditadura militar em pleno início dos anos 70; e por fim Invenção e memória (posfácio de Ana Maria Machado), mistura de autobiografia e de ficção, que defende uma das idéias mais caras à autora, a de que não há muita diferença entre o que a gente cria e o que a gente vive. E quem há de discordar? (Schneider Carpeggiani)
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DEBATE
Dois intelectuais fazem um “acerto de contas” sobre o poder de fogo da literatura Cristhiano Aguiar e Eduardo Cesar Maia
impasses do mundo, hoje, sempre foi uma preocupação que guiou a revista Crispim nos seus dez anos de existência. Acreditamos que não há como separar a literatura da vida que você e eu levamos, dia após dia; entretanto, isto não significa que elogiemos o espontaneísmo e o anti-intelectualismo: se a literatura não é currículos e bacharelismos, ela também não é brincadeira, nem pose... Ou pelo menos não achamos que deveria ser. Não nos custa nada apresentar os nossos protagonistas. Primeiro, Anco Márcio Tenório. Anco não para quieto: seu método é a ironia; mas suas polêmicas não são irresponsáveis, muito pelo contrário, embora acreditemos que elas incomodem a muitos. Sua verve irônica é complementada por um sólido conhecimento literário e cultural. Já Lourival Holanda, por outro lado, é um senhor ensimesmado, fechado nele mesmo até o limite em que acha que deve atuar num debate. É possível dizermos que há, nele, uma angústia em não disperdiçar palavras: Lourival é de silêncios. Em relação às polêmicas, é possível, em alguns casos, que ele as confronte de maneira oblíqua. Por isso, alguém pode perguntar se isto coloca estes dois homens em pólos opostos. Por incrível que pareça, acreditamos que não. Anco preenche os vazios com a dúvida e os gestos largos; Lourival, com uma curva concisa; mas os caminhos avessos se comungam no resgate do humanismo e na preocupação em denunciar os
FLORA PIMENTEL
Entre a militância e o ceticismo
O local marcado era o restaurante Antiquário, no bairro das Graças, onde três dos quatro editores da revista Crispim (Fábio Andrade, Eduardo Cesar Maia e Cristhiano Aguiar; o quarto editor, Artur Ataíde, não estava na cidade) teriam uma conversa com dois professores da pós-graduação em Letras da UFPE, Anco Márcio e Lourival Holanda. Ambos são também pesquisadores, estudam, entre outros temas, as obras de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Milton Hatoun, entre muitos outros, além de participarem ativamente dos debates intelectuais no nosso estado e no país. A entrevista (que foi muito mais um bate-papo) seria realizada numa área mais reservada do restaurante. O lugar poderia ser uma locação perfeita para aqueles filmes de máfia italiana, nos quais os personagens se reúnem nos fundos das cantinas – toalhinhas verdes cobrindo as mesas, vinho, pão e água perto dos pratos – para decidir negócios de vida e morte. O motivo do nosso encontro, que o leitor do Pernambuco vai a partir de agora acompanhar, não era tão drástico. Não se tratava de empacotar os desafetos com um paletó de cimento, ou extorquir o português da padaria da esquina. Queríamos conversar sobre algo cujo poder de fogo, como você perceberá, está sendo colocado, nas últimas décadas, em crise: a literatura. Discutir a sua relevância e o modo como os escritores e a crítica se posicionam diante dos
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clichês na linguagem, os sensos comuns, as formas prontas de pensar. Comecemos a conversa, então. Ela se apresenta aqui em alguns dos seus melhores momentos: um trailer. A íntegra será publicada na nova edição do site da Crispim (www.revistacrispim. com), que você poderá acessar no próximo mês. LITERATURA ENGAJADA E HIPER-REALISTA Lourival: Eu acho que a função do escritor é, estando no olho do furacão, jogar imagens que permitam melhor você perceber o furacão e a saída. Então, tem uma relação, ou um compromisso – a palavra parece um pouco pesada – de “ética a partir de”, porque parece que, hoje em dia, ética é assim: um discurso antigo, bem kantiano, de imperativo categórico, “é preciso fazer tal coisa”. Eu acredito que a função da literatura ainda é jogar possibilidades de ser, e não determinar alguma coisa. Se não, você fica numa coisa muito passiva, de aceitar aquilo que é fabricado pela mídia. A literatura deveria estar na contramão; mas ela está indo na direção. Anco: Eu acho, em primeiro lugar, que o hiperrealismo assinala uma coisa importante para a gente pensar, que é certa falência da literatura de vanguarda. Chegou-se a um ponto em que se diz “o que é que eu vou inventar mais”? Depois do Finnegan’s wake (romance em que James Joyce atinge o ápice do experimentalismo linguístico), o que é que você vai escrever? Quando a arte renascentista surgiu, e obviamente ela não surgiu de um dia para o outro, durante muitas décadas ainda se continuou pintando à maneira da Idade Média, ou seja, duas formas artísticas distintas conviveram por um bom período. Portanto, houve tempo suficiente para a arte renascentista ser processada e as pessoas educarem o olhar para aquele novo tipo de sensibilidade. Com o barroco, a mesma coisa. A gente tem que pensar que esse movimento, por exemplo, só em língua portuguesa, perdurou por cerca de 150 anos como forma literária. Sete gerações, ou oito gerações, nasceram e morreram dentro daquela sensibilidade, em que só se escrevia dentro de certo padrão estético. A partir disto, o que eu acho que acontece no século 20 é que os modelos se sucedem numa rapidez que o homem comum, não aquele que está pensando a arte, mas o homem comum, não consegue processar. Eu diria, na verdade, que não se trata só do homem comum! Quando você pega 22 (a semana de arte moderna) e vê que eles não
sabiam a diferença entre cubismo e surrealismo, quer dizer, mesmo os que formam a elite intelectual não estão sabendo a discernir! Mario de Andrade, por exemplo, não faz a diferença, no livro A escrava que não é Isaura, entre as características do movimento cubista e o surrealista; confunde lé com cré. As pessoas comuns, portanto, permaneceram muito à margem desse processo todo. Então, acho que houve o esgotamento desse procedimento de buscar sempre o novo – e penso que o hiper-realismo surge aí. Uma maneira de eu trazer novamente o leitor. A questão é: o que é que eu tenho a dizer para este leitor comum médio? Você vai dizer alguma coisa além do que os antropólogos, sociólogos, entre outros, estão dizendo? Talvez com mais pertinência? Não sei. Lourival: A nossa civilização chegou num impasse, é a primeira vez que ela se pergunta: “pra quê”? Ela tem um déficit de sentido que até então não se conhecia. A FICÇÃO CONTEMPORÂNEA NO BRASIL Anco: Agora, uma pergunta que eu faria em cima disso diz respeito à sensação de frustração que temos ao lermos boa parte da literatura contemporânea... Vamos pegar Bernardo Carvalho, por exemplo, cuja obra eu li quase toda. É um texto extremamente elaborado, mas quando termino de ler, após passarem as horas, fico pensando “sim, mas o que é que ficou deste texto”? Talvez, não ter o que dizer implique meramente em um jogo de forma? Quando você bota o microfone na boca de um escritor hoje e pede para ele falar do mundo, muitos não têm o que dizer, porque, na verdade, a própria obra dele já está dizendo que ele tem muito pouco a dizer. Por exemplo, muito dificilmente, se você botasse um microfone na boca de Machado de Assis, isto aconteceria. A prova está nas crônicas de Machado, o quanto ele fazia leituras inteligentes e argutas sobre o mundo. Dos seus contemporâneos, talvez ele fosse o detentor do olhar mais arguto. Lourival: Estou me lembrando de alguém que, quando pensa, pensa destilando ácido, que é Roberto Schwarz (crítico literário nascido na Áustria e radicado no Brasil). Ele diz que a literatura contemporânea se tornou uma espécie de repositório sem força de agregação: não tem mais um projeto. Então, o intelectual, ou escritor de modo geral, deserdou desta função. O ESCRITOR, O INTELECTUAL E A VIDA PÚBLICA Lourival: Matthew Arnold (poeta e crítico cultural inglês do século 19), por exemplo, achava que, com o fracasso da religião, a literatura seria uma substituta como “educadora de sensibilidades”, para usar um termo bem hegeliano. Até os anos 1950, o intelectual tinha ainda aquela nostalgia de uma função agregadora. A sua função na cultura era tentar concatenar num mesmo discurso os diferentes registros. Mas o que aconteceu, na verdade, é que a ruptura foi tão drástica que então cada um se isola e, como todo isolacionismo é um pouco paranoico, cada um fica na sua estrita área de atuação. Perde-se um pouco a noção das conexões entre as diferentes áreas. Espera-se muito de um intelectual, sobretudo porque trabalha com a palavra, que seja um homem público e tenha uma responsabilidade dupla: ele é responsável pela função que tem e ele deve responder, ou corresponder, a uma expectativa pública. Agora, que não se espere dele aquela palavra sábia de um guru, por exemplo, ou de um sábio grego. Toda impostação de voz é uma impostura, porque trabalha com certo critério de pretensa certeza; agora, o que o intelectual de hoje está perdendo, tenho impressão, é a responsabilidade de conectar os campos. Anco: Eu acho que algumas pessoas conseguem fazer estas conexões. Houve escritores literários que foram grandes intelectuais e alguns que o não foram. Parece-me que o pessoal mais técnico, digamos, os filósofos, os economistas, os historiadores, os antropólogos, tomou o primeiro plano para explicar a complexidade do mundo contemporâneo e fazer estes links. E os escritores literários ficaram em segundo plano. A minha pergunta seria: qual a função da literatura hoje? Quando João do Rio morreu, 500 mil pessoas foram para o seu enterro, lá na década de 1910 no Rio de Janeiro, e é uma grande ingenuidade acharmos que aquela cena
irá se repetir hoje. Qual a importância do escritor literário no mundo contemporâneo? Por exemplo, para se fazer um projeto para se pensar as coisas, você chama o escritor literário? Ou você chama um economista, um filósofo, um antropólogo, um sociólogo? Lourival: É verdade. Alguns escritores assumiram uma figura pública que os tornam prazeirosamente mais visíveis. Mas esta visibilidade não tem nada a ver com o rigor do trabalho que pretendem. De fato, há o perigo de ficarem reféns da imagem pública. LITERATURA: PARA QUÊ? Anco: Para mim, a função da literatura sempre foi alargar a minha humanidade. Tornar a compreensão do outro um pouco melhor. Isso, em qualquer época. Mas há uma questão a ser levada em consideração: se eu me volto para a Idade Média e imagino o mundo fechado, em que tudo se passa numa visão teológica, e Deus está presente em cada ato do sujeito, parece-me que, naquele momento, os livros de teologia, as grandes discussões teológicas, falavam muito mais das grandes questões humanas, do que as cantigas de amor, as novelas etc. Eu acho que a literatura, nos seus grandes momentos, se ela não diz mais, pelo menos rivaliza com outras formas de conhecimento. Lourival: Por que é que, hoje, se quer ouvir o intelectual, ou o professor, ou escritor, muito mais do que um especialista? Justamente porque a linguagem literária permite resolver na fulguração de linguagem aquilo que não cabe no conceitual. Esta passagem entre o especialista e o grande público é muito mais difícil. Quando pegamos, por exemplo, um Ferreira Gullar, que é um poeta, mas também entende muito bem de outras áreas do campo artístico e cultural, sobre as quais ele fala e argumenta bem. Alguém que tenha um input de linguagem muito grande tem a capacidade de estabelecer os links entre as várias áreas do saber com mais rapidez e pertinência. Esse tipo de intelectual tem o poder de traduzir a complexidade em um relato compreensivo, razoável. Talvez seja esta a vantagem da linguagem. A literatura tem que ter uma palavra singular, uma forma singular de ver o mundo. Anco: Penso no princípio do século 19, e não há nada que expresse mais aquele mundo do que a estética romântica. Com o tempo, aquela estética parece que não surte mais efeito. Aqueles escritores românticos começam a envelhecer, sua linguagem perde força. E aí começam a surgir outras formas de falar do mundo, porque da maneira romântica não é mais possível. Da mesma maneira, o problema da literatura contemporânea é que talvez ela já não sensibilize o mundo de hoje como um romântico não sensibilizava em meados de 1880. Talvez outras formas de arte, como a música, o cinema, e outras formas de conhecimento, digam muito mais do nosso tempo. Eu não tenho dúvidas, é claro, que nós temos grandes livros escritos. E não quero dizer que não tenhamos grandes escritores. Apenas, este grande escritor, é como se ele estivesse no compasso errado, no momento errado. Lourival: Eu não sei. Tenho minhas dúvidas, mas é possível. Anco: Para lermos, precisamos ter paciência para nos recolhermos e abrir mão de uma série de coisas, pois ler parece ser mais importante. Você abre um livro, cria uma barreira entre você e o mundo e mergulha. A pergunta é: no mundo contemporâneo, no qual somos o tempo todo futucados, instigados a uma série de coisas, qual o tempo que as pessoas estão dedicando para si? Eu não tenho dúvida de que alguém que tem coragem de se dedicar a si, é, ou será, um grande leitor em potencial. Eu acho que existe um problema sério hoje: parece que, ao estarmos sós, não estamos fazendo alguma coisa. Lourival: Essa solidão, na verdade é o seu oposto, é uma possessão de si. Acredito que uma coisa fundamental para ser preservada na cultura atual é a necessidade da leitura, da reflexão. Aqui, a literatura cumpre um papel. A literatura é uma inscrição das possibilidades humanas. E ainda: em tempos como os nossos, de relativismo muito grande, é preciso salvar outros valores sem os quais a civilização não se mantém. Os valores agregadores. Estou lembrando a conversa de Guimarães com o vaqueiro Mariano – ele diz assim: “é porque narrar é resistir”.
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CAPA
Com vocês, o melhor livro do ano
As estratégias de marketing que norteiam tudo o que você acha que decide que lê Carol Almeida
Poucos espaços públicos conseguem reunir uma exposição tão grande de leitores como um avião. Suspensas a mais de trinta mil pés do chão, com a mobilidade de uma cadeira infimamente reclinável, as pessoas costumam sacar livros de suas bolsas na esperança de sublimar o ambiente asfixiante daquele ar-condicionado frio e seco. O que se costuma ver nesses momentos de deliberadas aptidões literárias é um raio-X do mercado editorial brasileiro. 2A, 5B, 12F, 13C, 21E e 23F estão mirificados com O segredo, de Rhonda Byrne. 3C, 7B, 7F, 10A, 15A, 19B, 21C e 27F engolem o choro com o desenrolar de O caçador de pipas, de Khaled Hosseini. Mas há também aquela moça ao seu lado que acaba de adquirir o novo livro de Chico Buarque, Leite derramado, que chegou às livrarias simultaneamente à publicação de uma matéria e duas críticas na capa do caderno cultural do jornal mais vendido do país. O cenário, claro, é meramente ilustrativo, mas está longe de ser hipotético. O consumo de livros hoje, no Brasil, segue um fluxo de dois grandes afluentes: o da promoção ostensiva e algumas vezes espontânea dos chamados mega-sellers e o dos títulos que se sobressaem nas prateleiras em razão de um intenso trabalho de marketing e, mais recentemente, de publicidade por trás deles. Não se trata de um fenômeno local, naturalmente, mas em um país cujos índices de leitura estão drasticamente abaixo da média de países desenvolvidos (4,7 livros por ano), o afunilamento da variedade de títulos consumidos em função de campanhas promocionais não deixa de levantar debates. Estamos lidando com um produto que possui uma imensa responsabilidade sobre o processo de formação da consciência crítica de uma sociedade e que, em função de um cenário de concorrência feroz, só tem chances de sobreviver se souber seduzir. E embora a experiência afetiva nos prove que nem sempre o melhor sedutor será o melhor
amante, as listas dos livros mais vendidos no Brasil estão aí para sustentar que o flerte é a essência do relacionamento livro-leitor. É nesse momento, o de jogar flores e piscar o olho, que crescem os departamentos de marketing nas editoras e livrarias brasileiras, muitas vezes associadas a empresas de publicidade que somam agora em seu portfólio cases de lançamentos editoriais como o supracitado Leite derramado (Companhia das Letras), de Chico Buarque, cuja campanha promocional foi criada pela agência Almap-BBDO, a mesma das sandálias Havaianas, Antarctica, Carrefour e Claro. A Companhia das Letras, uma das mais novas clientes da agência, é precursora em transformar lançamentos editoriais em produtos tão atraentes quanto uma barra de chocolate. A bem da verdade, foi com a chegada dela ao mercado nacional, em 1986, que as editoras perceberam que podiam agregar ao conteúdo de seus livros valores que transcendiam a própria experiência de leitura. O livro da romântica e bolorenta capa dura verdemusgo cedeu espaço a projetos gráficos arrojados, elaborados por um conjunto de artistas e designers que foram ganhando um mercado cada vez mais exigente. Com a profissionalização do mercado, as maiores editoras decidiram contratar uma equipe de marketing e hoje há uma média de cinco profissionais desse setor em cada uma delas. “O que fazemos são ações para promoções de livros, eventos e contato para publicidade de alguns títulos”, explica Joana Fernandes, diretora de Marketing da Companhia das Letras. Foi Joana e sua equipe, por exemplo, que organizaram em março de 2008 o grande “acontecimento” literário daquele semestre, com o relançamento de toda a obra de Jorge Amado em uma festa que contou com leituras feitas por Chico Buarque, Caetano Veloso e pelos escritores Milton Hatoum, Mia Couto e Alberto da Costa e Silva. Coquetel, badalação, finos e fofos em
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STUDIOAURORA
Washington Olivetto
“Autores já são marcas por si mesmos”
Quando em fevereiro, a Nova Fronteira anunciou que a W/Rio seria a responsável pelas capas, projetos gráficos e esquema de lançamento de seus livros, uma frase publicada pela coluna Gente Boa, do jornal O Globo, resumia todo o sentido do contrato: “O livro é um produto e deve ser tratado assim”. O argumento simples e direto de Washington Olivetto, dono da agência, foi a única frase citada na nota por despertar, em seu sentido pragmático, um incômodo à moralidade romântica que entende o mercado editorial e, particularmente, a literatura, como uma linguagem que não se enquadra, ou não deveria se enquadrar. Olivetto, no entanto, acredita que essa é uma parceria de ganhos para toda a cadeia do consumo, cadeia esta do qual, o livro, nunca se excluiu.
Assim como outros produtos culturais, o livro carrega valores simbólicos que estão na formação da identidade cultural das pessoas. De que forma a publicidade pode trabalhar para vender um produto com tamanha responsabilidade sobre a criação da consciência crítica de uma sociedade?
Acredito, antes de mais nada, que na publicidade, assim como em qualquer outra profissão, existem bons e maus exemplos a serem analisados. Na W/, sempre primamos por manter a ética e a criatividade como valores básicos daquilo que fazemos. Com base nisso, acredito que trabalhar livros como produtos ajuda no desenvolvimento da indústria editorial como um todo, podendo aumentar a base de consumidores e corroborando a leitura com mais um estímulo. Como você citou, outras indústrias de bens culturais, como o cinema, a música e os espetáculos, já se favoreceram ou ainda se favorecem desse trabalho profissional. Quanto mais profissional for esse trabalho, mais poderemos ajudar no desenvolvimento da consciência crítica da sociedade.
acordo ortográfico da língua portuguesa ganhou anúncios em jornais e revistas em uma campanha que, assim como qualquer outra, ressaltava a qualidade exclusiva de um produto que surgia em um momento oportuno. Mesmo editoras não-comerciais, como é o caso daquelas associadas diretamente aos governos estaduais ou editoras universitárias, usam artifícios semelhantes ao esquema de marketing das editoras comerciais. “Não queremos concorrer com o setor privado. O que queremos é somar esforços nesse projeto de unir o conteúdo do livro a um trabalho maior que envolve identidade visual e um recorte editorial”, pontua Hubert Alquéres, presidente da Imprensa Oficial de São Paulo que, desde 2004, com o lançamento da Coleção Aplauso, vem ganhando cada vez mais espaço na mídia, não apenas em função dos lançamentos dos livros, mas também em razão dos eventos promovidos na divulgação de alguns de seus títulos. Afinal de contas, a coleção faz uma homenagem a artistas nacionais que, por si só, são “vendáveis”. Privadas ou públicas, as editoras sabem que, assim como outros bens de consumo culturais, o livro é um produto que exige uma motivação de compra distinta daquelas que impulsionam, por exemplo, a aquisição de produtos que irão suprir necessidades fisiológicas, como comida, ou necessidades de segurança. A motivação para comprar um livro muito vezes é uma combinação de demandas secundárias e terciárias, tais como necessidades sociais, que dão um sentido de pertencimento coletivo, necessidades de estima, que promovem reconhecimento e status e, sobretudo, necessidades de autorrealização. E essa é uma escala amplamente estudada pelas técnicas de marketing que, no caso do mercado editorial, precisa lidar quase sempre com motivações intangíveis. Salvo o caso de livros didáticos e acadêmicos, todo o processo de sedução entre um título e seu leitor
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uma noite para mais de 500 pessoas. Jorge Amado retornou às livrarias com novos valores agregados ao seu nome. “Ele era rechaçado por parte da crítica literária e foi então que a editora decidiu usar posfácios de intelectuais reconhecidos”, afirma Joana. Aliada a essa estratégia de sedimentação intelectual, a editora usou fotos de Pierre Verger e um design moderno das capas que transformaram o antes velho e popularesco Jorge Amado em um jovem e cult Jorge Amado. Quase todas as etapas de construção de uma marca, desde a identificação de um problema a ser resolvido – a antipatia crítica pela obra do escritor baiano – até a identificação do público-alvo e dos valores agregados ao nome do autor entram como parte do processo editorial. A mesma Companhia das Letras, em fevereiro deste ano, começou a relançar nas livrarias toda a obra da esposa de Jorge Amado, Zélia Gattai, em uma nova aproximação de seu trabalho biográfico. Depois de Zélia, é a vez de a editora relançar boa parte da obra de Lygia Fagundes Telles, que agora vem renovada em um projeto editorial que inclui capas da artista plástica Beatriz Milhazes, internacionalmente reconhecida. A exemplo do que ocorreu com Jorge Amado, haverá um grande evento em que a dramaturga e escritora Maria Adelaide Amaral selecionará trechos da obra da escritora para que atores façam uma leitura dramática desses textos. Além disso, o escritor e compositor Arthur Nestrovski foi convidado a preparar uma música especialmente para o evento. Não é preciso dizer que a festa terá ampla cobertura da mídia. Assim como a Companhia das Letras, a editora Nova Fronteira, que faz parte do grupo Ediouro, recebeu atenção extra quando anunciou o contrato firmado com a agência W/, de Washington Olivetto (ver entrevista), para vender alguns de seus livros. O título de Evanildo Bechara sobre o novo
A W/Rio irá trabalhar com as capas, projetos gráficos e esquema de lançamento dos livros da Nova Fronteira. Quais foram as necessidades com que a Nova Fronteira chegou para conversar com a W/Rio? A W/Rio, com base em uma aproximação no dia a dia do mercado editorial, irá pensar nas possibilidades de comunicação da marca Nova Fronteira e de seus produtos. Na verdade, a procura da Nova Fronteira pela W/ se originou da necessidade de otimizar os esforços de comunicação, que, quando vistos livro a livro, parecem mínimos. Mas, quando se analisa o conjunto de lançamentos no ano, podemos perceber que existem grandes oportunidades de otimização do ponto de vista criativo e do ponto de vista financeiro. Não existem fórmulas, existe planejamento e senso de oportunidade.
A partir de um projeto editorial bem elaborado, é possível atribuir novas redes simbólicas para alguns autores e mesmo transformá-los em marcas. Exemplo: a nova coleção Jorge Amado, da Cia das Letras, retrabalhou o nome Jorge Amado como uma marca mais cool, conseguindo atingir um novo público-alvo mirado pela editora. De que maneira a publicidade pode ajudar a construir marcas em cima de autores ou coleções de livros? Autores já são marcas por si mesmos. Um trabalho autoral em qualquer área registra uma característica e uma personalidade que já são marcas próprias. Obviamente, assim como ocorre em qualquer segmento, um trabalho bem feito pode ampliar a penetração dessas “marcas” em uma gama maior de pessoas. O que a publicidade pode fazer? Potencializar aquilo que já existe criado pelo próprio autor.
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CAPA
Para os comerciantes do livro, esse é um varejo como qualquer outro: o importante é vender o produto
Ao lado: Novos projetos gráficos de Lygia Fagundes Telles e de Jorge Amado reposicionam a imagem dos autores para um novo público
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Abaixo: Para os responsáveis pela Livraria Cultura, o relacionamento é palavra fundamental para melhores vendas
acontece em função de experiências abstratas, campo vasto para o trabalho do marketing e da publicidade. Mas segundo o professor de Marketing da USP, Edson Crescitelli, o mercado editoral brasileiro ainda é carente de abordagens mais profissionais nesse aspecto. “É como nós falamos aqui na universidade, muitas editoras não lançam livros, elas simplesmente arremessam”. Para ele, ainda persiste entre pequenas editoras a crença de que o livro deve bastar por si só e, em função disso, bons títulos terminam sendo deixados de lado pelo público leitor. “É claro que se pode virar refém desse tipo de prática, mas sem um trabalho de marketing, algumas editoras saem perdendo”. A PRAÇA PÚBLICA No recém-lançado Pequeno guia histórico das livrarias brasileiras, Ubiratan Machado relembra os cenários das primeiras livrarias no Brasil, a maior parte delas funcionando como um grande balcão de consultas, onde os livros permaneciam intocáveis em estantes envidraçadas. A arquitetura burocrática e impessoal do século 19 foi aos poucos dando espaço a plantas mais abertas, com estantes de fácil acesso até que, finalmente, no século 21, a livraria se transforma nesse modelo de entretenimento combo: livros + café + espaço para crianças + auditório + DVDs + telões e, se esperarmos um pouco, em breve uma roda gigante.
A tradicional livraria com suas estantes altas e corredores estreitos vai perdendo espaço para um layout de ambiente de convivência. Muitas livrarias, dentro ou fora dos shoppings centers, se transformam então nas novas ágoras, fina ironia que revela uma linha de evolução das praças públicas sendo cada vez mais conspurcadas pelos interesses privados. A experiência de convívio e conforto são projetadas pela arquitetura que pretende criar um espaço onde o já citado flerte entre livro e leitor se torne discretamente e confortavelmente agradável. Desfeitas da tensão de ter ou não que escolher, as pessoas se sentem tranquilas em seu papel de objeto de desejo. Mega-sellers, capas atraentes (algumas ficariam ótimas na mesa de centro da sala de estar), displays temáticos, tudo pisca e tudo conspira para o consumo. Em alguns casos, como é o do pioneiro trabalho da Livraria Cultura, o cliente se sente tão à vontade dentro daquele lugar que sublima muitas vezes o fato de ser cliente em si. Comprar o produto livro termina sendo resultado muito mais de uma experiência do que de uma necessidade. “Relacionamento é a palavra-chave da Livraria Cultura. Procuramos criar um ambiente que, primeiro, transforme um lugar grande em um lugar pessoal e, segundo, deixe nas pessoas a vontade de querer conhecer mais”, afirma Fábio Herz, um dos diretores e sócios da Livraria Cultura. Familiar
ao álbum de fotografias que registra os anos em que sua avó, Eva Herz, alugava e vendia livros de dentro de casa criando assim o primeiro embrião da Cultura, Fábio acredita que boa parte do mercado ainda sofre para decantar os resíduos desse sentimentalismo dos dias de balcão. “Acho que ainda existe muito romantismo com o livro e essa é uma ideia que sobrevive paralela ao negócio do livro. O mercado confunde demais essas duas coisas. Algumas pessoas questionam o fato de livrarias venderem o espaço comercial de uma vitrine, mas esse é um varejo como qualquer outro”. Para ele, muitos editores se justificam com essa premissa romântica para não investir em suas edições. “É necessário sim haver um trabalho de marketing e publicidade com o livro. Mal comparando, ele é um produto assim como um creme dental”. Hoje, existe uma equipe de seis pessoas trabalhando no departamento de Marketing da Livraria Cultura. Segundo Fábio Herz, este número tende a crescer. Há mais de trinta anos trabalhando mercado editorial, sendo a maior parte deles dedicado a editoras, Vera Esaú, gerente de comunicação da rede de livrarias Saraiva, acredita que o mercado tem evoluído bastante na promoção dos livros. A própria Saraiva, que assim como outras redes internacionais tais como a Fnac, funciona hoje como uma megastore que reúne no mesmo espaço livros, DVDs, CDs e aparelhos eletrônicos, é sintoma de uma abordagem mais direcionada à compra a partir de diversos estímulos. Vera, que tem formação em marketing, passa boa parte de seu tempo hoje organizando eventos promocionais na rede Saraiva, acredita que, mais do preciso, é imprescindível investir na divulgação de livros. “Vivemos numa sociedade do consumo, onde tudo precisa ser comprado. Por que, então, não usar essas ferramentas do marketing para incentivar a cultura? O importante no fim de tudo é o que o livro esteja sendo vendido”.
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AUTOAJUDA DIVULGAÇÃO
Se funcionou com Julia, eu confio
A difícil arte de pedir ajuda a um livro de autoajuda que tem um excelente slogan Adelaide Ivánova
Quando me pediram para escrever para o Pernambuco sobre Comer, rezar, amar, a primeira coisa que eu falei foi: “Vocês poderiam, por favor, me mandar um exemplar do livro e assim me eximir da missão ridícula de ir até uma livraria para comprar um livro de autoajuda?”. A resposta, claro, foi “não”. Acho que eles queriam que essa vivência fizesse parte da pauta! O ponto é, querida leitora: a gente sempre acha que nunca vai passar por isso, mas tenha a certeza: vai chegar a hora em que você vai pedir ajuda até a livro de autoajuda. E eu não sabia ainda, mas minha hora tinha chegado. Munida de uma cara de tabaco, cheguei à Fnac me fazendo de desentendida: “Oi, eu tô procurando um livro para dar de presente, não sei o nome direito... Comer, beber, viver, talvez?”. Os olhos da vendedora brilharam de entusiasmo e, mesmo sem eu ter dito o nome certo, ela me levou direto àquele que procurava: “É este aqui, ele sai bastante, faz meses que fica entre o primeiro e o segundo da lista de mais vendidos”. Ela era puro entusiasmo. “Ah, é? E você, já leu?”. “Sim, duas vezes, é maravilhoso”. “Então me conta, mulher: porque livro de autoajuda assim faz tanto sucesso?”. Nesta hora recebi um olhar de reprimenda da vendedora. Que prosseguiu, já bem menos simpática: “Olha, se você ler a sinopse vai ver que se trata de uma autobiografia”. Quase pedindo perdão pela minha gafe literária, agradeci e peguei o livro. Impressão 1: que capa horrível. Impressão 2 (ao ver a foto da autora na orelha do livro): que cara de americana. Impressão 3 (ao ler a contracapa): se Julia (Roberts) gostou, eu gosto também! Por conta do aval de Julia, minha querida Julia, cheguei ao caixa com outra atitude. Vergonha de comprar aquele livro? Jamais: não se trata de um exemplar de autoajuda qualquer, e sim de uma nobre biografia sobre superação, escrita por uma mulher, e que tem o aval de Julia Roberts (e Hillary Clinton!). Pois que Comer, rezar, amar é mesmo maravilhoso. Elizabeth Gilbert, sua inspirada autora, fala sobre tudo aquilo que a gente gosta: coração partido, viagens, reflexões esperançosas e caubóis (no caso, um só, mas já está bom demais, uma vez que o roteiro não incluiu Oklahoma e, dado que ela só perambulou pela Itália, Índia e Indonésia, foi uma sorte danada ter encontrado um Jesse James). E tudo na primeira pessoa! Quão inexplicável é o deleite proporcionado por um autor que se entrega assim? Se Dostoiévski tivesse escrito em primeira pessoa um livro sobre ele mesmo (Recordações da casa dos mortos não conta, porque não ajuda ninguém) eu seria uma Adelaide Ivánova muito mais... Ivánova? Liz saiu dos EUA rumo a uma viagem de um ano, para se recuperar de um divórcio e de um exmarido muito pouco digno (devia ser escorpiano, de tão vingativo). E o que fica muito claro é: não
importa quão longe a gente vá, a trip mais importante de todas é a que a gente faz para dentro. E, de fato, Liz fala muito sobre as coisas que ela descobriu sobre ela mesma (principalmente quando ela conta sua experiência no ashram indiano). E que são, no fim das contas, as mesmas coisas que todo mundo pensa quando está com o coração partido. Existe uma passagem muito especial no livro, que ensina sobre desapego, e eu vou reproduzir aqui para vocês porque somos amigas: “(...) ele foi ótimo, mas agora acabou. O problema é que você não consegue aceitar isso, que esse relacionamento tinha um prazo de validade bem curto. Você parece um cachorro cheirando lixo, baby... Fica lambendo uma lata vazia, tentando tirar mais comida de lá de dentro. E, se você não tomar cuidado, essa lata vai ficar presa no seu focinho para sempre e tornar sua vida infeliz. Então largue isso”. Existe uma prepotência cruel e egoísta nas pessoas que usam a própria experiência para dar conselho às outras. Porque, geralmente, a conselheira é uma destrambelhada completa, às voltas com o desmantelo que é a sua própria vida emocional e que, sabe-se lá por quê, enquanto relata sua experiência em busca de entender a própria confusão, acaba inspirando outras pessoas. Mas se você partir do pressuposto que só se ensina o que se sabe, conselheiras amorosas são a raça mais sem-ter-para-quê que existe. Elas fazem análise com seus leitores, num exercício de falar-sozinha bem perverso, já que as leitoras não são Freud nem são pagas para ler essas baboseiras. Um desserviço, portanto. E nem tô esculachando ninguém. Tô falando de mim mesma, que tenho um blog lazarento e uma personagem chamada Dra. Vodca, que costumava dar conselhos de amor - coisa que não faço mais, de jeito nenhum. Eu mesma tratei de matar a Dra. Vodca quando me dei conta que seria muito mais útil se me calasse – de certa forma, duas mil pessoas por dia se tornaram dependentes do que eu tinha a dizer e eu, ora bolas, nada tenho a dizer a não ser “pelo amor de Deus me ajude”. Só que no caso de Elizabeth foi a viagem em si, e não o seu relato, que ela usou para se ajudar. E no fim das contas, o que ela aprendeu neste longo percurso ajudou um montão de gente (incluindo eu mesma). Não por ter frases elucidativas e incentivadoras, tão chatamente típicas de livro de autoajuda. Mas porque a leitura de Comer... proporciona um respiro depois de um dia difícil; é uma dose de doçura na vida ler sobre a simples experiência de comer uma pizza em Nápoles. O livro de Elizabeth Gilbert é tão gentil com a gente como um filme de Julia Roberts. E não por acaso, será ela a protagonista da versão para o cinema de Comer, rezar e amar, com estreia marcada para 2011. Um final perfeito para aquilo que um dia começou apenas como mais um coração partido.
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ENSAIO
Os feios que nos perdoem Os bastidores do design inovador da editora Cosac Naify Patrícia Amorim
Particularidades do engajamento como utopia Políticas próprias regem a atuação participativa da obra de arte Paulo Marcondes Ferreira Soares
O debate sobre o que é político na arte, sobre seu caráter pedagógico e sobre a missão do artista e do intelectual comprometidos com as causas e transformações políticas da sociedade e de seu tempo é, sem dúvida, um dos mais importantes capítulos da história social da arte. Este ensaio não pretende, contudo, traçar mais do que algumas considerações gerais a propósito desse debate, com vistas a uma reflexão sobre manifestações e formas de reivindicação de engajamento político na arte hoje. Num sentido muito geral, pode-se ressalvar que o dizer político na arte não pode ficar restrito a um tipo de reivindicação de um caminho de participação social que a transforme em mero instrumento de condução de mensagens de conteúdo político. Essa seria, por certo, a forma mais redutora, instrumental e empobrecedora do uso da arte, em seus diversos modos de expressão. Nesse sentido, pode-se afirmar que em arte não se deve ver ou interpretar um conteúdo ou referente mimetizado sem que se tenha em consideração questões de linguagem. Quero com isso dizer que o filtro por onde se apreende o conteúdo artístico é a forma. E a forma não é expressão dada, acabada: a forma não se materializa sem determinadas propriedades específicas da linguagem; entre elas, podemos aludir relacionalmente a campos de referencialidades, tais como: o cotidiano, a política etc. Sendo assim, pensar arte implica o reconhecimento da necessidade da pesquisa com a linguagem, sua experimentação, enfim, suas formas inventivas do dizer. Arte é linguagem. E quaisquer manifestações que articulem arte e cotidiano – e seu processo político e social – devem fazê-lo mediadas pela linguagem e a dimensão estética que a arte expressa: mesmo nos termos atuais, de um espaço expandido da arte,
Num passado recente, o debate político da arte quase sempre se ordenava na forma de uma denúncia da luta de classes manifesto por uma sinergia de linguagens e pela quebra de fronteiras e/ou dicotomias entre arte e não-arte, há que se reconhecer que seja o que for que se denomine como artístico, por alguma convenção, requer a sua percepção como linguagem. Vicissitudes históricas de um pensamento que acredita que o povo ou as massas são incapazes de entender o experimental na arte, fruto de buscas incessantemente criativas do dizer – e que, por isso, é necessário “facilitar as coisas” – resultam num pensamento tutorial e autoritário em relação ao público, contribuindo para seu maior alheamento e empobrecimento no que toca à experiência com a linguagem artística – esse é, aliás, um tipo de raciocínio que tanto marcou certa visão políticoinstrumental de esquerda quanto o instrumentalismo midiático e mercadológico da sociedade de consumo.
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REPRODUÇÃO
Por outro lado, há igualmente artistas que, ao mesmo tempo em que impõem uma forte conotação social ou engajamento político a suas obras, têm claro que arte é linguagem e que, como tal, goza de relativa autonomia. O que significa dizer que o político, o social, o econômico etc., como parte constituinte da obra, serão aqui formados pelo crivo desse campo – evidentemente, como processo de mediação entre linguagem e meio, o que nos leva a reconhecer, por isso mesmo, que se trata de uma autonomia relativa, como se diz em sociologia. UMA AUTONOMIA RELATIVA Não se deve, portanto, ler esses referenciais como modos de expressão direta, mas como modalidades tencionadas pelas propriedades materiais e significativas das linguagens. Tais propriedades são artísticas (nas suas especificidades), de um lado; de outro, o conjunto de possibilidades que o meio é capaz de apresentar/oferecer – tudo isso manifestamente envolvido a um campo de ações (disputas, lutas, tensões) subjetivas e coletivas, enredadas em interpretações e opções estéticas capazes de nos fornecer pistas para o entendimento das manifestações de tendências na produção da arte: seus materiais, seu circuito, seu público etc. É com base numa percepção assim ampla do processo que se pode identificar pistas a respeito da dimensão política de determinadas obras ou movimentos ou ações artísticas – suas intencionalidades ou propósitos artísticos. Essa dimensão política poderá ser vista a partir de dois ângulos principais nas manifestações artísticas: da ordem do discurso diretamente referido ao ambiente externo (realismo); da ordem do discurso internamente voltado à esfera das linguagens artísticas (esteticismo). A rigor, toda arte é política e participativa, mas não da mesma natureza do que venha a ser o políti-
co e do que venha a ser o participativo. Há momentos de grande ruptura histórica na arte, como nas fases heroicas de âmbito esteticista. Há momentos de ação política mais ideologicamente prosaica na arte, muitas vezes como empenho a uma arte de fundo pedagógico/missionário. E há, por fim, momentos de reposicionamentos reflexivos sobre esteticismo e sobre a política das artes. Pensar o engajamento da arte hoje implica ter em consideração que os processos nela envolvidos e por ela vivenciados resultam da dinâmica sistemática de seu diálogo com as transformações do meio: político, econômico, tecnológico e ambiental, configurados em âmbito global; mas, também, por questões étnico-raciais, de gênero e sexualidade, dentre outras instâncias arroladas na luta por identidade e reconhecimento no interior dos novos movimentos sociais. Com relação às novas tecnologias e à globalização, a arte passou a operar em sistemas de rede e pela incorporação de novas mídias, dentre as quais, a internet, que possibilitou um amplo poder de acessibilidade a produtos estético-artísticos e de informação, bem como, de sua produção e circulação. Isso é particularmente relevante quando se tem em consideração as lutas por reconhecimento travadas pelos atuais movimentos sociais, ao ensejarem em suas bandeiras o cruzamento de uma espécie de ativismo político e estético, capaz de dar forma a novas modalidades de ação, cujo propósito é o de apresentar modelos alternativos de experiências coletivas e subjetivas face ao modelo de economia capitalista global existente. ESTRUTURA CAPITALISTA Se num passado recente, o debate político da arte quase sempre se ordenava na forma de um dualismo denunciativo da existência da luta de classes;
o engajamento artístico na atualidade, quando escapa provisoriamente às injunções do mercado, não apenas indica novas frentes de reivindicação (gênero, sexualidade, raça e meioambiente), como indica, igualmente, que o quadro geral da estrutura capitalista, sob o influxo da globalização, só fez ampliar as formas de desigualdade sociais, políticas e econômicas em termos planetários. O cruzamento político e estético vigente em certo engajamento político de hoje, manifesta-se na forma de arte pública, de coletivos, de redes de compartilhamento; utilizando-se, quase sempre, de instrumentos de mídia radical ou tática, a partir do qual se opta por formas alternativas de procedimentos éticoestéticos de contraposição à arte e mídia comerciais, mas, isso, sem que se abra mão das possibilidades inventivas de expressão das linguagens artísticas, inclusive, com a ampliação das condições de acesso aos novos medias, em termos de produção e circulação de produtos artístico-culturais e de informação. A título de exemplo, podem-se indicar tendências mais gerais sobre esses tipos de manifestações: tendência a uma estética crítico-paródica de expressão anti-imperialista e antiglobalização; novas formas de luta por reconhecimento, a partir de uma estética feminista e de diversos movimentos de minorias; ações afirmativas de “subculturas” locais e regionais e do pós-colonial, como reconhecimento político e estético do outro etnicamente.
SOBRE O AUTOR Paulo Marcondes Ferreira Soares é professor adjunto do programa de pós-graduação em Sociologia e atual chefe do departamento de Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco, com mestrado e doutorado em Sociologia.
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Marcelo Mário de Melo
INÉDITOS
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SOBRE O AUTOR Marcelo Mário de Melo nasceu em Caruaru, é jornalista e faz textos de humor, poemas, minicontos e histórias infantis.
Distanciápolis Distanciápolis é um país especial que você visita sem precisar cruzar fronteiras, devorar estradas, singrar mares, voar nos espaços. Também não é necessário fazer despesa com hospedagem e manutenção. No seu dia-a-dia de sempre, e sem sentir, você pode estar permanentemente presente em Distanciápolis. Um grande contingente humano já vive assim. A marca distintiva de Distanciápolis é exatamente esta. As pessoas que o povoam não têm consciência da sua condição de habitantes. A migração para Distanciápolis é lenta. Pouco a pouco vamos cortando a percepção das coisas e das pessoas próximas – principalmente das pessoas – e somos transportados para uma redoma em que as coisas que vêm dos outros não nos afetam. E quanto mais nos anestesiamos, mais mergulhamos nessa nova dimensão. No início damos só umas fugidinhas de fim de semana ou de férias. Depois as viagens ficam mais frequentes e passamos a viver a maior parte do tempo fora, nos territórios de Distanciápolis. Há uma grande diferença entre o método brecthiano do distanciamento e a atitude mental da migração a Distanciápolis. Bretch propunha o distanciamento como uma espécie de recuo para se divisar a situação, assim como alguém que se põe num ponto mais alto para olhar a paisagem e ter uma melhor noção do conjunto. O resultado final do método brechtiano é provocar nas plateias a consciência crítica ante as engrenagens da dominação social e política. A passagem a Distanciápolis é diferente na essência. É lenta, leve, sibilina, insidiosa, imperceptível, hipnótica. É névoa que obscurece a vista e enovela a mente. É fio d’água que vai formando um rio sem que se o perceba. O habitante de Distanciápolis vê as coisas passando na sua vida como quem está alheio numa conversa, a cabeça voando noutras paragens. Ou como alguém que entra num salão com a orquestra tocando, liga o seu walkmen, coloca os fones nos ouvidos e passa a dançar solitário em outro ritmo, ignorando os circunstantes. Muitos caminhos conduzem a Distanciápolis. A convivência comezinha. O excesso de trabalho. A rotina sufocante. Os grupos tirânicos. A falta de lazer e de amigos. A fuga de si. O medo das coisas novas. A roleta do imediatismo. O isolamento em torres. A insolidariedade. A humanofobia e assemelhados. É preciso encontrar os caminhos para trazer à convivência normoide aqueles que se evadiram para Distanciápolis em nuvens de alheamento. Uma tarefa difícil, porque, como o câncer, na maioria dos casos, só se descobre a doença quando ela já está num alto nível de impregnação. Daí a necessidade de uma política de prevenção, que identifique os riscos e os indícios e exerça uma ação profilática. O desafio é muito grande, porque as engrenagens da vida atual só favorecem os fluxos migratórios para Distanciápolis. E mesmo que não se trate de um mal de identificação recente, ainda são limitados os conhecimentos acerca dele. Por tudo isto, muito cuidado. Você já pode ser um habitante cadastrado de Distanciápolis, sem o saber. É bom conferir.
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Heber Costa
INÉDITOS
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SOBRE O AUTOR Heber Costa é recifense, poeta, contista, tradutor e apaixonado por astronomia. Publicou poemas em diversas coletâneas.
O espelho
Olhava-se pela terceira vez no espelho, espantada. Sua pele parecia opaca, e os poros abertos. Cansava-se daquela verdade cruel do espelho. Todo sorriso era um arco de cera que só esticava uma tristeza fina de canto a canto da boca. O resto do corpo, não tinha coragem de olhar. Já sabia que veria aquelas escamas flácidas. Não era de admirar: estava no auge dos seus 22 anos. Já era uma anciã da adolescência, prestes a falecer para a idade adulta. Não sabia quando nem como nem onde envelhecera tanto. Sabia. Foi em Ricardo. Foi sem Ricardo. Ali, sim, estava viva, jovem. Sem as mãos dele, seus seios pareciam murchos, pequenos. Sua cintura, reta. Nenhuma curva se apresentava ao seu próprio toque, e o espelho — absolutamente simétrico, não há dúvida — não desenhava sequer uma vírgula que pontuasse aqueles quadris desinteressantes. Sem aquele amor, era um ser disforme; como se o amor não estivesse por dentro, mas envolvendo-a, modelando-a. Em algum momento, não sabe como — talvez enquanto rodopiava e rodopiava despreocupadamente naquelas mãos que lhe davam forma —, o oleiro desviou os olhos de si, descuidando dela por um ou outro motivo insípido, fazendo-a perder o ritmo e se perder, deformada e encolhida, numa bolota de abandono. O que não daria para fechar os olhos, esquecer sua imagem na sinceridade nua do espelho, sentir aqueles braços em seu redor, por trás, pelos lados de sua cintura, dando-lhe corpo. Mas, agora, tudo que tinha diante de si era ela mesma e, claramente, não se bastava. Buscando na sua figura qualquer semelhança de como era enquanto amor. Não encontrava… Mas… e se o espelho, na sua perfeita mentira, a enganara? Esperança. E se dançasse novamente? Talvez, num súbito demi-detourné, tomasse forma novamente o seu balé, e seu corpo se firmasse, sem que força alguma lhe fosse modelo, senão seu próprio rodopio. Não precisava de espelho algum para lhe dizer que forma tinha. Não tinha forma alguma, e não precisava ter. Tinha a sempre mutável forma da beleza. Mudava sua forma a cada instante com as curvas que fazia com seus braços enquanto, de olhos fechados, se esticava apenas com a ponta dos pés no chão do banheiro. E nada — nenhuma mão, nenhum braço — limitava a leveza da sua figura.
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Fábio Daflon
INÉDITOS
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Suicídio da moura salúquia Filha de Abu-Hassan, noiva de Bráfama, aguardava conúbio em Al-Manijah, mulher dos lusitanos inimiga, princesa destinada a ter fama e ser pelos algozes cultuada. Pois teve o noivo morto em emboscada, com toda comitiva de islâmicos, bem perto do palácio, um dos mais ricos, aonde foi urdida a armadilha, de vestirem de árabes suas tropas, e assim, sem luta, abrirem-se as portas, sem derramar mais sangue em sua trilha de derrotar os mouros em suas roupas; mas Salúquia da torre caiu morta.
Para uma fã dos três tenores O meu desejo é ser cantor – um Pavarotti, um Plácido Domingos, um José Carreras; ter a voz de tenor quando, irada, berras, para que a voz se insurja como um chicote, como voz de Caruso, berrante e forte, mas que cadenciada tenha a espessura do másculo amor exposto à candura da flor que em abandono finge a cor da morte. Mas nem sou um John Denver, nem um cantor pop, gravando com tenor música “Perhaps love”, a fim de ter tuas coxas sadias de pin up tremendo de emoção ao som de uma balada, cantada tão baixinho que tantas não ouves, porque no abandono já não ouves nada.
Nos umbrais da quimera
SOBRE O AUTOR Fábio Daflon é médico pediatra e especialista em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo.
Nos umbrais da quimera me contive, Pois pássaro não entra em alçapão Atrás de um pedacinho de pão, Sem ter uma donzela no declive. E a virgem estava lá a minha espera, Tão pura embora nua e bem tímida, Toquei-a com a mão toda tremida E fiz da sua barriga uma esfera. Barriga de lua grávida e púbere: A tal da gravidez da adolescente, Que terminou em morte prematura. A mãe que não foi mãe nem me recebe, Embora eu leve sempre um presente, Com minha mão de velho insegura.
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PERFIL FLORA PIMENTEL
Sobre ler, soletrar e gaguejar
O homem que levou a literatura para as palafitas do Bode Ana Braga
A mão e a luva é um dos muitos romances brasileiros e das muitas obras de Machado de Assis que a internet oferece para baixar de graça. Está na biblioteca virtual de software livre do portal Domínio Público, mantido pelo Ministério da Educação. É também o título que fez do desempregado Kcal Gomes um traficante. Traficante de livros. A mão e a luva foi o primeiro que ele leu. Já era “velho”, tinha quinze anos, quando conseguiu juntar letras, palavras e sentidos no texto. Tirou não da internet, mas de uma caixa em papelão encalhada na beira da maré que impregna o Bode, comunidade labiríntica encrustrada no Pina, Zona Sul do Recife. E onde Kcal mantém a boca do tráfico, a Livroteca Comunitária os Guardiões, montada numa palafita. Ricardo Gomes Ferraz é o nome de batismo de Kcal, de 34 anos. A bem da verdade, antes do A mão e a luva, foi a Bíblia o primeiro livro que ele pegou. A avó, que era também mãe e pai, ensinou a ler. Católica fervorosa, quis que ele entendesse as palavras de Deus. Kcal preferia notar nos cartazes, outdoors e gibis. A Bíblia, conta Kcal, tinha “ficção demais”.Quando entrou pela primeria vez na escola, aos quinze anos, ainda numa turma da 1ª série, conhecia somente Maurício de Souza, Walt Disney, Super-Homem, Batman e Homem Aranha. Mas, dali a pouco, seria ele mesmo, Kcal, um herói romântico. Brincava de carrinho de lata à beira do Capibaribe, quando encontrou o que chamou de “caixa mágica”. Dentro da caixa estavam Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e Machado de Assis. O primeiro que sacou foi A mão e a luva. Por quê? Porque foi com a cara do título. “Imaginei uma mão e uma luva. Um encontro perfeito”, lembra Kcal. Lia onde? “Em casa, no meu quarto. Às vezes esquecia de comer”. E tinha luz? “Não”. Então, não lia à noite? “Lia sim, à luz de vela”. Sob os óculos escuros, ele hoje disfarça as
sequelas do esforço e a timidez. “Eu pensava que a caixa tinha brinquedo. Eu não sabia que era coisa de valor. Não fazia ideia de quem era João Cabral”. Depois de Machado, que Kcal só conseguiu terminar com a ajuda de um dicionário emprestado, conheceu outro da caixa. Antologia poética, de Drummond. “Aí, lascou tudo. Acabei de endoidar”. Enquanto ele endoidava nos versos, os amigos faziam outra viagem. “Na minha roda de amigos ninguém gostava de ler. Era futebol, futebol e futebol. E drogas e outras coisas”, conta. “O que me tirou dessa sina, que marca os jovens, foi a minha vontade de vencer. Porque eu via e ainda vejo um amigo matando o outro. Eu não queria isso para mim e para os meu filhos. Eu prefiro ser um traficante de livros. Mas isso no início não foi bom. Eu sofri. E sofro para c…”, confidencia Kcal. Com a poesia emprestada por Drummond ele começou a escrever. Vício’s f. saiu primeiro. Um desabafo. “Se livrar do vício/ depois do início/ é tão difícil/ quanto fazer um edifício/ com papel ofício/ sem desperdício/ na beira do precipício/ É inevitável o sacrifício”. Depois desse, veio Rio vermelho. Um lamento. Um choro pelo amigo assassinado aos pés de Kcal. “Oh, morte, não deixe que eu viva demais/ Nem seja um trem sem condutor e trilho/ Viver em vão é suicídio/ Quando crescer, eu quero ser grande/ Para resgatar os meus amigos que afogam no rio/ Transbordado de sangue”. Esse e outros estão colados com grude nas paredes da palafita onde Kcal morou com a companheira Valquíria e os filhos Vinícius de Moraes e Ítalo Bob, até ser expulso pelos livros, há dois anos. Os livros da caixa, outros títulos comprados no sebo do Centro do Recife (alguns que valeram uma bicicleta e passagens de ônibus) e mais um tanto de obras doadas preencheram a “sala de estar” da palafita. A Livroteca os Guardiões fica aberta dia e noite, com uma lâmpada incandescente. São as crianças do Bode que mais visitam o lugar. Elas leem, soletram, gaguejam, pintam e rasgam páginas, como se guardando um documento importante. Ao jeito delas e com a ajuda de Kcal, vão se aproximando da leitura. Têm dois mil títulos espalhados no chão para isso. Kcal e a esposa estão desempregados. Os filhos, na escola. O Bolsa Família é a única renda certa. Perto de R$ 90, por mês. Quando compõe música e toca bateria com a banda de blues e rock, a BR Bar, ele consegue mais R$ 50, por semana. Com quantos sonhos se faz um herói romântico, feito Estevão, do A mão e a luva? “Sonhar não custa nada. A esperança mora na mesma casa da desgraça. Só há dois caminhos. Para frente ou para trás”, responde Kcal. A Livroteca os Guardiões aguarda a realização, neste ano, do convênio assinado em 2008 pelo ministro da Cultura, Juca Ferreira, e o então prefeito do Recife, João Paulo, para fazer a infraestrutura do lugar.
Kcal (esquerda) armado com a literatura; são as crianças do bode (direita e abaixo) que mais visitam o espaço
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RESENHAS IMAGENS: DIVULGAÇÃO
Não sofra, todo escritor, coitado, é sempre rejeitado Autor francês brinca e examina a rejeição dos intelectuais pelas editoras Raimundo Carrero
de não incomodar no futuro os integrantes de nossa equipe de leitura com outras remessas do mesmo teor”. Já aconteceu comigo uma dessas rejeições incríveis. Sim, porque eu também já fui recusado e ouvi muitos nãos. O meu amigo norte-americano Arthur Brakel traduziu alguns contos meus e os enviei à revista New York. Recebi a seguinte resposta, assinada por Alice, editora da revista: “Gostamos dos seus contos mas não sabemos o que fazer com eles”. Também ainda estava nos Estados Unidos quando enviei os originais do meu romance Sinfonia para vagabundos para a Editora José Olympio, que acabava de publicar Maçã agreste. A editora Fátima Melo respondeu-me assim, diretamente: “Não está à altura do seu talento”. E eu achava que tinha
escrito um grande livro. Hemingway confessa que vivia dias de pavor enquanto esperava a resposta de uma editora. E elas vinham quase sempre por baixo da porta principal e inevitavelmente era uma negativa. Há ainda casos mais graves. A editora Francisco Alves, do Rio de Janeiro, desconheceu, literalmente, o contrato que havia assinado com Gilvan Lemos, um dos grandes e definitivos escritores. Apresentava problemas financeiros e disse apenas que não podia publicar. E, em muitos casos, os autores esperam dois anos ou dois anos e meio para que o livro deixe a gaveta – ou o computador – de um editor. Quando o livro sai, já não tem mais a mesma força. Está superado por outros trabalhos do escritor. Ficam pálidos e esquecidos. Um romance tem o seu momento e
sua significação. Algo definitivo. Se demora a ser publicado, o autor nem se lembra mais que foi escrito. Ou talvez faça tantas mudanças, que o seu romance já encontrou outro destino. Mas há autores carimbados que nunca serão rejeitados: Chico Buarque ou Roberto Carlos. Roberto Carlos? Lembrai-vos que ele era poeta no começo da carreira. Eu mesmo vendi livros dele, de porta em porta. Mas terrível mesmo é receber uma resposta assim: “Não sei se alguém o encorajou a escrever, mas uma coisa é certa: essa pessoa perdeu uma boa oportunidade de ficar calado”.
LITERATURA A arte de recusar um original Autor: Camilien Roy Editora: Rocco Páginas: 144 Preço: R$ 25
ACERVO
CIÊNCIA
BIOPOETAS
Registro de uma época em arquivo digital
Novos títulos celebram conquistas astronômicas
Site cataloga produção literária do Recife
Em meio ao lixo que circula na internet, às vezes aparecem pérolas. Entre elas, a versão digital da revista O Cruzeiro, popular entre os anos 1950 e 1970, que vem sendo encaminhada entre amigos intelectuais. Além de poder ler as matérias, inclusive excelentes reportagens, ainda tem o humor de Péricles, com seu impagável “O amigo da onça”, e a sessão Pif-paf.
2009 é o Ano Internacional da Astronomia, em que se celebram quatro séculos das observações astronômicas de Galileu Galilei e os 40 anos da chegada do primeiro homem à lua. Para comemorar, muitas editoras estão programando títulos alusivos. Uma delas é a Ática, que lançou em abril O nascimento do universo, de Judith Nuria Maida, com ilustrações de Fernando Vilela.
O interesse pela poesia no Recife ganha mais um upgrade com o projeto cultural Navegue nessa ideia, lançado pelo Interpoética com apoio do Sistema de Incentivo à Cultura do Recife. O projeto pesquisou e colocou na rede a produção biopoética de 110 pernambucanos ou com militância literária no Estado. Para ler, basta acessar o site www.interpoetica.com.
REPRODUÇÃO
NOTAS DE RODAPÉ
“Se você tem medo de ser rejeitado, não precisa mandar seus originais”. É claro que esta carta não está no livro A arte de recusar um original, de Camilien Roy (Editora Rocco, tradução de Pedro Afonso Vasquez, 2009), onde o autor elenca as informações negativas das editoras, conforme as características profissionais ou psicológicas do remetente. Algumas são engraçadas e outras contundentes e maldosas, realistas ou ambíguas. Ou definitivamente concisas, como esta: “Senhor: Lemos e não gostamos. Lamentamos, mas foi recusado”. Sem falar desta completamente grosseira: “Para dizer com clareza e sem rodeios, após a leitura chegamos à conclusão de que nunca, jamais, em tempo algum, o publicaremos. Solicitamos a gentileza
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PERNAMBUCO, MAIO 2009
A CEPE - Companhia Editora de Pernambuco informa:
CRITÉRIOS PARA RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO DE ORIGINAIS PELO CONSELHO EDITORIAL 1. Todos os originais de livros submetidos à CEPE são analisados pelo seu Conselho Editorial, que delibera a partir dos seguintes critérios: • Contribuição relevante para Pernambuco; • Adequação à missão institucional da CEPE e sintonia com a sua linha editorial, que privilegia obras inéditas, escritas ou traduzidas pra o português; que tenham relevância para a cultura pernambucana, nordestina e brasileira, nos seguintes campos do conhecimento humano: científico, técnico, literário e artístico. 2. Para obter a aprovação com vistas à publicação pela CEPE, as obras devem preencher os seguintes requisitos de qualidade: • De estilo (correção, clareza, coerência, rigor, coesão e propriedade). • De conteúdo (nível apropriado de aprofundamento dos temas, evidência de pesquisa e reflexão, consistência de argumentação e elaboração, originalidade da abordagem). 3. O conselho Editorial não analisa: • Originais incompletos, em progresso ou ainda sujeitos à correção do autor. • Livros individuais ou coletivos na condição de projeto. Os textos devem ser entregues com o seu conteúdo pronto e acabado, sem acréscimos nem rasuras.
Mais um caminho da Índia Uma análise do século 20 FICÇÃO Cacos de vida – sobrevivendo nas ruas da Índia Autora: Sally Grindley Editora: Ática Páginas: 200 Preço: R$ 22,90
A trama poderia se passar em qualquer capital brasileira: dois meninos, que tinham casa, comida e roupa lavada, viram moradores de rua depois que o pai fica desempregado e começa a beber, tornando-se violento. Tentando ganhar dinheiro para ajudar a mãe, os dois entram em contato com um mundo de miséria, exclusão social e perda da inocência, convivendo com uma realidade que a sociedade moderna e emergente prefere ignorar: a dos catadores de lixo, nesse caso em busca de cacos de
vidro, que vendem para reciclagem. A diferença é que a história se passa na Índia, num cenário que pouco lembra o grau de misticismo e sensualidade associado àquele país, tema atual de novelas e filmes. O livro da autora inglesa, traduzido para o português por Santiago Nazarian, explora as contradições entre uma Índia que convive com altos índices de analfabetismo e mortalidade infantil, miséria e conflitos étnicos, enquanto sua economia é uma das que mais cresce no mundo, o país envia satélites ao espaço e se afirma como potência nuclear. A crueza da realidade, porém, é amenizada pela preservação da amizade e da solidariedade entre os irmãos, que amadurecem enquanto enfrentam suas difíceis escolhas.
DOCUMENTO O novo século Autor: Eric Hobsbawm Editora: Companhia de Bolso Páginas: 176 Preço: R$ 19,50
Em 1999, um dos maiores analistas da história mundial, Eric Hobsbawm, concedeu uma longa entrevista ao brilhante jornalista italiano Antonio Polito, em que reflete sobre o início do novo milênio e o tipo de mundo que será legado aos nossos descendentes. A Companhia das Letras publica em edição de bolso a entrevista, no livro O novo século, com tradução para o português de Cláudio Marcondes, a partir da transcrição do italiano para o inglês. A partir da análise das características do século 20, como o fim do comunismo, o domínio
da economia sobre as relações sociais, a radical mudança do conceito de família, entre outras, Hobsbawm faz previsões sobre o século 21, com base em tendências que já se anunciavam e se configuram na atualidade, como o enfraquecimento dos estados nacionais, o ressurgimento dos conflitos étnicos, as mudanças provocadas pelos avanços tecnológicos, os efeitos da disparidade demográfica e dos deslocamentos da população, a urbanização acelerada e a dificuldade de controlar de forma benéfica as alterações no meio ambiente, e a incerteza sobre o futuro das relações políticas e culturais entre os seres humanos, o que considerou como a grande incógnita do novo século.
4. Serão imediatamente desconsiderados e rejeitados originais que atentem contra as declarações de direitos humanos e congêneres, as leis e os dispositivos morais e éticos, nomeadamente os casos de: • Violação do direitos políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais; • Que fomentem ou mostrem simpatia pela violência e desrespeito a crianças, idosos, bem como os preconceitos de raça, religião, gênero etc. 5. O conselho não recebe dissertações ou teses em estado bruto (devem ser feitas as reformulações necessárias de moro a reduzir o excesso de tecnicismos típicos do trabalho acadêmico. 6. As obras, inclusive as coletivas, devem estar corretamente padronizadas e revisadas, de modo a permitir a leitura crítica e análise final da obra. 7. O autor deve enviar à CEPE cópia impressa dos originais em quatro vias. 8. Não são recebidos originais em CD, disquete, e-mail ou qualquer outro formato eletrônico. 9. O comprovante de envio dos originais pelos Correios (AR - Aviso de Recebimento) valerá como potocolo de entrega. 10. Em caso de entrega dos originais na sede da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE, o portador deverá se dirigir à secretaria da Presidência, onde assinará o protocolo. 11. Todos os originais são de responsabilidade exclusiva do autor. O conselho não se ocupa de eventuais perdas ou danos no trajeto de encaminhamento nem devolve os originais recebidos.
LANÇAMENTOS
Nova linha de HQs traz novidades ao Brasil A Companhia das Letras lança em maio um novo selo, exclusivo de quadrinhos. Será o Quadrinhos na Companhia, que já conta com mais de vinte títulos programados para 2009 e 2010. A editora vai continuar publicando Will Eisner, Art Spiegelman e Marjane Satrapi (foto), entre outros grandes nomes da arte sequencial, mas para a nova linha incluirá outros autores.
Companhia Editora de Pernambuco Rua Coelho Leite, 530 - CEP: 50100-140 Santo Amaro - Recife - PE. Informações adicionais pelo telefone: (81) 3183-2708
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PERNAMBUCO, MAIO 2009
SOBRE O AUTOR Gustavo Táriba é aluno de letras da UFPE e atualmente faz intercâmbio na França
Meu interesse pela França começou após uma sessão quase vazia de Acossado de Godard no Cinema da Fundaj. O filme beirava o insuportável, mas lembro-me de que saí da sala querendo fazer parte daquela Paris de Godard tão fantástica que apenas uma descrição de Gabriel Garcia Márquez junto com Franz Kafka poderia explicar. A arrogância das personagens dava às cenas um charme à parte. Elas fumavam cigarro com um ar de “eu leio LéviStrauss” que não se comparava intelectualmente ao Crepúsculo que senta, marcado no começo, na minha mesa de cabeceira. E a paisagem? O Sena, a catedral de Notre Dame, o quartier Latin e a torre Eiffel formavam o pano de fundo perfeito para as dores de cotovelo e reflexões sobre a efemeridade da vida retratadas pelo diretor. O sonho parisiense parecia perfeito até um garoto de 13 anos mais ou menos me tirar do devaneio me cobrando cinco reais como garantia de que o carro estava sendo entregue “risco-free” do estacionamento. Não, nada contra o trabalho alheio. Apenas acho que a realidade poderia não ter dessas coisas... assim como na Paris de JeanLuc Godard. Na verdade, fui para Paris para encontrar o amor. Sei que parece piegas e muito boiola da minha parte, mas depois de incalculáveis ficadas que não deram em nada, um fora que até hoje escuto a reverberação da frase “o problema sou eu” e um único relacionamento sério em vida, o qual acabou sem a remota possibilidade de desenvolver uma futura amizade, achei que a mudança de ares seria bem vinda. Afinal, na capital francesa, a vida é vista em cor-de-rosa, como diria Edith Piaf. No filme de Godard, as pessoas sempre colocam a razão na frente da emoção, abrindo um parênteses bem grande quando falam de um sentimento em relação a outrem. Pode parecer frio por um lado, mas, olhando pelo copo semicheio, o chute na bunda já vem bem justificado e com total consentimento das partes. Ao chegar no aeroporto, perguntei ao guichet como faria para comprar um bilhete de metrô. “Excusez-moi. Comment Je fais pour acheter un billet, s’il vous plaît?”. Ele me respondeu, em inglês, que “that depends”. Disselhe que eu queria encontrar a mulher da minha vida. Ele me mandou pegar um tal de “RRRRRÔÔÔRRRR” (trem “RER”) e depois pegar o metrô e descer algumas estações depois, em Pigalle. Quando saí da via subterrânea para a superfície, estava numa avenida que era um prostíbulo a céu aberto. Os letreiros luminosos indicavam que ali a prática do le sexe era totalmente permitida 24
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CRÔNICA Gustavo Táriba
Por Paris, em busca do final feliz que faltava sur 7. Curiosamente, o Moulin Rouge fica neste mesmo bairro. Não era bem isso que eu estava procurando naquele momento, mas guardei o endereço em mente. Dando uma volta pela rue de Rivoli (rua paralela ao museu do Louvre), à noite, conheci Lucine. Ela estava sendo abordada por um bêbado chato que tentava beijá-la à força. Intervi no meio dos dois, puxei o braço dela para debaixo do meu e continuamos em linha reta. Lucine me agradecia aliviada e me ofereceu um café, o qual recusei de primeira e aceitei de insistência. A conversa perdurou até o café fechar. Descobri que cursamos a mesma faculdade, mas nunca nos cruzamos por termos aulas em dias diferentes. Ela é morena, ascendência argeliana. Ainda prosseguimos a soirée atravessando as três pontes que separam as duas margens do Sena e nos acomodando num bistrô em St Germain de Prés, perto da Sorbonne. Já eram cinco horas da manhã quando Lucine disse que precisava ir, pois iria trabalhar. Trocamos os telefones e prometemos marcar algo para o fim de semana. Deixei duas mensagens em seu celular, daquelas bem ensaiadinhas na qual você reproduz um diálogo interno em tom calmo, casual e super informal. Como se passaram dois finais de semanas e nada de resposta, achei melhor assumir o bolo levado e partir para a próxima. Não posso dizer que as investidas seguintes foram necessariamente equivalentes, mas todas tiveram o insucesso
como ponto em comum. A pior foi quando eu fui para uma festa da Erasmus (organização responsável pelo intercâmbio de alunos europeus) e chamei uma loira, alta de olhos azuis, francesa estereotipada, para dançar. Ela só disse “Non”. Simples, curto e direto. Ela voltou para o seu cigarro e eu para a fila dos rejeitados. Nunca pensei que a frieza godardiana poderia ser tão dura até presenciá-la fora da tela, dessa vez em cores e som THX. Algo subtendido que eu nunca tinha prestado atenção é: nenhuma história de JeanLuc Godard acaba em “happy ending” hollywoodiano. Em Acossado, o personagem Michel, antes de morrer, chama seu amor, Patrícia, de déguelasse (em bom e velho português, isso é sinônimo de “nojenta”). Já em Bande à part, o triângulo amoroso é desfeito com a morte de Arthur (o cara mais legal do filme por quem tenho grande empatia). Por que tanto sofrimento? Talvez Godard tenha conhecido uma “Lucine” e estivesse esperando sua ligação também. Minha investida amoureuse parisiense estava se transformando na película Alphaville do diretor que retrata uma moderna cidade alheia a qualquer sentimentalismo humano (Paris?). Demorou mas caiu a ficha. Os parisienses são um povo fechado por natureza. Isso explica muita da filmografia do precursor da Nouvelle vague. Eles andam de metrô com seus iPods touch no último volume, jornais, revistas e livros para
evitar qualquer contato verbal. Esse é o jeitão francês de ser! Quem já dizia isso era Montesquieu desde o século 18 no seu livro Cartas persas sobre a hermética maneira francesa de encarar a vida. As relações humanas são bem diferentes do meu feitio. Quer um exemplo? Ao perguntar a um francês “como vai”, ele responde “pas mal” (“não mal”). Eles não são táteis, não apertam a mão direito e um abraço é extrapolar a relação de intimidade. O protocolo do rendez-vous da pegação, asseguro, é um pouco mais burocrático. Foi no último andar da Torre Eiffel, com aquela vista invejável em baixo, que me dei conta da beleza arquitetônica que me rodeia. Paris é como um Monet, tem que ser vista em perspectiva para se ter um melhor julgamento da tamanha obra de arte que é. Ao ver todos aqueles monumentos em tamanho reduzido é que a gente começa a fazer um balanço sobre família, amigos, cachorro e papagaio, os quais deixamos para trás para nos aventurarmos em terras estrangeiras, e como tudo poderia ser mais fácil se eles estivessem aqui para soltarmos o comentário “Pô, é bonito, né, véi?”. Descendo pelo elevador, pensei que não importava mais a frieza nem a falta de sensibilidade. Já estava vivendo uma relação conturbada, cheia de idas e voltas, amor e ódio, e com indícios de longa duração com a cidade de Paris.