Pernambuco 41

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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco nº 41 - Distribuição gratuita 1

PERNAMBUCO, MAIO 2009

AMÉRICA EXPOSTA Os autores Alberto Fuguet e Federico Andahazi e seus métodos para remodelar a ficção latino-americana

SEXO VIRTUAL

Como as revistas eróticas estão adaptando o seu conteúdo para a internet

A LOUCA DA CASA

A escritora Cida Pedrosa revela como construiu o seu bestiário feminino

Um dos mais importantes teóricos da literatura defende suas polêmicas

JEIMS DUARTE

LUIZ COSTA LIMA


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PERNAMBUCO, JULHO 2009

GALERIA

OSM Á R IO M A RQU E S Osmário Marques é designer e insone. A insônia motivou o fotógrafo a iniciar um trabalho autoral que, entre fragmentos e imagens dispersas, gerou um conjunto com certa unidade chamado Noturnos. Gosta da silhueta, do contraluz, dos contornos, como fica em evidência na imagem acima de título HumanaMargem.

C A RTA DO E DI TOR Foi uma surpresa quando a produção da Bienal Internacional do Livro de Pernambuco anunciou Alberto Fuguet como um dos seus convidados. Chileno, Fuguet é um dos nomes mais importantes da literatura latino-americana. Não só pelo conteúdo dos seus textos. Também por sua postura de combate. Em meados dos anos 1990, lançou uma antologia de novos autores latino-americanos, McOndo. O livro nem era tão legal, mas o seu prefácio deixou muita gente incomodada. O título é claramente uma brincadeira, trocando a cidade mítica criada por Gabriel García Márquez (Macondo) por um jogo de palavras que remete à famosa rede de sanduíches. Mas o que Fuguet e seus contemporâneos queriam era driblar qualquer policiamento ao teor de suas obras. Queriam provar que havia uma outra América Latina para além de todo imaginário do realismo mágico. Esse livro hoje está esgotado. Você o encontra, com sorte, em algum sebo online gringo. Segundo seu organizador, não há qualquer chance de uma nova edição. “Gosto da ideia de um livro perdido”, explica o autor para o Pernambuco.

SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO Adriana Dória Matos Aproveitamos a entrevista com Fuguet para fazer um panorama das principais obras da literatura latino-americana que emergiram dos anos 1990 para cá. A capa desta edição foi feita especialmente pelo artista plástico Jeims Duarte, que aproveitou para repensar o mapa do continente como músculos humanos. Ainda no território latino, Daniel Edmundson ilustrou o clássico poema Me gustas cuando callas, de Pablo Neruda Há algumas edições o Pernambuco tem publicado cartuns por suas páginas. Este mês, o convidado é o ilustrador Fido Nesti, que colabora com a norte-americana The New Yorker e com a Vip. Para conhecer mais seu trabalho, confira o ilustrissimo.blogspot.com. E por falar em ilustração, o Bastidores deste mês traz o depoimento do ilustrador Renato Alarcão, que conta em detalhes como montou o livro 36 vistas do Cristo Redentor. O depoimento de Alarcão faz parte da nossa proposta de sempre tratar a literatura de forma ampla, abarcando todas suas interfaces. Vale ressaltar que a seção de resenhas deste mês é voltada aos principais lançamentos da Flip 2009. É isso, boa leitura e até o próximo mês.

GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO Governador Eduardo Campos Secretário da Casa Civil Ricardo Leitão COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO - CEPE Presidente Leda Alves Diretor de Produção e Edição Ricardo Melo Diretor Administrativo e Financeiro Bráulio Menezes CONSELHO EDITORIAL: Mário Hélio (Presidente) Cristhiane Cordeiro José Luiz da Mota Menezes Luís Augusto Reis Luzilá Gonçalves Ferreira

SUPERINTENDENTE DE CRIAÇÃO Luiz Arrais EDIÇÃO Raimundo Carrero e Schneider Carpeggiani REDAÇÃO Mariza Pontes e Marco Polo ARTE, FOTOGRAFIA E REVISÃO Flávio Pessoa, Flora Pimentel, Gilson Oliveira, Militão Marques, Nélio Câmara e Renata Cadena PRODUÇÃO GRÁFICA Eliseu Souza, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Roberto Bandeira, Sóstenes Fernandes MARKETING E PUBLICIDADE Armando Lemos, Alexandre Monteiro, Rosana Galvão COMERCIAL E CIRCULAÇÃO Gilberto Silva

PERNAMBUCO é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife CEP: 50100-140 Contatos com a Redação 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br


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RESENHA RENATA CADENA

Eles precisam falar e querem ser ouvidos A América patológica de Paula Fox emerge no romance Pobre George Ronaldo Correia de Brito

A quem interessa ouvir isso? Paula Fox começa o romance de estreia com essa pergunta instigante, uma frase isolada, sem nexo aparente. Já que os leitores não respondem, é o personagem George Mecklin quem afirma para si mesmo que não interessa a ninguém. A pergunta se isola da narrativa, suspensa e injustificável, até que no final do livro George Mecklin se dispõe a narrar sua história a Harvey Walling, um professor de matemática, colega de trabalho. É como se o livro voltasse ao começo para responder o que fora perguntado. O leitor poderá retornar à primeira página ou simplesmente fechar os olhos e imaginar-se o professor de matemática Walling, dispondo-se a escutar George Mecklin. Não é preciso folhear páginas nem gastar os olhos, apenas rememorar o que acabou de ler. Paula Fox não pergunta: A quem interessa ler isso? Ela e o seu personagem George carecem de ouvintes, um psicanalista, talvez. Eles querem falar, eles precisam ser ouvidos. A pergunta também questiona se vale a pena prosseguir a leitura ou se é bastante ficar na primeira frase do romance. A quem interessa ouvir isso? A você? A mim? Mesmo que se descubra que o livro não é um exercício prazeroso e divertido, segundo sugere Nick Hornby na campanha pela sobrevivência da leitura como forma de lazer, compensa ler Pobre George. Pelo menos não esbarramos nos experimentos literários que tanto apavoram Hornby. Paula Fox refere-se à sua escrita, numa conversa com Ubiratan Brasil, como variação das próprias experiências, um saber sobre si mesmo. Quando Pobre George foi publicado em 1967 (agora com recente edição brasileira), fazia dois anos que os Estados Unidos haviam mandado tropas para a Guerra do Vietnã, de onde saíram derrotados em 1973, com a perda de 50 mil soldados, o que é insignificante se comparamos com os seis milhões de vietnamitas e cambojanos mortos. A “Síndrome do Vietnã” refletiu-se na cultura, na política externa, nas pessoas comuns. Em 1967, o movimento de oposição à guerra dividia a sociedade americana. Ainda faltavam seis anos para a retirada vergonhosa das tropas, mas o vírus da “Síndrome” escapara da incubadora e contaminava escritores, cineastas, compositores, cantores, gente mais predisposta a sentir os efeitos das grandes crises. Ainda em pleno movimento de contracultura, que pregava a mobilização e a contestação social, os artistas viviam a frustração de ficarem à margem de decisões como a de entrar ou não entrar na Guerra do Vietnã. Havia a consciência do poder limitado da arte, alternativa e marginal como pregavam os hippies. Explodiam protestos por todas as partes da América, mas nem os megahertz sonoros do Festival de Woodstock, em 1969, chegavam aos ouvidos da Casa Branca. UMA AMÉRICA PARTICULAR A América que Paula Fox retrata em Pobre George se insere nesse período de transformação. Ela já não possui a “juventude flamejante” nem o glamour da literatura de F. Scott Fitzgerald, na década de 1920. George Mecklin é um professor de inglês, casado há alguns anos com Emma. Eles se mudaram para uma minúscula e desconfortável casa de campo, nos arredores de Nova York. Emma tem um emprego modesto e sempre viveu em cidades. Os dois sofrem de uma infelicidade crônica na relação sem sexo e sem filhos. Vez por outra uma nesga de luz incide sobre George e ele sente um impulso de mudar, de

ser feliz, de viver diferente. Mas são ataques passageiros em meio ao desânimo crônico. George olhou para as janelas de seu quarto. Por trás delas começava o desmantelo de sua vida, no centro do qual respirava sua mulher, encolhida na cama do casal e cercada pela desordem de sua casa – uma carroça de ciganos, pensou. Era o que ele havia acumulado ao longo de sua vida, sua pilha de realizações. Ele mesmo havia feito sua pilha. Não era uma pilha de dinheiro. Na melhor das hipóteses, jamais receberia acima de 8 mil dólares por ano pelo resto da vida profissional. Os vizinhos de George e Emma são casais patológicos, mesmo os que aparentam normalidade como Minnie e Charlie Devlin, que possui bom faro para cultura e felicidade. Charlie é um típico americano paranoico, dos que falam: Nunca deixe a porta aberta. Nunca! Eu mantenho uma espingarda sempre ao alcance da mão. Limpo-a toda semana. Os Palladino são outros desgraçados: Marta vive embriagada, a casa no mais absoluto desmazelo, as duas filhas pequenas nuas e abandonadas; Joe, o marido, um ator fracassado e um conquistador barato. Lila, a irmã de George, é depressiva, não se ajusta aos empregos e se envolve com Joe Palladino. Bem Twerchy fala igual a uma locomotiva descarrilhada e oprime a esposa Maralin. Como observa George sobre si mesmo e as pessoas à sua volta: Todo mundo estava bêbado. Todo mundo que ele conhecia estava bêbado. Ele se sentia inválido e perguntava quando seria alimentado. Surge Ernest nas vidas de George e Emma. George o encontra num dos quartos da casa, quando retorna do trabalho. Aparenta 18 ou 19 anos, usa um chapéu e afirma que não pratica roubos, apenas gosta de bisbilhotar os interiores das casas alheias. Após o terror inicial, George investiga a vida de Ernest, descobre que ele abandonou a escola, e se propõe a ajudá-lo. O leitor fantasia motivos para a atração de George por Ernest. No romance, ninguém se interessa sinceramente pelo outro, os vínculos entre as pessoas são frágeis, não se sabe de que modo as relações se sustentam. Ernest passa a visitar a casa e recebe aulas de George. Emma não suporta o rapaz, sente medo dele. Um leve transtorno se opera na vida de George, desde a chegada de Ernest. Nada que sugira sentimentos elevados, um novo sentido para a existência do professor. Demora-se a compreender quem é Ernest, até que o próprio George confessa que na verdade ele tentara abraçar Ernest apenas para manter as mãos do rapaz longe de seu pescoço e que não havia sentido coisa alguma pelo rapaz a não ser medo. Mas até que apareçam essas verdades, ocorre um assassinato por espancamento, um vizinho atira no outro e revela-se a fragilidade de um país que se imaginou perfeito. Quando os astros da música pop cantavam que o sonho acabou, Paula Fox prenunciava uma nova literatura. No rastro dela, um novo cinema. Em Pobre George também chovem rãs como no filme Magnólia e soam os mesmos estampidos de Beleza americana.

O LIVRO Pobre George Editora Record Páginas 272 Preço R$ 30


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Raimundo

CARRERO Você coloca qualquer nome no seu filho? A dificuldade para escrever uma obra literária já começa pelo próprio título

Marco Polo

MERCADO EDITORIAL

Claro que não. Nem mesmo o filho da outra. Mesmo porque pode ser da outra, mas é seu, e está acima do bem e do mal. Título de livro é assim: não importa a origem, tem que ser bom. Se possível, ótimo. É um dos elementos decisivos da obra literária. Mesmo quando soa estranho, a exemplo de No Urubuquaquá, no Pinhém, de Guimarães Rosa. E livro é mesmo uma espécie de filho que vai viver solto na pradaria. Não pode falhar. É astuto, tem coragem, e seduz. Mas não precisa ser Don Juan. Nem mesmo O belo Antônio, que as complicações são muitas. E demais. Portanto, deve ser extremamente sério – mesmo quando irônico ou cômico, tão sério quanto o nome de um personagem ou de uma região. Por exemplo, Macondo, de Gabriel Garcia Marques, ou Yoknapatawpha, de Faulkner. No meu caso, criei a região geográfica Arcassanta, que pode ser uma fazenda, um povoado, uma cidade, ou apenas um simples lugar deslocado do mapa, à beira da estrada, de um rio, de um açude. Érico Veríssimo inventou Antares. Outros autores preferem nomear os lugares pelo nome que receberam na tradição. De minha, porém, prefiro ter mais liberdade. Minha região começou com Santo Antônio do Salgueiro, pode ser simplesmente Salgueiro, e evoluiu para Arcassanta, porque não sou retratista, sou intérprete. Portanto, se há tanto cuidado com nomes de regiões e de personagens, então é fundamental que seja assim também com os títulos. Há, porém, um dado importante: o título deve surgir a partir do ponto de vista, segundo decisão do autor. Mas não existe apenas um ponto de vista numa obra. De forma alguma. Encontra-se o título em epígrafes e pontos de vista. Na técnica, são muitos os pontos de vistas divididos em, pelo menos, três: 1. Ponto de vista do autor, que coordena todos os demais; 2. Ponto de Vista do narrador, que pode ou não coincidir com o autor; 3. Ponto de vista do personagem ou dos personagens. Sempre destacando que, no nosso caso, ponto de vista é a ideia ou a ideologia do autor, do narrador ou do personagem, no sentido amplo, e não foco narrativo, que é a técnica que o autor escolhe, através do seu narrador ou do personagem. Não esquecer nunca que A hora da estrela, de Clarice Lispector, tem 14 títulos, mas só um aparece na capa do livro, e mais: logo no começo do texto, ela explica, através do narrador Rodrigo, quais as razões de tantos títulos. Mostra, por exemplo, que um título pode conter dois pontos no princípio e no fim para causar maior impressão ao leitor, ou usar palavras soltas que facilitem a compreensão. Mas opta por A hora da estrela que, embora ambíguo, aponta para o brilho ofuscado de Macabéa.

Mas para efeito de classificação, podemos distinguir três situações para escrever títulos: No caso do ponto de vista do autor, um exemplo clássico é Crime e castigo, de Dostoievski. Isto é, o título representa a ideologia do autor e já registra a opinião que ele tem sobre o assunto. Está sobre o domínio dele. Todos os outros assuntos são resultantes do primeiro. Ou, ainda, Um coração simples, que interpreta o autor, a opinião de Flaubert sobre Felicidade, que vem de Madame Bovary. A pedra do reino, de Ariano Suassuna, é um título cultural, mas sob o ponto de vista do narrador Quaderna. Dom Quixote, Madame Bovary e Ana Karenina, por exemplo, são títulos tipos de ponto de vista do personagem, porque toda narrativa estará sempre sobre o seu comando. Numa outra categoria, essa ideia ou ideologia vem também assinalada numa epígrafe, quando

Escrever exige um ponto de vista que resulta na apresentação de um título eficaz, atraente, justo e correto o autor deseja esclarecer, de logo, o mistério do texto, ampliá-lo ou provocá-lo. O nome da rosa, de Umberto Eco, não tem uma epígrafe, mas é, por assim dizer, antecedido de uma abertura em itálico, seguida de uma nota, onde são oferecidas informações decisivas para o leitor. No entanto, o breve texto Pós-escrito a O nome da rosa tem uma epígrafe, que pode esclarecer o próprio romance, a partir de uma estrofe de Santa Joana Inês de La Cruz:

“Rosa que al prado, encarnada, Te ostentas presuntuosa De grana y carmín boñada: Campo lozana y gustosa; Pero no, que siendo hermosa También será desdichada”. Assim, ela pode servir de chave interpretativa tanto do pós-escrito quando do próprio livro, de

NOVELA

VISIBILIDADE

DIREITOS

Criador do marxismo era fã de folhetins

Editora luso-brasileira, a Língua Geral promove exclusivamente o mundo lusófono

Universidade mostra como regularizar cópias

Eugène Sue, criador do gênero “literatura amena e de choradeira” em forma de folhetim (precursor da telenovela), tinha entre seus fiéis leitores Karl Marx. É o que revela pesquisa apresentada no II Lihed, o mais importante seminário brasileiro sobre livro e história editorial. Mas, ao analisá-la, Marx negou qualquer conceito socialista que muitos queriam ver na obra.

Ainda pede uma maior divulgação a editora Língua Geral, criada em 2006, objetivando promover livros escritos no mundo lusófono. Nela estão nomes consagrados, como o angolano José Eduardo Agualusa (também sócio da editora) e a portuguesa Patrícia Reis; novos talentos, como o carioca Ramon Mello e a paulista Andréa del Fuego; assim como músicos e atrizes

que mostram seu lado escritor, como Moraes Moreira e Dira Paes. A editora tem várias coleções: Ponta de lança, que busca revelar autores; Língua franca, sobre questões sociais e políticas; Mama África e Mãe Brasil, com literatura infantil africana e brasileira; Língua afinada e Língua real, sobre música e poesia, Língua de fogo, para obras ensaísticas, e Sal da língua, com clássicos.

A Universidade de Buenos Aires, a maior da Argentina, e o Centro de Administración de Derechos Reprográficos, Cadra, fecharam acordo para acabar com o uso ilegal de fotocópias. Ela pagará pelas cópias usadas pelos alunos, que só poderão ir até 20% de cada obra. Os prestadores de serviço em fotocópia serão homologados pelo Cadra e passarão a recolher uma contribuição anual.


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FLAVIO PESSOA

chave de todo o texto. Para definir a sombra severa recorri ao ponto de vista dos personagens Judas e Abel, e mais adiante convoco Shakeaspeare para representar o ponto de vista do autor, esclarecendo Dina e, em consequência, Abel.

Judas: “Dá-lhe um nome feio: traição. Mas é justamente essa índole traiçoeira do rebelde que o diferencia do resto do rebanho. É sempre traiçoeiro e sacrílego, se não literalmente pelo menos em espírito. Comporta-se, no fundo, como um traidor porque tem medo de sua própria humanidade, que o aproximaria de seu semelhante”. Henry Miller Abel: “Muitas coisas foram ditas, repito, mas não houve quem fosse capaz de formular sequer uma aproximação daquela frase antiquíssima (nascida na costa ocidental do Mar Egeu há vinte e cinco séculos) que asseverava que ninguém fica tão unido a ninguém como o homicida da sua vítima”. Mario Arrequi Dina: “Deixa-me saber por que teus ossos abençoados, sepultos na morte, rasgaram assim a mortalha em que estavam? Por que teu sepulcro, no qual te vimos quietamente depositado, abriu suas pesadas mandíbulas marmóreas para jogar-te novamente para fora”. Shakeaspeare

ONLINE

Site pode ser uma saída para novos autores O Clube de Autores é um site para quem quer publicar seu livro. O autor envia o texto e o site o divulga. Quando alguém se interessa em comprá-lo o livro é impresso, caso a caso, e enviado. A inicitativa é do I-Group, empresa especializada em planejamento estratégico digital e o A2C, empresa de tecnologia e design digital. Mais informações: www. clubedeautores.com.br.

REPRODUÇÃO

forma a decifrar caminhos insondáveis. Claro que cada leitor faz sua própria interpretação, seguindo os caminhos indicados por Santa Joana ou não. Cada um conhece as próprias estradas. Diz o verso que o caminheiro é quem faz o caminhar. Mas não deixa de ser motivo de estudo. Sobretudo da realização de um título. De minha parte, por exemplo, sempre achei que Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, representa a morte e a ressureição de Jesus Cristo, sendo um auto natalino. Mas essa é a minha interpretação. Pode não ser nem mesmo a do poeta, a do leitor, ou a do exegeta. De minha parte, porém, gosto de usar epígrafes como chaves interpretativas, que provocam o título. Em Somos pedras que se consomem sou muito breve e uso uma frase de John Fante: “Cada palavra deste livro é pura verdade”. Por quê? Porque o romance é resultado de uma pesquisa em revistas e jornais brasileiros onde registro todos os fatos reais, embora

ficcionados e seguindo a cronologia que me interessava, a respeito da crescente violência brasileira contra mulheres e crianças. No corpo do texto, várias citações são lembradas, numa recorrência a outras vozes para compor o meu tecido narrativo. Em Sombra severa, porém, é diferente. Em princípio, a novela se chamaria Memorial de Judas, um conto que eu havia escrito na praia do Janga. Depois que o transformei numa novela, achei que devia ser seco e indireto. Então encontrei-o num poema de Carlos Drummond de Andrade, aquele em que ele conta como andava com o pai pelas ruas de Itabira, Minas Gerais. Para interpretar, porém, a história e os personagens optei por três epígrafes, ou seja, três pontos de vista, que me vieram de Henry Miller e Mario Arrequi, além da última, de Shakeaspeare, que fecha a compreensão da novela. Noutra página, recorri a Thomas Mann, que, na verdade, oferece a

Observe-se, assim, que as epígrafes são importantes para a decifração do título, algo que tortura e alegra o autor. Estão sempre juntas, unidas, inquietas. Sem esquecer, por exemplo, que Moby Dick, de Melville, tem mais de 20 epígrafes a respeitos de cachalotes, e A pedra do reino, de Ariano Suassuna chegam a oito, a 10. E ainda mais: Hermilo Borba Filho, em Um cavaleiro da segunda decadência, usa epígrafes nas aberturas dos capítulos, o que, de certa forma, substitui os títulos. São caminhos e indicativos dos escritores para desenvolver a técnica narrativa. Na verdade, ultimamente os críticos passaram ou a desdenhar das epígrafes ou a não lê-las. Algo totalmente equivocado. Significa profunda desatenção com o autor e, mais ainda, com o livro. Um romance bem elaborado não começa no primeiro capítulo, mas na capa, junto com o título. E um título, além de um indicativo de leitura, é, sobretudo, a chave para toda a compreensão da obra. E, em consequência, do pensamento do autor, da sua ideologia, da sua confrontação com o mundo.

VARIEDADE

Livros falam de turismo cultural e das histórias contadas nas tribos indígenas brasileiras Dois lançamentos diferenciados. O livro As cidades históricas como destinos patrimoniais: um estudo comparado entre a Espanha e o Brasil, do arquiteto Marcelo Brito, acaba de ser publicado na Espanha pelo Instituto Andaluz de Patrimônio Histórico da Consejeria de Cultura da Junta de Andalucia. Mostra como explorar o turismo cultural em cidades históricas, com

atividades de entretenimento e de aprendizagem. Já a Nau Editora e o Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual estão lançando o Poranduba — Roda de histórias indígenas, com livreto e quatro cds. Trata-se de uma compilação de 28 mitos de 20 diferentes etnias indígenas brasileiras, com informações sobre sua localização, língua e população.


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BASTIDORES

IMAGENS: RENATO ALARCÃO/DIVULGAÇÃO

Vendedor de biscoito Globo retrata visão da entrada do Túnel Rebouças do Cristo Redentor

Jesus Cristo: ele está aqui

Ilustrador conta detalhes do livro que cercou por todos os lados o ícone maior do Rio Renato Alarcão

O convite para ilustrar um livro com 36 vistas do Cristo Redentor me chegou como uma grande e feliz surpresa. A editora Casa 21 já havia publicado uma série de livros fascinantes sobre diversas cidades brasileiras (http://www.editoracasa21.com.br/cidadesilustradas), e, dentre o rol de artistas com quem havia trabalhado estavam profissionais por cujo trabalho eu sempre tive profunda admiração: o italiano Mattotti, o francês Jano, o argentino Nine — todos verdadeiras lendas-vivas da profissão — e também colegas brasileiros de talento indiscutível como Lélis, Guazelli e o Marcelo Quintanilha. Fazer parte deste time foi não apenas uma grande honra, mas, principalmente, uma responsabilidade que pesou muito durante os meses de trabalho que o meu livro consumiu. Sou ilustrador profissional desde 1995 e, neste período, criei muitas capas, livros infantis e ilustrações para jornais e revistas. Interrompi minha carreira no Brasil por quatro anos, durante os quais dediquei-me a um mestrado em ilustração (pela School of Visual Arts) e depois complementei meus estudos no Center for Book Arts, de Nova York. Ainda morando nos EUA, encontrei na internet uma lista de ilustradores brasileiros, muitos deles profissionais, e, trocando ideias e afinando interesses, nos agrupamos para criar a SIB - Sociedade dos Ilustradores do Brasil. De volta ao meu país, dediquei um bom tempo a trabalhar junto com este grupo de abnegados colegas para criar um alicerce sólido para nossa organização profissional. Hoje a SIB é um coletivo que conta com mais de 300 ilustradores, possui seis catálogos publicados e já realizou cinco exposições anuais (duas delas inclusive ganhadoras do maior prêmio nacional na área, o troféu HQ Mix). Foi por caminhos sinuosos que vim a conhecer o dono da editora Casa 21, Roberto Ribeiro. Figura carismática e muito querida no meio, Roberto é também o criador e organizador do FIQ, Festival Internacional de Quadrinhos, um evento concorrido que acontece todos os anos em Belo Horizonte. No ano de 2006 fui convidado por ele para levar uma exposição de ilustradores da SIB para aquele evento, e lá também participei como entrevistador do convidado internacional Gary Panter. Na ocasião, a ideia do livro 36 vistas do Cristo Redentor ainda estava bastante “embrionária”, e me foi apresentada pela primeira vez de maneira informal. O projeto seria inspirado em antecedentes históricos pelo mundo afora, onde artistas diversos sentiram-se atraídos

por algum elemento da paisagem e fizeram dele o tema central de uma série de imagens. No Japão, por exemplo, o artista Hokusai (17601849) debruçou-se sobre o tarefa de representar o Monte Fuji em uma maravilhosa série de xilogravuras (das quais faz parte a célebre gravura A onda), e um pouco depois, na França, Henri Rivière realizou em 1897 um dos mais ambiciosos projetos em gravura colorida que a Europa havia produzido até então: as 36 vistas da Torre Eiffel. CAMINHO OBSERVADO O livro 36 vistas do Cristo Redentor foi finalmente apresentado para captação de patrocínio e a editora Casa 21 contou com meu nome para ser o desenhista. Durante o tempo em que aguardamos resposta (quase 2 anos), sentia que estava, cada vez mais, atraído por aquela estátua de concreto sobre a montanha. O caminho que traço semanalmente da minha casa ao atelier é constantemente “observado” pelo Cristo, fato que ajudou em muito na busca pelas cenas, personagens e situações presentes no livro. De Niterói ao Jardim Botânico, tive a companhia dele. Naturais ou construídos pela mão do homem, estes marcos paisagísticos apresentam em comum o fato de personificarem o caráter de uma cidade ou mesmo de um povo. Além disso, são também catalizadores de potentes metáforas históricas, culturais, religiosas etc. Sob esta lógica, o Cristo Redentor é um símbolo perfeito não só para o Rio de Janeiro, mas para o Brasil como um todo. Seja como símbolo da cidade, ícone turístico ou santuário da fé, a estátua do Cristo já foi representada visualmente em uma infinidade de formas. São pinturas naïf, prosaicas camisetas, toalhas de praia, santinhos, logotipos, abomináveis folhetos publicitários e finalmente o carnaval genial e proibido de Joaosinho Trinta. Mas “nunca antes neste país” pensou-se em algo como o que apresentamos neste livro. A escolha das ilustrações do 36 vistas do Cristo Redentor busca de alguma maneira estabelecer um diálogo com o observador, seja conduzindo-o a locais desconhecidos do Rio de Janeiro, mostrando maneiras novas de observar lugares familiares, ou então buscando estimular alguns voos da imaginação. O Cristo está lá, sempre presente, ainda que às vezes quase imperceptível, como frequentemente acontece na vida da cidade.


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Renato Alarcão em seu estúdio, produzindo as aquarelas e desenhos do livro

book. Ainda assim, senti necessidade de acrescentar um algo mais, pequenos textos que serviriam de legendas para as ilustrações. Há uma frase, se não me engano de Oscar Wilde, que diz: “Desculpe-me por esta longa carta, é que não tive tempo para escrever-lhe uma menor…”. Nela fica claro o desafio de quem se propõe a escrever. Qualquer um que se entrega a esta nobre tarefa sabe bem a dificuldade em criar algo conciso, simples e bem amarrado em poucas linhas. Sou por natureza uma pessoa que escreve de forma um tanto prolixa, e, à certa altura do projeto, dei-me conta de que as imagens já contavam histórias por si próprias, e que o uso de legendas deveria ser algo muito bem pensado para potencializar as narrativas visuais que me propus a estabelecer, e não competir com elas.

Seja como símbolo da cidade, ícone turístico ou santuário da fé, o Cristo já foi representado de várias formas Mas onde está o ponto de vista inusitado, o improvável, o imaginativo, o narrativo, a perspectiva inédita daquela figura plácida que representa o próprio espírito do Rio de Janeiro? A regra primordial que segui foi buscar qualquer Cristo, menos o do cartão postal. Sob que ângulos novos poderia enquadrá-lo, então? A resposta surgiu também na forma de perguntas: Quão distante ainda é possível vê-lo na paisagem? Em que situações improváveis podemos encontrálo? Que pessoas vivem sob seu olhar? Que janelas o emolduram? Para mim, falar do Cristo, retratá-lo sob diversos ângulos, foi também traçar um paralelo com a cidade que está sob o olhar da estátua, foi sobretudo manter meu olhar atento à paisagem urbana que é o cenário onde se manifesta de maneira multifacetada o famoso espírito dito “carioca”. E o que aconteceu com a narcisista Cidade Maravilhosa de outrora? O cenário de hoje é bem diferente do que se via na década de 1930, quando ganhou de presente o seu símbolo maior. Hoje, o Rio de Janeiro recebe novos adjetivos que melhor refletem sua trajetória repleta de contrastes, crescimento desordenado, tensões de classes e conflitos urbanos. Circulando pela cidade, muitas vezes imaginei que o Cristo Redentor sempre esteve ali, como se as próprias pedras do Corcovado houvessem ao longo de milênios — e com ajuda de alguma mágica —

confabulado entre si e, lentamente, organizado-se para, juntas, formarem a estátua… INTRINCADAS E DETALHISTAS Desenhar o Cristo envolveu um longo tempo de pesquisa, no qual foram feitas diversas incursões na paisagem carioca em busca de ângulos e temas interessantes. Nestes passeios onde tive o Redentor como bússola, foram produzidas perto de 2.000 fotografias, diversos videos de curta duração, esboços e aquarelas foram feitas nos locais visitados, enfim toda uma pesquisa que resultou em um material muito rico. Tive também a oportunidade de ir a locais e conhecer pessoas que, de outra forma, não conseguiria. Foram visitas a barracos no topo de favelas, de onde pude desfrutar de panoramas privilegiados; passeios na cabine das modernas barcas que trafegam na Baía de Guanabara, visitas ao Maracanã (que, infelizmente não renderam nenhum desenho, pois não me permitiram acesso à laje, único local de poderíamos ver o Cristo), e mesmo a beleza silenciosa do cemitério São João Batista, onde repousam brasileiros notáveis como Carmem Miranda, Francisco Alves, Santos Dumont e Tom Jobim. Este é um livro em que temos ilustrações cuja produção exigiu o uso de mais de 40 fotoreferências, combinadas, sobrepostas e interpretadas pelo traço. O resultado são imagens intrincadas e detalhistas, verdadeiras crônicas visuais da cidade, aquarelas nas quais o Cristo Redentor ora é parte silenciosa ou distante do cenário, ora apresenta-se como elemento preponderante. As ilustrações mostram não somente a complexidade de estruturas urbanas como favelas ou prédios, mas também o porto, cenários industriais e até cenas fantasiosas como uma Baía de Guanabara completamente seca e com destroços aparentes de naus antigas, pneus velhos e carcaças de automóveis. Personagens (anônimos ou ilustres, como o genial arquiteto Oscar Niemeyer) participam de alguns desenhos; noutros figuram mais de uma dúzia de caminhões, ou as centenas de lápides do Cemitério São João Batista, o trânsito caótico e a alegria do carnaval. Este livro trouxe à tona também o meu lado escritor, uma atividade pela qual tenho paixão tão grande quando pelo desenho. Toda a prosa criada à guisa de apresentação do projeto surgiu rápida e espontaneamente como um croqui feito no sketch-

EM PARCERIA Quis então que as legendas fossem curtas porém com a força, a energia e, ocasionalmente uma pitada de insólito de uma boa crônica. Deveriam ser como historietas de poucas linhas e, idealmente, amarradas com tal perfeição que bastasse suprimir uma palavra sequer que o conjunto se desestabilizaria. Aquela seria uma tarefa para outra pessoa, não pra mim. Naquele momento estava fazendo malabarismos com outros projetos e a ideia de somar ao meu cronograma o desafio de escrever — e bem — aquelas 36 legendas colocaria meus prazos a perderem-se de vista. Convidei então o jornalista Marcos Faria, cujo texto sensacional eu já conhecia desde o meu segundo grau (estamos falando dos tempos idos de 1985…), quando fazíamos uma dobradinha criativa nos artigos para o jornal do grêmio do colégio de São Bento. Poucos anos depois reeditamos aquela parceria dos tempos de moleque, desta vez na faculdade (eu fazendo design e ele comunicação), quando embarcamos num projeto de uma história em quadrinhos publicada pela ECO- Escola de Comunicação da UFRJ (um projeto capitaneado pelo Patati, autor do Almanaque dos quadrinhos, e que na época era professor de uma disciplina eletiva de quadrinhos). O resultado da parceria ficou exatamente como eu havia imaginado: um livro que traz imagens narrativas interessantes, insólitas, marcantemente urbanas, formando, do ponto de vista técnico uma combinação equilibrada entre as aquarelas coloridas e os desenhos em duotone, acompanhados de legendas que, em sua concisão e verve poética, são, para mim, pequenas jóias literárias.

O AUTOR Renato Alarcão é ilustrador, tem trabalhos publicados pela Folha de S.Paulo e The New York Times e administra um ateliê-escola no Rio de Janeiro. No endereço alarchronicles.blogspot.com, mantém um blog sobre arte, cultura e outros temas.

O LIVRO 36 vistas do Cristo Redentor Editora Casa 21 Páginas 84 Preço A definir


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CAPA JEIMS DUARTE

Em busca de uma identidade por subtração Bienal do Livro traz ao Estado nomes chave da literatura latino-americana Schneider Carpeggiani

“Por que os sotaques nunca nos abandonam? Seriam eles a maldição por termos deixado o lar?” Alberto Fuguet O personagem é genial: um psicopata que se salva da pobreza graças à obsessão pelo John Travolta de Os embalos de sábado à noite. Num underground escuro e cheio de entulhos, a utopia das discotecas é a mais atraente. O diretor chileno Pablo Larraín lançou mão dessa estratégia de salvação pop e decadente para construir Tony Manero, filme-alegoria do seu país naquele começo dos anos 1980 de Pinochet, incertezas e desaparecidos. Enquanto a maior parte dos regimes totalitários do resto do continente dava sinais de cansaço, o Chile viveria mais 10 anos sob a mão de ferro do seu general. Ainda estava longe o outono do patriarca. Se a situação política parecia insuportável, na pista de dança, ao menos, todos estavam surdos. Era preciso stayin’ alive, stayin’ alive, tal e qual pregava a música do Bee Gees, que repetia a ideia de persistir sempre como num mantra religioso. “Mas o filme não tem nada a ver com ditadura, nem com Pinochet, nem com nada”, reclamou um amigo diante da minha empolgação por Tony Manero. Sua reclamação não poderia ser melhor. O filme faz parte de uma série de obras que emergiu na América Latina a partir dos anos 1990. Seus artistas lidavam/ lidam com o passado sem a histeria do militante, mas com a ironia do observador distante. Uma postura típica de quem viu a história se desenrolar diante dos olhos, mas ainda não sabia (e nem podia) fazer nada com ela. O escritor chileno Alberto Fuguet foi dos primeiros a lidar com sua arte por subtração. Em 1996, numa parceria com o conterrâneo Sérgio Gómez, ele lançou a antologia de novos autores latino-americanos em língua espanhola McOndo. O título já deixava claro o calibre da piada: a rede de sanduíches americana se misturava à cidade mítica criada por Gabriel García Márquez - cujo estilo era tão clonado quanto um Mc Cheddar gorduroso. Para participar da coletânea, era preciso ser urbano e não cair nas facilidades do realismo mágico, traço maior desse outro patriarca. Era preciso ser latino-americano, sim, mas por subtração. Para incluir, a arte muitas vezes precisa excluir. Em um dos contos da coletânea, Mi estado físico, do argentino Martín Rejtman, por exemplo, a narrativa é marcada por situações como “comer pizza de mozzarella”, “ir ao McDonald’s”, e expressões como “hamburguer”, “empregado do mês”, “discoteca” e “whisky” (em inglês mesmo). É possível perceber o esforço do autor em apontar uma realidade contrária ao “país”, à “nação” Macondo e suas matriarcas centenárias. No conto La verdad o las consecuencias, de Alberto Fuguet, o fracasso emocional do personagem Pablo é apenas pretexto para que o autor desfile seu conhecimento em ícones globalizados ou que ironizem com

os clichês. Em McOndo não há lugar para o panorama de um povo (é a tal morte das grandes narrativas), e, sim, por histórias pessoais, por fragmentos. O todo pela parte. O impacto do livro fugiu ao controle dos seus organizadores. Na verdade, não o conteúdo em si dos contos, mas a repercussão da proposta do livro prescrita no prefácio. McOndo faz parte daquele tipo de obra que todo mundo já ouviu falar e raros leram. Fuguet virou capa de revistas pelo mundo inteiro. A americana Newsweek o estampou como uma espécie de assassino do realismo maravilhoso, leia-se de toda uma tradição (ou da invenção de uma). Mas o que mudou no mundo e na sensibilidade de Fuguet como escritor mais de 10 anos depois de tanta confusão? “O mundo de uma forma geral. A internet. Eu acredito que estou muito mais interessado num certo estilo de escritor e de criador, numa certa sensibilidade, muito mais que no fato dele ou dela ser latinoamericano. Uma forma de quebrar a barreira que separa o Brasil da América Latina que fala espanhol é não pensar nos artistas por idade ou língua, mas naquilo que eles escrevem. (Haruki) Murakami, por exemplo, é hábil em atravessar diversos mundos diferentes. É claro que ele é um escritor japonês, mas as pessoas não estão lendo os seus livros por causa disso”, explicou Fuguet para o Pernambuco, em entrevista por e-mail. APESAR DO PATRIARCA Fuguet chega ao Recife, pela primeira vez, em outubro como convidado da Bienal Internacional do Livro de Pernambuco. Não é o único da sua geração a participar do evento. Também participa o argentino Federico Andahazi (ver matéria na pág. 11). Enquanto Fuguet olhava para as intempéries dos urbanóides em busca de respostas, Andahazi se voltava para um passado ancestral. É preciso encontrar maneiras diferentes de contar a mesma história. Assim como Pablo Larraín realizou em Tony Manero, Fuguet construiu sua saga às avessas daquele Chile do começo dos anos 1980 com o romance Baixo-astral, que antecipava as angústias explícitas anos mais tarde na famigerada antologia. Aqui temos a história de um adolescente, Matías Vicuña, que se protegia da mão de ferro de Pinochet como dava. Em suas palavras, ser chileno era uma “droga”. Matías ligava o rádio, lia a Rolling Stone e curava sua crise de adolescente complicado devorando o clássico O apanhador no campo de centeio, de J.D. Salinger. Ainda assim, as dores do mundo o perseguiam como um espectro onipresente. Há tanta política em jogo nas páginas de Baixo-astral, que ela é tratada de raspão, como um amante ferido que evita certas pessoas e lugares até que esteja bem novamente. E se ficar bem novamente… Ao relatar o trauma da ditadura de Pinochet de forma subcutânea, Baixo-astral parece querer dizer que seu personagem (ou mesmo seu país) tende a


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demonstrar pouco, mas sente mais do que consegue suportar. O romance não retira sua força do choque entre duas culturas, como o prefácio-manifesto de McOndo, mas da difícil compreensão de uma com a outra. Talvez esse seja o único caminho possível daqui para frente: global/local. Fuguet é sensível a essa subtração deliberada: “Sim, é isso mesmo. Baixo-astral começou como um romance sem qualquer fundo político e um romance sobre a ditadura que é escrito do ‘lado errado’. Eu sentia naquele momento que já havia romances diretos o suficiente sobre o estado político das coisas. Eu queria escrever a história de um adolescente que se encanta com os livros, mas pensando que eu sou do Chile, que eu sou latino-americano, eu queria sentir que era parte da tradição mas sem querer copiar ou imitar ninguém ou pior, escrever um panfleto. Baixoastral pode ser lido de várias formas. Atualmente eu tenho leitores de 17 e 20 anos que não têm qualquer ideia de quem foi Pinochet, mas que ainda assim se sentem próximos da personagem principal”. OBSESSÃO DE CINÉFILO Atualmente Fuguet se divide entre o blog (www.albertofuguet.cl) e seu trabalho como cineasta, em filmes como 2 horas (2009) e Se arrienda (2005), ambos inéditos no Brasil. “Eu me considero hoje em dia, acima de tudo, um narrador, ou nas palavras que escutei de alguém, eu sou um conciliador. Eu acredito que um criador pode criar diferentes histórias usando diferentes meios. Um livro é difícil de escrever, talvez um filme seja ainda mais complicado ou mais caro, mas para mim o importante é criar personagens”, ressaltou. No processo de criação desses personagens, a obsessão de Fuguet é flagrar o homem para além dos estereótipos do herói de ação ou do anti-herói: “Estou mais interessado hoje em escrever sobre o cara normal, que não é tão estranho ou tão importante,

sobre cultura pop, limites e a sensação de se sentir isolado numa cidade grande”. Fuguet acaba de implantar o projeto Cinepata (www. cinepata.com). “É basicamente um cinema virtual com muitas telas. Uma forma de fazer o download de certos filmes e certas histórias gratuitamente. De certa maneira, eu estou selecionando e colocando disponível algumas obras perdidas pelos torrents da vida ou que ainda não estão no ciberespaço. É muito difícil lutar contra ou depender de Hollywood, esse talvez seja um jeito de resolver as coisas, não de ganhar a batalha, mas de oferecer uma alternativa. Meus filmes vão estar lá. Nós vamos ter, aos poucos, legendas. O Cinepata não vai cobrar pelo download ou cobrar dos cineastas que decidirem colocar disponíveis suas obras. No entanto, ele é diferente do Youtube, pois vai haver um processo seletivo. Será uma espécie de McOndo digital”. O último livro de Fuguet lançado no Brasil foi Os filmes da minha vida (2005), mais um relato (e desta vez ainda mais pessoal que Baixo-astral) sobre ser um chileno imerso na cultura pop americana. “Meu último livro lançado no Brasil é muito velho”, reclama. No entanto, ele chega ao Recife quando sua nova obra é lançada no Chile: “O título é Missing: una investigación. O título é mesmo em inglês. É um romance de nãoficção, mas ainda assim uma ficção. É sobre um tio meu que se ‘perdeu’ nos Estados Unidos e estamos há 17 anos sem notícias dele. Ninguém sabe direito o que aconteceu. O livro é uma investigação. Espero que alguém o traduza para o português”. Seria possível que, algum dia, a verdadeira obra “missing” de Fuguet retorne às livrarias, a antologia McOndo? “Sem chance. Eu não quero que isso aconteça e até gosto da ideia de ter um livro ‘perdido’”. Aproveitando as presenças de Fuguet e Andahazi, o Pernambuco publica uma lista com alguns dos mais importantes títulos da literatura latino-americana das duas últimas décadas.

“Eu acredito que estou muito mais interessado num certo estilo de escritor e de criador, numa certa sensibilidade, muito mais que no fato dele ou dela ser latino-americano” Alberto Fuguet

A NOVA LITERATURA LATINO-AMERICANA McOndo

Alberto Fuguet e Sérgio Gómez (organizadores)

Baixo astral

Jardins de Kensington

O passado

Os detetives selvagens

A polêmica antologia que pregou uma nova literatura latino-americana para além de qualquer tom fantasioso. Os contos são irregulares, mas a obra continua relevante pelo tom irônico do prefácio dos dois organizadores, que você encontra fácil online.

Romance de formação de um adolescente chileno, perdido entre a cultura pop e a ditadura de Pinochet, durante aquele começo dos anos 1980, que foi de virada política para a América Latina. Obra-prima de Fuguet.

Um dos mais curiosos autores da nova safra. No lugar do realismo mágico, a psicodelia e um apego ao absurdo do mundo à Lewis Carroll. De embalagem pop, o livro se passa na Londres dos anos 1960 ao som dos Beatles.

O argentino Alan Pauls retoma aqui o velho tema da dependência emocional de um casal após a separação, mas com todos os fantasmas próprios de ser latinoamericano assombrando a equação.

Um livro sobre mexicanos perdidos no México. Com esse mote, Bolaño constrói um quadro tocante sobre todos os latinos que perderam suas pátria e cultura nas lutas por liberdade das últimas décadas.

Alberto Fuguet

Rodrigo Fresan

Alan Pauls

Roberto Bolaño


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CAPA

Aprenda a mentir sem enganar Essa é uma das lições do argentino Federico Andahazi Marcelo Pereira

O escritor é um mago. “O ofício do escritor é mentir sem enganar. Assim mesmo é a magia”. Um dos autores mais bem-sucedidos da América Latina, o argentino Federico Andahazi sabe como cunhar frases perfeitas, que enredam o leitor em tramas urdidas com engenho, capaz de transformar sua novela de estreia O anatomista (1996) num best-seller internacional, com milhares de exemplares vendidos, traduzido em mais de 30 idiomas, que deve ganhar os palcos pelas mãos do dramaturgo Luciano Cazaux e a tela larga numa produção americana dirigida pela diretora argentina Gabriela Taviaglini. Andahazi é um mago, mas não como Paulo Coelho, com suas histórias exemplares beirando a autoajuda e o misticismo barato. O escritor argentino é o oposto: provocador, chegado a temas polêmicos, movido a sexo e que se apropria do corpo alheio. Em sua primeira novela, ele toma emprestado como protagonista o anatomista renascentista italiano Mateo Realdo Colón (Mateus Realdo Colombo), médico papal do século 16, descobridor das leis da circulação sanguínea e da oxigenação pulmonar, autor do tratado De re anatomica, publicado em Veneza no presumido ano de sua morte, em 1559. Mateo dizia ter descoberto o Amor veneris, o órgão que governa o prazer nas mulheres – e justamente ao fazer exame nas partes íntimas de uma prostituta. Este órgão é o clitóris, mas em nenhum momento o escritor argentino usa esta palavra para defini-lo. Para Andahazi, O anatomista é uma reflexão mais ou menos irônica sobre a relação entre ciência e poder (com a Inquisição batendo à porta e a mulher se descobrindo sexualmente. Que pecado!). DESEJO COMO INSTRUMENTO O psicanalista Contardo Calligaris vê em Mateo o “verdadeiro herói moderno”. “Pois, descobrindo o clitóris, ele, na verdade, não está tanto querendo reformar a anatomia, mas correndo atrás de um órgão que lhe daria, enfim, controle do gozo feminino e lhe permitiria ‘tocar uma mulher como um instrumento’. O que o seduz é a possibilidade de fazer gozar qualquer mulher e – talvez mais importante ainda – de fazê-la gozar de uma maneira familiar, como goza um homem, por exemplo.” A descoberta de Mateo é tão importante quanto a de seu contemporâneo Cristóvão Colombo: a América. Tanto que Andahazi usurpa um verso de John Donne para atribuí-lo ao anatomista, quando o personagem se refere ao clitóris exclamando: “Oh minha América, minha doce terra descoberta”. O anatomista teve uma trajetória surpreendente: ganhou o Prêmio Jovem de Literatura da Fundação Amalia Lacroze de Fortabat, mas sua patrona se recusou a fazer a entrega do prêmio (embora tenha assinado o cheque para o autor). Dona Amália não gostou do conteúdo erótico da obra e não queria ver seu pudico nome associado à novela. Além do prêmio em dinheiro, Andahazi terminou ganhando uma tremenda publicidade. Andahazi não brinca em serviço. É um escritor calculista. Sua escritura é clássica, bem estruturada. Ao contrário da maioria de seus contemporâneos e conterrâneos, que estão presos ao presente, a uma escrita realista por vezes violenta e desesperada, crua e urbana, Andahazi gosta de se refugiar no passado e de se apoiar em personagens históricos, para construir sua ficção nos interstícios, nos vazios, nas ausências de informações precisas e silêncios

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discursivos, criando uma versão (mentira) verossímil numa escritura em que aparentemente se combinam, repetem e coincidem outros textos, como assinala o Hugo Hortiguera (da Griffith University, Austrália), num jogo reiterado entre texto e contratexto, a certeza científica e a ficção, o permitido e o censurado. Alguns críticos que tinham ficado com um pé atrás com o sucesso arrebatador da primeira obra de Andahazi franzem o cenho quando o autor lança a novela gótica moderna As piedosas, sobre três irmãs, Legrand, Colette e Babette, que criaram o vaudeville e foram processadas em Paris, no século 19, por escândalo público e pornografia pela publicação da obra A tentação. Elas teriam uma irmã chamada Anette (personagem chave do enredo), da qual não se tem provas, mas cuja existência é verossímil. É justamente Anette quem vai seduzir e importunar o doutor Polidori, autor do clássico O vampiro e secretário particular de Lord Byron, que hospeda no verão de 1816 na Vila Diodati, no Lago Leman, Suíça, ninguém menos que os escritores Percy e Mary Shelley, além de Claire Chermont. E aí vem o golpe de mestre de Andahazi. O argentino havia publicado um artigo no jornal La Nación no qual ele comenta o “extenso comentário”, assinado pelo psicanalista italiano, radicado na capital paulista, Contardo Calligaris, publicado na Folha de S.Paulo. Calligaris escreve que ao consultar o único exemplar da obra de Colón na Biblioteca de Medicina de Washington, descobre que poderia ter pertencido a Mary Shelley, e tem notas assinadas por um doutor chamado Franckenstayn (sic). O texto prenuncia seu segundo livro e destaca uma curiosa coincidência literária que liga o tratado De re anatomica, de Colón. Andahazi diz sentir uma “estranha e arrepiante” impressão de que a ficção está constituída de “misteriosos despojos, de fragmentos de memórias alheias e, quase sempre, irreconhecíveis”. E mais, que a literatura é autorreferencial e que, no futuro, se acomodará num intrincado quebra-cabeça da literatura. Pois, embora exale sexo em suas páginas vampirescas e aterradoras, As piedosas, na verdade, é uma obra que tem como X da questão, borgianamente, temas como o plágio e a autoria, o relato como citação e espaço para enganos e mistificações, paródias, pastiches, apropriação e reciclagem, como ressalta Hugo Hortiguera. Dessa forma, Andahazi goza e faz gozar com o corpo-palavra do outro.

Best-seller internacional, Andahazi é um dos convidados da Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, em outubro

A NOVA LITERATURA LATINO-AMERICANA Ciências morais

A virgem dos sicários

Trilogia suja de Havana

Santa Evita

Rosário Tijeras

Martín é hoje um dos mais premiados autores argentinos. Aqui, as duras regras de um colégio interno servem como alegoria da ditadura vivida na Argentina no final dos anos 1970.

Todo o terror do tráfico de Medellín acrescido com doses violentas de sexo e contestação religiosa. Após essa obra, infelizmente, Vallejo só fez repetir a si mesmo.

Assim como Vallejo, Gutierrez se tornou uma personalidade da mídia, que muitas vezes causa eco na sua escrita. Mas nessa coleção de histórias sobre uma capital cubana que pulsa em pleno outono do seu patriarca, sua voz se faz ouvida sem as distorções midiáticas.

Metade reportagem, metade ficção sobre o tortuoso percurso do cadáver de Eva Perón. Livro exemplar sobre os zumbis que nos assombram até hoje.

A estreia no romance desse autor colombiano foi sucesso imediato em 1999: edições esgotadas em poucos dias e uma adaptação para o cinema. Rosário é a típica femme fatale rápida, mortal e dúbia, que deixa dois grandalhões sem saber o que os atingiu.

Martín Kohan

Fernando Vallejo

Pedro Juan Gutierrez

Tomaz Eloy Martínez

Jorge Franco Ramos


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REPRODUÇÃO

TRADUÇÃO

Tradutor sem crime ou castigo Paulo Bezerra diz como chegou ao Dostoiévski ideal Luciana Veras

Ele é tradutor de 50 obras em variados campos de estudo: antropologia, economia, filosofia, psicologia, teoria da literatura. Por suas mãos, ganharam versão em português A construção do pensamento e da linguagem, de Lev Semenovich Vigotski, e Estética da criação verbal, de Mikhail Bakhtin, entre outros. Porém, não são os dois intelectuais soviéticos o objeto de devoção de Paulo Bezerra, e, sim, um outro cossaco, autor de alguns dos volumes mais importantes da literatura mundial. O mergulho no universo de Fiódor Dostoiévski é aspecto essencial da vida deste paraibano de 69 anos, que acaba de ganhar dois prêmios por verter, direto da língua-matriz, o mítico Os irmãos Karamázov: o da Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras pelo conjunto da obra. A noção de “conjunto da obra” é crucial para entender seu trabalho. São de Bezerra as traduções de Crime e castigo, O idiota e Os demônios; é dele uma nova leitura de O duplo, que será entregue, ainda em 2009, à Editora 34, uma das responsáveis pela publicação dos escritos de Dostoiévski no Brasil. Sua dedicação ao autor é tamanha que pode, e deve, ser filiada a um sentimento de apreço e admiração. Em doses iguais. Para alguém que nasceu em Pedra Lavrada, a 180 km de João Pessoa, com sonho infantil de ser médico, o “exercício solitário” da tradução transformou-se em “um imenso diálogo através da obra”. “Estudei russo, em Moscou, e fiz o curso de tradução tendo em mente traduzir Dostoiévski”, revela. Dessa maneira, Paulo Bezerra e Fiódor Dostoiévski tornaram-se, então, companheiros de uma fidelidade que remete ao carinho que Sônia demonstra por Raskolnikóv no final de Crime e castigo. A relação é ritualística: “Antes de começar uma tradução, releio o texto mais de uma vez, estudo os vários ambientes em que que falam as personagens, a relação do narrador com cada uma delas. Para Os irmãos Karamázov, estudei cada personagem isoladamente, do início ao fim do romance: seu histórico, sua participação, sua linguagem nas mais diferentes circunstâncias. Queria me compenetrar para estar seguro do que teria de enfrentar durante a tradução”. E, antes de cotejar as palavras lapidadas em russo com suas possíveis correspondências em português, há de se consolidar algumas certezas. “Em se tratando de ficção, o tradutor deve saber que literatura é arte e, como tal, incompatível com literalidade. Portanto, o tradutor deve ter uma clara concepção de tradução como arte. Logo, de que a tradução literal mata a obra de arte. No caso específico de Dostoiévski, a afinidade com sua linguagem é de primeira essência, pois sem isso as deformações acabam predominando sobre os acertos”, disseca Paulo Bezerra. Curioso saber que ele não escolheu o estudo do idioma de Górki e Tolstói. Foi escolhido. “Em 1963, fui enviado a Moscou para fazer um curso de ciência política na Escola de Quadros do Partido Comunista da União Soviética. Em 1964, houve o golpe militar no

Brasil e todos ficaram sem condições de voltar, pelo menos a médio prazo. Terminado o curso, fui para a Universidade Lomonóssov, onde estudei língua e literatura russa, com especialidade em tradução”, relembra. Lembranças dos oito anos vividos em Moscou existem, e são cultivadas com carinho. “Os parques, o rio Moskvá, os teatros, o Conservatório Tchaikovski, onde assisti a concertos maravilhosos. Na gastronomia, o ganso ao molho de champignons secos, o borsch, que é a tradicional sopa de beterraba, repolho e ervas com vitela e creme de leite, acompanhada do saboroso pão preto”, enumera. A temporada na metrópole onde nasceu Dostoiévski municiou o tradutor. Subsidiado pela própria experiência, Paulo Bezerra entende com mais propriedade os costumes, os valores e a cultura expressa nos originais que se aventurou a verter. Contudo, não se vangloria, mas reconhece a falibilidade do seu ofício. “Não existe tradutor que não cometa algum tipo de erro”, diz. O desafio é capturar, com acuidade, as falas dos diversos atores de um livro: “É o maior dilema. Cada personagem representa um aspecto psicológico, filosófico, ideológico, cultural do mundo real, e sua linguagem traduz o modo de ser, a maneira como a personagem vê a si mesmo, o seu mundo e os outros. O tradutor não pode arcaizar demais, sob pena de obrigar o leitor a consultas permanentes ao dicionário, nem modernizar demais, sob o risco de trair o sentido das palavras”. Ele cita um exemplo d’Os irmãos Karamázov. “Há um capítulo que no original se intitula ‘É curioso (lyubopitno) conversar com um homem inteligente’. Em todas as traduções indiretas para o português, lyubopitno aparece como ‘interessante’. De fato, pode significar isso em russo, mas sua acepção primeira é ‘curioso’. Acontece que é Smierdyakóv, filho bastardo do velho Karamázov, quem faz a afirmação a Ivan Karamázov, sondando Ivan, querendo saber até onde ele é capaz de ir em sua relação com o pai. Se dissesse que era ‘interessante’ conversar com ‘o homem inteligente’, estaria ‘entregando o ouro’. Portanto, trata-se de uma interpretação equivocada da palavra em seu contexto específico”, condensa. Apesar do amor confesso, Paulo Bezerra abraça outros russos com idêntico fervor. Em breve, sai pela Editora 34 Lady Macbeth do distrito de Mtzensk, de Nikolai Lieskóv, e uma revisão de uma antiga tradução sua para cinco novelas de Gógol (O capote, O diário de um louco, O nariz, Noite de Natal e Vyi), que a Civilização Brasileira lançará como O capote e outras histórias. O livro que sonha em dissecar se chama Evguiêni Oniéguin, de Púchkin. Motivos: “É uma obra-prima, o primeiro grande romance russo, e, escrito em linguagem rimada e metrificada, a dificuldade é imensa”. Ele, no entanto, já verteu uma parte, e pretende retomá-la em breve. Depois, claro, de concluir o afetivo “projeto Dostoiévski”, com O duplo, Memórias da casa morta e O adolescente. Afinal, se não há crime sem castigo, não há escritor sem um tradutor à altura.

Ilustrações para Crime e castigo, por Luiz de Ben (Companhia Aguilar Editora, 1963)


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ENTREVISTA

Luiz Costa Lima

Ficção também é documento Um dos maiores nomes da teoria literária brasileira faz um balanço exclusivo da sua carreira para o Pernambuco e lança livro de ensaio pela editora Companhia das Letras

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Na “nota introdutória” a O controle do imaginário & a afirmação do romance, o senhor afirma que o seu primeiro livro maduro foi Mímesis e modernidade (1980). Considerando que antes desta obra o senhor tinha publicado cinco livros, que faz, do ponto de vista teórico, o ano de 1980 um divisor de água na sua produção intelectual? O ano só se singulariza por ter sido nele que publiquei a primeira obra que não considero simplesmente de aprendizagem. O juízo que faço de minha própria produção decorre de ter sido então que comecei a reconsiderar o conceito de mímesis, empregando-o a propósito da tradição poética inaugurada por Baudelaire. Minha intenção era fazer que àquele volume seguisse um outro, em que trataria da tradição poética italiana e da geração espanhola de antes da Guerra Civil. Abandonei o projeto fosse porque tinha de trabalhar muito para sobreviver, fosse porque a circulação daquele livro tinha sido pouco animadora.

Entrevista a Anco Márcio Tenório Vieira Ao responder a seguinte entrevista para o Pernambuco, Luiz Costa Lima enviou nota desmistificando um desvio de rota que persegue as notas biográficas que costumam ser publicadas sobre ele na imprensa: “Não sou maranhense. Apenas nasci em São Luís, sendo trazido para o Recife quando tinha nove meses. Vivi no Recife até ir estudar na Europa, antes mesmo de conhecer Rio e São Paulo. Voltando da Europa, comecei minha carreira universitária na Universidade Federal de Pernambuco, da qual foi excluído pelo AI/1”. Um dos maiores nomes da teoria literária brasileira e professor da PUC (RJ), acaba de lançar livro pela Companhia das Letras, O controle do imaginário

& a afirmação do romance. Ele retorna aqui a um dos temas mais fortes da sua carreira, de como a ficção sofre as imposições de uma época. Quer entender o imaginário literário de um determinado período? Pois saiba que o que não foi escrito, o que ficou de fora, é tão importante quanto o registrado. Nessa obra específica, o autor começa pelo estudo dos processos de controle da imaginação atuantes nas sociedades de cortes católicas dos séculos 16 e 17 e se pergunta por que o romance foi um gênero secundário nelas. Para realizar a conversa com Costa Lima, o Pernambuco convidou um dos especialistas em sua obra, o professor do Departamento de Letras da UFPE, Anco Marcio Tenório Vieira, que passou em revista a ênfase do crítico à mímesis e sua polêmica postura em relação ao binômio ficção e sociedade.

Dentre os livros publicados antes de 1980, só dois receberam reedições dentro da sua “fase” madura: Lira e antilira e A perversão do trapezista (que ganhou um novo título quando da sua 2° edição: O romance em Cornélio Penna). O que o leva a colocar novamente em circulação determinadas obras da sua 1° fase e excluir outros títulos?

O Lira e antilira foi republicado com exclusão de mais de 100 páginas. Além disso, na nova introdução rejeito parte da interpretação que dava a Drummond. Mesmo considerando essas mudanças, não o teria publicado sem o empenho do editor da Topbooks, José Mário Pereira. Ele julgava que, apesar de minhas restrições, a interpretação de João Cabral permanecia válida. O argumento não é o mesmo no caso de O romance


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O que ficou de fora, o que não foi registrado, é tão importante como aquilo que foi documentado

em Cornélio Penna. As objeções à abordagem ali empreendida se resumiam (a) à introdução, onde o direcionamento teórico parecia-me não ressaltar a singularidade de A menina morta, e (b) à abordagem analítica, ainda muito dependente na análise lévi-straussiana do mito. A primeira objeção foi superada com a mudança da introdução. A segunda era menos grave. Limitei-me aí a pequenos cortes. A interpretação continuava e continua a me parecer fecunda. Por isso tomei a iniciativa de reedição. Porém, mesmo que me propusessem, não aceitaria a reeedição de meu livro de estreia, Por que literatura (1966), de minha tese de doutorado, Estruturalismo e teoria da literatura (1973) e de A metamorfose do silêncio (1974), a menos que pudesse chamá-las obras imaturas. No próximo ano, com a publicação de uma série de entrevistas, em que cerca de 10 perguntas são reservadas para cada livro que tenho escrito, todas essas questões ficarão bem explicadas.

Em conferência dada na UFPE, em novembro de 2006, o senhor se referiu ao romance A menina morta, de Cornélio Penna, como uma obra que explicava mais sobre a sociedade brasileira do que, por exemplo, Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre. Ao fazer tal afirmativa o senhor não está a atribuir a Penna o mesmo valor que alguns críticos imputam a Machado de Assis: o de que o valor literário da sua obra se revela na medida em que ela descortina a sociedade do seu tempo? Embora suspeite que não me tenha referido a Menina morta nestes termos, proponho-me mostrar no livro — e isso é acentuado na nova Introdução — que do romance de Cornélio ressalta o antimito acerca da relação entre senhores e escravos de que o Casa grande formulara o mito do congraçamento das raças. O fato de eu abominar

as interpretações do ficcional como documento histórico não significa que cometa o absurdo de negar que a obra ficcional tem um enraizamento histórico. Negá-lo ou considerá-lo algo secundário seria digno do chamado desconstrucionismo, com o qual nunca tive simpatia. Nada impede que se acentuem os índices temporais contidos por uma obra ficcional. O problema consiste em, reduzindo a ficção a documento histórico, não perceber a própria constituição de sua forma.

Ao recolocar o conceito de mímesis na ordem do dia, o senhor revelou um outro aspecto que pontuou os últimos 500 anos da literatura ocidental ou ocidentalizada: o do controle do imaginário. Como o repensar do conceito de mímesis levou-o ao do conceito de controle do imaginário?

Em vez de uma explicação teórica, prefiro a reconstituição empírica de como isso se deu. No começo da década de 1980, depois de iniciar o requestionamento da mímesis, ao reler os românticos brasileiros e, especialmente, a polêmica de Nabuco com Alencar, tive consciência de como a referência aos bons costumes, à linguagem escorreita, ao modo apropriado de fazer com que a literatura no Brasil se diferenciasse da europeia ou ainda à preocupação de estar em dia com o que se fazia lá fora supunham o controle da produção literária nacional. (Suas duas grandes vítimas: Machado — cf. as críticas desastrosas de Sílvio Romero — e Sousândrade — tão avançado que seria provavelmente “controlado” em qualquer outro país). Resolvi então ler atentamente as poéticas europeias e/ou o conjunto de preceitos vigentes na Europa a partir do Renascimento. Espantei-me em verificar que o exercício deste controle não era privilégio nosso. O primeiro livro

que editei a respeito, O controle do imaginário, saiu em 1984, quando eu já me encontrava como professor nos Estados Unidos. Como aí permaneci durante dois anos e meio, dispus de um acesso a bibliografias inimagináveis no Brasil. Concentrei-me então no século 18 francês e na América Hispânica. De posse deste material, foram publicados os dois volumes que constituem a série do controle, o Sociedade e discurso ficcional (1986) e O fingidor e o censor (1988). A questão teria terminado aí se, outra vez, José Mário não tivesse tido a ideia de republicar os três livros em um só. Relendo-os, não só modifiquei muito sua feição original, como compreendi que o resultado daquela enorme pesquisa terminaria incompleto se se encerrasse no livro agora então intitulado Trilogia do controle (2007). O resultado terminaria incompleto porque ali apresentava a comprovação empírica da presença do controle em três momentos e/ou áreas: o Iluminismo francês, a América Hispânica e o Brasil. Ou seja, comprovava o exercício efetivo do controle, sem dar condições para que alguém se perguntasse: por que a sociedade precisara daquele controle? Assim se explica a primeira parte do livro que agora é editado: recuando ao começo do Renascimento italiano, procuro mostrar a razão por que a sociedade moderna ocidental teve necessidade de empregar todo um complicado mecanismo de controle do imaginário. (Entenda-se que controle não é sinônimo de censura. O controle supõe o estabelecimento de salvaguardas para que certa obra — verbal ou plástica — não contrarie os valores dominantes no estrato que exerce o poder na sociedade). Voltando aos termos da pergunta, diria sinteticamente: a dificuldade que já se percebe nos romanos, na Arte poética de Horácio por exemplo, e se sistematiza com a redescoberta

Não me considerei competente para tratar de uma questão: que relação há entre mímesis e pintura abstrata? da Poética aristotélica no Renascimento, em compreender o que seria exatamente a mímesis, dificuldade de que resultava sua tradução desastrosa por imitatio, já era a prova indireta de um controle em ação.

Depois de quatro livros versando sobre mímesis, o senhor acha que algo ficou ainda por ser dito? Algum aspecto da mímesis ocidental ainda não foi contemplado? O senhor acha que supriu as lacunas deixadas por Walter Benjamin, René Girard e Theodor Adorno? Não falaria da contribuição de Benjamin, figura que admiro, mas me parece prejudicado pelo tom críptico de muitos de seus ensaios, sobretudo o pequeno que dedicou à questão da mímesis; tampouco de Girard, porque ele associa a questão da mímesis à singularidade do cristianismo, entre as religiões, coisa de que não entendo. Mas tanto a propósito da Teoria estética de Adorno, como da teoria desenvolvida por Jacques Derrida, posso assegurar que o que tenho feito não se confunde com as posições deles. Isso significa que está esgotado o que teria a dizer a respeito? Não, porque até agora não me considerei competente para tratar de uma questão central: que relação há — se há alguma — entre mímesis e pintura abstrata?

Quais são os controles do imaginário que pautam a literatura brasileira nesses últimos 20 anos e, principalmente, quais são as patrulhas intelectuais e acadêmicas que terminam por direcionar os caminhos hoje da crítica literária no Brasil?

Não creio que, dentro do tempo assinalado, algum mecanismo controlador novo se apresente. Neste período, por certo, aumentaram as dificuldades para uma produção ficcional e analítica de qualidade. Refiro-me à diminuição

sensível dos suplementos culturais, à voracidade — tão usual dentro do capitalismo — de um grande número de editoras, cujo único critério é o favorecimento dos best-sellers, dos livros de ajuda e de diluição, o quase desaparecimento de um jornalismo cultural e o pouco desenvolvimento das editoras universitárias. Mas não creio que esses fatores possam ser considerados entre os mecanismos de controle. Quanto a estes, vejo, ainda que de forma incipiente, o aparecimento de um elemento questionador de controle tipicamente nosso – ou latinoamericano: refiro-me ao questionamento do critério de nacionalidade e da obra como documento. Isso se mostra expressamente no realce de uma dimensão internacional no romance de Bernardo Carvalho, na exploração reflexiva do que antes teria uma dimensão regional, em Milton Hatoum etc. Mas essa quebra de grilhões tem seu efeito retardado pela atrofia que se apossou dos cursos de letras, presos à ausência de uma formação teórica efetiva, ao desconhecimento de línguas estrangeiras pelos alunos e pela incapacidade docente em desenvolver a faculdade de reflexão deles. Assim permanece uma patrulha acadêmica que tem como seu totem Mário de Andrade; a seu lado, proliferam outras patrulhas que se caracterizam por um primarismo de dar vergonha – o estímulo à literatura de temática feminista ou favorecedora das minorias eróticas ou os chamados “estudos culturais”. É deprimente essa proliferação do mediocrizante. É ótimo que se defendam os direitos das mulheres e das minorias sexuais e que se aproxime a literatura da cultura como um todo. Mas isso, em si, não tem nada de específico à literatura; é, sim, uma atitude apreciável nos cidadãos.


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PERFIL FLORA PIMENTEL


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Mais próxima de Deus e do diabo, amém Cida Pedrosa faz um balanço da vida entre poesia e certas mulheres safadas Ana Braga Foi telepatia, sorte, mera coincidência ou sei lá. Só sei que eu dirigia o carro distraída, gastando o juízo para encontrar as primeiras linhas deste texto, quando o celular tocou. Distante que eu estava, pensando no que o leitor gostaria (ou não) de saber por aqui, atendi. Era Cida Pedrosa, minha pauta, de quem tirei quase três horas de conversa franca e não linear gravada num mp3 (depois transcrita em 10 folhas de A4 que valeriam outra publicação), entre doses de licor de Amarula e capuccino servidos num café no Centro da cidade. A ligação foi um pedido. O único que Cida me fez. E eu aceitei. Solicitou apenas que eu não escrevesse sobre um parente próximo, com quem compartilhou aventuras no Recife, depois que ambos deixaram Bodocó, no Sertão de Pernambuco. Havia uma intimidade em segredo na família. “Mas, o que for meu, você pode arroxar”, permitiu. Assim, nessa honestidade, Cida me deu o mote para começar a contar a sua história. Contar da sua poesia sobre o ordinário, das cenas que cortam o seu cotidiano; do isolamento e do coletivo; do sexo além do pênis ereto; de fé; dos seus projetos e inquietações. “Eu sou

A degustação do fruto proibido era feita em cima de uma goiabeira, com a cumplicidade total de um amigo muito aberta para o mundo. Eu sou muito dialética”, confirmou ao início da entrevista. Correndo o risco de ser fútil e/ou inútil, faço mesmo assim uma apresentação formal de Cida Pedrosa. Nascida em 1963, em Bodocó, é poeta e advogada dos Direitos Humanos (orgulha-se dessa identidade). As Filhas de Litith (Calibán Editora) nasceu por último. O título, lançado em maio passado, tem poemas sobre 26 mulheres. Cada uma casa com uma letra do alfabeto. E todas casam com histórias nossas. Vivem nos nossos quartos e esquinas, com ou sem homens. Temos a personagem Elisa, que “sempre quis fazer amor com deus/ na igreja/ enquanto todos rezam contritos”. Fátima, ou dona Fátima, “vende goiaba na feira/ participa da associação comunitária e espera o dia em que a agência de modelo convide Priscilla para desfilar no shopping center/ e que Wesley termine o curso de informática para pilotar o caixa do supermercado Carrefour”. Kadih, depois de ter o clítoris cortado, sente que a fé é a dor e o rastro de deus, uma fístula. A estreia de Cida como escritora foi em 1982, pela coletânea de poemas Restos do fim. Depois desse, mais três: O cavaleiro da epifania (1986), Cântaro (2000) e Gume (2005). DA SAFADEZA A DOSTOIÉVSKI Cida foi menina de andar de bicicleta e baladeira. De soltar pipa. De vestir macacão frouxo de firma ao invés de vestido de bordado. De sentar de perna

aberta na praça de Bodocó. De ter amigos meninos na cidade. De desafiar os pais, Maria e Francisco. De safadeza e curiosidade. “Eu li a coleção Menina moça inteira da Escola Municipal de Bodocó, mas também li muita literatura erótica, que na época era considerada literatura B. Eu lembro de ler as pornografias de Adelaide Carraro e Cassandra Rios, que eu nem sei que fim levaram”, contou. A degustação do conteúdo proibido era feita em cima da goiabeira, com a cumplicidade do amigo Cícero Belmar. O livro de história servia de anteparo. Os pocket books gastos e baratos de faroeste de M. L. Estefania e de investigação de Brigitte Montfort também distraíam a menina afoita do Sertão. Para ler Jorge Amado, Cida precisou de autorização dos irmãos mais velhos. A professora da escola implicou com Gabriela nas mãos da menina que já conhecia o cravo, a canela e outros encantos. A teimosia ainda lhe apresentou a Dostoiévski. Tinha de 12 para 13 anos, quando leu o autor russo do existencialismo, dos temas duros e atemporais, do suicídio, da loucura, do Crime e castigo. Em certa medida, o romancista das ideias de O diário de um escritor lhe dava as primeiras pistas do que ela queria ser, quando crescesse: crédula. Nela e nos outros. Hoje, a 630 quilômetros do Sertão e distante anosluz da goiabeira, Cida tem certeza que quebrou amarras na pequena sociedade bodocoense. “Precisei ser ambígua. Ao mesmo tempo que me zangava com os valores, com as castrações e repressões exercidas principalmente pelos homens, eu andava com a rapaziada, jogando bola, porque era o que eu podia fazer de mais contestador e revolucionário”. DA RUA E DO DIREITO Deixar Bodocó aos 14 anos foi um desafio natural. Excêntrico e doloroso foi encontrar a favela. “Vivi o impacto de sair do interior e da tristeza da qualidade de vida do Recife. Tinha pobreza em Bodocó, mas era velada, dentro dos sítios, protegida pelo coronelismo. Na cidade grande, estava escancarada. Recife me deu uma porrada”, lembrou. Quando chegou à capital, em 1986, Cida foi estudar no Colégio 2001, no Centro da cidade. O irmão Absolon era o dono da escola e o tutor dela. “Naquele momento eu me olhei no espelho e disse ‘Eu quero fazer isso. Eu quero aprender. Isso é de vera’”, contou Cida, referindo-se ao Interpoética, um fanzine editado no colégio, com um “bocado de gente que hoje é famosa, como os escritores Cícero Belmar, Wilson Freire, Eduardo Martins e Raimundo de Moraes”. A produção era intensa e os poemas, feitos coletivamente. Desse tempo, Cida tirou Maria. “Aqui jaz Maria/ quem em dias vermelhos/ deu a todos um sorriso azul”. Cida e os amigos sentiam que mudavam o mundo diariamente. Com vários deles fundou o Movimento dos Escritores Independentes de Pernambuco. A poesia era oferecida na rua a garis, motoristas, funcionários públicos, estudantes, donas de casa, prostitutas, freiras, quem passasse pela Livro Sete, no Centro da cidade. Era um público espontâneo de personagens urbanos e ordinários, matéria-prima predominante do trabalho de Cida. “Uma vez eu estava apresentando um poema, quando um bêbado gritou ‘Sai daí, mulher safada’. De alguma forma, ele me ouviu”, comentou. A experiência do grupo deu à poeta a sua cidadania literária. “Éramos um bocado de pirralhos afoitos. Mas, hoje não se conta a história da literatura dessa cidade sem se contar desse movimento. Quando você é verdadeiro, mesmo falando bobagem, você é respeitado, não é”?, defendeu. Cida quis se formar jornalista, mas só conseguiu nota para passar no vestibular de Direito. Todo jovem “cabeça feita” queria fazer Jornalismo nos anos 1980. Anos da abertura política do Brasil.

“Fui trabalhar na defesa dos Direitos Humanos e especialmente dos trabalhadores. Ajudei a construir o primeiro dissídio coletivo do Vale do São Francisco, em Petrolina, e perdi um filho aos sete meses de gravidez, fugindo da morte no interior de Pernambuco”. Desse tempo para cá, Cida também se fez militante do comunismo. O quarto poente da casa foi o título de uma resenha que escreveu na faculdade, sobre os direitos das domésticas. E foi desse (in)cômodo que Cida passou a ver a vida. O HUMANO E O ÔNIBUS Matinal, feito café com pão e manteiga. As filhas de Lilith foi escrito das 6h às 10h. Poema de outro livro, O ruído saiu inteiro durante voltas na pista do Parque da Jaqueira. Cida prefere trabalhar nesse turno, porque a casa ainda dorme. Porque o silêncio ainda lhe pertence. “Eu gosto de interagir, mas preciso de solidão, se não eu me gasto. Quando eu escrevo, eu sou muito para dentro”, observou. Cida tem dislexia, um distúrbio de aprendizagem que dificulta a decodificação das palavras, trava a leitura, a fala e a escrita. Teve o diagnóstico já adulta, quando acompanhou um dos filhos nos consultórios, para tratar da mesma coisa. Os “meninos” de Cida receberam o nome do avô materno, Francisco, e de um revolucionário e poeta, Vladimir. O primeiro tem 15 anos e outro, 11. “Filho é a coisa mais absoluta do ser humano. Fora isso, tudo é relativo. É tão forte, que dá medo. É o que fica mais próximo de deus e o diabo”, confessou, admitindo um certo assombramento. Francisco, Vladimir e o companheiro Sennor Ramos são leitores críticos da poesia de Cida. Sabem poemas de cor. “Não é simples ter uma mãe como eu. Eu sou muito liberada. Falar e fazer sexo, por exemplo, para mim é como respirar e beber água. Quando rola com fraternidade, sexo é uma química absolutamente maior do que dois peitos duros e um pênis ereto. E quem disse que mãe não tem xoxota? Não existe tristeza maior do que não estar inteiro na sexualidade”. Na poesia de Cida não existem vidas comuns. Cada uma esconde um milagre. Lilith, defendeu a poeta, é uma grande observação do humano. Nos seus detalhes banais, mas não menos extraordinários. “É mais fácil rebuscar um poema, encher de metáfora o que metade da humanidade já escreveu, do que ir ali no simples, no que qualquer cidadão entenda. A simplicidade é muito mais comovente”, defendeu. Fica óbvio que ela se expõe ao que acontece nas calçadas, praças, botecos, metrôs, igrejas, camas, cozinhas, blogs, sites e sítios onde há gente. Em certa medida, tornou-se jornalista, repórter também. Repórter do que não é manchete de jornal. Cida espreita e escreve sobre os dramas de pessoas comuns, com respeito a cada história, cada personagem. Metade vem do que ela escuta. Metade, do que percebe. “A minha literatura sofreu e sofre, depois que aprendi a dirigir. Parei de andar de ônibus, um lugar de interlocução e vivência. Eu via as coisas, anotava e levava para casa. No meu carro, não consigo fazer isso”, lamentou. DE WIKIPÉDIA E FÉ Com Sennor Ramos, Cida criou a Andararte, Associação de Cultura, Cidadania e Arte. A Ong prepara o Interpóetica, site na internet que divulga poesia e poetas, para ser um Ponto de Cultura. Tem projetos para trabalhar com construção de textos em comunidades do Recife e viabilizar publicações de outros autores, em edições de baixo custo. No site Escritoras suicidas, ela é colaboradora. Cida também gesta Rituais, um ritual de passagem. Da poesia para a prosa. Ao mesmo tempo, cuida do Visitação ao Capibaribe, futura coletânea de poemas sobre o rio, e do Inventário de lembranças, uma memória de Bodocó. “Prosa para mim é novo. Mas não estou mais na idade de agradar ninguém. Nunca fiquei em castelo de marfim ou pretendi ser intelectual atrás de birô. Da academia, espera-se análises, críticas e tudo. O que me interessa é o retorno do cidadão comum”, admitiu. “Sou uma pessoa de muita fé. Fé nos homens, nas pessoas. Alguém que passa a noite todinha e o dia digitando Machado de Assis no Wikipédia, o site colaborativo, só pode estar fazendo o bem”. Nesse ponto da conversa com Cida, o meu gravador mp3 já continha parte importante da alma da poeta. Cida fez questão de pagar a conta dos licores e capuccinos. E sem cinismo algum me deixou um sorriso fraterno de troco.


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ENSAIO

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A difícil travessia das revistas sobre sexo do papel para o mundo virtual Valmir Costa

“Vai ser bom para você? 10 pistas para pensar muito bem antes de experimentar uma noite com um homem ruim de cama. Quem avisa amiga é!”. Assim estava a chamada da revista Nova na versão online da edição de junho. Descendo a barra de rolagem da homepage mais uma dica daquelas: “25 segredos sexuais que ele está louco para dividir com você”. A cada clique do mouse, mais dicas e dicas até chegar à outra matéria: “50 coisas que os homens gostariam que você soubesse”. Oitenta e cinco dicas depois, mais um texto ensinando a “Prazerosa arte de beijar: um dossiê com os tipos mais gostosos, o batom e a ala masculina, doença do beijo... Beija, Beija, Beija”, ordenava a reportagem especial na seção Sexo e amor. Hora de acessar o site da revista Playboy e ver uma capa com a chamada “Scheila Carvalho: o retorno”. Não fosse pelo fato da ex-dançarina de axé ter aparecido peladona em edições anteriores, as quatro fotos seminuas dela não teriam surtido efeito. Pelo menos para aquilo que se propõem revistas de cunho erótico. Do mesmo modo, o site da G Magazine chama o internauta a ver a nudez de “Toni Sales: o tchan de Scheila Carvalho”. Depois convida a ver o making of do ensaio fotográfico e em vídeo para ver o “Tempero baiano do jeitinho que a gente (e a Scheila Carvalho) gosta!” Mais um clique de mouse e... Acesso restrito! Precisa ser assinante para ver o desnudo em questão. A transposição das revistas impressas para as versões online abre uma questão salutar para repensar as funções destas revistas. Antes, se serviam para corroborar com a libido do indivíduo, continuam com a mesma função quando repensadas no ambiente virtual. Entretanto, com desencontros assimétricos na relação impresso/cibernético. Basta ver as 85 dicas sobre sedução e sexo que a revista Nova dá na versão online da mesma forma que na impressa. Tantas dicas, em forma de segredo, reduzem o discurso da Nova àquilo que fica incutido nas entrelinhas da mensagem: a culpa. Mas a mulher necessita tanta dica sobre sexo, uma vez que

a internet é uma ilha cibernética cercada de sexo por todos os lados? Sim, pois a Nova não considera a libido e a curiosidade feminina para além da sua linha editorial impressa. SEM CULPA O espaço virtual é um território sem culpa. Dessa forma se arma o contrassenso das publicações que migram a mesma fórmula impressa para o virtual. No que diz respeito ao sexo, são migradas com os mesmo valores morais da sociedade visível, na qual o filtro da censura moraliza o desejo. É o que Freud chamou de superego, que filtra nossas pulsões mais primitivas, local onde habitam nossos desejos, que ele chamou de id, para a construção do nosso ego, que é esse indivíduo social cheio de regras morais. Porém, quando o ego se submete ao id, torna-se imoral. O mundo virtual se despiu do filtro moral e mandou o superego para as cucuias. Enfim, este local longe – se não real – pelo menos, imaginário. As revistas femininas ainda transportam este filtro censor ao mundo virtual. Nessa lógica desencontrada, surge no falatório das novas normas morais atreladas ao universo feminino como a discussão “se sexo virtual pode ser considerado traição”. Toda essa celeuma advém do processo chamado de cibercultura, ou cultura cibernética, que fez emergir uma nova espécie humana: o ciborg. Originário da junção de cibernético + organismo, o termo foi cunhado por Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline, em 1960, e muito em voga na atualidade. Determina as novas práticas humanas com o auxílio da máquina como mediadora. Enfim, um processo híbrido entre homem-máquina, fenômeno conhecido como póshumano. E essa máquina não vai frear. Pelo contrário. Só tende a crescer numa velocidade alarmante. Apesar disso, este hibridismo homem/máquina demanda uma mudança gradativa nas relações de gênero e poder entre o masculino e o feminino numa


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FLÁVIO PESSOA

Por que tanto pudor nos sites das publicações, quando a internet é uma ilha cercada de sexo por todos os lados? relação dialética. Cria-se, porém, um novo estatuto do corpo. Logo, uma nova roupagem ao grupo feminino, que a Nova não traduz online. Alguns teóricos com estudos da cibercultura dissertam sobre o ciberfeminismo. Nele, os sentimentos femininos – como o amor – são potencializados numa correlação entre o “comando”, o “controle” e a “comunicação”, que a faz inteligente. Com isso, o estereótipo do sexo frágil é eliminado, pois o sexo oposto é usado como uma vertente somatória e não antagonista de poder. A mulher cibernética pode e faz! No entanto, são conjecturas rumo a modificações de uma tradição histórica. Por conseguinte, as revistas na versão online voltadas para o sexo masculino com orientações sexuais opostas, como a G Magazine e a Playboy, dão um bonus track aos seus assinantes. Ambas possuem seções com vídeos de mulheres anônimas em cenas de striptease, no caso da revista masculina, e até cenas de sexo explícito, como a revista gay. Isso mostra um novo fazer discursivo do sexo no meio cibernético, que envolve a relação do público versus privado. Muito mais do que isso. Envolve uma relação de poder entre um grupo estabelecido e um marginalizado, que são inversamente hierarquizadas no mundo virtual. Nele, gays podem ser quem são sem pudores. Podem até ver cenas, vídeos e fotos de sexo explícito. Essa prática está relacionada ao id. No social, pode até ser pornográfico, mas na internet, não. Tradicional, o modelo Playboy permanece de forma acomodada para quem ocupa o poder no social (impresso), mas cheia de recalques no mundo virtual. Isso porque obedece à necessidade de encontrar o objeto de desejo, ou seja, as peladonas em fotos e vídeos, satisfazer suas pulsões sexuais masculinas (id), sem transgredir as exigências do social (superego). Logo, os leitores da Playboy são puros machos ególatras. Mas, quando o ego se submete ao superego, esse homem se desespera, pois isso acarreta uma insatis-

fação insuportável do seu desejo barrado. Já a versão online de Nova é puro superego. Vive presa na idealização do modelo feminino da mulher moralmente virtuosa, que deve aprender a cartilha do sexo verbal que lhe ditam para conquistar seu homem. As novas tecnologias possibilitaram o acesso a estes materiais eróticos. Elas preservam a privacidade do sujeito, mas também a mascara, pois pode ocasionar um processo neurótico com a perda da realidade com a ausência de relações interpessoais insatisfatórias e satisfatórias apenas no mundo virtual. Além do mais, incapaz de enfrentar as discrepâncias de poder acerca da identidade de gênero, pois ele se constrói no social. REVOLUÇÃO SEXUAL De forma anárquica, a internet revolucionou e popularizou o sexo. Se comparadas à gama de erotismo e pornografia encontrados na internet, as revistas em papel são tradicionais e conservadoras, mesmo quando convertidas para a versão online. Mas há ainda quem pague por isso, pois o que leva alguém a pagar a assinatura da revista online é se desfazer da prova da pornografia sem deixar vestígios. O sexo está relegado à privacidade do sujeito. Isso quer dizer que ele deve ser secreto assim como condiz o direito à privacidade, no qual o indivíduo controla a exposição de informações e acerca de si com o menor rastro possível de informações que o denuncie. A privacidade é formada, basicamente, por três preponderantes direitos de: “não ser monitorado”, “não ser reconhecido” e “não ser registrado”. Enfim, não ser visto, não ter essa “visão” registrada na mente de outra pessoa como tal “pecado”, “perversão”, “desvio” e não ser “apontado” a outrem como tal, ter essa visão do outro, em relação a este indivíduo privado, propagada aos quatro ventos. Sendo assim, se o ambiente virtual é individualizado e privado, o formato das revistas online responde a essa demanda? A resposta é não. Não responde e

não consegue se desprender do seu status moral de veículos estabelecidos e com respaldo social. É isso que ocorre. Os discursos são “institucionalizados”. Tanto é que eles se repetem diante das circunstâncias. As revistas estabelecidas no mercado editorial transportam a mesma noção discursiva para o ambiente virtual. É circunstancial um sujeito falar certas coisas; outras, não. Vai depender da doutrina em relação aos procedimentos do discurso no qual elas se fundaram e como podem se desprender deles. Enfim, quais são os preceitos das relações de gênero que criam diversos procedimentos em relação aos discursos de cada um? Quando Donna Haraway escreveu Um manifesto para os ciborgs, comentou que o ciborg é livre de quaisquer dependências. Vai ver o ciborgue é aquele tipo de homem do futuro pensado por Nietzsche em Humano, demasiado humano, que tem o espírito livre e que pensa diferente do que a sociedade espera, baseando-se na moral que iguala a todos. Tanto a Nova, a Playboy e a G Magazine têm seus procedimentos discursivos que, futuramente, podem atender essa nova demanda, pois o sexo está lá, cada vez mais anárquico, em vários ambientes virtuais. Por isso, ainda esse conservadorismo das revistas nessa transição do impresso para o digital, mascarando o desejo, essa pulsão sublimada e controlada. Como disse o próprio Nietzsche, “essa fera em nós precisa ser enganada; por isso, precisamos da moral”. No mundo virtual será?

SOBRE O AUTOR Valmir Costa é doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Sua tese, Repórter Eros, faz um balanço histórico de como as questões sexuais foram e são tratadas na imprensa brasileira.


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DESCANSE EM PAZ FLÁVIO PESSOA

nesca de capítulos que se fecham com deixas para as cenas seguintes e por citações que me davam a reconfortante sensação de que minha juvenil leitura sobre o Renascimento finalmente parecia ganhar o plot conspiratório (e juvenil) que eu sempre imaginei estar escondido naquele pseudoantropocentrismo financiado pela Igreja do século 16. E a medida que o suspense ganhava elementos cada vez mais óbvios, como as várias charadas que surgem pelo caminho do professor Robert Langdon, em seus (juvenis) “quarenta e poucos anos”, mais voraz se tornava a leitura. Era preciso dar logo um fim àquela sensação de atração pela trama. Era preciso terminar aquele tortuoso processo de seguir a favor da corrente. Que mensagem Jacques Saunière havia deixado? O que só Da Vinci sabia? Quem seriam os descendentes de Jesus? E por que raios aquele albino não morria logo? Os diálogos pueris e as descrições rasas – não em detalhes, mas em percepção – eram sublimadas por algo muito maior, um enredo que colocava um canudinho no que havia de melhor na cultura pop do suspense: das intrigas secretas da Igreja Católica ao esqueleto tensivo Mulder e Scully, representados pela dupla Robert Langdon e Sophie Neveu.

Em nome do Pai, do filho e do consumo

Já seria tempo de esquecer a franquia de mistérios do escritor Dan Brown? Carol Almeida

À imagem do próprio Deus, Dan Brown conseguiu por alguns meses ter o dom da ubiquidade. Não havia nenhum canto de livraria que não refletisse sua onipresença imperante no mercado editorial. De repente, todos os espaços pareciam ser tomados pela febre Código Da Vinci e seus incontáveis genéricos: O código Da Vinci - Edição especial ilustrada, No rastro do código Da Vinci, Abc do código Da Vinci, O caderno de viagens de O código Da Vinci, Código Atlântico de Leonardo Da Vinci, Os doze - O código que nem Da Vinci sabia, O homem por trás de O código Da Vinci, Os mistérios do código Da Vinci...E a lista não parava, engolindo tudo e todos pela sua frente. E foi então que Dan Brown entrou para o grupo – embora não muito seleto, mas certamente muito disputado – daqueles que possuem o dom do oniconsumo. Meu natural instinto de preservação piscava em néon para o meu senso crítico que aquilo, naturalmente, era mais um desinteressante produto da subliteratura empurrado goela abaixo e, como tal, deveria ser, na medida do possível, ignorado. Resistir era preciso! Ceder dinheiro a essa indústria do senso comum? Nunca. Foi aí que pedi o livro emprestado. Pensei mais tarde em justificar que estava de cama, com uma gripe congestionante que me fez perder o discernimento e me induziu à leitura de algo que me eximisse da reflexão. Seria uma maneira coerente de dizer que ler Dan Brown era mais ou menos como ligar a televisão depois de um intenso dia de trabalho, quando você apaga qualquer rastro de pensamento inteligente. Mas, a bem da verdade, quando O código Da Vinci chegou às minhas mãos, eu estava em perfeito estado de saúde. Portanto, admitindo voluntário interesse na primeira virada de página, posso dizer que resolvi dar uma chance ao azar. E tal foi a minha surpresa quando me vi completamente absorvida por aquela estrutura folheti-

GOOGLE ESPIRITUAL Dan Brown e sua sabedoria de wikipédia sobre todos os mistérios da Igreja e suas sociedades secretas eram, de fato, impressionantes, e criaram um adorno de ciência e pesquisa para uma narrativa que está bem próxima de um jogo de tabuleiro – do tipo Scotland Yard, onde em cada casa você encontra parte de uma charada. Brown, é preciso reconhecer, é um bom contador de histórias à moda antiga. Antiga de um passado bem remoto, quando os romances eram publicados nos periódicos em capítulos semanais. Naquela época, no entanto, não havia uma indústria do consumo que late para onde o rebanho deve ir – embora os cachorros de pastoreio sempre tenham existido. O código Da Vinci é causa e consequência de seu próprio sucesso e, por mérito de uma literatura confortavelmente óbvia, ele autogerou uma publicidade viral que se transformou num case de sucesso para a indústria do livro, com dezenas de subprodutos e, melhor ainda, um filme estrelado pelo top of the pops entre os grandões de Hollywood: Tom Hanks. O tempo, que passa cada vez mais rápido, já nos indica, porém, que Dan Brown tem poucas chances de se transformar em um escritor cult como aconteceu, por exemplo, com autores de best-sellers igualmente folhetinescos tais como Sidney Sheldon. Não por escrever melhor ou pior que este último, o qual certamente soube tirar proveito da irônica glamourização de seus elementos suburbanos, mas porque existe um condicionamento social e, de certa forma, religioso em Brown, de legitimar o poder de sua vítima – neste caso, a Igreja Católica – ao supostamente questionar seu papel no mundo moderno. Sim, porque nem mesmo a recente “virada” de papado repercutiu tanto o nome da Igreja Católica como este livro. Isso tudo em uma “boba” historinha de mistérios e enigmas de esfinge. O que nos leva de volta à questão da televisão. Ler O código Da Vinci (e só vim a entender isso depois que desliguei o botão da última página) é como assistir a uma dessas novelas das oito: as mensagens ideológicas estão lá, mas você, embevecido de discreto vício por aquela trama cheia de iscas fresquinhas, finge não ver. E no fim, quando o relacionamento com esse produto acaba, fica a sensação de que você sempre soube que havia algo errado ali, mas até hoje não consegue identificar o quê. E aí segue a vida tentando acertar com alguns pequenos e excitantes erros.

ONDE ENCONTRAR? Em se tratando do best-seller de Dan Brown, a pergunta correta deveria ser “Onde não encontrar?”. O livro que deixou a editora Sextante rica atualmente conta com o reduzido preço de R$ 29,90.


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A jaca é culpada de véspera

Bruno Albertim

INÉDITOS

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Clarice Lispector diria que a jaca é um elemento em eterna suspensão. À fruta, não lhe fora concedido o direito de pousar plenamente. Quando não pendurada pelo cordão umbilical, está sempre apoiada. Com seu eterno jeito de tigre de bengala – ou seria um hipopótamo daqueles que tentamos ver, em vão, no Horto de Dois Irmãos? _ passeando pela loja de cristais, é das poucas frutas a constituir ameaça. Vendida à beira da estrada ao lado de inocentes azeitonas roxas e bacias de cajás, é sempre vetada pelo condutor do veículo. Jaca!? Nem pensar! Vai empestear o carro com seu cheiro impune, luxúria doce,obsceno. Em casa, é perigo ainda maior. Não cabe na geladeira. Contamina a cozinha pelo ar. E, claro, como a manga, é mortal se ingerida com leite. Terríveis esses portugueses a nos colonizar com barbas longas e piolhos, permitindo que fruta tão obsequiosa tenha atravessado a Ásia, estagiando nas ilhas do Atlântico, até fincar morada nestas margens como se nativa fosse. No subúrbio de Aguazinha, uma jaqueira exibe-se em plena via pública. Cínico vegetal, a árvore batiza até um bairro nobre, dizem que o metro quadrado mais caro, do Recife. Ela pode atingir a altura de um prédio de dez andares. Cada planta chega a fornecer até 400 frutos. É preciso retirá-los antes que se esborrachem pelo chão. Um de seus frutos pesa entre quatro e oito quilos. Aliado à força da gravidade, constitui verdadeiro rinoceronte vegetal. Os mais precavidos evitam andar pelo Nordeste entre janeiro e abril. É quando se dá o auge das safras. Como diria Nelson Rodrigues, a jaca é culpada de véspera. Para lapidar-lhe do caráter daninho, a domesticam. Já é encontrada, aos bagos e sem o leite visgoso, em embalagens higiênicas pelos supermercados mais distintos. Jaca no cartão de débito – ou em até três vezes. Mas o preço da assepsia é a supressão da alma das coisas – não se sabe ainda bem porque, mas, em matéria de alma, há sempre algo meio sujo no espectro. Aos não-iniciados, um breve e rápido manual de uso da jaca em estado bruto: a fruta deve ser consumida preferencialmente sobre uma grande mesa, quiçá numa varanda ou alpendre; uma avó ou avô de doce autoridade deve estar ao meio das atenções, munido de uma faca do tipo peixeira. Com um golpe rápido, atinge o coração da fruta, tão logo aberta como uma colcha no varal (haveria outras imagens para a comparação, mas não seriam adequadas para publicação matinal). Se mole, toda a jaca terá seus gomos vertidos numa tigela de onde sairá para a boca das crianças. Se do tipo dura, a jaca terá os gomos extirpados diretamente da placenta para a boca dos mesmos. Depois, em fila indiana como a própria jaca, os meninos e meninas terão mãos e braços limpos do visgo com pedaços de estopa chamuscada em querosene. Não haverá qualquer culpa no ambiente.

Bruno Albertim é jornalista especializado em gastronomia. Atua ainda como colunista do Jornal do Commercio.

REPRODUÇÃO

SOBRE O AUTOR


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Rejane Gonçalves

INÉDITOS

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SOBRE A AUTORA Rejane Gonçalves é escritora, aposentada do Banco do Brasil e com formação na área de letras.

O escafandro Leio os poetas. Todos eles. Quando termino, volto ao mesmo ato: ler os poetas. Carrego o peso a mim imposto pelo meu avô materno, desde que ele roubou — das mãos do padre na pia batismal — a água; e aspergindo-a sobre a minha cabeça impingiu-me de um só golpe o nome e a sorte: vai se chamar Tristão. Será poeta ou mais nada. Acorrentei-me à leitura ininterrupta e exaustiva dos poetas na esperança de cumprir o vaticínio do meu avô, contudo uma voz soprada do outro lado, ouvida por todos os parentes, se contrapôs à dele e até agora parece ter falado mais alto. Eu seria tudo, menos poeta. Beiro os cinqüenta anos, uma calvície pronunciada, renitente, desbasta meus cabelos com a mesma firmeza de um jardineiro que arranca as ervas daninhas da grama recém plantada. Eu os encontro espalhados nos lençóis brancos, pelo chão do quarto, grudados às toalhas úmidas, estirados sobre meu corpo a parecer riscos feitos com lápis de ponta fina. Visita-me pois a calvície, nunca um verso. Jamais um deles veio às minhas mãos, brincou entre meus dedos, desequilibrou-se e me caiu numa vertigem na folha branca do papel. Devo ser pálido, de uma cor semelhante a dos bonecos de cera, não aquela comum aos mortos. Não chegaria a tanto. Percebome surrupiando, para compor minha imagem, características de determinados poetas exangues, magros, tísicos, fantasmagóricos. O roubo em nada me favorece e com o tempo passou-me para o caráter o esmaecido da pele, como se a pusilanimidade fosse o meu invólucro, a carapaça que me defende do sentimento de culpa pela ausência das ações. Não sou eu aquele que protela, é a casca, ela, a armadura muito colada ao corpo, camisa de força a me manter de pés e mãos atados. Acabo de chegar do enterro do meu irmão nascido cinco anos depois de mim, Laerte. Chamava-se Laerte e pôde ser o que resolveu ser; o avô das predestinações atadas aos nomes morrera um pouco antes de esse neto vir ao mundo.

Fomos ao sepultamento, eu e os poetas, não todos, dois ou três, até quatro, os que me acompanham por onde quer que eu vá. As pessoas naquele velório deveriam estar inconsoláveis; não tanto pela morte do meu irmão, se bem que gostassem dele, mas por um fato incompreensível, fora dos padrões da normalidade, incompatível com a bondade e justiça divinas: por que ele e não eu? Não fazia sentido. Também acho. Deus poderia ter feito uma melhor escolha; se eu tivesse ajudado é bem verdade. Bastaria um grito e o corpo do meu irmão teria subido na calçada, buscando a proteção do muro, antes que o carro o pegasse rente ao meio-fio. Recostado no espaldar da cadeira de balanço do alpendre, senti parte da visão corromperse em fragmentos metálicos e meus ouvidos se encheram de sons tonitruantes, barulho gordo, pesado, como que saídos das vísceras de algum monstro. Estava a terminar a leitura de um verso, pouco, muito pouco para se completar a última palavra. Quis levantar a cabeça, pôr os olhos na altura adequada à captação do que viria a ser os veios metálicos, pôr os ouvidos em total disponibilidade à voz absurdamente rotunda, e meu pescoço sustentou-me a cabeça pendida a finalizar o verso. Cheguei aos pés do meu irmão, deitei-lhe a cabeça em meu colo e súbito um vento atravessou-me as mãos vazias; dei pela falta dele, onde está, onde teria se metido? Alucinado procurei por ele, o poeta. Percebi-o prisioneiro das mãos de Laerte que o estrangulava. Comecei a lutar para salvar meu poeta, arrancá-lo daquelas garras sujas de terra, borradas de sangue e só depois de vários puxões, gritos, pragas, é que consegui. Fechei-o de encontro ao peito, cerrei os olhos em agradecimento, avaliei com extremo cuidado os danos infligidos aos versos e pude, finalmente, aliviado, me dedicar ao bom Laerte. Todos hão de convir, não tive culpa. Foi ele, o poeta. Conseguira como? Atracar-se assim, daquele jeito, com o corpo quebrado do outro. Quem começara? Eram desafetos, os dois? Eu o


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RENATA CADENA

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havia colocado perto de mim ao me ajoelhar e de repente lá estava ele se engalfinhando. Ele e meu irmão. Ando impressionado, suscetível, e posso mesmo tornar-me uma ameaça para todos eles, os poetas. Aconteceu, uma única vez, de a membrana esbranquiçada — que cola meus lábios — ceder; eles se despregaram um do outro e pela boca aberta, na entrada desse túnel, enxergou-se a voz precipitando-se na escuridão, explodindo na frente dos olhos amorosos de Heloísa, a sobrinha mais velha, a preferida, a de rosto bem acabado, tão parecido com as sutilezas das rimas de um poema perfeito: não fui eu, minha pequena, o culpado. Foi ele, ninguém admite, mas foi mesmo ele, Álvaro de Campos. A mãe chega veloz, como que por encanto materializa-se. Teria o dom da ubiqüidade? Retira a filha das vistas do estranho tio, some com ela, protege-a, esconde-a em qualquer lugar, longe de mim, o urubu, vestido sempre de preto, longe do negror da folgada jaqueta onde guardo biscoitos e também os poetas. Preciso, feito Albertina, a cautelosa viúva do meu irmão, proteger os meus, esconder Álvaro de Campos, jamais delatá-lo, não deixar que meus arroubos chamem a atenção sobre ele, porque daí a me exigirem um retrato falado é um pulo. Além disso, há um terrível agravante, ele não é um só, mas uma quadrilha. São vários. Desde a morte de Laerte eu o escondi nas costas da jaqueta, fiz uma abertura no forro acetinado, joguei-o lá dentro e depois costurei a boca do esconderijo com linha forte, pontos bem arrematados. Recostar-me na cadeira de balanço para ler tornou-se um suplício; o livro me dói, o poeta esmurra minha coluna. Ademais, não foi uma medida inteligente. De que maneira têlos sob os meus olhos? Muito penoso é, para mim, abster-me de tantos poetas, já que da cabeça de Álvaro de Campos brotam outros, e mais outros, fluem, espocam mais facilmente do que Atena da fronte de Zeus. O último a nascer chamou-se Fernando Pessoa, dos filhos, o mais embotado, de acordo com Tristão nosso poeta aqui presente — dizia,

em vida, o morto à dúzia e meia de amigos convidados à ceia natalina; falava erguendo-me um brinde, acompanhado da elegância de um sorriso curto que se irradiava apenas para os cantos dos lábios e morria de morte natural, antes que a boca se desse conta. Albertina, a onipresente, ria; os olhos derramados sobre o senso de humor do marido e eu encrespava as asas de urubu como se as possuísse de fato. O fato é que necessito o quanto antes salvar Álvaro de Campos. Poderia, para isso, ouvir com mais vagar meus anseios de quietude, aliá-los ao bom uso das minhas peregrinações pelo vastíssimo campo das ciências exatas e construir alguma coisa, projetar um esconderijo, aquartelar-me feito a precavida mãe de Heloísa. Diria que hoje testei meu invento; um invólucro que me esconde, protege, camufla, a mim e aos poetas, uma espécie rara de escafandro, de cujo ventre, mais precisamente preso ao umbigo, sai um tentáculo com a extremidade aberta em leque. Este leque, posto em sentido horizontal e elevado ao meu campo de visão, se inclinará, se abrirá em dedos interligados por membranas, igual uma imensa pata de ganso espalmada. Servirá o leque aberto de base ao livro; sob o meu comando esse arremedo de mão exibirá o poeta escolhido e os dedos a página desejada. Informo a quem interessar possa que o tentáculo umbilical projetado para locomover-se de acordo com minhas vontades mostrou-se em parte satisfatório; uma vez que consigo ler os poetas assim expostos iguais a partituras. Os dedos, talvez, por não guardarem em seus códigos a memória das membranas, por não reconhecerem — como pertencentes — tessituras fora do padrão, falharam no objetivo para o qual foram projetados: virar as páginas. Preso à repetição é quase certo que eu me desconstrua, a mim e também aos poetas. O escafandro, descubro, acaba de travar-me a saída, o que me é totalmente irrelevante. — Posso pedir-lhe, a você distinto leitor, para virar a página?


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RESENHAS IMAGENS: DIVULGAÇÃO

Jornalista traça perfil humano da história da música erudita nos últimos 100 anos Flávio Pessoa

John Cage (esquerda) foi um dos inovadores da música erudita no século 20

visibilidade. Um exemplo disso é a expansão da pop art fora das galerias e museus. No entanto, Ross tenta mostrar a influência sutil de certos compositores e características marcantes da vanguarda musical na música popular — e como essa relação era mútua. Um dos grandes feitos de O resto é ruído é fazer com que o leitor compreenda essa troca de referências entre duas esferas artísticas, que, aparentemente, não criam áreas de intersecção. As expressões folclóricas servem de mote para compositores como Ravel ou Bartók; seja no ritmo ou em características como a “politonalidade” (tonalidades executadas ao mesmo tempo), esse folclore musical era, segundo Ross, “uma espécie de vanguarda arcaica, por meio da qual (Ravel) podia desobedecer a toda banalidade das convenções”.

INFANTIL

Novo livro de Décio Pignatari integra com perfeição narrativa e projeto gráfico

NOTAS DE RODAPÉ

Após 17 anos de sua estreia como romancista, Décio Pignatari retorna ao gênero ficcional com Bili com limão verde na mão, livro editado pela Cosac Naify. A estória narra a desventuras surreais de Bili, uma garota de 13 anos, ao encontrar um limão no caminho da casa de seu avô. Pignatari faz de um simples conto infantil um retrato da passagem do tempo e as mudanças que todos nós

atravessamos, da infância para a adolescência. A linguagem minimalista e experimental do texto é realçada pelo projeto gráfico, da designer Luciana Facchini, e pelas ilustrações de Daniel Bueno. Ao enfatizar construções geométricas, cores fortes e composições simples e contrastantes, a diagramação e a arte dialogam com a tradição do concretismo paulista de Pignatari.

COSAC NAIFY/DIVULGAÇÃO

Diante do século 20, como quem ouve uma sinfonia

“Não importa onde estejamos, a maior parte do que ouvimos é ruído. Quando o ignoramos, nos perturba. Quando o escutamos com atenção, ficamos fascinados.” Com essa citação de John Cage, o autor Alex Ross inicia uma série de reflexões sobre o desenvolvimento e a história da música erudita e popular no século 20, com O resto é ruído: escutando o século XX. Crítico musical da revista The New Yorker e convidado da Flip 2009, Ross descreve um panorama dos acontecimentos e momentos marcantes da música clássica nos últimos 100 anos; em paralelo, usa os mesmos registros sonoros para interpretar grandes fatos históricos. A linha do tempo das vanguardas musicais se desenha bem distante dos olhos do público; pioneirismos estéticos de outras áreas (como artes plásticas) tiveram, em comparação, maior

A música popular, por sua vez, vive sob a sombra das experiências sonoras da vanguarda e do cenário erudito até hoje. As manifestações mais radicais, como o minimalismo, musique concrète, atonalismo e música eletrônica, reverberam na maneira de compor e até mesmo de escutar música. O mais marcante no trabalho de Ross, no entanto, é o retrato dos compositores e o contexto que os influenciava. Ao evitar termos muito técnicos e aliar fatos históricos junto ao cotidiano dos artistas, Ross consegue transformar concertos e composições em eventos que vão além do apelo estético, também apresentado pelo autor com leveza. As obras viram personagens, parceiros de seus autores, revelando inquietações de suas épocas. O texto sobre Benjamin Britten

conta, por exemplo, como o compositor estava em desacordo tanto com as normas musicais como também com as normas da sociedade. São traçados paralelos entre suas composições e sua vida (“um homem solitário e atormentado”), mas sem reduzir tudo a uma relação rasteira e direta entre biografia e obra. Ross tenta reescrever o perfil musical do século 20 de maneira que O resto é ruído seja mais do que um livro sobre música. É, sim, o relato de como várias pessoas regeram suas vidas, sobreviveram e entenderam as mudanças de seu tempo, a partir daquilo que mais amavam: o som.

MÚSICA O resto é ruído: escutando o século XX Autor: Alex Ross Editora: Companhia das Letras Páginas: 646 Preço: R$ 64


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A CEPE – Companhia Editora de Pernambuco informa:

CRITÉRIOS PARA RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO DE ORIGINAIS PELO CONSELHO EDITORIAL 1. Todos os originais de livros submetidos à CEPE são analisados pelo seu Conselho Editorial, que delibera a partir dos seguintes critérios: • Contribuição relevante para Pernambuco; • Adequação à missão institucional da CEPE e sintonia com a sua linha editorial, que privilegia obras inéditas, escritas ou traduzidas para o português; que tenham relevância para a cultura pernambucana, nordestina e brasileira, nos seguintes campos do conhecimento humano: científico, técnico, literário e artístico. 2. Para obter a aprovação com vistas à publicação pela CEPE, as obras devem preencher os seguintes requisitos de qualidade: • De estilo (correção, clareza, coerência, rigor, coesão e propriedade). • De conteúdo (nível apropriado de aprofundamento dos temas, evidência de pesquisa e reflexão, consistência de argumentação e elaboração, originalidade da abordagem).

Dias de sofrimento MEMÓRIAS A outra vida de Catherine M. Autora: Catherine Millet Editora: Companhia das Letras Páginas: A definir Preço: A definir

Quando a crítica de arte Catherine Millet lançou, em meados dos anos 1990, o seu A vida sexual de Catherine M, as reações à obra foram basicamente duas. A primeira dava conta de questionar o que levou uma das mais importantes críticas de arte francesa a escrever um livro relatando sua participação em orgias anônimas por uma Paris bastante decadente; a outra, talvez mais atenta, chocava-se com a frieza dos relatos da autora. Catherine falava de sexo com a displicência de alguém que, por exemplo, escolhia peixes no supermercado. Não havia paixão alguma, apenas

a ação do momento. Ano passado, ela voltou a chamar atenção com A outra vida de Catherine M., mais um relato em primeira pessoa, mas desta vez de como sofreu diante das possíveis relações extraconjugais do marido. A rainha gélida do sexo aqui se mostra frágil e faz um tocante relato de como o ciúme pode ser corrosivo para todos os envolvidos: “Já observei arqueólogos trabalhando. Com a ajuda de cordas finas, quadriculam o terreno em unidades de menos de um metro de cada lado, e cada um raspa seu quadrado com uma colher. Não deixam passar nem sequer um caco de cerâmica do tamanho de uma unha. Foi assim que trabalhei no espaço habitado por Jacques.” A outra vida de Catherine M. é um dos lançamentos mais instigantes da Flip 2009.

Memórias chinesas ROMANCE Pequim em coma Autor: Ma Jian Editora: Record Páginas: 700 Preço: R$ 70

Pela primeira vez, a Flip recebe autores orientais na sua programação. Um deles é a jornalista chinesa, atualmente residente em Londres, Xinran, famosa com o best-seller As boas mulheres da China. Misto de reportagem e memória, o livro é um tocante relato da desigualdade entre os sexos em seu país. Num dos trechos mais famosos, a história de uma mulher que descobriu o afeto com o toque de uma mosca em suas costas. A obra ganhou recentemente uma edição de bolso pela Companhia das Letras. Ano passado, a editora lançou a coleção de

crônicas O que os chineses não comem, que retoma a temática de choque entre oriente e ocidente. O outro convidado é o também chinês Ma Jian, autor de Pequim em coma, romance que causou polêmica em seu país por pintar com cores fortes aquele maio de 1989, quando dezenas de milhares de estudantes acamparam na Praça da Paz Celestial em Pequim. O que começou como uma manifestação organizada contra o ritmo lento da reforma política, transformou-se numa das imagens mais chocantes do século passado. Um desses manifestantes, Dai Wei, é atingido com um tiro na cabeça e mergulha num coma profundo. O texto de Ma Jian se foca no mundo que continua a se desenrolar enquanto seu protagonista está imóvel numa cama.

3. O Conselho Editorial não analisa: • Originais incompletos, em progresso ou ainda sujeitos à correção do autor. • Livros individuais ou coletivos na condição de projeto. Os textos devem ser entregues com o seu conteúdo pronto, acabado, sem acréscimos nem rasuras. 4. Serão imediatamente desconsiderados e rejeitados originais que atentem contra as declarações de direitos humanos e congêneres, as leis e os dispositivos morais e éticos, nomeadamente os casos de: • Violação dos direitos políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais; • Que fomentem ou mostrem simpatia pela violência e desrespeito a crianças, idosos, bem como os preconceitos de raça, religião, gênero etc. 5. O Conselho não recebe dissertações ou teses em estado bruto (devem ser feitas as reformulações necessárias de modo a reduzir o excesso de tecnicismos típicos do trabalho acadêmico). 6. As obras, inclusive as coletivas, devem estar corretamente padronizadas e revisadas, de modo a permitir a leitura crítica e análise final da obra. 7. O autor deve enviar à CEPE cópia impressa dos originais em quatro vias. 8. Não são recebidos originais em CD, disquete, e-mail ou qualquer outro formato eletrônico. 9. O comprovante de envio dos originais pelos Correios (AR – Aviso de Recebimento) valerá como protocolo de entrega. 10. Em caso de entrega dos originais na sede da Companhia Editora de Pernambuco – CEPE, o portador deverá se dirigir à secretaria da Presidência, onde assinará o protocolo.

ROMANCE

ENSAIOS

Ondjaki retoma suas memórias de infância

Nova coleção de livros editada por universidade mineira divulga filosofia com linguagem acessível

Um dos autores africanos mais populares no Brasil (e com várias passagens pelo Recife), o angolano Ondjaki está de casa nova: acaba de publicar seu novo romance, AvóDezanove e o Segredo do soviético, pela Companhia das Letras. Numa obra que combina narrativa policial, poesia e humor, o autor retoma suas memórias de infância para (re)construir a história do seu país.

A Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora lançou a coleção Encontros pós-modernos, em que apresenta os grandes pensadores do século 20 e o trabalho de ruptura por eles realizado. Em formato de livro de bolso e linguagem acessível a iniciantes no estudo da filosofia, os estudiosos Tamsin Spargo, Stuart Sim, Jeff Collins Chris Horrocks e Dave Robinson comentam, respectivamente,

Michel Foucault, Nietzsche, Baudrillard, Heidegger e Jacques Derrida. Os temas abordam a virada ideológica deflagrada pelo Iluminismo, o mito da verdade, o nazismo, a sexualidade, até a cultura globalizada. Os livros podem ser adquiridos em conjunto ou separadamente, pelo site www.editoraufjf.com.br/ loja. Uma boa pedida para quem quer entender o pensamento contemporâneo.

11. Todos os originais são de responsabilidade exclusiva do autor. O Conselho não se ocupa de eventuais perdas ou danos no trajeto de encaminhamento nem devolve os originais recebidos. Companhia Editora de Pernambuco Rua Coelho Leite, 530 – CEP: 50100-140 Santo Amaro – Recife – PE. Informações adicionais pelo telefone: (81) 3183-2708


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UM NOVO OLHAR

Gosto quando te calas, de Pablo Neruda, por Daniel Edmundson

(...) Deixa-me que te fale também com o teu silêncio claro como uma lâmpada, simples como um anel. És como a noite, calada e constelada. Teu silêncio é de estrela, tão longínquo e singelo. Gosto de ti quando calas porque estás como ausente. Distante e dolorosa como se tivesses morrido. Uma palavra então, um sorriso bastam. E eu estou alegre, alegre de que não seja verdade.

Num dos seus mistos entre ficção e memória, Roberto Bolaño escreveu sobre o desconforto que sentia em relação a Pablo Neruda. Sua mãe tinha uma edição surrada de Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, que passava de mão em mão, quase como uma segunda Bíblia. Não é que Bolaño tivesse algo contra o amor e o desespero da poesia de Neruda, é que não era fácil viver (e escrever) com uma sombra tão incontornável. O progresso artístico exige um parricídio. Ainda bem que Neruda era (é) tão incontornável. De outra forma, Bolaño não seria a referência que é hoje. Sua obra foi erguida em “oposição a” e “apesar de”. Fugir de Neruda é tão difícil que, quando estávamos montando esta edição sobre a nova literatura latino-americana, e pedimos ao ilustrador e sócio do escritório de design Mooz Daniel Edmundson, para ilustrar um texto representativo da ficção do continente, ele escolheu justamente Neruda. “Eu escolhI um poema do Neruda porque morei no sul do Chile boa parte da minha infância (dos quatro aos 11 anos, ou seja, sou praticamente meio chileno). Eu pesquisei vários poemas dele, mas esse em específico foi uma indicação de uma amiga pelo Twitter”, explicou Daniel. Gosto quando te calas (trecho ao lado) é de fato um dos poemas mais fortes de Neruda, a confissão sem culpa de um voyeur. “O que me inspirou a desenhar é que ele fala de amor com uma pitada de sensualidade que eu curti muito. Resolvi tentar traduzir visualmente essas sensações na ilustração: O silêncio entre dois amantes, ele olhando pra ela deitada sem se mover, como quase morta”, conclui. (Schneider Carpeggiani)


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