Pernambuco 40

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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco nº 40 - Distribuição gratuita 1

flora pimentel

PERNAMBUCO, MAIO 2009

Um embate de ideias sobre a “nova” cara do cordel e mais:

michel laub + os sertões reinventado + inédito de marcelino freire + entrevista com josé luiz passos


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GALERIA

BR E NO CÉS A R Fotógrafo, artista plástico e diretor de vídeo, formado em arte e mídia pela Universidade Federal de Campina Grande. Bruno fala sobre seu trabalho: “Essa foto foi feita no Jardim Botânico (Rio de Janeiro) no ano passado, seguindo um olhar mais abstrato saí procurando restos de plantas para fotografar por lá”.

C A RTA DO E DI TOR Esta edição do Pernambuco tem uma reportagem de capa que divide opiniões: o cordel estaria passando por um momento de mudança? Ou estaria sendo desvirtuado por oportunistas? De um lado, José Teles polemiza a questão, cedendo voz a vários cordelistas e especialistas. Liêdo Maranhão, por exemplo, é direto em sua crítica aos novos cordelistas. “Uma vez o poeta Antonio Desterro chegou pra mim e comentou que este pessoal de hoje pensa que o folheto é feito hemorróida”. Em sua reportagem, Teles aponta ainda uma mudança no público consumidor no cordel: “Quem consome os livretos de cordel é cada vez menos o seu público histórico, o povão, semi-iletrado. Os livros também não são mais, em sua maioria, escritos por poetas populares, mas por estudantes universitários e intelectuais.” Do outro lado do campo de batalha, a pesquisadora Maria Alice Amorim não considera tão problemática assim esta mudança, “Não seria bom perguntar, primeiro, o que é cordel? E o que significa ‘povo’, quem é esse ‘povo’ que faz cordel, quem é o ‘povão’ que gosta de cordel? Quais seriam, portanto, os elementos indispensáveis à caracterização do folheto?”.

SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO Adriana Dória Matos Um tema explosivo, sem dúvida, que o designer Flávio Pessoa ilustrou cheio de humor, criando a trama de um folheto hi-tech. E a polêmica continua com a crônica que a escritora Simone Campos escreveu criticando a literatura brasileira atual. O texto serve ainda para defender a criação dos contos presentes em Amostragem complexa, lançada pela editora 7 Letras. E por falar no processo de composição de um autor, é de Michel Laub, um dos mais talentosos escritores brasileiros hoje, o Bastidores desta edição. A edição traz ainda uma reportagem de Patricia Amorim sobre o aquecimento do mercado de ilustrações no Brasil hoje e (ainda neste terreno) uma fantástica ilustração que o designer Rodrigo Sotero realizou a partir de um trecho de Os sertões, clássico de Euclides da Cunha. Impagável é a resenha que Raimundo Carrero fez do best-seller O segredo, em que revela como não soube pedir ajuda a um livro de autoajuda. Continuando com nossa série de cartuns, este mês contamos com o trabalho de Laerte Silvino. Boa leitura.

GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO Governador Eduardo Campos Secretário da Casa Civil Ricardo Leitão COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO - CEPE Presidente Leda Alves Diretor de Produção e Edição Ricardo Melo Diretor Administrativo e Financeiro Bráulio Menezes CONSELHO EDITORIAL: Mário Hélio (Presidente) Cristhiane Cordeiro José Luiz Mota Menezes Luís Augusto Reis Luzilá Gonçalves Ferreira

SUPERINTENDENTE DE CRIAÇÃO Luiz Arrais EDIÇÃO Raimundo Carrero e Schneider Carpeggiani REDAÇÃO Mariza Pontes e Marco Polo ARTE, FOTOGRAFIA E REVISÃO Flávio Pessoa, Flora Pimentel, Gilson Oliveira, Militão Marques, Nélio Câmara e Renata Cadena PRODUÇÃO GRÁFICA Eliseu Souza, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Roberto Bandeira, Sóstenes Fernandes MARKETING E PUBLICIDADE Armando Lemos, Alexandre Monteiro, Rosana Galvão COMERCIAL E CIRCULAÇÃO Gilberto Silva

PERNAMBUCO é uma publicação da Companhia Editoras de Pernambuco - CEPE Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife CEP: 50100-140 Contatos com a Redação 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br


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BASTIDORES

Todos os ecos do triângulo

Escritor busca uma voz madura em novo romance Michel Laub

Se falar do próprio trabalho numa entrevista já é um tanto constrangedor, aceitar o convite para escrever livremente a respeito, imaginando respostas para perguntas que ninguém se preocupou em fazer, é uma experiência embaraçosa como poucas. Em função disso, prefiro resumir o que os editores desta coluna chamam de Bastidores – no caso, do romance O gato diz adeus – a duas questões específicas, dois desafios que acabaram determinando os principais caminhos do livro. O primeiro era escrever um drama passado no mundo adulto. Até então, pelo menos na maior parte do tempo, meus romances eram narrados por personagens mais velhos que lembravam de histórias passadas na adolescência. É um ponto de vista que tem suas dificuldades: quem narra pode ser ingênuo na época em que se passa a história, por exemplo, mas não na época em que está narrando, o que exige um tom intermediário entre ambos os registros. Já entre adultos esse problema não existe, e o registro é bem mais natural, porque o escritor não precisa se colocar na pele de alguém que sabe pouco, que não viveu o suficiente. Ao mesmo tempo, um drama entre adolescentes – uma primeira experiência sexual, digamos – tem uma intensidade que, por envolver situações inéditas para os personagens, num tempo da vida em que as escolhas sempre parecem mais graves e definitivas, convence com mais rapidez que o drama de alguém de 30, 40, 60 anos. O gato diz adeus fala de um triângulo amoroso entre um escritor, um professor e uma atriz, e esse é um argumento banal no mundo adulto, então é preciso fazer um esforço maior para potencializá-lo diante de um leitor que a todo momento pode dizer: “Ok, e daí?” O segundo desafio do livro era algo também inédito para mim: escrever sob o ponto de vista de mais de um narrador. Essa foi a maneira de tentar colorir um pouco a referida banalidade, em função da subjetividade que sempre acompanha o recurso das múltiplas vozes. Tentei de várias maneiras diferenciar cada uma delas: por meio da pontuação (um personagem falaria com frases longas, outro com frases curtas), pelo uso de cacoetes de linguagem (palavras específicas que fulano ou sicrano sempre usariam), por um ritmo lógico diverso (um pensaria em círculos, outro só usaria construções diretas), enfim, as possibilidades aí eram infinitas. Aos poucos cheguei à conclusão de que recursos assim, a par de seu aparente virtuosismo, são apenas muletas técnicas, algo que qualquer escritor minimamente habilidoso consegue fazer, mas que para um leitor mais qualificado soam como esquematismo. Então limpei boa parte delas. Em termos estritamente formais, as vozes dos personagens acabaram ficando parecidas. Mas o que as diferencia, e o que deve importar, afinal, é a verdade do que cada um narra: se o personagem está sendo sincero no que diz (mesmo quando mente), sua voz nunca será confundida com a de outro. A decisão seria diferente se o livro fosse composto por cartas ou diários. Na linguagem escrita

A obra procura potencializar a força da relação amorosa entre um escritor, um professor e uma atriz a diversidade mais acentuada de vozes – por meio de riquezas diversas de prosa, registros de tom ou até ortografia e gramática – me parece mais verossímil que na linguagem oral. Mas, porque O gato diz adeus é composto de depoimentos dos personagens, como se eles estivessem falando para uma câmera de TV, os registros inevitavelmente se aproximam. Há um trecho em que a atriz diz “há muito que um homem não me fazia rir assim”. O correto seria “havia muito que um homem (...)”, mas num registro oral isso soaria ridículo. E, como os narradores do livro são de universos e classes sociais semelhantes, a unificação acabou sendo natural. Dessas duas questões surgiram várias outras, um conjunto de problemas e soluções – incluindo os inevitáveis bloqueios – que determina o prazer e o horror de se fazer ficção. Mas claro que falar a respeito é se limitar aos andaimes do edifício, porque o importante mesmo é algo bem menos técnico e muito pouco afeito a explicações e justificativas: o quanto de um escritor está ou não num livro, aquele toque particular e intransferível que vai determinar o resultado final – ótimo, bom, ruim ou vexaminoso, cabe apenas ao leitor decidir.

O AUTOR Michel Laub é jornalista e publicou ainda os livros Longe da água, Música anterior e Segundo tempo, todos pela Companhia das Letras.

O LIVRO O gato diz adeus Editora Companhia das Letras Páginas 80 Preço R$ 28


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CARRERO Ponto de vista não é somente ciúme de você As palavras fazem um romance, mas sem visão do mundo o autor desaba

Marco Polo

MERCADO EDITORIAL

“Porventura a mais estudada, porque a mais relevante, das categorias narrativas, o ponto de vista, além de condicionar a avaliação de um romance, articula-se estreitamente com o modo como o autor ou/e o narrador vê as coisas e o mundo: em grande parte, a comovisão de um escritor se manifesta por meio do ponto de vista, sobretudo na medida em que o ângulo visual determina, deforma ou informa, tudo o mais que se contém num texto narrativo. Exprime, assim, não só uma opção estética como também, e notadamente, ética: a obra literária dos últimos fins do ser humano evidencia-se na escolha do foco narrativo; conforme sejam vastas ou estreitas as condições éticas dum autor, assim será o ponto de vista empregado nas suas obras”. Vamos aos casos clássicos de Flaubert e de Tolstói. Ambos tratam do adultério, embora não haja ciúmes no exemplo clássico do escritor francês. Charles Bovary não sente ciúme de nada, nem mesmo quando descobre as cartas escritas por Emma aos amantes: Rodolfo e Léon. Em Tolstói, o ciúme aflora com intensidade. Sim, embora os temas sejam os mesmos o ponto de vista, de um e do outro difere, completamente. Senão vejamos: ambos veem o assunto de maneira bem diferente. Flaubert cuida da técnica, da estrutura interna da obra, e do medo

da morte; Tolstói examina a questão moral e, um pouco mais adiante, a religião. Dois grandes livros, dois tratamento desiguais. Sempre lembrando que o ciúme é uma parte, até mesmo uma parte importante, do ponto de vista do leitor, mas reflete apenas uma particularidade. No entanto, apesar de toda técnica e de todo discurso, ambos se unem no plano moral: as heroínas, Emma Bovary e Anna Karenina, são julgadas e condenadas. Suicidam-se. O que representa o ponto de vista dos autores, embora tão distintos e diferentes na montagem da obra. Em Madame Bovary há uma grande dor e um grande desespero, com a morte causada por veneno, uma morte que ocupa mais de uma página, cheia de barulhos, cânticos, arrependimentos metafóricos, choros, lamentações. Em Anna Karenina há uma espécie de alívio: moral e técnico; a personagem parece sair de um banho no instante em que se atira nas rodas de ferro do trem. Vejam o que escreve Tolstói no momento exato do suicídio:

“Um sentimento toma conta dela, semelhante àquele de quando, ao tomar um banho, se preparava para um mergulho na água...”... “Colocou a cabeça entre os ombros e, com as mãos à frente, atirou-se embaixo do vagão”. A punição pelo alívio. Temas iguais para pontos de vista diferentes a respeito da morte. Há, no entanto, uma grande confusão quando se trata das técnicas na obra de arte romanesca. Alguns estudiosos e críticos consideram que ponto de vista e foco narrativo são iguais, daí as expressões usadas por Massaud Moisés. No nosso entendimento, porém, ponto de vista é, como já dissemos, a visão de mundo do autor, a leitura do mundo, que pode ser filosófica, política ou religiosa, e o foco narrativo é a técnica que o autor usa para manifestar sua interpretação. Por isso, recorre a tantos personagens, a tantas histórias contraditórias entre si. Quando escrevi Viagem no ventre da baleia, que examina a questão do campo, precisei, por isso mesmo, de três personagens que pudessem, juntos, refletir a minha angústia sobre o tema, mesmo através de um narrador inominado. Recorri a três personagens antagônicos: Padre Paulo, Jonas e Miguel. O primeiro procura equilibrar o mundo atribulado de Jonas e de Miguel, enquanto o segundo compreende que as questões universais são resolvidas através das armas, e o terceiro acredita que a solução dos conflitos está no enfrentamento, embora de modo pacífico. Os três juntos revelam o meu ponto de vista e minha leitura do conflito. O

calendário

prêmio

feira

Avalanche de bienais do livro em 2009

Quinta edição da Fliporto dará R$ 9 mil em prêmios para poemas apresentados em vídeo

Frankfurt quer abrir escritório na AL

Ano cheio de bienais do livro. Em abril aconteceu a da Bahia. Em maio, a de Goiás. Em julho, haverá a Bienal de Santa Catarina. Em setembro, a tradicional Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro. Em outubro, teremos as bienais de Pernambuco, Rio Grande do Norte e, entrando em novembro, a de Alagoas. Sem falar nas feiras, salões, jornadas, festivais, congressos etc.

A quinta edição da Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas – Fliporto, que acontece de 5 a 8 de novembro e terá como foco de discussão a literatura iberoamericana, está abrindo inscrições para o 3º Prêmio Internacional Poesia ao Vídeo, promovido pelo Instituto Maximiano Campos – IMC, que visa estimular a produção e interpretação de poemas em

vídeo, promovendo o diálogo entre poesia e mídia eletrônica. O vencedor receberá R$ 4 mil, o segundo colocado R$ 3 mil e o terceiro R$ 1 mil, além de passagens e hospedagens para participar da festa. As inscrições devem ser feitas até o dia 1º de outubro pelo site oficial do evento, www.fliporto. net. Os poemas apresentados devem ser em português ou espanhol.

Marifé Garcia, vice-presidente da empresa que gerencia a Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, o maior evento de negócios editoriais do planeta, passou pelo Brasil, a fim de conhecer melhor o mercado nacional ligado ao livro. Quer abrir um escritório da matriz de Frankfurt na América Latina. Antes de vir ao Brasil ela passou pela Argentina, a outra possível opção para sediar a filial.

divulgação

Raimundo

Não resta dúvida de que o ciúme é um dos temas mais trabalhados pelos escritores, em romances, novelas e contos. Basta observar, por exemplo, a obra de Graciliano Ramos – o assunto está em Caetés, em Angústia, e em São Bernardo. Machado de Assis ergueu um monumento ao ciúme em Dom Casmurro. Sem esquecer os casos clássicos de Madame Bovary, de Flaubert, e de Anna Karenina, de Tolstói. Além de Eça de Queiroz, em Os Maias, sobretudo. E mais: O ciúme, de Alain Robbe-Grillet. Ciúme para vender em balaio. Na praça, no bar, no escurinho do cinema. Mas não é apenas dele que pretendemos tratar aqui. Vai mais além, muito mais além. Especificamente, abordaremos o ponto de vista do escritor, a raiz e o centro de toda a preocupação intelectual, antes mesmo da técnica, que continua auxiliar. Ponto de vista é a visão que o romancista tem do mundo, a maneira como interpreta a condição humana, o modo de refletir. Portanto, o ciúme é um desses elementos. Um dos mais graves, concordamos, porque projeta toda uma série de incidentes. Mas, é claro, não é o único. É parte da visão do escritor. Lembrando Massaud Moisés, em Dicionário de termos literários:


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Flaubert cuida da técnica, da estrutura interna da obra, e do medo da morte; Tolstói examina a questão moral

“Sua obra é notável principalmente pelo cuidado com que são eliminadas da narrativa as indicações que poderiam conduzir o romance a um resultado psicológico muito evidente. Robbe-Grillet aparentemente contenta-se em justapor descrições objetivas que traçam, pouco a pouco, diante do leitor, quadros concisos. As fisionomias e os gestos que animam esses quadros parecem igualmente observados pelo autor de maneira fria, sem que lhes dê um significado mais amplo. Assim, aparentemente, todo o romance forma um único jogo de cenas. Graças a essa técnica, o escritor pretende sugerir a solidão metafísica de suas personagens”. Percebemos, portanto, que a principal característica do autor é esse ponto de vista. O que acontece, então, é que a partir desse ponto de vista chega-se ao foco narrativo, que indica o caminho das técnicas. Os escritores que não sabem ter um ponto de vista e alcançam o foco narrativo de qualquer maneira podem ser bons, sem dúvida, mas correm o risco de

repetir sem graça o que os outros já disseram. Ou escreveram. Dessa maneira, devemos estabelecer o seguinte: sem um foco narrativo, alimentado, pelo ponto de vista, o caminho do fracasso é linear: não tem errada. Mas se o escritor é capaz de, através de estudos sistemáticos, formar um ponto de vista, e escolhe as técnicas que melhor se ajustam ao que pretende dizer está, sim, percorrendo o caminho do êxito. Nesse sentido, esses são os revolucionários, os que mudam o destino da literatura. Escrever bem não é, absoluto, apenas uma maneira de unir belas palavras. A linguagem escrita é um dos elementos da narrativa. Um dos mais importantes. Não há nenhuma dúvida disso. Mas os outros elementos não podem ser desprezados. Até porque para unir boas palavras, ajustáveis, é preciso saber para que elas servem. Não custa observar. Revolucionários e conservadores sabem disso. O fundamental, porém, é que o escritor deve ter o que dizer, inicialmente, e não revelar isso no desenvolvimento da narrativa. Muito menos no discurso escrito. O desenvolvimento dos personagens, das cenas, dos cenários, dos diálogos, por exemplo, revelam o pensamento do autor, o seu ponto de vista, e não as palavras. Ou antes, não só as palavras.

reprodução

mesmo fiz com Félix Gurgel, de A dupla face do baralho, com o personagem se debatendo entre a tortura e o amor. Mais adiante, pode-se verificar o caso de Alain Robbe-Grillet, ou seja, o ponto de vista que aniquila o humano, não destacado, por exemplo, em O ciúme. Ali ele expõe seu ponto de vista existencial: “O mundo não é nem significativo nem absurdo. Ele é, simplesmente”.

Aliás, na apresentação do livro na edição do Círculo do livro, anota-se:

divulgação

Rainha das festas, Madame Bovary (aqui em versão filmada por Vincente Minelli) será vítima da moral da sua época com uma morte dolorosa

história

análise

40 anos de TV Cultura contados em livro

Crise do livro é provocada, em grande parte, pelos números estratosféricos dos blockbusters

Em 1969, entrava no ar a TV Cultura, criada para ser autônoma em relação ao governo, no auge da ditadura. Apesar da repressão aos seus jornalistas, como Vladimir Herzog, o projeto sobreviveu. Agora tem sua trajetória contada em Uma história da TV Cultura, de Jorge da Cunha Lima, numa edição conjunta da Fundação Padre Anchieta e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.

Em O negócio do livro, lançado em português pela Record, o editor norte-americano Jason Epstein aponta, entre as causas da crise do mercado editorial nos EUA, a migração das livrarias para os shoppings, o que elevou suas despesas, levando-as a privilegiar a exibição de best e mega-sellers, seguindo a tendência globalizada de atuar com literatura de consumo rápido e massificado. No Brasil,

esses produtos (realmente devem ser chamados assim) pularam de tiragens com 30 mil exemplares para 1,89 milhão (O caçador de pipas) e 1,5 milhão (O código Da Vinci). No mundo, foram para 45 milhões (Crepúsculo) e 400 milhões (os sete livros da série Harry Potter). As edições normais do mercado, aqui e lá, com tiragens entre mil e três mil exemplares, são concorrentes ridículos.


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mercado ediTorial

A ilustração entra em rota promissora

Após anos em baixa, esse novo boom toma com força total o mercado editorial patrícia amorim

Em meados da década de 1990, quando os designers Neville Brody e David Carson profetizaram “o fim do impresso” – “the end of print” –, os novos recursos da tecnologia digital e a coloquialidade da estética pósmodernista já haviam transformado o design gráfico. No mercado editorial, computadores, softwares e scanners, além de acelerarem a produção, abriram possibilidades para o uso e a experimentação da tipografia digital, para a captura e a alteração de imagens e sua utilização também no formato 3-D. Se na música o sample (combinação de trechos de diferentes composições) era a nova (des)ordem, a página impressa também tinha seu equivalente. Nesse período, marcado ainda pela popularização dos bancos de imagens, layouts baseados em imprevisíveis colagens digitais tornaram-se frequentes, principalmente em revistas. Tal fato libertou a diagramação da rigidez dos cânones modernistas, focados na funcionalidade e na legibilidade, permitindo, em publicações de abordagem gráfica mais ousada, a vivência de um processo criativo mais experimental e intuitivo por parte do designer no manejo das informações de texto e fotos. Nesse cenário, emergindo como efeito colateral de uma turbulenta renovação visual e tecnológica, era visível o afastamento progressivo da ilustração nas redações, encarada a partir de então como uma expressão formal e antiquada. Nos Estados Unidos, essa marginalização ocorreu de modo tão acentuado que, na virada para os anos 2000, chegou a ser tema de artigos inflamados em revistas especializadas e a inspirar o surgimento de organizações de ilustradores, como a ICON The Illustration Conference (Conferência de Ilustração) em 1999, estando documentada inclusive em livros de história do design. Aqui, a fundação da Sociedade de Ilustradores do Brasil (SIB), em 2003, e a realização de eventos como IlustraBrasil e Ilustrando em Revista configuraram importantes mobilizações nesse sentido. Hoje, anos depois dessas iniciativas de valorização, a ilustração dá sinais de ter sido convocada para uma nova rota promissora. E no rastro dessa impressão, resolvemos checar com ilustradores, diretores de arte e editores no Brasil, Cuba, Estados Unidos e Argentina se de fato o pior já passou. É hora de virar a página? bom momenTo brasileiro “Sem dúvida, há um boom da ilustração acontecendo neste momento”, afirma Mário Fittipaldi, diretor de redação da Computer Arts Brasil, lançada no país em 2007. Seguindo os moldes de sua matriz britânica, a revista funciona como um observatório de tendências de ilustração e design gráfico, além de fornecer dicas de tutoriais e técnicas. “Não só no mercado editorial, mas também na publicidade, a ilustração virou o jogo e está em alta”, completa. Segundo o ilustrador Renato Alarcão, mestre em ilustração pela School of Visual Arts (em Nova York), o momento é bastante propício para a atividade no país, especialmente no segmento de revistas, o que parece resultar de um redirecionamento no pensamento criativo do meio editorial, balizado em grande medida pelos grandes centros como Nova York, Londres e Japão. “Sempre que visitei redações de revistas aqui no Brasil vi muitas publicações estrangeiras sobre a mesa. Se numa determinada época nenhuma delas trazia ilustrações, ficava subentendido que este recurso gráfico estava datado”, conta. “Percebo que mais recentemente, tanto no design quanto na moda, o Brasil tomou coragem de ditar tendências, ser a locomotiva e não mais um mero vagão a reboque dos gringos”. De acordo com Alexandre Lucas, editor de arte e ilustrador da revista Época, o mercado está muito bom para bons ilustradores, mas falar em marginalização da ilustração no Brasil nos anos 1990 seria um exagero. “O que houve aqui, sim, foi um processo de readequação desde que se adotou o uso do computador. Isso ocasionou o desuso de caricaturas e charges pela mídia impressa, porém ganhou-se em qualidade e agilidade”, observa. No vértice oposto desse debate está o ilustrador Orlando Pedroso, conselheiro da SIB e organizador do IlustraBrasil. Para ele, antes mesmo da informatização das redações no país, a tendência lançada no início dos anos 1990 pelo jornal americano USA Today, com textos curtos e recheado de infográficos para agilizar a leitura, afetou sobremaneira o uso de

ilustrações. “Nessa mesma época, vários periódicos concluíram que foto é quente e ilustração é fria. Na Ilustrada da Folha de S.Paulo, o Paulo Francis dividia uma página com a Mariza Dias Costa, uma das maiores ilustradoras que esse país já produziu. Meio a meio, e saíam aquelas ilustrações enormes e violentas dela. Da noite para o dia, passaram a usar foto no lugar do desenho. Como o Francis falava de vários assuntos, o editor tinha de optar por uma imagem qualquer. Isso sim esfriava a página”, lembra. “Esse episódio eu coloco como o verdadeiro marco da degringolada da ilustração na imprensa brasileira”. A presença da ilustração em impressos editoriais no país data do final do século 19. Entre as publicações que se destacaram pelo uso criativo, e muitas vezes primoroso, da ilustração em suas páginas estavam revistas como O malho, Careta e Para Todos, conduzidas graficamente pelo genial ilustrador e designer J. Carlos, na década de 1920. Nessa época, o parque gráfico brasileiro começava a se modernizar e a presença do ilustrador se tornaria imprescindível na produção de periódicos, chegando a ter atuação mais importante que o redator. Tanto por conta da reprodução de novas técnicas no trato das imagens quanto pela qualificação e posicionamento de mercado da revista, garantida através de seu traço. Em março de 1959, o lançamento da revista Senhor acrescentou mais um importante capítulo à história das publicações apoiadas no uso da ilustração. Com projeto gráfico encabeçado pelos artistas plásticos Carlos Scliar e Glauco Rodrigues e equipe de colaboradores de primeira grandeza como a designer Bea Feitler e o cartunista Jaguar, a revista Senhor é até hoje referência para veículos interessados em fundir a ilustração à sua personalidade gráfica. A esses exemplos, muitos outros artistas e publicações poderiam ser acrescentados, confirmando a longa, diversificada e vigorosa tradição da ilustração nos impressos jornalísticos brasileiros e a própria

Nos EUA, a marginalização da ilustração gerou debates inflamados na imprensa e o surgimento de organizações cultura gráfica que se construiu a partir dela. Herança que, na visão de Orlando, foi duramente ameaçada com a chegada dos anos 1990. Para Montalvo Machado, fundador da lista Ilustrasite, uma das primeiras articulações de resgate da ilustração no Brasil no início dos anos 2000, os efeitos negativos da revolução tecnológica ainda podem ser percebidos em produtos editoriais de baixa qualidade e na substituição de designers e diretores de arte por especialistas em Photoshop. Por outro lado, salienta que no aspecto criativo, a ilustração editorial vem gozando de boas perspectivas até mesmo por conta da saturação no mercado de imagens com “cara de computador”. “Hoje a demanda maior é por imagens autorais, principalmente as que têm um caráter mais artístico. Muitos clientes pedem trabalhos que resgatem o desenho, a pincelada, a textura, mesmo que sejam digitais, mas que tragam esse toque mais humano e gestual às ilustrações”, conta. O ilustrador e editor de arte Daniel Kondo – responsável pelo projeto gráfico do jornal Le Monde Diplomatique Brasil, em parceria com Adriana Fernandes – também acredita que a ilustração editorial esteja em bom momento, favorecido inclusive por publicações independentes, as quais, segundo ele, costumam dar espaço a novos e a ‘antigos’ profissionais. Lançada em agosto de 2007, a versão brasileira do conhecido periódico francês orgulha-se de sua lista de colabora-


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divulgação

A ilustração é destaque em publicações diversas (detalhes de esq. à dir): La Jiribilla, com colaboração de David Suárez; capa do Le Monde Diplomatique Brasil, por Renato Alarcão; Piauí, com ilustração de Christoph Niemann

dores. “Posso afirmar que temos uma seleção do que há de melhor em ilustradores e cartunistas no Brasil, como Renato Alarcão, Edgar Vasques, Claudius, Allan Sieber, Roberto Negreiros, Orlando Pedroso, Samuel Casal e muitos outros”, informa Kondo. Sobre a abordagem gráfica do jornal, ele esclarece que, como as matérias são geralmente análises de temas complexos, não existe uma “imagem pronta”. “Nossa edição visual foi direcionada para ilustradores como eu desenvolverem também um trabalho autoral. Isso significa um desafio maior na elaboração de conceitos visuais que não somente ilustrem a matéria, mas também dêem outro nível de interpretação ao leitor”, enfatiza Kondo. Para Alceu Chiesorin, diretor de arte da revista VIP e curador da exposição Ilustrando em Revista, é fundamental escolher o ilustrador certo e trabalhar em parceria com ele, nos erros e acertos. Trazendo assim um novo ponto de vista, um novo olhar sobre o assunto, como bem lembra Orlando: “Para repetir o que diz o texto é melhor escrever um olho, botar entre aspas e em itálico e pronto”. Nesse mesmo sentido, o designer e ilustrador cubano David Suárez acredita que a ilustração tem o papel de comunicar, de fazer refletir, comover e às vezes até ferir. “Um artista cubano disse certa vez que o ilustrador desenha o que o escritor esqueceu ou o que não lhe passou pela cabeça. Dessa forma, temos também que contar histórias paralelas ao texto, provocar descobertas para quem tem uma página na frente”, diz. driblando a crise Morando no Brasil há dois anos, David colaborou entre 2003 e 2006 com a revista mensal La Jiribilla, em parceria com outros quatro amigos do Grupo Camaleón. Circulando em vários países da América Latina, a publicação dedica-se aos temas da cultura e da política cubana e internacional, reunindo entre seus autores intelectuais de vários países. “Ilustrávamos qualquer ideia e em qualquer material. Depois quem diagramava escolhia uma ilustração que se relacionasse com o texto a partir da biblioteca que íamos construindo. Já para os textos mais importantes, nos eram solicitadas ilustrações específicas”, conta David. “A revista não tinha luxo nenhum, o papel, chamado gaceta, era ruim e depois de um tempinho começava a ficar amarelado. Mas as nossas ilustrações estavam lá,

as pessoas reconheciam nosso trabalho e fomos criando uma estética, um caminho”, lembra. A respeito da chegada da tecnologia digital em seu país, David confirma que mesmo em Cuba a ilustração ficou em segundo plano nos jornais e até nos cartazes. “O trabalho do ilustrador passou por uma crise, com carência de materiais e remuneração. De uns tempos para cá, entretanto, Cuba está se recuperando, com a melhora na economia e o surgimento de novas possibilidades para ilustrar”. Já sobre os contrastes no cenário da ilustração lá e aqui no Brasil, David aponta um maior apego à tradição e à cultura local em seu país, muito por conta da resistência ao capitalismo, e uma maior abertura às influências estrangeiras em território brasileiro. “Na minha percepção, o mercado da ilustração e da tipografia se vê inundado de efeitos gráficos da moda, manchas e arabescos que logo passam. Um caso bem claro aqui no Brasil é a invasão do mangá, visto em ilustrações, layouts e marcas, tudo graças ao mercado globalizado”. Entre outros, quem também faz críticas à linguagem decorativa na ilustração hoje em dia, caracterizada pela sobreposição de várias camadas de padrões, texturas e motivos ornamentais, é Renato Alarcão. “A título de piada, chamei esse estilo de Neo-Firulativo ou Neofirulatismo. É o recurso para a falta de uma idéia, um conceito forte que dá alma à ilustração”. Segundo ele, esse estilo – além de dar ao jovem estudante de design ou artes a impressão de que ilustrar é fácil – é um retrato de nossa época, que privilegia o verniz cosmético em detrimento da essência. “Acho que essa saturação vai se depurar e as vertentes mais interessantes vão emergir”. Para o ilustrador americano Nate Williams, que vive atualmente em Buenos Aires depois de um bom tempo na Microsoft, a predominância de uma tendência mais decorativa na ilustração pode resultar de uma mudança de foco da razão para a emoção. “A ilustração conceitual é muito cerebral. É como um quebra-cabeça. Faz o leitor se conectar com a imagem como se ele estive solucionando uma questão. Já a ilustração decorativa, ornamental, tem mais a ver com o sentimento. Com a sensação que o texto quer transmitir: nervosismo, melancolia, agressividade... Mas é um sentimento, não uma idéia”, reflete. Daniel Edmundson, sócio da recifense Mooz Design e um dos criadores da proposta gráfica das três primeiras edições da revista de música independen-

te Coquetel Molotov, reconhecida pela experimentação com a ilustração em suas páginas, prefere não adotar a distinção entre as linhas conceitual e decorativa. Em sua perspectiva, existem milhares de caminhos, inclusive os que se utilizam de softwares gráficos, os quais, segundo ele, facilitaram bastante a vida do ilustrador. “O que importa mesmo é a qualidade do trabalho e sua relevância, não o ‘estilo’. Importa se ele comunica de forma apropriada, mesmo que através do aspecto sensorial”, diz. longo caminho a percorrer Embora o setor de revistas apareça como espaço cada vez mais aberto ao uso da ilustração, entre os jornais – tanto os locais quanto os de abrangência nacional, e ainda em periódicos de outros países da America Latina, como os argentinos – o recurso tem sido pouco utilizado, prevalecendo a norma da foto e dos infográficos como principal solução visual no suporte ao texto jornalístico. De acordo com a maioria dos ilustradores ouvidos, é de fato no segmento de livros infantis onde têm surgido os projetos mais estimulantes nos últimos anos, nicho editorial que merece inclusive ser analisado com mais atenção. Sem esquecer ainda das oportunidades inauguradas pela internet, que para os ilustradores Marshall Arisman e Christoph Niemann, representam uma rica plataforma de atuação. Por outro lado, se o mercado editorial é próspero sob vários ângulos, ainda arrasta problemas graves, segundo os ilustradores, como baixos valores pagos e contratos indigestos. “A antiga parceria que fazia de cada página algo memorável, deu lugar ao desespero para não estourar o borderô e os deadlines. A valorização da ilustração é visível, sim, infelizmente os preços não a acompanharam”, afirma Renato Alarcão. Independentemente de seus altos e baixos, parte essencial da iconografia do bom e do vil em nossas sociedades continua a ser estampada em milhares de capas e páginas ilustradas. Fomentando uma tradição que no passado consagrou títulos como The Saturday Evening Post e The New Yorker, nos Estados Unidos, e O Cruzeiro, no Brasil, e que ainda hoje se reverbera sob diferentes circunstâncias e meios. O que serve como prova de que o registro do estar no mundo e o traço do ilustrador ainda permanecem tão grudados um ao outro quanto a pasta e a escova de dentes de Christoph Niemann na capa da revista Piauí.


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CAPA


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Cordel não é mais coisa de cabra safado

Pouco resta da função original do gênero que migrou da rua para o computador José teles Somente nos 1940 e 1950 a literatura de cordel esteve tão em evidência quanto nos últimos dez anos. Pululam Nordeste e Brasil afora associações e academias de cordelistas, inclusive uma Academia Brasileira de Literatura de Cordel, com sede no Rio de Janeiro, em cuja página existe até um link no qual se ensina 11 maneiras diferentes para se escrever um cordel. Na web, textos são escritos por autores diferentes, que se comunicam por e-mail, ou em sites de relacionamento. Alguém começa e passa o bastão da musa para o próximo internauta, que passa para outro, e assim por diante. Numa entrevista ao blog Cordel Campina, o cordelista cibernético Gustavo Dourado, que atua em Brasília, entusiasta da difusão deste tipo de literatura pelo meio virtual, comenta que “Antes da internet era comum se falar na morte do cordel em jornais, revistas, cursos e seminários acadêmicos. Felizmente, com a revolução digital, e com a linguagem virtual dos computadores, a literatura de cordel ganhou dimensão jornalística, conquistou uma inesperada autonomia e uma boa divulgação no universo virtual. Ganhou gás e agora tem respiração própria. Hoje temos centenas de cordelistas internautas. No Nordeste, em São Paulo, no Rio, em Brasília e por todos os estados do Brasil”. Dourado disponibiliza dezenas de cordéis de sua lavra no blog www.gustavodourado. com.br/cordel.htm. Nunca houve tantos cordelistas e, paradoxalmente, quem consome esses textos é cada vez menos o seu público histórico, o povão semi-iletrado. Os livros também não são mais, em sua maioria, escritos por poetas populares, mas por estudantes universitários, de curso médio ou por intelectuais. Este, digamos, revival do cordel o fez deixar de ser um reduto exclusivo dos marmanjos. São raríssimos os folhetos de feira, em sua fase de apogeu, assinados por mulheres. Também há pouquíssimos cordelistas que vivem de sua arte, como acontecia até, mais ou menos, no início dos anos 1980. “O povo não lê mais cordel, que virou coisa para turista ou pra ser estudada na Sorbonne, e não era esse o público do cordel. É como me disse uma vez o pretinho João Vicente Emiliano, ‘Doutor, folheto é pra gente baixa e cabra safado’. Com isto ele queria dizer que o folheto era pro povão”. O comentário é do dentista e mestre (com diploma conferido pela gente baixa do Nordeste), Liêdo Maranhão. Segundo ele, a maioria dos grandes folheteiros já morreu: “E mesmo que estivessem vivos. Não existe mais lugar pra se cantar folheto. A praça do mercado não existe mais, não tem lugar com árvores que dê sombra pro folheteiro. Tinha um folheteiro que fazia a rota do Ceará, que me dizia que vendia fácil 300 folhetos numa lida, que era como eles chamavam a declamação”, continua Liêdo Maranhão, que não gosta do termo “cordel”: “Um dia cheguei na praça e Olho de Gato, o folheteiro José Severino dos Santos, me perguntou o que era literatura de cordel, e me disse:

‘o pessoal chega aqui procurando cordel e como eu não vendo, acabam comprando mesmo é meus folhetos de feira’”. Guriatan do Norte, 52 anos de poesia popular, escreveu o primeiro folheto em 1960, O ataque da carestia. Ele não apenas escrevia como revendia folhetos de outros poetas, ofício que abandonou há mais de duas décadas. Continua na poesia, como repentista. “Vendi folheto durante 20 anos nas feiras, rodei este Nordeste todo, mas veio a televisão e desvendou o mundo por dentro e por fora. Hoje o poeta não pode mais inventar o trancoso, como José Pacheco fez com A nega dum peito só. Chegava à feira por volta das três da tarde e saía de lá umas seis horas. Eu ganhava mais vendendo folheto do que ganho agora com cantoria. Hoje o folheto está fora de linha, ninguém compra mais. Tem uns estudantes aí que ainda fazem folheto, mas é para vender aos colegas deles”, analisa o poeta popular. Cordel virtual, obviamente, obedece à métrica nos versos, só não tem mais nada a ver com o folheto de feira. Uma literatura que possuía uma função social, e não apenas a de informar, como é tão enfatizado, porém muito mais de divertir. Alguns intelectuais até fazem bom uso do gênero, como Bráulio Tavares, por diversas vezes, Ariano Suassuna, Domingos Alexandre (autor de um divertido encontro de Ariano Suassuna com Michael Jackson em Taperoá), ou mais recentemente Moraes Moreira, que contou a história do grupo Novos Baianos em formato de cordel. Porém aí é um trabalho conceitual, que não cumprirá evidentemente o objetivo que o folheto cumpria quando era praticamente a única literatura a que um imenso contingente de nortistas e nordestinos tinha acesso. Mundo Moderno O povo lia muito folheto de feira, a exemplo do clássico A donzela Teodora. Ou ouvia, porque eles eram concebidos para serem declamados em voz alta (muitos se perpetuaram nos “causos” contados por poetas matutos, dos quais um dos que ainda conserva o estilo antigo é o paraibano Chico Pedrosa). Folhetinistas partiam do Recife, durante muitos anos o principal centro deste tipo de literatura (aqui, por exemplo, morou e trabalhou durante anos o lendário Leandro Gomes de Barros), viajavam com alguns milhares de exemplares, pelos estados da região, e às vezes até do Sudeste, e voltavam de bolsos cheios e malas vazias. No entanto, tal como outras manifestações culturais congêneres, os que se sustentavam com esta profissão foram desaparecendo à medida que o progresso ia modificando hábitos e costumes. Os fatores que contribuíram para o fim do camelô da poesia podem ser resumidos em duas palavras: mundo moderno. Em entrevista ao programa A voz do Sertão (na Universitária AM), da jornalista Roberta Clarissa Leite (transcrita no livro A voz do Sertão – um desafio no repente, da mesma jornalista, Edições Bagaço, 2008), o citado declamador Chico Pedrosa, que começou na poesia popular com um folheto de feira, comentou sobre a atual produção de cordéis:

Cordel virtual, obviamente, obedece à métrica nos versos, só não tem mais nada a ver com o folheto de feira


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flávio pessoa

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porque acha bonito e quer dizer alguma coisa, e diz em versos que você chama de cordel. E quando vai analisar, às vezes não tem uma estrutura, porque o cordel tem uma estrutura básica. Se ele é sextilha é todo em sextilha. Se você vai para setissílabos ele vai para setissílabos, se é em décimas, ele preserva também esta mesma estrutura de estrofes, também com a mesma quantidade por páginas e uma quantidade de páginas. Hoje o cara escreve um cordel com 10 estrofes, outra com 15, mais uma estrofe de 7 sílabas, outra com 15 versos. Uma rima de um jeito e outra de outro. Mas ele de certa forma bota dentro do papel do tamanho de um cordel e diz que aquilo é cordel. Tem, na verdade, uns cordéis que são metrificados mas fica faltando a sensibilidade poética”.

“Levaram o cordel para a escola, mas nem todos os alunos nasceram para fazer aquilo. Uns fazem por vaidade, outros fazem por capricho, outros fazem mesmo por teimosia, mas tenha paciência. Vamos escrever devagarzinho, vamos escrever aos poucos, uma estrofe hoje, outra amanhã. Não é obrigado fazer 10, 15, 20 estrofes num minuto. Quem faz isto é violeiro, porque é obrigado, tem o tempo que urge rápido. O cordelista não. Veja os cordelistas do passado. Meu pai do céu! Era uma coisa impressionante. O José Camelo de Melo Resende, lá da minha Paraíba, Manoel Camilo dos Santos, Manoel Pereira Sobrinho, o próprio Leandro Gomes de Barros. Nem falo de João Martins, porque ele não escreveu, só editou, e muitos outros que a gente conhece, pelo amor de Deus, são muito melhores”. Da mesma entrevista participou o repentista Antonio Lisboa, que também deu sua opinião sobre a nova onda do cordelismo: “Você faz um cordel

O folheto do passado tinha sua pureza, mas não era imune à mídia da sua época, nem se preocupava com suas raízes

cordel universitário Já Liêdo Maranhão, possuidor de uma imensa coleção de folhetos, é mais enfático ao criticar o “cordel universitário”: “Uma vez o poeta Antonio Desterro chegou pra mim e comentou que este pessoal de hoje pensa que o folheto é feito hemorróida”. Para o cordel virtual a expressão que Liêdo emprega é curta e grossa: “Aí é uma merda”. O folheto do passado tinha sua pureza é certo, mas não era imune à mídia de sua época, nem tinha grandes preocupações com as tais raízes hoje tão cantadas e decantadas. No importante O folheto popular, sua capa e seus ilustradores (Editora Massangana, 1981), Liêdo Maranhão põe por terra muitos mitos do folheto. A xilogravura, que é tida como elemento intrínseco do gênero, só passou a predominar nas capas no final dos anos 40 (surgida, segundo Liêdo, na região do Araripe cearense, no Crato e Juazeiro. Sem nenhuma ligação com o que se fazia semelhante na Europa na Idade Média). Com o passar dos anos, tornou-se mais rentável para os cordelistas, a exemplo de J.Borges, o comércio da xilogravura do que dos folhetos. Os folhetos mais antigos são os chamados “sem capa”. O termo não significa que não tivessem capa. E que nelas não se imprimiam ilustrações, mas informações básicas: título e nome do autor, preço, endereço da tipografia etc. Os de Leandro Gomes de Barros e João Martins de Athayde em grande parte são “sem capa”. Antes da xilogravura, a forte influência do cinema na cultura de massa levou folheteiros a colocarem estrelas de Hollywood nas capas dos livros. Na coleção de Liêdo Maranhão há vários folhetos com tais capas com imagens de celebridades, entre esses, O filho de Ali-Babá (Manoel Pereira Sobrinho) ilustrado por Marlon Brando (no personagem do imperador Júlio César). Já Rita Hayworth está na capa de Os sofrimentos de Rosa na rua da perdição (Cícero Vieira da Silva). Para vender sua mercadoria, o folhetinista tinha não apenas que dizer bem seus versos, como igualmente criar um título atraente. Não apenas isso. Ele precisava ter mercadoria variada, portanto, criava histórias para todos os públicos. O assunto podia ir do mais paroquial, uma barragem que estourou numa cidadezinha do interior, quanto a um conflito internacional. Por vezes uma história que lhe foi contada por terceiro virava um romance. O poeta Moisés Matias de Moura é autor de um intitulado Amor demais também mata como matou Nisa Felix Rodrigues. O que se perdeu também com o fim dos folhetinistas populares foi o nonsense de alguns títulos. Os


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Maria Alice Amorim

RepRoDUÇÃo

É preciso rediscutir o que é cordel

antigos cordelistas não seguiam as regras da construção das frases dos chamados poetas de gabinete. Em seus folhetos estão contidos valores, preconceitos, conceitos e, sobretudo, a forma inculta de escrever, de quem poucas vezes esquentou carteira de banca escolar. Não há melhor exemplo do que o título deste folheto assinado por Moisés Matias de Moura: História do burro que matou seu próprio dono de faca e o homem que matou a vaca e a vaca matou o homem com a mesma faca. Ou o surrealismo desse cordel de José Gomes, A discussão da gripe asiática com um atum. Os folhetinistas entendiam a fundo o povo para o qual escreviam e cantavam. Sabiam o que podia levá-lo a comprar seus trabalhos. Assim é que alguns temas foram bastante explorados. Um dos que sempre vendia bem era o desrespeito ou maus tratos a pai ou mãe. Portanto, os filhos desnaturados foram prato cheio para os folhetinistas do passado. Eis alguns dos títulos de folhetos que abordam o assunto: A filha que matou a mãe e virou bruxa e vampiro (Gerson Araújo Lucena), O filho que deu no pai e mordeu na cara da mãe (José Costa Leite), O encontro do filho que deu na mãe com o lobisomem da Paraíba (Severino Gonçalves de Oliveira), A história do filho que deu na mãe com um quarto de bode na sexta-feira da Paixão (Manoel Apolinário Pereira). Embora Lampião e Padre Cícero, sejam temas recorrentes, há muitos outros criados no próprio meio, como a citada Nega do Peito Só que inspirou mais de um poeta: José Pacheco, com Mamadores da nega dum peito só, José Costa Leite, com O encontro de Lampião com a nega dum peito só e com Encontro da negra do penteado com a negra dum peito só. Há até um Encontro da negra dum peito só com a perna cabeluda. AutorreFerentes Os atuais cordelistas, em sua maior parte, fazem cordéis que circulam entre eles mesmos, em suas associações, ou são complementos de discos, livros. Escrevem em bom português. Vários são bons poetas de bancada, mas os assuntos são sempre relevantes, os títulos com lógica cartesiana. Pouquíssimos aproveitam assuntos triviais, feito o sucesso musical do momento, como o fez Joaquim Luiz Sobrinho com Peba na pimenta, de João do Vale, no folheto: A dança malassombrada com seu Malaquia e Maria Benta. O mesmo Joaquim assina o folheto As proezas de Amélia que é mulher de verdade. O poeta Manoel Moraes, no início dos anos f70, aproveitou o sucesso de Eu não sou cachorro não, e escreveu o folheto Discurção (sic) de um cachorro com Waldick Soriano. Compare-se estes ao paupérrimo The Beatles, folheto sobre o grupo de Liverpool, assinado por J.Victtor, divulgado na home page da ABLC. Os folhetinistas passavam por longe do politicamente correto, e qualquer assunto que pudesse render versos e dinheiro era com eles. Impensável num cordelista universitário um folheto com o pantagruelesco título de A menina que nasceu em Minas Gerais com 4 olhos, 2 bocas, 2 ventas, 4 orelhas e 10 dedos em cada mão. Ela viveu 48 horas e falou, escrito por Gilberto Severino Francisco. É dele também este outro: O grande exemplo da criança que nasceu com a cabeça de 3 quilos e falou 40 minutos. O cara sabia como fazer um título que atraísse leitores, como ratifica este folheto dele: A história da menina que matou a mãe para gozar de outro homem e foi o crime descoberto por um papagaio. Quem não se interessaria por um livrinho com um título desses?

Chega de chamar de cordel todo poema que apenas esteja escrito no modelo de formas fixas adotado tradicionalmente pelos cordelistas. Chega de considerar bom tudo o que seja autodenominado cordel. Chega de dizer que o cordel morreu, que cordel bom é o do passado. A poesia tradicional, como acontece em toda a literatura, tem sua erva daninha. E a literatura de cordel, além de não escapar dessa realidade, sofre agravantes: ao ser classificada de popular, é “premiada” com julgamento complacente e equívocos, quanto à qualidade da produção poética, e se “beneficia” de um subposto na macroprodução poética nacional. Ou seja, atrai preconceitos da onipotente cultura letrada, que desejaria conceder permissão apenas aos semi-iletrados para exercitarem o talento de cordelista, e deixa de ser apreciada pelo que realmente merece ser apreciada (aliás, é bom dizer que o poeta de cordel sempre primou pela gramática, pela escrita normatizada, desde os mais antigos registros impressos do cordel brasileiro, de que temos exemplares em acervos). Assim, o cordel ficaria, então, à mercê do julgamento paternalista de quem vê o “povo” do alto de uma supostamente superior paisagem cultural (e o binóculo está arranhado!) não fosse a atuação de poetas buliçosos que dominam a técnica, conhecem os temas, têm talento generoso na construção de imagens poéticas e integram, com legitimidade, a cena cultural em que se move o cordel. Mais: não seria bom perguntar, primeiro, o que é cordel? E o que significa “povo”, quem é esse “povo” que faz cordel, quem é o “povão” que gosta de cordel? Quais seriam, portanto,

os elementos indispensáveis à caracterização do folheto? Que requisitos indispensáveis e/ou permitidos na composição do perfil do cordelista, do perfil do leitor/ ouvinte, do perfil desse produto editorial, e respectiva distribuição, aparecem como ponto de partida sem o qual não se pode construir um discurso equilibrado, livre de passadismos e de profecias sobre a morte do cordel? Além do mais, há um complicador: o conceito de popular é uma definição problemática. Se ficarmos sempre pensando exclusivamente no cordel “histórico”, das gerações de Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde (escrevia cordel, sim!), Francisco das Chagas Batista, Delarme Monteiro, Severino Borges Silva, Francisco Sales Arêda e outros clássicos, daremos conta apenas de parte (nada desprezível, claro) desta expressão poética brasileira e deixaremos de acompanhar, com justeza e prazer, a vigorosa cena cordelística nacional, a exemplo do que vêm fazendo os poetas da União de Cordelistas de Pernambuco (Unicordel), para além do conservadorismo de associações não sintonizadas com o tempo presente, para além do ímpeto higienizador dos colecionadores de selo de pureza. E se a gente considera que a cultura é um organismo vivo, dinâmico, o cordel não estaria se saindo muito bem nesse processo adaptativo? E se a gente, invés de alardear que “a forma inculta” do cordel morreu, que o que temos agora é um cordel artificial, fosse pesquisar a produção cordelística dos atuais poetas de gabinete – quer sejam universitários, pós-graduados, secundaristas,

não escolarizados – para, de fato, conferir o legado poético contemporâneo e ouvir os próprios autores acerca da relação afetiva, social, histórica, familiar que trazem inscrita nas respectivas biografias quanto às influências dos clássicos de cordel? Não seria bom, invés de aplainar esse terreno, estudar melhor os detalhes da topografia, do relevo, das paisagens tão ricas em nuances, em complexas misturas da pós-modernidade? Não, não, o cordel contemporâneo não matou o cordel antigo. O cordel na web, as pelejas virtuais não significam outra história, outra cultura poética. O de hoje não significa, necessariamente, simples cópia, remake, degola. É cordel, sim, e o cordelista tem direito de ter diploma universitário, por que não? E se não tiver, não deverá ser esse o critério decisivo. Se o acesso à escolaridade, à universidade está ampliado, difícil aceitar que o perfil sociológico do cordelista e do leitor seja o mesmo de há 50, 100 anos. Ruim não é o cordelista ser intelectual, horrível é querer ser cordelista sem talento poético. Agora, é bom que se repita: apenas saber rimar e metrificar não garante as metáforas. Os temas, somente, também não garantem a qualidade, a fluência do folheto. Na realidade, cordel implica em um conjunto cultural que extrapola a visada apenas sociológica do fenômeno. Não deve ser reduzido a bibelô de arqueólogos da cultura, nem a objeto exótico para se cultuar em museu. Cordel, antes de tudo, é poesia, é expressão poética rica em repertórios, códigos culturais. É um conjunto articulado que maneja confluências de tradição e traduções contemporâneas. E tudo o mais é arremedo. É bom não confundir.


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entrevista

José Luiz Passos

Uma nova restauração

divulgação

Professor de Literatura da Universidade da Califórnia, em seu romance de estreia, provoca os fantasmas que atravessam a sua origem pelo interior de Pernambuco

A pergunta sobre a origem é difícil de ser evitada: de onde vem Nosso grão mais fino?

A solidão e a distância produzem demônios que são nossos vizinhos, mas que custamos a ver. A origem de Nosso grão mais fino vem da vontade de contar a história de um homem (químico de açúcar que viajava pela Zona da Mata nos anos 1930) cuja obsessão por evitar ou restaurar a superação dos seus objetos e relações leva-o a não abandonar os mortos nem os momentos de arroubo que marcaram a sua vida. Por isso, ele volta à memória do primeiro amor, da última caçada, da maquinaria de açúcar e do zepelim. Com isso em vista, baseei-me em fatos e invenções que pertencem às vidas minha, de meu pai e de meu avô. O romance nasce desse cruzamento de tempos e experiências distintas, mas que têm em comum o recurso à idealização dos fatos e o desencantamento como saldo.

Quem são Vicente Campelo e Ana Corama? Como ler essa história de desencontros?

Entrevista a Valéria Costa e Silva A introdução das usinas no século 19 obrigou os tradicionais engenhos de Pernambuco a apagar o fogo. As moendas e tachos seculares cederam lugar a sofisticadas engrenagens de ferro, a gigantescas caldeiras e a balões e tubos de ensaio, por onde corria o doce e verde sumo da cana, que em seu percurso de vidro e cobre buscava o destino da alvura. Certa época, a Usina Catende foi a maior exportadora de açúcar do país, façanha alcançada, talvez, porque o químico da empresa familiar atravessara o Atlântico na barriga de imensa baleia de prata, em busca das mais modernas tecnologias de produção do açúcar. Décadas depois restam as ruínas de um mundo dissoluto, que a memória

procura resgatar. Eis o ponto de origem e cenário de Nosso grão mais fino, romance de estreia de José Luiz Passos, professor de literatura e diretor do Centro de Estudos Brasileiros da University of California, Los Angeles. Há tempos esse pernambucano ganhou o mundo. São Paulo, Berkeley, Los Angeles, cidades onde fez pouso e ninho, embaralham-se ao Recife na geografia afetiva do escritor, que pertence a todos esses lugares e a nenhum. Assim também Nosso grão mais fino desconhece fronteiras (entre o passado e o presente, o lá e o aqui, o imaginado e o vivido). Vicente, o químico, rememora a sua vida e lambe as feridas das relações e feitos fracassados, em particular o amor incestuoso por Ana Corama. A prosa decantada, resvalando na poesia, faz desse romance uma aventura da linguagem e da sensibilidade.

O que vejo no romance é a busca de um momento ideal para os encontros: o amoroso, o familiar, o tecnológico. É claro que a vida de Vicente desmente qualquer possibilidade de redenção, pois a ele só interessa a realização desses encontros num plano quimérico ou passado. Portanto, sua busca está fadada a falhar. Isto dito, eu creio que a comunhão que Vicente e Ana encontram é efetiva e duradoura. Ela resiste ao tempo e permanece na imaginação dos amantes a partir dos monólogos de ambos, que encontram ecos entre si e resultam num diálogo impossível; um diálogo onde frequentemente a outra parte está ausente ou é invocada pelo desejo de quem está só. Ora, a reciprocidade do


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Meu romance de estreia conta com o recurso à idealização dos fatos e o desencantamento como saldo

desejo, do ressentimento e da dor, ainda que mediada pela distância, é um modo de comunhão efetiva. E essa é a história de Vicente e Ana, e dos mediadores que há entre eles: o irmão Zelino, o marido Gaetano e a criada Magda Pola.

A tessitura do tempo é uma das dimensões significativas do romance. A estrutura dual, de capítulos narrativos que se alternam com capítulos em diálogo, tendo Vicente por referência, permite ao leitor “ver” a história a partir de dentro e de fora. Essa estratégia lembra em particular Osman Lins. Ele lhe forneceu pistas a seguir para o tratamento do tempo no romance?

É verdade que leio Osman com muita frequência. Baseei-me principalmente no conto Um ponto no círculo e no romance Avalovara. Ele resolveu a questão da dicção das vozes de um modo que me impressionou. O tom se eleva e o drama das suas vidas se adensa, sem que isso implique, a meu ver, na alienação do leitor ou num gesto de elitismo cultural. Ou seja, uma prostituta entra num quarto de hotel e se despe para um músico de jazz que toca no bairro do Recife. Enquanto ela faz isso, e é observada pelo cliente, a linguagem e a consciência de ambos dão saltos que os levam a outras eras, a outras experiências. Tamanha compactação do tempo resulta numa narrativa de natureza mais lírica. Isso me seduziu e me deu uma chave. Pago um tributo a Osman, reescrevendo a cena que me deu essa chave, mas reverti a solução dele. Em Nosso grão mais fino a alternância entre as memórias de Vicente e os diálogos entre ele e Ana se estendem ao longo de quarenta anos. Como dar a essa extensão um sentido de unidade dentro de um romance de 160 páginas? A solução

que encontrei foi montar uma estrutura econômica, dual e concentrada nos momentos de crise do protagonista, que, no fundo, lambe as suas próprias feridas através da reminiscência, e inventa o que precisa inventar para tirar disso o seu consolo.

Você também já sugeriu que o romance tem uma estrutura de sonata musical. Como isso funciona?

Na alternância entres as recordações e o diálogo, um capítulo sugere um tema que então será desenvolvido pelo próximo, mas desenvolvido a partir de um formato diferente do anterior. Há também o contraponto entre as próprias vozes. Nas reminiscências de Vicente, ele quase sempre se dirige ao irmão ausente, Zelino, que o acompanha até o fim. E nos capítulos em forma de diálogo, Ana e Vicente ao mesmo tempo em que “falam” também narram um ao outro, sem que haja predominância de nenhum deles na organização da matéria. Associo esta estrutura à forma da sonata, em que o tema de um instrumento musical ou mesmo a voz dele comenta, parodia e transforma um tema ou a voz de outro instrumento. A partir desse jogo de par, é possível criar uma narrativa mais variada, tecendo o encontro e o desencontro de duas vozes e dos seus temas.

O romance possui uma estrutura tripartite, com três acidentes importantes que pontuam a narrativa: o suicídio, a caçada e a cheia. Alguma razão especial para o número três? Em um romance que tenta oferecer outra maneira de se imaginar a triangulação amorosa, o número três tem um lugar importante. Ana e Vicente recorrem ora a um duplo, ora a um voyeur e também a um mediador

como forma de potencializar o desejo. Os observadores reais e imaginários dessa ligação impõem justamente o tabu que fortalece e distende a relação. Por isso, os amantes, mal ou bem, estão sempre diante de alguém. Em cada um desses instantes de crise (no suicídio, na caçada, na cheia) há o confronto com um dos observadores ou intercessores: o pai, o irmão, o marido etc. E no momento mesmo em que eles se diluem, Vicente arma outro tabu ou desata mais outra fantasia buscando uma quimera passada, querendo encontrar nesses instantes a reparação do arroubo ou o restauro do próprio tabu.

A literatura nordestina dos anos de 1920 e 1930 registrou a ruína e a nostalgia do engenho, sobrepujado pela “moderna” usina. Nosso grão mais fino redireciona esse olhar nostálgico na medida em que se refere ao esfacelamento do mundo da usina. Você está reinscrevendo a relação entre tradição e modernidade no âmbito de nossa tradição literária? É uma pergunta difícil. O que posso dizer é que não tive a intenção de escrever um romance-tese nem um estudo sociológico da região. Aos poucos, lendo e ensinando José Lins do Rego, me veio uma sensação de que a exclusiva representação do velho engenho como lugar ou objeto para o qual converge o sentimento nostálgico traduzia uma visão que era ao menos parcial. A velha super moderna usina falida produz, ela também, um repositório de mitos sobre a idade de ouro, o fausto, a queda, a degradação do caráter. Então por que isto está fora do nosso panorama literário, se é algo que nos toca? Busquei retratar um aspecto desse mundo, mas quis que a ênfase do romance recaísse numa tentativa de recuperação do passado através

A velha supermoderna usina falida produz um repositório de mitos sobre a idade de ouro

do reencantamento amoroso e triangular. O tema é velho. As vozes são outras. Espero que o resultado seja novo.

Vicente, o protagonista do romance, é um químico que se ocupa da depuração da matéria. A condensação, a decantação, a transmutação são também procedimentos alquímicos. O labor de Vicente é uma metáfora do fazer literário? Chegar ao grão mais fino é uma obsessão que Vicente compartilha com o escritor? Sem dúvida. Transformar o dado vivido, evocado, lido em outro lugar ou escutado da boca de alguém é um processo de transfiguração do eu e dos outros. Por isso, a invenção parte sempre do concreto e tem por fim a expectativa do concreto transformado, imaginado pelo autor e pelos leitores. Vicente está consciente deste fato. E eu próprio fiz disso o meu motor. A obsessão com a restauração do passado e com a transmutação da matéria presente animou as páginas de que mais gosto no romance, e creio que também anima o foco da imaginação do meu narrador. Aos olhos de Vicente, certos papéis se misturam enquanto os amantes compartilham a morte dos pais, sentem pena um do outro, sublimam suas ladainhas através das estórias que vão criando e, finalmente, diluemse quando pressionados por um obstáculo que eles julgam intransponível. O modo como lidam com isso é remoer a matéria passada e tirar daí o combustível da imaginação.

Nosso grão mais fino reescreve várias páginas antológicas da literatura brasileira, como Missa do galo, de Machado de Assis. Trata-se de um tributo a suas fontes? Seria também uma estratégia para lidar com a ansiedade da influência, a que se refere Harold Bloom?

Depois de lerem o romance, alguns escritores que conheço, como Francisco Dantas, Álvaro Cardoso Gomes e Milton Hatoum, me escreveram comentando que ali havia um quê de Machado de Assis e de Osman Lins. O comentário era um elogio e, ao mesmo tempo, uma precaução. Deixei, sim, que Nosso grão mais fino entrasse em diálogo com várias cenas que carrego comigo e que são parte de uma antologia pessoal. Creio que todo escritor faz isso. Alguns deixam o contato mais visível ou fazem do jogo de alusões e citações a própria matéria de sua arte. No meu caso, na medida em que transformava memórias minhas e de outras pessoas em pedaços da vida de Vicente, acabava evocando certas analogias com meus livros preferidos. Sem copiar esses autores diretamente, ou tornar essa afiliação ostensiva, permiti-me fazer com que esses modelos dessem forma à imaginação do meu narrador.

O que mais o agrada em Nosso grão mais fino?

Gosto do que mais de me deu trabalho: a linguagem que Vicente usa para expressar o êxtase que é enfrentar-se ao arroubo amoroso ou à falência moral e física, a sua e a dos seus. Trabalhei muito para fazer com que a forma de sua expressão casasse com o conteúdo expresso. Portanto, deixei que o próprio Vicente se encantasse com as imagens que criava e cultivasse uma dicção entre a oralidade da reminiscência e a poesia do colóquio amoroso. Essa fala de Vicente e o modo com Ana o repreende, provoca e abate, me agrada bastante. Mas aqui sou um leitor como qualquer outro. Posso estar vendo o que de fato nem está ali; posso estar vendo um pedaço de mim, que tentei colocar em Vicente e que só eu consigo enxergar.


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descanse em paz

Sobre o desejo nos tempos da “peste gay”

Romance de autor francês descreveu o pânico que a Aids causou nos anos 1990 Thiago Soares

A Pont Neuf em Paris era o palco onde os personagens de Noites felinas viviam suas aventuras sexuais

Tenho a ligeira impressão de que, nos anos 1990, estávamos em busca de dizer a verdade. Qualquer que fosse. Que o Brasil tinha jeito, que a ditadura tinha ido embora, que o samba era a nossa RG, que o estrangeiro podia vir, sem medo. De tanto querer dizer a verdade, a literatura escrita nesta época acabou virando meio diário, uma antecipação do discurso dos autores dos blogs dos anos 2000, uma retomada de Clarice Lispector, dos existencialistas. Assim, com a euforia da abertura política, os anos 1990 viram também os primeiros casos midiáticos de Aids. Nos jornais, manchetes alertavam para o “câncer gay”, a “peste gay”. Héteros se sentiam ilesos, “isso não vai acontecer comigo”. Casos notórios chegaram à opinião pública: Cazuza, Freddie Mercury, Caio Fernando Abreu, Rock Hudson, Lauro Corona. Apareceu também Henfil, que era hemofílico. “Doença do sangue ruim”, chegaram a escrever. E foram embora mulheres: Sandra Bréa, Cláudia Magno. A doença chegou ao jogador de basquete, casado e heterossexual, Magic Johnson. Sinal de alerta redobrado. No fundo, acho que a Aids foi o primeiro grande medo da mudança do século. Vislumbrar o fim da vida, olhar para o corpo com uma data de validade. Alguns relatos foram produzidos na literatura. Muitos, tendo a doença como pano de fundo (li numa crônica, agora me falha a memória, que dizia que a literatura sempre foi meio hipocondríaca: adora o pretexto de uma doença para gerar histórias). O professor de Literatura Marcelo Secron Bessa escreveu dois livros importantes analisando a presença da Aids na literatura: Histórias positivas e Os positivos. Não vou aqui me ater a discutir este legado, mas sim, lembrar como um determinado tipo de relato sobre a Aids se encontra datado, com prazo de validade vencido, tal qual a fatalidade de um corpo infectado. Trato de Noites felinas, de Cyrill Collard, um dos livros mais cultuados no meio dos anos 1990. É a história do personagem Jean, que se apaixona pela jovem Laura e precisa contar a ela que está contaminado pelo vírus HIV. Ao invés de acabar o relacionamento, para surpresa de Jean – e do leitor –, Laura decide transar com ele sem preservativo. O livro emula, então, todo o ideal de amor romântico perdido no meio do caminho, entre separações por causa de guerras, fatalidades do destino e amores proibidos: Laura ama tanto Jean que é capaz de se infectar e morrer por causa dele. Romeu e Julieta numa Paris de pegação sob a Pont Neuf, de gelo seco em boates GLS (o termo é bem anos 90) e de apartamentos com poucas mobílias e colchões no chão. É assim, num colchão no chão, que Jean e Laura fazem amor sem proteção. É ali que residia o nosso medo de amar n° 1: sentimento de finitude por outrem, suicídio, voluntariado de amor impossível. Morrissey ecoando: “To die by your side, the privilege is mine”. Eu era um estudante de jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco quando levei para a aula meu Noites felinas. Havia algo de transgressor naquele livro: ele parecia sinalizar que eu tinha a bússola das novas formas de amor contemporâneo. Bissexualismo, fatalidade, camisinha, acaso. Tudo junto, uma maneira de entender os amores líquidos que Zygmunt Bauman falaria anos e anos depois. Lembro de Noites felinas ser meio que classificado como um livro “urgente”, “necessário”, “para entender os novos tempos”. Enquanto a vida transcorria e o livro trazia aquela história, a Aids mudava de rosto, ganhava novos contornos, alguns paliativos. De sentença de morte, a doença passou a ser um adiantamento das coisas. Como se, para o infectado, a vida corresse em alta velocidade.

Do alarde daquela capa da Veja que dizia “Cazuza agoniza em praça pública” para a virada do século, em menos de 10 anos, muita coisa foi mudando. Fomos conhecendo pessoas com HIV, convivendo com elas. Uma amiga minha que mora em Nova York me disse, certa vez, “todos os meus amigos de lá têm Aids, eles tomam seus remédios, se cuidam, não fazem tantas estripulias”. Num congresso sobre estudos da homocultura, me deparei com um casal soropositivo: vida regada a baladas, shows de divas e coquetéis de medicamentos. E, então, neste ano, o Ministério da Saúde faz campanha de alerta da Aids entre idosos ou “pessoas da melhor idade”. Resultado pós-Viagra. A doença deixou, há muitos anos, de ser “peste gay”, cadeira elétrica. Passou a estar perto de nós, em amigos vivos que produzem, escrevem, dão consultas e tomam seus comprimidos nos intervalos. Gente que, assim como se controla a diabetes, monitora a sua carga viral. Releio, então, Noites felinas e vejo o sintoma de uma época tatuado naqueles personagens “loucos e transgressores”. Obviamente, seria irresponsável afirmar aqui que a camisinha é inteiramente disseminada entre os sexualmente ativos. Não é. E há ainda aquela metáfora rasteira, mas extremamente eficiente, transformada em máxima, de que “transar com camisinha é comer bombom com a embalagem”. No entanto, vemos gerações que nasceram obrigadas a comer “bombom com embalagem”, para quem o bombom, aliás, já vem com o gosto da embalagem. E ouvimos, na música popular, versos de uma pedagogia para o povão que ensina a sentar no que é menta e a chupar o que é de uva. Tenho a tendência a superinterpretar tais máximas, mas, a meu ver, pode-se estar falando, sim, de preservativos. É por estes muitos motivos que Noites felinas, me parece, perdeu a sua urgência. Não explica mais o nosso tempo. Os vírus mudam, as nossas respostas também. Vemos surgir novas epidemias. Leio que, hoje, no Brasil, são mais de 1,5 milhão de HIV positivos. Inúmeros, como mutantes, X-Men ou gente diferente, fazem sexo, inclusive, como muitos de nós, com preservativo. Porque viver, talvez, não seja apenas aguardar o dia que o elevador chega e nos leva para a cobertura. Mas, sim, assumir um pouco a veia de ascensorista. E ir subindo: andar por andar.

ONDE ENCONTRAR? Em tempos de revival dos anos 1990, o best-seller de Cyrill Collard ainda não foi resgatado. Dramático, ele prova que cada época tem sua complicação amorosa. A obra tem edição da Brasiliense (R$ 40,90).

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fora de catálogo

A mulher que comeu de tudo MFK Fisher fez da literatura uma receita saborosa Renata do Amaral

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Num país onde o interesse pela gastronomia cresce a olhos vistos, é curioso que os dois livros da escritora americana MFK Fisher lançados pela Companhia das Letras – Como cozinhar um lobo e Um alfabeto para gourmets – estejam esgotados e sem previsão de relançamento. Dá para dizer, sem medo de cometer qualquer leviandade, que ninguém escreveu tão bem sobre comida quanto ela, cujo centenário de nascimento foi comemorado no ano passado. Hummm... Mas dá para fazer literatura de verdade quando se escreve sobre comida? “As pessoas me perguntam: Por que você escreve sobre comida, e comer e beber? Por que você não escreve sobre a luta por poder e segurança, e sobre amor, como os outros fazem? Elas perguntam isso me acusando, como se eu fosse, de alguma forma, inaceitável, infiel à honra do meu ofício”, reclamava a própria MFK, em seu The gastronomical me. E ela mesma responde: “A resposta mais fácil é dizer que, como a maioria dos outros humanos, eu tenho fome. Mas há mais que isso. Parece-me que nossas três necessidades básicas, de comida, segurança e amor, são tão misturadas e combinadas e intrincadas que não podemos verdadeiramente pensar em uma sem as outras. (...) Há uma comunhão que vai além dos nossos corpos quando o pão é repartido e o vinho bebido”. Há que se levar em conta que ela era de uma época em que, por ser mulher, tinha que assinar seu nome pelas iniciais para ser aceita no meio literário. Mary Frances Kennedy Fisher nasceu em 1908, em Michigan, e logo se mudou para a Califórnia. Filha de um jornalista, foi colaboradora do New York Times por quase seis décadas e da revista Gourmet. Escreveu quase 20 livros, sempre usando a comida como linha condutora de suas memórias afetivas. Mesmo quando discorre sobre aspectos históricos da alimentação, como em seu livro de estréia Serve it forth (1937), MFK dá um jeito de encaixar suas lembranças gastronômicas. A vida cotidiana foi o foco dos escritos de MFK, que acabou dizendo muito sobre a conexão entre comida e cultura no contexto de sua época. É curioso perceber que ela mal menciona o preparo dos pratos, apesar de ser conhecida por jantares memoráveis. A alimentação que a interessava estava na sala, não na cozinha. Sua paixão era mais o comer do que o cozinhar – e mais ainda o comer junto. solidão em boa companhia A refeição solitária, porém, não deixou de ser mencionada pela autora, para ressaltar a importância do teor afetivo e social da refeição compartilhada, vista como algo quase sacralizado: “Antes só do que malacompanhada. É o que acho, se for o caso de escolher entre estar com a maioria das pessoas que conheço e estar comigo apenas. Não me orgulho dessa atitude misantrópica, mas a mantenho com firmeza, baseada na convicção cada vez mais arraigada de que não se pode tratar levianamente o ato íntimo de compartilhar o alimento com outro ser humano”. A vida da autora, por si só, renderia assunto para diversas obras. Aos 21 anos, em 1929, casa-se com Alfred Young Fisher, que havia conhecido na Universidade da Califórnia, e o casal mora durante três anos na França, onde o rapaz cursa doutorado em Literatura na Universidade de Dijon. Um amigo de ambos, o pintor Dillwyn Parrish, ajuda-a a publicar seu primeiro livro e termina se tornando o segundo marido da escritora, em 1935. Sofrendo de uma grave doença circulatória, Parrish se mata com um tiro em 1941. Casada pela terceira vez em 1945, com o editor Donald Friede, MFK viria a dizer numa entrevista ao New York Times, já no fim da vida, que não gostava de casamentos. De fato, separou-se de Friede em 1949 e não mais voltou a casar. Teve duas filhas. Escrevia compulsivamente e fazia isso muito bem. O poeta W. H. Auden dizia que ninguém nos Estados Unidos escrevia melhor do que ela. Bem acolhida pela crítica, só foi alcançar sucesso de público no fim da vida. Morreu aos 83 anos, na Califórnia, em 1992, depois de anos de convivência com o mal de Parkinson. Um ano antes, entrou para a Academia Americana de Artes e Letras (American Academy and Institute of Arts and Letters). Era a redenção necessária para quem passou décadas sendo julgada por escrever sobre um tema tido como tão banal como a comida. Apesar do seu envolvimento e entusiasmo pelo assunto da alimentação, não se pode classificá-la

como uma simples food writer, como se convencionou chamar em inglês os autores que escrevem sobre o assunto. A comida era uma metáfora cultural usada como mote em seus ensaios pessoais. Do deslumbre inevitável do primeiro contato com a cozinha provençal na juventude à escassez dos dias difíceis da Segunda Guerra Mundial, fica claro que há muito mais do que culinária em suas linhas. Engana-se quem pensa que gastronomia rima com esnobismo nas letras de MFK. Ela passeia desenvolta tanto por momentos de crise durante a guerra – “Há momentos em que dicas úteis sobre desligar o gás enquanto não está em uso são ridículas, porque o gás foi desligado permanentemente, ou até que você pague a conta. E você não se importa em conhecer o truque de manter pão fresco pondo uma maçã cortada na embalagem do pão, porque não tem pão nenhum e muito menos uma maçã, cortada ou inteira” – quanto por cruzeiros requintados e aborrecidos, sempre com muita ironia – “Eu odiava chá, tango e, um pouco menos, as mulheres letais, preferindo por isso ir ao cinema, onde assistiria preguiçosamente às eternas seduções cinematográficas, bebericando um suave Pernod com água”. O prazer à mesa pode beirar a glutonaria, que ela defende com vigor, mas só às vezes. “Recuso-me a crer na existência de um único ser humano que não possa confessar, a si mesmo pelo menos, que em uma ou duas ocasiões empanturrou-se a ponto de explodir com uma coisa qualquer, de codorna financière a panquecas, pela única razão de satisfazer bestialmente seu apetite”. Entre um e outro capítulo, vez por outra oferece receitas, que podem ser de um quase pré-histórico molho garum, datado de 400 a.C., com vísceras de peixes salgadas e apodrecidas, ou de um patê com faisão, codorna, pato, lebre, porco e vitela com um toque de trufas, com um providencial “se possível” entre parênteses. Há quem diga que MFK criou um novo gênero ao colocar a comida como pano de fundo para falar de memórias afetivas e relações interpessoais. Exagero ou não, não se pode negar que seu estilo sagaz e irônico serve de inspiração até hoje para quem escreve sobre o tema. Que o diga a cronista Nina Horta, da Folha de S.Paulo, que escreveu na orelha de Como cozinhar um lobo: “É despretensioso, espontâneo e ousado. A autora estava anos-luz à frente de seu tempo. Ainda não apareceu, depois dela, nada tão original nas letras culinárias”. MFK também traduziu o clássico da literatura gastronômica francesa Physiologie du goût (A fisiologia do gosto), considerado o primeiro livro a definir o que seria o que nele se chama de ciência da gastronomia, mas que ficou mais conhecido pela listinha de aforismos, como aquele que diz que “a descoberta de um novo manjar causa mais felicidade ao gênero humano do que a descoberta de uma nova estrela”. Para quem gosta de boa literatura e boa comida, já passou da hora de descobrir MFK.

MFK Fisher elevou a escrita sobre gastronomia ao patamar de obra artística


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enSaio

Identidades em corpos abandonados

Autores ficcionais criam um mundo de estratégias políticas e artísticas luiz Carlos Pinto

Imagine uma exposição onde as obras são flores e vegetais carbonizados e que isso representasse o equilíbrio entre a vida e a morte. Ficou difícil? Pode até ser, mas, ousado como é, o artista plástico japonês Souzousareta Geijutsuka não se intimida com o estranho (sic). Tudo, aliás, é bem moderno aos olhos de sua arte. Usar e abusar da tecnologia e da ciência é sua marca, e transformar o que – nem de longe – parece arte, em arte, se tornou uma característica. Souzousareta chega a Fortaleza hoje, às 22h, para apresentar sua mais recente mostra intitulada Geijitsu Kakuu, que acontece dentro do projeto Artista Invasor, do Museu de Arte Contemporânea do Ceará. A exposição de Souzousareta busca a harmonia entre a natureza que nasce e morre, empregando equipamentos tecnológicos, para abordar a discussão em torno da fragilidade da vida e suas conseqüentes contradições. O artista conquistou fama mundo afora, exatamente por elencar assuntos tão distintos, como: arte, ciência e tecnologia em suas exposições. Souzousareta desenvolve pesquisas na Eletrônica e Telecomunicações, isso aliado aos conceitos de tempo real, simultaneidade, supressão de espaço e imaterialidade. O uso de objetos e tecnologias tão ousadas são influências da “desmaterialização” dos anos 60/70. “Esse fenômeno, com abandono do ‘objeto de arte’ por muitos artistas, deu lugar a uma variedade e uma multiplicação de usos mediáticos”, explica.

Esse é o início da reportagem que O Povo, jornal cearense, publicou no dia 9 de janeiro de 2006. Com o título “Desconstruindo a arte”, prossegue por mais um parágrafo e inclui serviço (horário de abertura da exposição, endereço, preços, telefone para informações...). No mesmo dia, seu concorrente, o Diario do Nordeste, publicou uma entrevista por e-mail com o artista japonês Souzousareta. Souzousareta Geijutsuka, do japonês para o português, significa “artista inventado” e o nome da exposição Geijitsu Kakuu traduz-se por “arte e ficção”. Na verdade, o artista japonês, sua exposição e “todo o conteúdo explicativo” do release enviado (e copiado) aos jornais podem ser considerados um grande trote aplicado por Yuri Firmeza, artista plástico da capital cearense. Na entrevista que concedeu ao O Povo, aliás, o único jornal a reconhecer que fora pego no trote, Yuri dizia que o suposto artista japonês não era nem um pseudônimo nem um personagem. “Ambos são o meu trabalho, que basicamente procura

questionar as regras do jogo que movem o campo da arte contemporânea”, dizia. Foi também a forma encontrada para protestar contra o desprestígio dos artistas de Fortaleza na programação do Museu de Arte Contemporânea do Ceará: “Na verdade, não se trata de uma crítica à arte contemporânea em geral, mas sim de revelar nas entrelinhas como se estrutura o sistema que vai desde museus, galerias e bienais até curadores, críticos de arte e imprensa. Esses elementos acabam legitimando a arte de tal forma que, para se criar um artista hoje, não se leva mais em conta apenas o estético, mas sobretudo fatores mercadológicos. Boa parte da produção contemporânea se submete a isso”, afirma. O que Yuri fez não é novo, mas é mais que uma brincadeira irresponsável. Está entre as táticas com mídias que desde a década de 1990 vem se sofisticando e se multiplicando, e que são amparadas pela ideia de produção criativa de mitos (mitopoiesis). O alvo dessas intervenções táticas podem ser, inclusive, a própria mídia corporativa, grandes indústrias que tenham cometidos delitos ambientais ou trabalhistas, políticos corruptos, o monopólio dos meios de comunicação – elementos aliás abundantes na realidade social brasileira. Quase sempre, entretanto, as intervenções fazem uso do potencial da própria mídia corporativa para revelar o que há de ridículo no modelo de produção de informação, cultura e conhecimento pelas empresas de comunicação. Mas tais táticas incorporam outras questões, como, por exemplo, os questionamentos em torno da legitimidade de autoria, da originalidade, da identidade e da individualidade. Ora, essa mesma problemática tem sido objeto de discussões na seara da literatura. Para Barthes, a morte do autor é um efeito da emergência do texto moderno e do “renascimento do leitor”, em quem se cristaliza e se confundem os papéis de produtor e de receptor (A morte do autor, Rumor da Língua, 1988). A história está impregnada de grandes obras para as quais o autor ou é coletivo, ou é improvável (e aí criatura e criador se fundem) ou é indesejado. Aqui, a história é pródiga. A começar por dois dos principais textos do Ocidente, a Bíblia e a Odisséia são resultado de criações coletivas, de recombinações de textos, histórias orais, concepções, experiências, interpretações assimiladas. Como observa Pierre Levy, na tradição judaica, dada interpretação de um


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Fernanda didini

doutor da Lei não possui verdadeira autoridade a não ser quando se torna anônima: “O maior feito do sábio consiste em não mais ser citado nominalmente, e, portanto, em desaparecer enquanto autor, para que sua contribuição se funda e se identifique com o imemorial da tradição coletiva” (Cibercultura, 2003). A existência de simulacros autorais, como do artista japonês acima, se alimenta na produção criativa de mitos (mitopoiesis), como já afirmado. A existência do autor da obra não é o mais importante, mas a sua mítica e sua produção. Para Pierre Levy, isso é típico das sociedades onde o principal modo de transmissão dos conteúdos culturais explícitos é a palavra falada. Nesse caso, os mitos, os ritos, as formas plásticas ou musicais tradicionais não se associam a assinaturas e, sim, a autores míticos. Nesse caso, o que toma proeminência é a ideia de intérprete, na forma de artistas, cantores, bardos, contadores, músicos, dançarinos, artesãos etc. originalidade num mundo digital Mas acontece que não vivemos em uma sociedade oral. Também acontece que o questionamento da autoridade que se convencionou associar ao autor, tomado como “a concepção de uma fonte autônoma” (Raymond Williams, Cultura, 1992), nem se restringe à literatura nem pode, muito menos, ser explicada pela autonomização do leitor. É que os questionamentos em torno dos conceitos de originalidade, propriedade, autoria e autenticidade têm progressivamente encontrado terreno fértil num ambiente em que a relação entre tecnologias digitais, produção cultural e posição política intercedem, também progressivamente, nas formas de produção e consumo de informação, cultura e conhecimento de uma forma geral. É este caldo que tem tornado possível a criação de simulacros autorais, avatares de identidade, numa perspectiva potencializada em relação às experiências já historicamente conhecidas. O próprio Levy dá a pista: (a existência d)o autor como certidão de nascimento e um nome inscrito no documento, endereço, CPF, currículo Lattes e uma assinatura marcante asseguram a totalização da obra, as condições de uma compreensão globalizante dela e uma estabilidade de sentido. O autor como fiador de sentido. Mas o que acontece quando as condições da produção cultural requerem a dispersão de sua

O que você está consumindo agora pode ser apenas mais um simulacro autoral. Isso faz alguma diferença para você? identidade (inclusive geograficamente) e não a identificação do autor (inclusive enquanto ente físico)? O que acontece quando essas condições requerem e permitem que a arte transceda sua determinação social e se emancipe via discurso e comportamento, como queria Marcuse? O que acontece enfim quando o mito é apropriado como agente de denúncia das práticas do sistema de comunicação (em particular) e de dominação (em geral)? Quando isso acontece nascem corpos sem órgãos: Luther Blisset, Vitóriamario e Wanderlyne Selva no Brasil, Wu Ming, Souzousareta Geijutsuka... A trajetória de cada um deles requereria análises separadas. Vou ficar com Luther Blisset por ser exemplar do que está sendo dito aqui. Ele é um pseudônimo multiuso, uma reputação aberta, adotado de modo informal e compartilhado por centenas de artistas e agitadores europeus desde o verão de 1994. Seu nome foi tomado de um jogador inglês de origem caribenha que na década de 1980 jogou no Watford Football Clube. Na Itália, entre 1994 e 1999, onde o projeto se organizou melhor, Luther Blisset declara estar em guerrilha dentro e contra a indústria cultural e organiza campanhas heterodoxas de solidariedade a vítimas da censura ou da repressão – estima-se que somente na terra de Berlusconi 400 pessoas usavam o nome regularmente nessas ações.

Diversos meios de expressão foram usados por Luther Blisset, como performances de rua, histórias em quadrinhos, sermões pseudo-religiosos transmitidos via rádio, livros. Mas Luther Blisset era bom mesmo em pregar peças na mídia, que são reivindicadas, seguidas de explicações das vulnerabilidades usadas para fazer o sistema midiático publicar ou transmitir notícias falsas. Em um dos livros que escreveu, Luther Blisset denomina de guerrilha midiática o que faz, conceito que é inspirado no de guerrilha semiótica, desenvolvido por Umberto Eco. Qualquer um podia (pode) usar o nome, mas como afirmou Roberto Bui, um dos fundadores do movimento, a rede de usuários tinha um estilo e por isso o uso da identidade por fascistas e nazistas, ainda que difícil de evitar, não recebia apoio do restante dos participantes da rede de “usuários”. É importante diferenciar o que ficou conhecido por Projeto Luther Blisset e Luther Blisset. O primeiro era tomado como uma das possíveis organizações do segundo. As pessoas que usam o nome Luther Blisset hoje não são do Projeto, que foi pensado para acabar depois de cinco anos. O nome Luther Blisset ainda é usado na Espanha, na Alemanha, no Reino Unido e – embora como projeto tenha se extinguido – em várias ações na internet e fora dela, inclusive no Brasil. Luther Blisset deixou dois livros, Q (traduzido para o inglês, espanhol, alemão, holandês, francês, português, dinamarquês, polonês, grego, russo, tcheco e coreano) e Guerrilha psíquica, escritos por quatro dos indivíduos que fizeram Luther Blisset ganhar vida. Em janeiro de 2000, um quinto escritor se une a esses quatro e uma nova empreitada tem início: o Wu Ming Project, que, ao invés de uma rede aberta como era o uso do nome Luther Blisset, é um grupo que se propõe a escrever ficção. O que há em comum com o Projeto Luther Blisset é basicamente a recusa à propriedade intelectual e a rejeição da arte como resultado de uma produção do gênio criador, cujas habilidades diferenciais permitem-no estar em contato com níveis mais elevados de consciência criativa. Os corpos sem órgãos, avatares de identidade, esses artistas/ativistas sem rosto são artífices míticos de produções coletivas, potencializadas por tecnologias digitais, mas que estão para além destas. A mitopoiesis reforça o potencial de atuação política num amplo espectro que todas as pessoas possuem.


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crônica Simone Campos

SOBRE A AUTORA Simone Campos é jornalista e autora de No shopping e Amostragem complexa.

Em outubro do ano passado, o Felipe Pena falou que a literatura brasileira é chata, hermética e besta. Agora se senta, que eu vou concordar. Não conheço outro autor brasileiro que tenha concordado. Ninguém descontou o tom incendiário da declaração. Ficaram ofendidos. Ué, mas é verdade. Quando li o artigo fiquei satisfeita em ver que alguém tinha chegado à mesma conclusão que eu, mas não pensei em me manifestar. Pensei em trabalhar. Nessa época eu estava terminando o Amostragem complexa, livro de contos que saiu em fevereiro. Adotado pelo Programa Petrobras Cultural, ele tinha um prazo para ficar pronto. Isso era novo para mim. Antes, eu já tinha recebido data-limite para entregar um conto, mas nunca um lote deles. Fiquei entre paranoica e confiante: por conta das minhas experiências anteriores com prazos, eu já sabia que limites podem ser libertadores. Nas costas, eu carregava a experiência de dois romances bem herméticos e bestas: No shopping e A feia noite. Eu via que a forma deles era perfeitamente adequada ao conteúdo; quando saíram, eu estava ciente de que nem todo mundo os entenderia, mas amava-os tanto que, para mim, o conteúdo compensaria a impenetrabilidade. Ainda assim, sentia falta de mostrar que sabia fazer algo nãohermético e não-besta. A leitura de O cabotino, do Polzonoff, e meus trabalhos como crítica literária, especialmente nas duas edições da Copa de literatura brasileira, me ajudaram a refletir. Eu li livros tão ruins que senti na pele o quanto pode ter sido aflitivo acompanhar meus hermetismos (se é que alguém fez isso). Há livros que pedem hermetismo — eu não faria A feia noite muito diferente, mesmo hoje —, mas percebi que prefiro não ser confundida com alguém que é hermético por pura falta de conteúdo, que os há. Há autores que sabem não ter tanto a dizer e produzem deliberadamente uma cortina de fumaça que os blinda contra as críticas. Sendo difícil, qualquer crítica ao texto, mesmo a mais detalhada, poderá ser defletida com referências obscuras e humilhantes, comprovando que o crítico “não entendeu nada” do livro e, portanto, não tem competência para criticá-lo; com essa espada de Dâmocles sobre suas cabeças, alguns críticos se retraem. Há também o efeito inverso. Às vezes, quem já percebeu que o hermetismo pode ser uma cortina de fumaça deixa de acreditar em fadas na possibilidade de uma boa literatura brasileira. Depois disso, quando o leitor lê e não entende de primeira, conclui

Por onde devia haver fumaça automaticamente que o autor é ruim — ou não precisaria dessas máscaras todas. Dá para culpá-lo? O que eu pensei, no fim das contas, foi: “Não preciso de fumaça. Vamos lá, dessa vez sem Photoshop”. A capella. O que me decidiu a escrever sem efeitos especiais foi também o fato de, como leitora, cada vez achar graça mais nas histórias bem urdidas do que nas fragmentadas. E eu sempre escrevi o que eu gostaria de ler. Tanto que, de vez em quando, releio A feia noite (e outros livros-xodós que não escrevi). O No shopping, nem tanto — é uma fórmula para adolescentes atravessarem o ensino médio sem disparar um só tiro contra a classe, e eu estava tão cheia da minha que a exorcizei em 76 páginas. De 10 de outubro a 10 de novembro do ano passado, então, sentei para trabalhar melhor a linha narrativa, usar a retomada de elementos abandonados casualmente pelo caminho, desviar o olhar do leitor enquanto eu preparava a mágica que o arrebataria - em suma, tirar truques novos da cartola. Foi um desafio. Mas me senti muito bem escrevendo esses 12 contos. Um bem diferente daquele que sentia enquanto escrevi A feia noite. Com A feia noite eu exprimia uma verdade interior em que outros poderiam achar algum interesse; com os contos de Amostragem, eu senti que estava dizendo o que devia ser dito e ninguém dissera antes, coisas que só se veem nesse

Brasil. Ah, vai, não fiz um livro político; só me bateu como são ricas as possibilidades que uma nação em formação, com a voz desafinando, oferece. A viagem que fiz à Europa (com a bolsa da Petrobras duramente economizada) ajudou bastante nisso. Eles quase não têm mais o que dizer lá. Conforme escrevi em Edimburgo, “essa obsessão [pelo politicamente correto] e essa falta do que fazer se refletem na literatura dos países desenvolvidos. Prefiro os livros sobre a falta do que fazer, como Morvern Callar (Alan Warner) e Trainspotting (Irvine Welsh) (...). Mas o que tem de personagens anoréxicas/ self-cutters (The trick is to keep breathing, Janice Galloway) ou metáforas elaboradas sobre vegetarianismo (Sob a pele, Michel Faber) ou feminismo (A história da aia, Margaret Atwood) não está no gibi”. Não que o escritor precise apreender a realidade tal e qual. Mas as questões por que as pessoas se interessam mudam conforme muda sua realidade. Zilhões de livros saem todo ano lidando de alguma forma com a morte da literatura porque no mundo desenvolvido ela parece mesmo moribunda. A vida mastigada e protegida desses países não proporciona muitos conflitos – exceto pelo tédio, que por sua vez resulta em escapismos, depressão ou busca de pêlo em ovo – e, sem conflito, não há histórias. Só não entendo porque aqui vigoram os mesmos padrões. Vejo gente escrevendo aqui como se vivêssemos todos uma

vida mastigada, protegida. Que mentira! A hipocrisia brasileira contaminou nossa literatura. Resultado: a literatura brasileira soa falsa mesmo quando inspirada em fatos reais, porque o autor martela o bife até formatar uma narrativa em monotom como as dos autores europeus que admira. Sim, comi mãe, filha e empregada; ainda assim não me entusiasmo. O sucesso nacional dos livros-reportagens talvez venha daí: a podridão não é descartada, mas totalmente incorporada ao enredo de forma elegante, estatística, sem recorrer também à mera escatologia “pra chocar a burguesia”. Mas sem obrigação de acompanhar a realidade seria bem melhor. Eu defendo que no Brasil a literatura nunca esteve exatamente viva, mas não precisa estar, pode funcionar perfeitamente como vírus. Aqui temos desequilíbrios de sobra, não é o máximo? Ainda estamos tentando erradicar o feudalismo! (Tem até deputado-castelão...) E ao mesmo tempo temos tecnologia de ponta, criminalidade, corrupção, cordialidade, sincretismo. Delícia. Potencialmente, dá para escrever tudo o que os gringos escrevem e melhor. O limite é a imaginação. É perder o vício de copiar o que deu certo e pôr as antenas em pé para captar a realidade. Nem que essa realidade saia toda distorcida – fabulosa, colorida e precisa demais para ser verossímil.


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Marcelino Freire

INÉDITOS

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SOBRE O AUTOR Marcelino Freire é autor do livro de contos Rasif - Mar que arrebenta. Seu blog se encontra em eraodito.blogspot.com

Acompanhante Sujar ele se suja. Mas não se preocupe. Há um cinturão de fraldas. Um nó gordo que segura. Para não escorrer na poltrona. Melecar a parede da sala. Um dia até no teto ele deixou uma manchinha pendurada. Feito uma criança que voa. Cuidado para ele não comer bosta à toa. Coitado! O que é a idade? Ave! Você precisava ver como ele era. Eis a fotografia. Quem diria? Era? Ou? Não? Era? Outra? Pessoa? Minha? Filha? Sopa de ervilhas ele adora. É preciso saber cozinhar. Tudo o que ele for engolir aconselho triturar. Mole. Mole. Coisa dura nem pensar. Nada de dentadura. Digo assim. Na hora de almoçar. Papar. Periga ele se engasgar como numa certa vez. Os dentes foram sugados. E a outra menina teve de puxar. Lá de dentro. Ele já quase morrendo. Roxo. Eis aqui. O copo é este. Desde muito tempo. Ele só bebe neste copinho. Que bonitinho! Da! Cor! Que! Ele! Gosta! Minha. Filha. Cinzento! O banheiro é este. A banheira é esta. Você vai ter de acompanhar. Pode lavar a cara e as costas. Esfregar. Esfregar. Esfregar. Nem pense em economizar. Vá fundo. Só não deixe o esqueleto pular muito. O sabonete naufragar. Cair. O xampu entrar nos olhos. Porque ele começa a gritar. A espernear. A mijar feito um afogado. Quem ouve pensa. Estão matando o que já está morto. Salvem o coitado! Aquele alvoroço. Como se a gente tivesse coragem de esganá-lo. Que pecado! Minha. Filha. O? Que? Passa? Pelo? Coração? Deste? Povo? Ah! Para dormir não dá trabalho. É só contar uma história. Ajudar o diabo a rezar. Se quiser pode até cantar uma cantiga de ninar. Antiga. Que ele aprova. Vou ser sincera. O problema é quando ele acorda. Por causa de um pesadelo. Uma saudade. Algum desejo que ficou. Sei lá. Adormecido. Ele perde o juízo. Baba. Espuma. Vai querer você bem perto. Pertinho. Ele tira a roupa. Feito um debilóide. O pobrezinho. Mas veja. Não é nada muito sério. Ele só se sente sozinho. Deite-se com ele. Minha. Filha. Não há perigo. O. Velho. Só. Precisa. De. Um. Pouco. De. Carinho.


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Conrado Falbo

INÉDITOS

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Corpo funcional das formas masculinas

I

o corpo como parte: cada membro denota o todo;

II

torso:

eixo conciso e complexo. rigor inútil da proibição

todo ângulo revela o resto.

que não sabe conter excessos.

o corpo como forma:

os desvarios da pele são o próprio corpo.

pureza difícil

torso:

III

pacientes redes ocultas

o corpo como luta: apenas dura enquanto sangue.

SOBRE O AUTOR Conrado Falbo é recifense e mestrando em Teoria da Literatura pela UFPE, com pesquisa na área de música popular.

o olho

alavanca tecidas por cima dos ossos; riscando seu percurso interno com os humores secretos dos órgãos. irracionais químicas

o sexo alerta o tempo lateja. a noite o dia a tarde escorrem

que dominam os atos

objeto vário, na incoerência do vivo.

IV

coberto de limites pelos sete lados. pelos, pele, falo: língua deste sólido impalpável.

e inventam a essência de um obscuro fato: ser homem.

em lento jorro de vida estrangulada. êxtasetranseângulogula-dá.


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V

VI

na direção da seta

enganosa arquitetura dos braços.

a incógnita fresta.

curvas feitas de retas;

passagem estreita

vetores de ações categóricas:

passante espremido entre a vontade de gozo ea dor do outro.

VII

o tempo embebe o corpo

viola o vigor insolente do homem,

não gosto, quero não toco, tomo não-afago: orgasmo.

que verga. de sua pele

VIII

viço poderoso

de músculos em flor. frutos oferecidos com a exuberante generosidade dos punhos fechados.

IX

o homem esconde mostrando. seu corpo todo explícito

sem reservas aparentes, arreganha cada dente para todos os lados de fora.

(agora volátil transparência)

sua falsa carapaça

mina delicadeza.

é armadura de ar. o homem é ser sem lacre abre a porta de si mesmo e joga a chave no mar.


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RESENHAS IMAGENS: DIVULGAÇÃO

Escritor fuça um dos bestsellers da atualidade atrás do verdadeiro segredo do sucesso Raimundo Carrero

desvenda sem demagogia: apenas cinco por cento das pessoas do mundo são ricas. O que significa que os outros 95 por cento são otários. Ou seja: trabalham. Mas não é assim tão fácil. Trabalhar duro, já não digo, mas exercitar, com dureza, seus planos e objetivos, aí é inevitável. O dono da ideia, Rhonda Byrne, fica em casa recebendo dinheiro, e você gastando seu suor. Mas isso não é trabalho. Você terá que seguir quatro regras que dão um trabalho danado. Senão veja: 1) Declare suas intenções, claramente; 2) Separe um tempo todos os dias para que você viva seus desejos; 3) Visualize exatamente o que você quer da vida; e 4) Tome atitudes diante dos seus objetivos. É claro que, para saber disso tudo, tive o trabalho de: 1) Comprar o livro; 2) Escolher o tempo para ler; e 3) Exercitar-me. Ah, porque é preciso fazer

MEMÓRIA

Uma época que viveu sob as regras das luzes estrobo é mapeada em livro de Vince Aletti

NOTAS DE RODAPÉ

Um dos gêneros musicais mais marcantes dos anos 1970 é relembrado no livro The disco files, lançado em abril deste ano. A obra é uma coleção de colunas do escritor norte-americano Vince Aletti, um dos primeiros a registrar a onda disco, as músicas mais tocadas nos clubes (com os top 10 de DJs da época) e a cultura ao redor dessa cena. Além de documento da época, é uma celebração à música e

seu espírito libertário. Por esse livro, é possível entender como se construiu a cultura da noite e todos os seus mandamentos como nós hoje a conhecemos. Ainda sem previsão de lançamento no Brasil, a obra é iniciativa do fórum de internet DJ History, um dos mais atuantes em manter vivas as tradições, resgatar o legado e mapear a influência da disco na indústria musical.

exercícios. Faça tudo como manda o figurino. Todos os dias. De forma que precisei mudar a minha vida inteira, aquela vida dedicada à leitura e aos estudos. Também pudera, eu não podia deixar de fazer o que aconselhavam Angélica e Ana Maria Braga, sem falar em Sílvio Santos. São infalíveis, brilham o tempo todo e não têm problemas. Acontece que os resultados não vieram. Tentei apenas, e tão somente, ficar milionário vendendo livros a poucos reais. Não consegui nada. Pouco a pouco, porém, fui descobrindo o meu segredo do segredo: eu estava trabalhando. E isso não se faz. Nunca. Afinal, se apenas cinco por cento da humanidade é de milionários ou de bilionários, eu continuava na vil e triste posição de otário. Teria que tomar algumas decisões como: 1) Acordar tarde; 2) Não me olhar no espelho; e 3) Permanecer na janela

esperando as coisas acontecerem. Também não funcionou. Percebi que sou um homem útil. Os inúteis são milionários e, mais do que isso, não precisam de dinheiro para sobreviver. Isso é coisa de operário. Tem coisa mais cruel do que um herói anônimo, tem? Mas não custa tentar, não é? Tirei o livro da gaveta e, com grande esforço, com medo de outro infarto, recomecei os exercícios. Muitos. São muitos. E se nada disso der certo, só lhe resta mesmo tocar um tango argentino. Que Manuel Bandeira tem toda a razão. Com certeza você acaba de transgredir todas as regras: Poesia dá dinheiro. Trabalho, não. Revelado o segredo: não trabalhe. Nunca.

AUTOAJUDA O segredo Autor: Rhonda Byrne Editora: Ediouro Páginas: 198 Preço: R$ 39,90

REPRODUÇÃO

Quem trabalha não consegue ganhar dinheiro

Autoajuda é a arte de se virar sozinho quando a sociedade dá as costas aos seus problemas. Concorda? Por isso tem sido praticada com toda ênfase, sobretudo neste momento histórico em que somente o egoísmo impera em todos os níveis. Eu quero, eu faço, eu mando. Quero ficar rico, quero decidir, quero governar o mundo. E só. Daí você é chamado a conhecer o “segredo” da “chave da prosperidade”, capaz de lhe oferecer “o poder que você tem, mas que nunca lhe foi revelado”. No entanto, o mais curioso está numa pergunta emblemática que se encontra logo no começo do livro: “Você acha que pessoas ficaram ricas trabalhando duro?” Que nada. Se trabalhar duro desse resultado, todos nós seríamos milionários. Ou é pouco? Seríamos bilionários. Basta um dado fundamental que o livro


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A CEPE - Companhia Editora de Pernambuco informa:

CRITÉRIOS PARA RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO DE ORIGINAIS PELO CONSELHO EDITORIAL 1. Todos os originais de livros submetidos à CEPE são analisados pelo seu Conselho Editorial, que delibera a partir dos seguintes critérios: • Contribuição relevante para Pernambuco; • Adequação à missão institucional da CEPE e sintonia com a sua linha editorial, que privilegia obras inéditas, escritas ou traduzidas pra o português; que tenham relevância para a cultura pernambucana, nordestina e brasileira, nos seguintes campos do conhecimento humano: científico, técnico, literário e artístico. 2. Para obter a aprovação com vistas à publicação pela CEPE, as obras devem preencher os seguintes requisitos de qualidade: • De estilo (correção, clareza, coerência, rigor, coesão e propriedade). • De conteúdo (nível apropriado de aprofundamento dos temas, evidência de pesquisa e reflexão, consistência de argumentação e elaboração, originalidade da abordagem).

O dito pelo não dito MISTÉRIO Relíquias sagradas Autora: Fred Vargas Editora: Companhia das Letras Páginas: 408 Preço: R$ 48,50

Fred Vargas não é Fred Vargas. Fred Vargas é o pseudônimo de uma historiadora e arqueóloga mediavalista, mas não é sobre isso que escreve em Relíquias sagradas. E, apesar de Fred, como já se viu, é mulher, talvez o que seja comum em outros países, mas não é aqui. E escreve com franqueza. Mas afinal: o que é escrever com franqueza? Assim, sem rodeios, direto, sem floreios. Vejam: “Segurando a cortina da janela com um prendedor de roupas, Lúcio conseguia observar à vontade o vizinho novo”. Nada de sombras esquivas, luz mortiça,

solidão tempo. Nada. A cena é essa e nada mais. O que é natural nos autores de grandes vendagens, sustentação da indústria editorial. O que é dito, é dito, sem simulacros. E olha que a história envolve jovens traficantes degolados, túmulos violados e cervos eviscerados, além do furto dos ossos de São Jerônimo. Sim, e um delegado. Histórias de crimes, violências, assassinatos, têm sempre delegados. Não faltam nunca. Além de correrias, riscos, lutas e, às vezes, mesmo que remotamente, um pouco de amor. De preferência, erótico. Fred Vargas, o pseudônimo, é publicada em 38 países e já ganhou diversos prêmios por livros como Fuja logo e demore para voltar e O homem do avesso (ambos publicados no Brasil). (RC)

Com amor, Beatriz escreve CONTOS Meu amor Autor: Beatriz Bracher Editora: Editora 34 Páginas: 144 Preço: R$ 27

Este livro de Beatriz Bracher começa a surpreender pelo título – Meu amor. Tudo porque o título é o mais terrível desafio que enfrenta o autor de um romance ou de um livro de contos. Precisa dizer e não explicar. Se toda explicação em qualquer assunto ou lugar é ruim, num título, então, é um desastre absoluto. É claro que não estou me referindo àqueles que vendem e vendem. Esses não me interessam. Falo do objeto artístico. Meu amor se insere naquele tipo de título insinuante, conforme classificação de Umberto Eco. Ele não diz – insinua. E

conquista. Até pela simplicidade. Parece palavra dita ao ouvido, no arrepio da pele. Em seguida pede leitura. Beatriz Bracher é sutil, leve, com palavras que escorrem no interior da página, sem interrupção, mesmo quando, às vezes, usa um adjetivo – essa palavra excessivamente luminosa. Mas com amor. Sempre com amor, sobretudo naqueles personagens, às vezes narradores, inominados, identificados pelos gestos, pelas atitudes, pelos movimentos. Por isso, mais do que tudo, o título se apresenta adequado. Noemi Jaffe faz uma “orelha” exata ao verificar os elementos narrativos que norteiam o livro, com uma sutileza notável: a narradora onisciente que permeia todo o texto, formando, assim, um livro único e harmônico, sólido e terno. (RC)

3. O conselho Editorial não analisa: • Originais incompletos, em progresso ou ainda sujeitos à correção do autor. • Livros individuais ou coletivos na condição de projeto. Os textos devem ser entregues com o seu conteúdo pronto e acabado, sem acréscimos nem rasuras. 4. Serão imediatamente desconsiderados e rejeitados originais que atentem contra as declarações de direitos humanos e congêneres, as leis e os dispositivos morais e éticos, nomeadamente os casos de: • Violação do direitos políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais; • Que fomentem ou mostrem simpatia pela violência e desrespeito a crianças, idosos, bem como os preconceitos de raça, religião, gênero etc. 5. O conselho não recebe dissertações ou teses em estado bruto (devem ser feitas as reformulações necessárias de moro a reduzir o excesso de tecnicismos típicos do trabalho acadêmico. 6. As obras, inclusive as coletivas, devem estar corretamente padronizadas e revisadas, de modo a permitir a leitura crítica e análise final da obra. 7. O autor deve enviar à CEPE cópia impressa dos originais em quatro vias. 8. Não são recebidos originais em CD, disquete, e-mail ou qualquer outro formato eletrônico. 9. O comprovante de envio dos originais pelos Correios (AR - Aviso de Recebimento) valerá como potocolo de entrega. 10. Em caso de entrega dos originais na sede da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE, o portador deverá se dirigir à secretaria da Presidência, onde assinará o protocolo.

VIRTUAL

CLÁSSICO

Escritor Alberto Fuguet estreia seu novo blog

Reedição de cultuado romance francês pela Cosac Naify apresenta inovador projeto gráfico

Um dos convidados da Bienal do Livro de Pernambuco, Alberto Fuguet está com blog novo, www.albertofuguet.cl, por onde desfila sua ironia. Mas ainda bem que ainda dá para vasculhar os arquivos do seu endereço anterior, albertofuguet. blogspot.com. Num deles, o autor atualiza a polêmica do McOndo, que mexeu com os alicerces da literatura hispano-americana durante os anos 1990.

Eleito um dos 100 principais romances do século 20 por críticos convidados pela Folha de S.Paulo, Zazie no metrô tem versões até para o público infanto-juvenil na França, seu país de origem. O enredo parece simples - Zazie vai a Paris para conhecer o metrô, fechado por conta de uma greve –, mas resulta em uma narrativa inquieta e confusa. A Cosac Naify incluiu a obra

na sua seleta Coleção Particular, que conta também com Bartleby, o escrivão, de Herman Melville, A fera na selva, de Henry James, e Primeiro amor, de Samuel Beckett. A nova edição apresenta inserções de cartazes franceses da época e é impressa em papel-bíblia, além de ter as páginas não refiladas (sem cortes entre si), como também foi feito com a versão de Bartleby.

11. Todos os originais são de responsabilidade exclusiva do autor. O conselho não se ocupa de eventuais perdas ou danos no trajeto de encaminhamento nem devolve os originais recebidos. Companhia Editora de Pernambuco Rua Coelho Leite, 530 - CEP: 50100-140 Santo Amaro - Recife - PE. Informações adicionais pelo telefone: (81) 3183-2708


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UM NOVO OLHAR

Os Sertões, de Euclides da Cunha, por Rodrigo Sotero

Apareceu no sertão do norte um indivíduo, que se diz chamar Antônio Conselheiro, e que exerce grande influência no espírito das classes populares servindo-se de seu exterior misterioso e costumes ascéticos, com que impõe à ignorância e à simplicidade. Deixou crescer a barba e cabelos, veste uma túnica de algodão e alimenta-se tenuamente, sendo quase uma múmia. Acompanhado de duas professas, vive a rezar terços e ladainhas e a pregar e a dar conselhos às multidões

A ideia de convidar o ilustrador e designer Rodrigo Sotero para colaborar com Um novo olhar surgiu depois que nós aqui da redação conferimos seu trabalho com Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Sotero havia feito uma série de ilustrações repensando a distopia do escritor norte-americano. Nossa intenção era republicar essas imagens, mas ele sugeriu (para nossa sorte) uma produção inédita para o Pernambuco. Sua ideia foi recriar o universo de Os sertões, de Euclides da Cunha. Mais especificamente o trecho em que somos apresentados a Antônio Conselheiro, aquele homem que, de tão magro, Mario Vargas Llosa imaginou como alguém que parecia estar sempre de perfil. Segundo Sotero, “Escolhi Os sertões pelo fato histórico que é muito marcante e pelo centenário de morte de Euclides da Cunha (15 de agosto), que acontece este ano. Essa passagem de Euclides é interessante porque é muito descritiva e visual. Além disso, a descrição que o autor faz de Antônio Conselheiro tem um viés até social. Para meu trabalho como ilustrador, é perfeito”. O curioso do trabalho de Rodrigo é que ele conferiu um colorido todo particular à narrativa de Euclides. Um universo que, pelo trágico do seu imaginário, a gente só costuma visualizar em cinza, preto, branco ou no máximo em vermelho. Um novo olhar este mês procura se antecipar às discussões envolvendo o centenário da morte de Euclides da Cunha, um homem que rasgou os limites da história e do jornalismo e criou um relato que, no mínimo, gera uma incômoda reflexão do que é ser brasileiro. (Schneider Carpeggiani)


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