Pernambuco 43

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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco nº 43 - Distribuição gratuita 1

PERNAMBUCO, MAIO 2009

DESESPERO ROSA

ALEXANDRE BELÉM

Lucila Nogueira: confissões sob o néon dos seus 30 anos de poesia

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GALERIA

LU ÍS F E R NA N DO MOU R A Para o estudante de jornalismo Luís Fernando Moura, nessa fotografia o preto e branco pode carregar o estigma do sombrio, do abandono ou da inanição. “Talvez por isso tenha catado meu 35mm e partido à procura de um clichê nos prédios do Bairro do Recife. Ao invés deles, um outro tipo de edificação veio à tona”, explicou. “Erguida em meio à natureza urbana, aparentemente esquecida, a imagem me remeteu à certeza maior da colonização: precisamos sempre nos expandir, mesmo que sob o perigo iminente de naufrágio”.

C A RTA DO E DI TOR A escritora Lucila Nogueira chega ao momento crucial da sua carreira, com uma visão de mundo que esgota suas veias para transformar dores e lembranças em obra-prima. É o que revela a reportagem de capa, com fotos de Alexandre Belém, envolvendo o mistério da vida e da morte e as incertezas que todo grande escritor carrega nos ombros. Fotografada na boate Nox em pleno sol do meio-dia, diante de uma moça silenciosa e de um jornalista que procurava, a todo instante, compreender o seu enigma, Lucila mostra-se, aqui, inteira. Inteira, sim, mas com as naturais reservas de alguém que se comporta, ao mesmo tempo, como musa e criadora – ou melhor: ela própria, criadora de si mesma e de sua poesia, agora desesperada pelo tom e pelas palavras. Desespero que também é esperança. Na interpretação do crítico Luiz Carlos Monteiro, Lucila apresenta um “novo caminhar pelo campo extenso, desconcertante e quase sempre desconfortável da poesia”. Não menos inquieta e reveladora é a matéria analítica de Thiago Soares, mostrando que a internet ainda não conseguiu matar a ideia de uma cultura massiva. É fundamental a sua afirmativa: “O Twitter nada mais é do que

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SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO Adriana Dória Matos sermos um indivíduo num grande mar coletivo, formado por milhões”. O artigo apresenta ainda uma breve bibliografia sobre o assunto, que o leitor pode adquirir com facilidade. Um tema, aliás, muito curioso, que desafia não só os estudiosos, como a própria sociedade. Você gosta de mentiras? É capaz de acreditar nelas para formar um mundo ficcional em torno de si mesmo? Não responda logo, procure ler a matéria de Astier Basílio, que acredita em mentiras, desde que elas sejam de Ana Paula Maia, a revolucionária escritora carioca que começou a divulgar seus trabalhos em blogs. De propósito, e de maneira inédita, Basílio tratou as mentiras declaradas da escritora num ótimo making of de como se deve entrevistar um escritor. Também forte e apaixonante é a entrevista de Cecília Costa, que afirma, com plena convicção, que “a família não pode silenciar um escritor”. Ela acaba de publicar o romance Julia e o mago, pela Editora Record, tendo por base a mãe de Thomas Mann e, é claro, a própria família. Ainda contamos, nesta edição, com os cartuns do ilustrador Gabriel Machado espalhados por nossas páginas. Boa leitura e até o próximo mês.

GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO Governador Eduardo Campos Secretário da Casa Civil Ricardo Leitão COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE Presidente Leda Alves Diretor de Produção e Edição Ricardo Melo Diretor Administrativo e Financeiro Bráulio Menezes CONSELHO EDITORIAL: Mário Hélio (Presidente) Antônio Portela José Luiz da Mota Menezes Luís Augusto Reis Luzilá Gonçalves Ferreira

SUPERINTENDENTE DE CRIAÇÃO Luiz Arrais EDIÇÃO Raimundo Carrero e Schneider Carpeggiani REDAÇÃO Mariza Pontes e Marco Polo ARTE, FOTOGRAFIA E REVISÃO Flávio Pessoa, Flora Pimentel, Gilson Oliveira, Militão Marques, Nélio Câmara, Renata Cadena e Vivian Pires PRODUÇÃO GRÁFICA Eliseu Souza, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Roberto Bandeira e Sóstenes Fernandes MARKETING E PUBLICIDADE Alexandre Monteiro, Armando Lemos e Rosana Galvão COMERCIAL E CIRCULAÇÃO Gilberto Silva

PERNAMBUCO é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife CEP: 50100-140 Contatos com a Redação 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br

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BASTIDORES RENATA CADENA

Perder a inocência faz mal ao escritor

Em busca da literatura perfeita sem a tranquilidade daqueles primeiros textos Antônio Carlos Viana

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Comecei a escrever por acaso. Não foi algo planejado, que tenha nascido de um desejo irrefreado. Nunca me peguei dizendo: “Vou ser escritor”. Claro que, um dia, tive meus sonhos de ser poeta, como todo bom adolescente, mas logo desisti do intento quando descobri que estar ao lado de um Drummond, de um Bandeira, não era nada fácil. Pensava que para escrever poesia bastava seguir a emoção. Quando descobri mais adiante que era preciso muita aplicação, muita técnica, e conheci a obra de João Cabral de Melo Neto, desisti de vez da poesia. Só fui voltar a pensar em escrever já alguns anos depois de formado em letras. Aí já tinha lido muito, descoberto grandes autores, visto que a imaginação podia ser a porta para criar universos bem pessoais. Foi nessa época que descobri um contista goiano injustamente esquecido hoje: José J. Veiga. Houve, de imediato, sintonia entre mim e ele desde a primeira leitura de Os cavalinhos de Platipanto. Senti que aquele poderia ser meu caminho, explorando, sobretudo, o universo da infância, que é de uma riqueza infinita para quem se propõe escrever. Do primeiro conto ninguém esquece. Havia comprado uma máquina de escrever Remington portátil. Naquele tempo, início dos anos 1970, comprar a primeira máquina de escrever correspondia hoje não ao primeiro computador, mas ao primeiro carro. Quando cheguei em casa com aquele troféu, fruto de minhas sofridas economias, pus uma folha de papel e comecei a escrever o que me veio à cabeça. Deixei que minha imaginação guiasse meus dedos. Saiu uma história estranha, a de um menino cujo irmão parece estar morto sem que a mãe dê a menor atenção ao fato. Fui adiante, não quis censurar nada. A história ganhou caminhos insuspeitáveis e eu mesmo me surpreendi com seu desfecho. Daí para o segundo conto foi um pulo. E veio o terceiro, o quarto… Achei que era aquele meu caminho, se eu quisesse ser mesmo escritor, ainda uma vaga ideia em minha cabeça. Como não tinha a quem mostrar meu trabalho, resolvi mandar os melhores contos para dois concursos literários. Surpreendentemente ganhei os dois. Foi uma notícia que me deixou surpreso. Descobri que escrever podia ser fonte de emoção, sobretudo depois do trabalho concluído e aprovado por um júri exigente, como o dos concursos que ganhei. Dali em diante, não parei mais de escrever. Se ainda havia em mim desejos de ser poeta, os enterrei de vez. Teria de cavar meu lugar entre os contistas, o que também não seria nada fácil, depois de ter conhecido Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector… Era a época do realismo mágico e parecia ser fácil escrever nessa linha, só que não era. O fantástico tem suas leis e é preciso observá-las para evitar as facilidades do gênero. Paralelamente a essa minha descoberta de que podia ser contista, continuei lendo muito, sobretudo livros ligados à técnica literária. Para aprimorar meus conhecimentos, fiz mestrado em teoria literária; anos depois, doutorado em literatura comparada. A faci-

lidade do início da carreira, fruto da ingenuidade, foi sendo substituída pela complexidade do fazer literário, resultado da leitura de teóricos como Roland Barthes, Todorov, Kristeva, Lotman e outros não menos complexos. Confesso que, desde então, escrever se tornou uma tortura. Não conseguia mais produzir nada com a tranquilidade dos primeiros contos. Saber teoria não melhora a produção literária, a não ser que você esqueça tudo na hora do trabalho, o que é difícil. Perder a inocência faz muito mal ao escritor. Minha batalha agora era tentar separar o estudioso de teoria do escritor que pretendia ser. Consegui isso a duras penas, depois de um grande silêncio criativo, quando pensei que iria abandonar de vez a escrita. A fonte havia secado. Senti que, se não desvinculasse o escritor do professor de teoria, jamais voltaria a escrever qualquer miniconto. A aprendizagem foi dura e longa. Hoje, como nos primeiros tempos, deixo que a imaginação alce voo, sem censura, sem me cobrar resultados imediatos a cada conto que estou escrevendo. Se der certo, ótimo. Se não, tomo apenas como um exercício. Como me considero um discípulo de Paul Valéry – fundamento de minha tese de doutorado – sempre acho que um texto pode ser trabalhado ao infinito. Quem põe um ponto final nele é o editor, quando diz “chega”. Para o autor, a obra é interminável, sempre passível de reconstrução. Valéry dizia também que não há texto perdido, desde que a gente o trabalhe até chegar a uma forma, se não perfeita, pelo menos que nos satisfaça. É isso que persigo obstinadamente. Primeiro, escrevo o texto, que nunca vem pronto de primeira. Nunca sei aonde vai dar. Assusta um pouco, porque você pode colocar nele toda a sua energia e esperança e, ao final, não chegar ao resultado que esperava. Muitos contos já vêm mais ou menos bem delineados, outros precisam de anos para chegar a um fim que me agrade. Esse trabalho é incansável. Ocupa os dias e as noites. Às vezes, acordo pensando numa personagem que deixei em suspenso ontem à noite. O trabalho de limagem é o mais difícil. Quase sempre a primeira forma é a melhor. À medida que vou sofisticando o texto, vejo que só o pioro. É preciso ter a medida certa, o que nem sempre é fácil. Por isso preciso de uns três ou quatro leitores especiais para apontar meus defeitos. Qualquer coisa que a gente escreve pode chegar a bom termo, desde que trabalhemos, trabalhemos, sem trégua. Hoje posso dizer que tenho alguma tranquilidade para escrever. Sei que nem tudo vai dar certo. É com pena que abandono algumas histórias que teimam em não se concretizar. Que fazer? Nada. Certas personagens são como certas pessoas: atiçam nossa curiosidade e depois somem para um espaço a que não temos mais acesso. Resta-nos a frustração do conto que não foi escrito e que nunca será esquecido. Não adianta brigar com os contos que não deram certo. Melhor trabalhar aqueles que se mostram dóceis ao nosso tato. Escrever exige muita paciência.

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Quase sempre a história é confundida com enredo. Ou sempre. Mas são manifestações artísticas bem diferentes. O escritor – iniciante ou não – deve distinguir isso muito bem, de forma a conquistar um aliado técnico, tanto na estrutura interna da intriga, quando na escolha dos capítulos, cenas e cenários. E, é claro, até mesmo nos diálogos. Sempre com muita atenção. As diversas formas de diálogo têm função e efeito. Uma história não aprofunda os questionamentos nem tem conflitos. Lembra muito o argumento. Alguns autores chegam mesmo a chamá-la de argumento, o que quase não fazemos, porque não acreditamos neles. De cara, entramos nos textos que já queremos definitivos. Não é bem assim. Uma história ajuda a criar enredos, esses, sim, possuidores de confrontos, conflitos, questionamentos, estranhamentos, cenas e cenários. Na maioria das vezes significam intriga. Então podemos dizer, com certeza, que:

Raimundo

CARRERO História, o enredo gosta é de briga Narrativa e conflito têm conceitos diferentes, embora gerados no mesmo ventre

Marco Polo

MERCADO EDITORIAL

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1. História é uma narrativa linear, sem conflitos, ou sem aprofundamentos de conflitos e confrontos; às vezes com divergências. 2. Enredo é uma narrativa em que os personagens estão sempre em oposição, o que gera conflitos, confrontos, questionamentos. Exemplo de história:

Naquela noite, Maria foi ao cinema mesmo enfrentando uma chuva forte. Podia deixar para outro dia, é claro, mas gostava do barulho da água no teto – ainda era um daqueles antigos e resistentes cinemas de bairro – e por isso saiu decidida. Além disso, sentiase bem vestindo um pulôver, o que nem sempre fazia, porque morava numa cidade quente. Imitava as heroínas que andavam nos bairros românticos, com os braços cruzados, sonhadoras, quem sabe não surgia na esquina, na próxima esquina, o primeiro namorado? Não havia filas para a compra de ingressos e ela aproveitou para comprar batatinhas. Como estava no intervalo, escolheu, sem pressa, uma cadeira em lugar privilegiado. O ar deixava a sala ainda mais fria. Cochilando, nem percebeu quando o antigo namorado se sentou a seu lado. Tanto que gostaria de beijos e abraços, como nas outras vezes. Levantou-se e saiu. Se ele a acompanhasse, quem sabe, não é? Ainda olhou para trás e não viu ninguém. Só a rua quieta, solitária. Exemplo de enredo:

Naquela noite, Maria teve que discutir com a mãe, a ponto de chamá-la de velhota retardada, para ir ao cinema, mas a mulher

temia um resfriado ou, dramática: até mesmo uma pneumonia, o que a levaria, quem sabe, ao leito de um hospital. Tudo por causa da chuva. Não, não podia ir outro dia e era até bom ouvir o barulho da água no teto, aproveitando o cinema antigo, ultrapassado, um raro exemplo de resistência. Uma sombrinha? Uma sombrinha nada, a chuva ainda era pouca, bastava um pulôver, que era charmoso e quase nunca usava-o, por causa do calor da cidade interiorana. De braços cruzados, viu quando o primeiro namorado cruzou a esquina, talvez pudesse encontrá-lo no cinema, para aquecer um pouco a sala fria. Depois de comprar o ingresso e a batatinha, escolheu um lugar bem discreto, onde eles se sentavam nos bons tempos. Nem percebeu quando o rapaz se sentou ao seu lado. Amor, ouviu a palavra e pensou que fosse um sonho. Mas não deixou de sentir a mão que passava sobre seu ombro. Acordou no meio da fita. Percebeu que estava sendo amada, aos beijos e abraços. Não faça isso, ela disse. Bobagem, sempre foi assim. Ela se levantou. E saiu. Em casa, reconheceu que a mãe tinha razão. Não por causa da chuva. O perigo estava nas mãos sem luvas. Bateu na porta várias vezes. A mãe não parecia disposta a abri-la. Será? Já na sala, a mãe riu e foi dormir. Incrível: cheia de rancores. Mas não deixou de acrescentar que ela devia se comportar melhor da próxima vez. No Brasil é fácil encontrar Uma vida em segredo, de Autran Dourado. Ou no filme de Suzana Amaral. Aliás, Autran tem muita preocupação com isso. Ele diz que enquanto o leitor está distraído com o enredo, o autor lhe bate a carteira. Pensam também na relação entre Charles e Madame Bovary – entre os dois não acontece nada, nenhum conflito Mesmo quando Emma desdenha da imagem de Charles. Entre os dois só há história. E, às vezes, nem isso. Percebe-se, claramente, a diferença. O motivo da narrativa é o mesmo, mas a história cedeu espaço ao enredo. Quem não sabe que o enredo gosta mesmo é de briga? É preciso que apareçam os conflitos, os confrontos, a oposição entre personagens. Um coração simples, de Flaubert, tem história mas não tem enredo, mesmo quando Felicidade sofre uma decepção. Por quê? Porque a decepção é apenas um incidente rápido, não alcança o nível de conflito, ou de confronto, sobretudo do conflito dramático. É, quando muito, um problema – algo que perde a importância logo depois. Aparecem fatos, muitos fatos, que se sucedem e não complicam. Podemos apontar até mesmo esses incidentes, que se revelam banais na estrutura da história. Alguns deles são: 1. O esforço de Felicidade no trabalho; 2. A força de Teodoro e a tentativa de estupro;

MALIGNO

ESTREIA

EDIÇÃO

Vampiro maranhense ganha nova edição

Editora gaúcha entra no mercado publicando a correspondência de Dostoiévski

Site faz ponte entre escritores e editoras

Em São Luís, Kara Ramos vai restaurar um casarão abandonado e termina despertando do sono de mais de 300 anos o vampiro Jan Kman, que a seduz com seu “charme e beleza”. Este é o tema do romance Alma e sangue: o despertar do vampiro, de Nazarethe Fonseca, que a editora Aleph lança em segunda edição. O segundo livro da saga será lançado em outubro.

Criada há apenas um ano, pelo escritor Cássio Pantaleoni, a Editora 8Inverso está lançando Dostoiévski – Correspondências (1838-1880), com tradução direta do russo, de Roberston Frizero. Notícias sobre o conteúdo das cartas de Dostoiévski já foram divulgados no Brasil, mas sempre em terceira mão. Esta é a primeira vez em que foi feito um trabalho sistemático de compilação, tradução e

publicação destes textos, nos quais o escritor fala de suas questões íntimas, seu trabalho, seu processo criativo, suas dúvidas e angústias, bem como de outros escritores contemporâneos ou não, aos quais ora elogia ora critica. Voltada aos livros de literatura, ciências humanas, artes e ensaios em geral, a gaúcha 8Inverso estreia no mercado com esse título.

A Mesa do Editor é uma ferramenta na Internet criada para facilitar o acesso dos escritores às editoras. O autor paga uma assinatura e a Mesa repassa seus originais para editoras do Brasil, Portugal, Espanha e Argentina. O site divulga obras já publicadas e cadastra tradutores, revisores e outros profissionais da editoração. Mais informações em www.mesadoeditor.com.br.

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FLÁVIO PESSOA

ANTOLOGIAS

Andross Editora abre espaço para os novos Criada na Universidade Cruzeiro do Sul, de São Paulo, a Andross Editora visa abrir espaço para textos dos seus alunos. Começou com obras acadêmicas, mas conseguiu se manter no mercado através da publicação de antologias com escritores estreantes, já tendo lançado 21 delas. Interessados em participar dos projetos podem ter mais informações pelo site www.andross.com.br.

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3. A fuga de Teodoro; 4. Os filhos da dona da casa; 5. A morte do papagaio etc. Por isso, não raras vezes, Flaubert era acusado de ser apenas um autor da epopeia dos comuns. Basta dar uma olhada no ensaio que Henry James escreveu sobre ele. E A morte de Ivan Illich, de Tolstoi, é história ou enredo? História, com certeza. Porque o enredo some, resta a situação dramática do personagem. E só. Acontece o mesmo com O velho e o mar, de Hemingway. É possível dizer o mesmo de Abril despedaçado, de Kadaré? A vida de Gjorg é um intenso drama cheio de conflitos mentais e reais. É brilhante a abertura do romance com o ser ou não ser, preparando a morte do inimigo. Ainda que ocorra uma aproximação com Shakespeare. Não quer dizer, jamais, que uma história é menor ou superior ao enredo. Nem que o enredo é superior

REPRODUÇÃO

A história corre solta e sem atropelos; o enredo, pelo contrário, empurra, sacode e estremece o leitor, mesmo quieto

à história. De forma alguma. Trata-se, apenas, de uma técnica que o escritor escolhe, sobretudo para se exercitar. Isso, para se exercitar. Um escritor precisa se exercitar sempre e nunca esmorecer. Devemos nos lembrar da velha frase de Flaubert, em carta a Louise Collet, depois de trabalhar muito e não conseguir os efeitos desejados: “Hoje sofri muitas decepções comigo mesmo”. Algumas pessoas deixam de escrever porque se decepcionam com o que narram. Logo perdem o ânimo. A coragem. A determinação. Mas sem nunca esquecer: história revela-se pela linearidade; enredo só quer briga, com várias linhas narrativas, curvas, e sinuosidade. É claro que tudo isso pode ser mudado. Pode ser alterado. Enfim, o autor tem completa liberdade para escrever a sua obra, ainda que não considere as técnicas. Sempre e sempre: a intuição está sempre em primeiro lugar, depois é que vêm as técnicas. Às vezes, a técnica intuitiva.

LANÇAMENTO

Imprensa Oficial lança livro de ensaios, palestras e artigos de Alberto da Costa e Silva A Imprensa Oficial, de São Paulo, consagrada pela qualidade editorial e gráfica de suas publicações, está lançando o livro O quadrado amarelo, de Alberto da Costa e Silva (foto). São ensaios, palestras e artigos sobre literatura e artes plásticas, e também sobre arte e cultura africanas, assunto do qual o autor é uma das autoridades no Brasil. Alguns pernambucanos

são contemplados no livro: Abelardo Rodrigues (em seu perfil de colecionador), Lula Cardoso Ayres e Gilberto Freyre. O destaque fica para dois ensaios luminosos sobre dois grandes poetas: Fernando Pessoa e Augusto dos Anjos, no qual revela possíveis fontes de sua multifacetada inspiração. O título do livro é uma referência ao quadro Apologética do quadrado amarelo, de Waldemar da Costa.

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PERFIL ALEXANDRE BELÉM

Confissões numa pista de dança vazia

Lucila Nogueira completa 30 anos de poesia e revela o futuro da sua literatura na boate Nox Schneider Carpeggiani

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A escritora Lucila Nogueira chega para a sessão de fotos da capa do Pernambuco acompanhada de uma moça loira, uns 20 e poucos anos, que passa as duas horas seguintes quase sem dizer uma palavra. Apenas sorri, sinônimo para “bom dia”, “oi, tudo bem”... Nunca é apresentada. São 10h da manhã e estamos na frente da boate Nox, em Boa Viagem. Sol a pino. Nossa modelo esta toda vestida de branco e em nenhum momento aparenta surpresa diante do convite para posar numa pista de dança vazia. Tudo é natural, ainda que sem aquele ar blasé típico de quem acha tudo dejá vù mesmo antes de ver. “Eu tenho um negócio para resolver com essa moça aqui, depois vou dar aula. Vai ser rápido?”, pergunta Lucila, direta e lacônica. A moça loura concorda com tudo sorrindo. Nos 15 minutos de conversa antes das fotos e da entrevista, é visível como Lucila ensaia (e brinca com) a persona de alguém que parece viver sob as lições estéticas de Jorge Luis Borges, obsessão literária de toda uma vida. “Intercale num relato traços circunstanciais; simule pequenas incertezas, pois, se a realidade é precisa, a memória não o é; narre os fatos como se não os entendesse totalmente”, ensina o argentino para depois desmontar tudo, com a mesma naturalidade de quem pisa numa pista de dança vazia pela primeira vez – “Lembrar que as normas anteriores não são obrigações e que o tempo se encarregará de aboli-las”. “Borges é

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como numa viagem autista de psicodelia, em meio àquelas luzes acendendo e apagando coloridas, abrir a Nox só para isso, foi lindo, foi arte, foi poesia.

Você escreveu um poema sobre o Bar Garagem recentemente. Outros poemas recentes falam de vida noturna, é o caso do livro Refletores, todo montado a partir da ideia de um show de música pop. Qual a sua relação com a vida noturna?

Relação de encantamento. Música, luzes, cores, olhares que se cruzam, atmosfera de surpresa, romance e aventura, de súbitas confissões, as pessoas falam com espontaneidade e se entregam sem reservas, enfim o lado oposto da burocracia cotidiana. Sempre tive um lado de gostar muito de estudar, trabalhar e cuidar da família, aliado a esse outro de poeta aérea que está atenta a uma parte mais hedonista e dionisíaca, que dança e canta nos intervalos do martírio racionalista..A partir de 2001 me senti mais solta para falar em nova linguagem e sobre novos temas, daí os versos a partir de Refletores, Desespero blue, A quarta forma do delírio, Estocolmo, em que aparecem cenas caleidoscópicas de viagens geográficas e interiores.

assombroso. Não era careta, os grandes autores não são caretas. O tempo é que faz com que eles pareçam caretas”, justifica Lucila. Entramos na Nox ainda escura, morta. “As luzes, a música alta é que são feéricas. A vida está nelas”, suspira. Luzes, música altíssima e sexo, ao lado dos mitos, caleidoscópios e espelhos, formam hoje sua poesia, dispersa em edições pequenas, locais e, na maioria dos casos, esgotada. Ela não quer vender literatura, quer fazer literatura, dar livros aos amigos. Não se preocupa com o possível status de uma grande editora. Falta nela o senso empresarial que hoje qualquer autor iniciante parece esbanjar. O resgate da sua obra começa a ser feito este ano, como parte das comemorações pelos seus 30 anos de poesia, iniciada com a publicação de Almenara. O ponto de partida das homenagens será durante a Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, no próximo mês. Uma mesa será montada com o título I love Lucy, ótimo trocadilho com o famoso seriado de TV norte-americano dos anos 1960 e 1970. É claro que a comediante simpática e bonachona tem pouco a ver com essa senhora à nossa frente na pista de dança. As luzes da Nox são acessas e começa o nosso trabalho.

Você não achou estranho o convite para posar numa boate vazia às 10h da manhã de uma quarta-feira? O vazio é a tela em branco, o espaço da página que permite você imaginar o que quiser. Estar ali

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Com ajuda do poeta Bruno Piffardini (do grupo Urros Masculinos), Lucila está montando uma edição especial reunindo toda a sua obra. A maioria dos textos está sendo digitalizada. No entanto, a maior novidade é o inédito Tabasco, escrito numa temporada mexicana há dois anos. Por coincidência, eu a encontrei no aeroporto de São Paulo durante seu retorno do México. Lucila gritou meu nome no saguão lotado. Era madrugada. “Menino, eu pousei no México em pleno Dia dos Mortos. Quando você chega lá, entende por que o fantástico é tão natural para eles”, parece que foram essas as palavras exatas, se bem me recordo, ditas antes de qualquer “oi”, de qualquer espanto pela surpresa do encontro. Mas o que me impressiona é como foi natural nos encontrarmos, após meses, num aeroporto de madrugada, para falarmos sobre o Dia dos Mortos. Sentada ao meu lado, Lucila voltou ao Recife concentrada na leitura de uma revista. Quando dou por mim, a foto de Borges, enorme, numa das páginas. O livro inédito é uma espécie de diário de viagem, mas um diálogo de viagem escrito por Lucila Nogueira, ou seja, é a regra do outro lado do espelho de Alice – ou de Borges – que está em questão. “O título faz referência ao Estado mexicano de Tabasco, onde fica Villahermosa, onde fui para o Festival de Poesia que eles realizam por lá (Encuentro Iberoamericano de Poesía Carlos Pellicer Câmara). Foi belíssimo, apesar de ter que voltar dois dias antes, o que fez nos encontrarmos no aeroporto. Aquele encontro foi paranormal”, lembra, usando a palavra que já virou uma espécie de jargão, paranormal. “No Festival do México, eles fizeram uma invocação à lua em um barco sobre o Rio Grijalva ao som de músicas mexicanas. E aí me deu o toque de fazer o poema. Lá também há uma árvore que eles chamam Ceiba, que parece uma mulher”, continua. O livro começa com a visão em alta velocidade de uma viajante já high há muito tempo: “jardineira atravessou as ruas durante a noite/ eu cantava canções dos Beatles em português/ terras e águas de Tabasco/ o avião descendo em plantações/ como quem entra em uma tela completamente verde/ como quem chega ao Éden primordial/ e sabe do poder da água e da chuva/ assim cheguei a ti Villahermosa:/ rios lagos charcos águas marinhas/ vegetação selvagem flora úmida/ manglares pelas margens da laguna/ parapeito da lua/ geometria vegetal/ cultura da água/”

Você costuma dizer que as pessoas deveriam dessacralizar os autores, que eles não são caretas como parecem. Literatura, arte em geral, precisa sempre de loucura?

Eu nunca li nada interessante escrito por uma pessoa comum. Os escritores que interessam são seres diferenciados. Não se trata de loucura, mas de talento, de diferença, de percepção. Os escritores de verdade se reconhecem uns aos outros. Eles sabem os que são de mentira, os que ficam forçando as portas da literatura. Prefiro a raiva momentânea e ameaça de morte de um bipolar do que a fria falsidade de um chato comedido. A literatura é feita

de altos e baixos, assim como a vida. Não importa se chamarem de loucura, é o duende, é o daimon, o divino e antiquíssimo exercício dos sentidos. Agora o que acontece é que, quando o escritor entra no cânon, começa a ser mumificado, eu sou contra isso e nas minhas aulas na universidade mantenho a honestidade das informações.

É evidente que a sua literatura sofreu uma ruptura nos últimos anos, com você mais livre, escrevendo versos soltos, flertando com a prosa e relatando experiências delirantes. O que aconteceu: mudou a poesia ou mudou sua cabeça?

A poesia mudou não porque troquei de cabeça, mas de situação e prática de ofício. Não hesitei mais em deixar atuar o fluxo da consciência e como numa tela de Dali me entreguei às visões vertiginosas do surrealismo que sempre povoaram a minha vida. É comum hoje as pessoas se dividirem entre as que gostam da primeira fase, de estrutura mais clássica, e as que gostam da segunda, pós-moderna no sentido de incorporar o pop e da fusão de gêneros. Mas em ambas o ocultismo está presente, legado das leituras de Papus, Eliphas Lévy, Helena Blavatsky que consolaram e fizeram companhia à minha juventude. A tradição da poesia hermética é muito grande desde o simbolismo. O livro Desespero blue (2003) fixou em definitivo o ano zero de uma nova escritora. Na época de lançamento, Lucila chegou a dizer que nunca mais escreveria outro livro de poemas. Que estava interessada na prosa, ou melhor, na mistura de prosa com poesia ou o que mais aparecesse pelo caminho. Antes desse livro, já havia experimentado textos híbridos e narrativos em Refletores e A quarta forma do delírio. Esse último, esgotado, esconde um dos seus melhores textos, Natal em Montparnasse, espécie de preâmbulo para a escrita que dominaria sua obra em seguida: “por favor faça alguma coisa/ congele a nossa imagem no controle remoto/ é uma pena esse filme terminar/ mas você dorme em silêncio no vagão ao lado/ e uma taça de vinho não mancha de sangue o vale do Loire/ vidro embaçado paisagem corrediça e imprecisa/ esta é a hora em que eu poderia ficar/ não tenho e-mail e não respondo cartas/ e um trem completamente imóvel distancia/ as canções de natal em Montparnasse”.

Sua poesia hoje parece bem diferente da praticada pelos seus contemporâneos da Geração 65, apesar dessa geração não ter um denominador comum em se tratando de estética. Você sente um diálogo com seus pares de geração ou sua turma é outra? Os da 1965 são o aconchego de sempre, os amigos de sempre. Mas o cotidiano, no contato profissional com as gerações mais jovens, faz com que tenha hoje talvez mais facilidade com elas, seu mundo, sua sensibilidade, sua liberdade, sua sinceridade, sua linguagem, por consequência. A minha turma continua sendo todas, não discrimino.

Você completa 30 anos de publicação este ano, como lida com a passagem do tempo? Décadas e anos importam alguma coisa para você?

Sinto que as décadas passam quando encontro os amigos na rua após algum tempo, observo como estão envelhecidos. E sinto um estranhamento de ver que há dentro de mim uma beleza que excede a decadência física, algo que atrai corpos e mentes e não me deixa sentir inútil na vida. Então, é como se entrasse num filme em que me sinto personagem de um conto de fadas com o feitiço de bela adormecida, fico achando que a cada instante eu estou acordando e as coisas sendo retomadas do início, pois a cada dia me sinto mais jovem e mais criança por dentro, mais curiosa, mais excitada, mais entregue, mais vulnerável, mais indefesa, mais de vidro. Sou uma monja zen perplexa na paixão e no pânico. A sessão de fotos e entrevista dura quase duas horas. Lucila aceita todas as coordenadas com a paciência de quem não pode perder tempo. A moça loura olha para o relógio sem parar. “Pronto, encerramos?”, agora é a modelo obediente de antes que coloca o ponto final. Ao sairmos da Nox, perto do meio-dia, suas últimas palavras não poderiam soar mais coerentes – “É tão bom deixar uma boate com o sol queimando lá fora”.

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ENSAIO ALEXANDRE BELÉM

Em Desespero blue insurge-se uma outra Lucila Nogueira, como ela mesma afirma num verso, “essa outra que descobri carregar dentro de mim”. Os poemas estão dedicados a pessoas próximas, como espelhos de uma temporalidade contemporânea fragmentária, numa partilha que contempla inicialmente os amigos e posteriormente se estende ao mundo circundante sinalizado por “todos e qualquer um” (caso de dois poemas fortíssimos, “Desespero blue” e “Feminina / Masculina”). A dicção escolhida ultrapassa certa solidão romantizada e suportável com esforço e sacrifício, ao cantar a ausência de algo inominável e interdito: “sei que a palavra não cessa/ a dor da solidão presa no corpo/ mas sei que escrever ajuda/ porque todo silêncio é perigoso”. E também ao demitir e expor o decoro que refreou por muito tempo os sentimentos mais profundos e subliminares do lírico, no embate consigo mesma e com o outro, tão próximo quanto irremediavelmente distanciado: “porque você nada sabe da insônia/ e existe uma parte de mim onde ninguém chegou ainda/ e o desespero sempre faz com que a gente precise acreditar em tudo/ estou ficando cada vez mais com medo desse sentimento súbito”. Entre os malditos que elege em “Desdizeres”, o delirante Antonin Artaud, que suportou a França surrealista em estado permanente de loucura, “o Torturado [que] tornou-se para todos o Reconhecido”; o velho bêbado e depravado Charles Bukowski,

Quando Lucila descobriu o azul da poesia Artigo mostra como o livro Desespero blue alterou a obra da autora Luiz Carlos Monteiro

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O conjunto dos versos deste livro vem à tona com vigor, sedução e ironia, preservando a voz do início Chega um momento na vida de todo artista verdadeiramente criador em que aflora a urgência de uma guinada nos rumos e moldes de sua criação. Como algo que pode emergir na forma de ruptura de atitudes estéticas e valores humanos até então assumidos e praticados, gerada pela forte insatisfação com o já realizado. Na outra ponta do novelo, oscila o barco sóbrio e conformista de quem irreversivelmente se ajustou às injunções e exigências diárias de um questionável senso comum, que não ensaia nenhum passo fora das rotas e trilhos de antemão concebidos. Para a poetisa Lucila Nogueira, esse instante de novo caminhar pelo campo extenso, desconcertante e quase sempre desconfortável da poesia, se manifesta com o livro Desespero blue. É um caminho que se antecipa em outros textos, como no Livro do desencanto, quando ela se posicionava quanto a preferências artísticas e existenciais, ao escrever “Estou mais para Elis e Janis Joplin/ Florbela Espanca, eu sou Virginia Wolf” ou “tudo que em mim pareça comedido/ não passa de uma máscara de vidro”. Mesmo no livro da estreia em 1979, Almenara, essa compulsão para a liberação desejada e a frustração de não conseguila, faz-se presente no fogo obscuro da alma “que a abismos se sabe condenada”. Desespero blue tem sua referência estrutural aproximada a Imilce (terceiro volume da tetralogia ibérica, completada em 2001 com Amaya) pelo uso de versos entrecruzados em formas espacializadas, que propiciam mais de um modo e sentido de leitura, numa disposição visual que imprime grande flexibilidade aos poemas. A diferença de tratamento da matéria temática é flagrante: o modo classicizante e dramático de Imilce transplanta-se agora para os labirintos urbanos dos encontros noturnos e transgressivos. A impulsão feminina que não quer se deixar aprisionar pela incidência do experimentado, e por isso se desveste e despoja de todo o inquietantemente recente, incluindo-se aí a infância.

a praguejar no poema de Lucila, dizendo aos quatro ventos da América que “a vida gira sobre um eixo apodrecido”; a delicada e deprimida Sylvia Plath, falando em tom suave e suicida para si mesma que “morrer é uma arte, como tudo o mais/ isso eu sei fazer como ninguém”. O conjunto dos versos deste livro vem à tona com vigor, sedução e ironia, preservando, contudo, o sublime daquela voz singularizada do início. São as palavras que seguem o poeta aonde quer que ele vá, com seu léxico estigmatizado pela passagem dos dias e na retenção disponível para uso individual e intransferível. Desse ponto de vista, Lucila não se afasta radicalmente de uma fala que a transformou, em duas dezenas de livros, na poetisa de obra reconhecida e solicitada que é, utilizando-se de formas fixas, com predileção especial pelas estrofes em quadras. Também jamais renegou o sentimento de grupo (que não configura alinhamento estético), e que, no entanto, definiu sua ligação à geração 65 de Pernambuco. Geração em que se alojaram poetas os mais diversos, a maioria tendo buscado a consecução de estilo próprio no mar demasiadamente caótico de confusões, impasses, engodos e disfunções da poesia contemporânea brasileira. Desespero blue é livro para ser curtido ao som de um B.B. King e um Eric Clapton juntos, destilando o sabor instigante de um imaginário audacioso e ainda inalcançado. Neste embalo de vozes e cordas endiabradas, a fruição violenta de suas canções e notas logra perpassar com irreverência ímpar o ar de um tempo indiferente e amorfo, banalizado e incompleto. É aí que se processa também a absorção de tais poemas sem mais contemplação passiva nem piedade atávica. Para que, na perspectiva única desse instante vivido pelo ouvinte-leitor, cheguem à superfície os meandros perigosos e as veredas subterrâneas de um mundo que se realiza no transitório de sua nudez e linguagem.

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RESENHA DIVULGAÇÃO

Richard Rorty: literatura e solidariedade O papel do escritor e do crítico literário numa cultura pós-filosófica Eduardo Cesar Maia

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Na história recente, o ano de 1989 ficou marcado por um evento carregado de consequências e simbolismos: a queda do Muro de Berlin. Junto a outros fatores, esse acontecimento extraordinário, além das repercussões políticas óbvias, contribuiu para o aparecimento de uma nova mentalidade – uma nova forma de ver o mundo –, não mais caracterizada pela bipolaridade ideológica. No ambiente literário e filosófico, contaminado naturalmente por toda a agitação ideológica do período, esse mesmo ano registrou a publicação de um livro que viria a se tornar obra fundamental para a compreensão do ambiente intelectual em que vivemos até hoje – a tão propalada “pós-modernidade”. Refiro-me a Contingência, ironia e solidariedade, do pensador norteamericano Richard Rorty. Conhecido como fundador do neopragmatismo, R. Rorty nasceu em 1931, em Nova York. No princípio da carreira, com um doutorado pela Universidade de Yale, Rorty assumiu a vaga de professor titular em Princeton, onde lecionou filosofia por 15 anos. Em 1983, abandonou sua cátedra e decidiu ensinar Humanidades na Universidade da Virgínia e, logo depois, assumiu o posto de professor de Literatura Comparada na Universidade de Stanford. A atribulada vida acadêmica refletiu sua trajetória intelectual, que começou dentro da filosofia analítica e terminou na defesa de uma espécie de anti-filosofia, postura que endossou até sua última entrevista, que ocorreu um pouco antes do seu falecimento, em junho de 2007. O projeto de Rorty foi a demolição de toda a tradição filosófica que ambicionasse estabelecer teorias eternas, encontrar verdades universais e solucionar questões morais de forma definitiva. Grandes pensadores do século 20 tentaram, numa primeira fase, construir sistemas filosóficos desse tipo, mas acabaram abandonando a busca de fundamentos últimos, como foi o caso de Heidegger, Dewey e Wittgenstein. Criticando a tradição racionalista ocidental – mas sem negar sua importância –, Rorty se opôs à ideia de que a filosofia pode nos conduzir a uma base racional comum que nos redima da imoralidade. A literatura e a crítica literária, em comparação com o discurso filosófico argumentativo, adquire proeminência devido ao poder que, segundo Rorty, as narrativas têm de colocar a ética em contexto, pois são “exercício prático de construção moral e política”.

Em Contingência, ironia e solidariedade, R. Rorty apresenta de forma detalhada sua visão de mundo “literária”. No seu entender, é a literatura – não a filosofia ou a teologia – que tem a aptidão de fornecer um sentido à solidariedade entre os homens. Utilizando como exemplo suas leituras de romancistas como Nabokov e Orwell, ele ensaia a formulação não de argumentações racionais abstratas, senão de experiências humanas concretas, que têm o poder de gerar a empatia, que por sua vez motiva a solidariedade e a compaixão. Este ideal aplicado a uma comunidade de homens livres é o que Rorty chama de “cultura literária”. A ascensão dessa “cultura”, descrita em Contingência, ironia e solidariedade, estaria consumada com a abdicação total de qualquer forma de consolo metafísico (a Razão, a Humanidade, Deus etc.). A crítica literária desempenharia para os homens dessa coletividade, então, “o mesmo papel que se supõe para os metafísicos desempenha a busca por princípios morais universais”. Os críticos literários e culturais assumem, portanto, a tarefa crucial de movimentar o mercado de valores morais. Os críticos ganham essa importância não por terem acesso especial a verdades morais, mas simplesmente por supostamente contarem com um repertório bastante amplo de conhecimentos sobre narrativas: seus vocabulários nunca estariam presos a uma só obra ou a um só autor. Em conformidade com os românticos, que afirmavam a supremacia da imaginação sobre a razão, Rorty afirmava que a faculdade humana fundamental é o talento de falar de formas diversas sobre o mundo e as instituições humanas, e assim transformá-los. A linguagem, obviamente, adquire um papel central nesse contexto – ciência, filosofia e ética são convertidos todos em gêneros literários; e a literatura, por sua vez, passa a ser um gênero de investigação, de pesquisa das possibilidades humanas. Um exemplo prático que torna claro o pensamento de Rorty se relaciona à questão da escravidão. Os argumentos filosóficos sobre a imoralidade das sociedades escravocratas, segundo ele, pouco contribuíram para a eliminação dessa forma de injustiça; os relatos sobre as crueldades cometidas contra os escravos, por sua vez, tiveram o poder de comover e, assim, mudar a mentalidade de muitos homens sobre o assunto. A razão literária, por sua natureza intrinsecamente ligada à estética, seria uma forma de razão sensível, capaz de suscitar a compaixão. Essa formulação de uma “razão narrativa” apresenta muito pontos em comum com a concepção de “razão vital”, do filósofo espanhol Ortega y Gasset, desenvolvida posteriormente por María Zambrano. Um predecessor de ambos, Miguel de Unamuno, escreveu que “filosofia e poesia são irmãs gêmeas, ou talvez sejam a mesma coisa”. A experiência poética também pode ser entendida como uma forma de apreensão do real, uma forma de sabedoria que se dá, não por silogismos ou por seqüências dialéticas, mas por uma conexão vital com o real. Em seu A arte do romance, Milan Kundera opõe o gênero narrativo a uma concepção de verdade única e absoluta, pois o romance seria um espaço aberto a uma pluralidade de caracteres, à polifonia, à ambiguidade, à incerteza e à dúvida. A semelhança da visão de Kundera com a proposta rortyana em seu Contigência, ironia e solidariedade é evidente: a literatura vem contribuindo durante séculos, de forma constante e ininterrupta para a ampliação de nossa capacidade de imaginação moral. Ela é capaz de nos tornar mais receptivos e sensíveis na medida em que expande nossa compreensão da diversidade dos indivíduos e a diferença inconciliável entre seus desejos e necessidades. Menos abstrações morais e mais educação dos sentimentos e sensibilidades: esse foi o projeto Richard Rorty.

O LIVRO Contingência, ironia e solidariedade Editora Martins Páginas 336 Preço R$ 62,90

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ENTREVISTA

Cecília Costa

A família não pode silenciar um escritor

Decidida a enfrentar o mundo cruel da mãe de Thomas Mann, a brasileira Julia Mann, escritora percorre montanha que, mesmo mágica, leva o homem para o topo do pecado DIVULGAÇÃO

Os capítulos do seu livro, em forma de diário, são dilacerantes, marcados por um tom forte, mesmo numa escrita elegante e visceral, que enleva, contamina e entristece. As alegres dores do mundo estão todas ali. Sentiu medo enquanto escrevia?

Entrevista a Raimundo Carrero Escrever sobre as dores que não se confessa à própria alma. Com essa determinação de quem conhece a intimidade da obra literária, Cecília Costa escreveu Julia e o mago, um romance com quase 500 páginas, que mergulha no mundo de Julia, a mãe brasileira de Thomas Mann, vasculha os desejos, as taras e as angústias, o que resulta num imenso painel da atormentadora vida humana. Paixões, incestos e traições vão se desenrolando num texto elegante, vivo, erudito. O espanto cede lugar às delícias de palavras e frases que iluminam mais do que escurecem, apesar de trazer oposições inconciliáveis: de um lado, o metódico e conservador Thomas Mann; de outro, a desregrada Julia, que viera do lado do pecado, debaixo do Equador. Não sem inquietação, o leitor encontrará paisagens

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brasileiras e europeias, onde desfilam maldições e iluminações, em Davos ou Parati. Impressiona, sem dúvida, o carnaval diabólico, que não é outro senão o próprio livro. E também não é por acaso que um dos capítulos se chama: Desmedida: dor e prazer. Enquanto escrevia, diante de fatos tão fortes, ora verdadeiros, ora criados, Cecília tinha medo de não alcançar a boa literatura. Mas afirma que queria escrever para amenizar a dor. Tudo por causa da complexidade humana e da angústia existencial. “Algumas histórias nos torturam, martelam a cabeça. Ou ficam dentro de nós. Crescem, até serem narradas”, desabafa. A autora assegura que, se não escrevesse, seria capaz de arrebentar por dentro. Por isso mesmo, sua aproximação ficcional da mãe brasileira do autor da Montanha mágica foi um exercício de temor e alegria. O resultado nos trouxe um livro aterrador.

Senti muito medo. Terror, até. Não exatamente quando escrevi, mas quando revi as provas e o livro se tornava mais definitivo. É ficção, e não é ficção. Relatei fatos que presenciei ou sobre os quais ouvi falar, quando criança, adolescente e já adulta. Estava plenamente consciente de que várias das personagens citadas seriam reconhecidas por pessoas ainda vivas. Que poderiam não gostar nada de minha narrativa, como realmente aconteceu. Tive reações dermatológicas, sobretudo na cabeça e na testa, que ainda não foram embora de todo. Mas as histórias são para serem contadas e as famílias não podem nos silenciar. De qualquer forma, durante a revisão, cortei algumas informações que achei que seriam pesadas em demasia e desnecessárias, dentro do relato. Que poderia ser ainda maior. Assim como poderia ser menor, se eu quisesse um livro mais enxuto e talvez mais forte. Só que infelizmente sou mais de acrescentar do que cortar... Como Balzac.

As mulheres, sobretudo no Brasil, erram muito porque escrevem com a pele e não com o sangue. Como chegou até Julia, com essa sensação de esgotamento?

Acha, mesmo, Carrero, que as mulheres no Brasil escrevem com a pele e não com o sangue? Eu não tenho certeza. Clarice Lispector devia escrever com o espírito ou alma. Além de palavras, é claro. Se acha que escrevi com o sangue, eu agradeço, porque já escrevi um poema sobre isso, que nunca

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Bela morena, viúva alegre, fogosa e festiva, quando casada, talvez Julia Mann tenha sido adúltera

publiquei. “Matéria, meu tio, é sangue e carne”, algo assim (era um poema para meu tio, Odylo Costa Filho, a respeito de jornalismo). Meu marido, estrita concisão, também concordaria, porque me acha hemorrágica. Sempre tive, por outro lado, menstruações telúricas. Mas vamos à sua pergunta. Tudo o que está narrado em Julia e o mago me assombrou a vida inteira. Abismou. Eu precisava ir fundo em meu inconsciente para me livrar de alguns fantasmas e ao mesmo tempo homenagear meus mortos. Queria que parassem de me assombrar. Era uma carga de sofrimento brutal, o passado, as lembranças. Meu pai tão voraz, e ao mesmo tempo tão amoroso, meu melhor amigo que se enforcou... Escrevendo, o passado ficou mais leve. Os mortos, mais próximos, mas também mais distantes, emocionalmente. É como se eu os tivesse finalmente enterrado, com a literatura sendo meu altar de adoração de mortos, ou ritual. Quanto aos vivos, que me perdoem. Espero pelo menos tê-los transformados em personagens interessantes. E eu acrescentaria que felizmente alguns dos vivos (vivas, no caso, por serem mulheres) me auxiliaram a escrever o livro, me entregando cartas, poemas, escritos, e doando memórias. Dadivosamente...

Thomas Mann, Frido e Julia. Uma herança depravada saindo da carne em chamas? Como está escrito no livro, Thomas Mann era um dos escritores preferidos de meu pai, sobretudo por sua obra Montanha Mágica, bíblia de tuberculosos. Os Mann eram escritores e incestuosos. Extremados nos sentimentos. Pessoas radicais, na vida e na arte, totalmente dedicados à literatura, seja o Heinrich ou

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o próprio Thomas, seja Érika ou Klaus. E a grande matriz ou deusa-mãe – Ceres – de todo este delírio artístico, toda esta desmedida, foi a matriarca Julia Mann, brasileira, nascida em Parati. Escritora de contos infantis, narradora de histórias, cantora, musicista, ela é que era a grande maga e tinha a chave dos mistérios de Eleusis daquela família tão rica em textos. Bela morena, viúva alegre fogosa, quando casada talvez Julia Mann tenha sido adúltera. Pelo menos é isso o que dá a entender vários dos escritos de seu filho premiado com o Nobel. Na atualidade, os alemães consideram Thomas um dos seus principais escritores, mas costumam se esquecer que ele não teria escrito o que escreveu se não tivesse uma divisão no peito, o Norte e o Sul: o pai Thomas Heinrich Mann, de Lubeck, cheio de regras, e a mãe brasileira, ou seja, a desregrada Julia, que viera do lado do pecado, debaixo do Equador. Com estes dados, era possível fazer uma ponte com meu pai e minha família. A volúpia, a luxúria, o incesto. E o amor, um amor desvairado pelos filhos, pela vida, e pela literatura. É como se tivéssemos o corpo marcado pelo amor e pelas palavras. O signo sagrado. O hieróglifo. As primeiras marcas do homem em tabuinhas de argila e pedras, com desejo de se eternizar ou de eternizar suas histórias, seus feitos. Foi Frido quem me falou da maldição, quando me deu uma entrevista no Rio. O Brasil, para os Mann, era a maldição da arte e da escrita. Eu agradeço a ele ter descoberto que somos malditos, mas também anjos e santos. Nós, os que escrevemos o que sofremos, ouvimos, aprendemos, ou os que apenas queremos narrar vivências e sentimentos, deixar o coração e seus sussurros gravados na pedra. Ou a balançar na água,

Comecei a escrever pensando em Thomas Mann e meu pai. Queria escrever o trágico, o forte e o verdadeiro

no vento, na areia, até serem devorados pelo tempo.

Por que escreveu este livro?

Por que escrevemos livros? Porque temos o que narrar. Porque as histórias estão engasgadas em nossa garganta, como uma espinha de peixe, e precisamos contá-las, para não morrermos engasgados. E, é claro, porque gostamos de livros. Bibliotecas. E de literatura. Algumas histórias nos torturam, martelam a cabeça. Ou ficam dentro de nós. Crescem dentro de nós até serem narradas, como um baobá. Uma palmeira triste ou orgulhosa, um buriti, um carvalho. Eu tinha esta história para contar, de minha família, e ela estava a me arrebentar por dentro. Meu maior medo era não saber transformá-la, na medida em que narrava, em boa literatura. Escrever algo que as pessoas não sentissem prazer ao ler. Queria escrever o trágico, forte, verdadeiro, mas com beleza. Escrevi por mim, apenas por mim mesma, para amenizar minha dor, mas queria também que alguém um dia me lesse, nem que fosse apenas um leitor. Um bom leitor. Que gostasse... E ficasse a pensar na complexidade humana. Que não há preto e branco, há gloriosos cinzas ou furta-cor. Miragens. Vertigens. Comecei a escrever pensando em Thomas Mann e em meu pai, meus magos. Ou Zauberers. O primeiro trecho que escrevi foi o da morte de Antônio, o terno branco. Escrevi depois sobre Parati, a perda do caderno literário (que meu pai não teve a alegria de ler, já estava morto, na ocasião). E a terceira parte escrita foi sobre Davos, quando a visitei, e me encontrei com o trenzinho vermelho, de Hans Castorp. A partir daí puxei um fio, que veio a galope. Com histórias dentro de histórias. Foi tudo muito rápido.

Eu levei mais de 15 anos para escrever meu primeiro romance, Dama de copas. Comecei em 84, parei, e só voltei ao texto em 98, porque ainda estava dentro de redação, consumida por jornal, e pela linguagem jornalística. Parei também porque Ivan criticava muito o que eu escrevia, reclamando do excesso de palavras. Tive que escrever escondido, no Globo, de madrugada. Mas Damas de copas acabou por sair, eu fiquei meio louca, na ocasião, e por fim sai do jornal, no ano seguinte ao da publicação. Fiquei em casa, sou freelancer. Faço apenas a Revista do livro, com o Benício Medeiros. Não tenho mais salário, mas tenho tempo para escrever. Com isso, Julia e o mago foi escrito em apenas um ano. Sem o Ivan ter lido até ficar pronto, prontinho, com capa e orelha. Felizmente, já tenho outras histórias para contar. Preciso ter como companhia, dentro do computador, um texto para trabalhar, diariamente. Algumas delas começam a dar coceira na garganta. E nos dedos.

Que relação você faria entre esta história e os fantasmas da sua vida?

Bem, creio que não farei outro livro tão impregnado de fantasmas de minha vida, minha família, meus pais, meus irmãos. E também de minha outra família, a de meu maior amigo, que morava ao meu lado, numa espécie de fim de vila. As duas casas eram coladas, e tinham imensos quintais. Agrestes, quando eu era criança; depois, na adolescência, com piscinas, jardins. Meu pai era jornalista, e como eu já disse, tuberculoso, e o pai deste meu amigo, que nasceu com diferença de três meses em relação a mim – eu era mais “velha” – era médico. Ganhou heranças, virou sócio

do irmão do Burle Marx, dono de uma casa de joias, que ficava do lado do Copacabana Palace. Por isso meu amigo, que no livro se chama Bill, quis ser artista, fazer joias. E o pai não entendia. Quem o entendia era o meu pai. Tudo isto está livro, mas contado literariamente. Gosto muito do texto de Thomas Mann sobre saúde e doença. Escritores iluminados e escritores doentios, possuídos, videntes. Porque eu vivi na infância a doença de meu pai e a saúde de meu padrinho, sendo que em muitos aspectos meu pai, doente e imoral, de vida sombria, era o saudável, e meu padrinho, o certinho, iluminado, talvez fosse bem mais doentio. E há outro grande fantasma, é claro, pairando sobre minha infância. O fantasma da literatura. É preciso se lembrar que meu tio era Odylo Costa, filho, grande jornalista, grande sonetista, dono de uma biblioteca infinita. Era o patriarca da família de meu pai. Todos amavam os livros. Mas ao mesmo tempo a literatura ficou permitida apenas a Odylo. Nenhum outro irmão ousou escrever. Meus primos também, em sua maioria – e somos uma família enorme – não escreveram livros. Há poetas, entre os filhos de Odylo, e, no resto da parentela, muitos jornalistas. Mas ninguém até agora havia escrito um livro volumoso como Julia e o mago. Eu entrei, portanto, em uma área proibida. Maldita. Com a licença, espero, de meu pai e de meu tio.

O LIVRO Julia e o mago Editora Record Páginas 298 Preço R$ 59,90

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CLÁSSICO

Como o mundo se organiza à sua frente

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Cosac Naify lança 1ª edição em português do clássico A história do design gráfico Patricia Amorim

Em 1983, a história do design gráfico teve sua mais consagrada crônica publicada pela primeira vez. Foram necessários dez anos de pesquisas para que o professor norte-americano Philip Baxter Meggs conseguisse alinhavar um abrangente e inédito encadeamento de fatos e pontos de transição, o qual se tornaria, em seguida, roteiro indispensável à compreensão aprofundada do processo evolutivo da comunicação visual através dos tempos. Investigando desde as cavernas de Lascaux, na França, à alvorada da editoração eletrônica, nos Estados Unidos. Agora, quando já se contabilizam quatro edições deste clássico da literatura do design em seu idioma original – a última delas póstuma – e traduções para o chinês, japonês, coreano, hebraico e espanhol, A history of graphic design, revisto e atualizado, ganha finalmente sua primeira versão em língua portuguesa, História do design gráfico, lançada pela editora Cosac Naify. Reverenciada por especialistas e leitura obrigatória nos cursos de design no país e pelo mundo afora, essa tão aguardada edição vem cobrir uma lacuna cujos leitores brasileiros, em geral, tiveram de aprender a driblar. Fosse cedendo ao original em inglês ou à versão em espanhol; recorrendo a monografias específicas impressas em português, como livros sobre o Art Nouveau ou a Bauhaus, por exemplo; ou ainda aderindo aos poucos títulos de cariz historiográfico, mesmo que de envergadura mais modesta, como Design gráfico: uma história concisa, de Richard Hollis. Impressiona, de todo modo, que mesmo em detrimento da passagem do tempo e do surgimento de produtos editoriais calibrados para cobrir essa mesma temática, como o recente, e também bastante criticado, Graphic design: a new history, de Stephen Eskilson, não se tem notícia de qualquer autor que tenha sido capaz de emular a performance do discurso de Meggs. Estruturado por 24 capítulos que se distribuem em cinco partes – Prólogo ao design gráfico, Um Renascimento impresso, A ponte para o século XX, O período modernista e A era do informação –, essa exaustiva cos-

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tura de fatos e repertório visual contempla desde as origens mais remotas da comunicação visual, como a invenção da escrita, seguindo pelos manuscritos medievais, o surgimento da tipografia, a evolução das tecnologias de impressão decorrentes da Revolução Industrial, as vanguardas modernistas, a Bauhaus e a consolidação da prática do design gráfico e de seus desdobramentos em áreas específicas. Trabalho investigativo e analítico que, após o falecimento de Meggs, em 2002, vem sendo continuado pelo designer e historiador Alston W. Purvis, responsável por incorporar à obra os pontos altos da profissão no mundo contemporâneo, fabricado e consumido em plena era da internet e da globalização. Sobre esse aspecto, vale comentar que, mesmo fazendo referências pontuais ao design gráfico criado em países como Japão e México, é clara a ênfase do livro de Meggs no cenário americano e europeu.

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Novos títulos

Design gráfico em livros Para Julieta Sobral, professora de História do Design da PUC-Rio, a edição brasileira do clássico de Meggs, História do design gráfico, atende a uma forte demanda por incremento da bibliografia da disciplina em língua portuguesa, ampliando o acesso, principalmente aos estudantes, a um dos relatos mais abrangentes sobre a evolução da comunicação visual. Autora do livro O desenhista invisível, sobre o ilustrador e designer gráfico carioca J. Carlos, e coordenadora do site Memória Gráfica Brasileira (www. memoriagraficabrasileira.org), Julieta reforça a importância da tradução de relevantes textos estrangeiros, bem como do investimento na produção e publicação de registros históricos com enfoque no design cunhado em território nacional. Seja através de editoras ou de programas de incentivo à cultura. “Vivemos um momento na pesquisa em design gráfico no qual olhamos sem preconceitos para o que foi produzido aqui. Precisamos investigar e dar visibilidade a esse tesouro intacto, compreendendo esses impressos à luz de seu contexto econômico e sociocultural, alimentando, assim, a historiografia do nosso design”, defende. Tendo publicado obras como O design brasileiro antes do design, de Rafael Cardoso, e O design gráfico brasileiro: anos 60, de Chico Homem de Melo, entre outros, a Cosac Naify pretende acrescentar novos títulos à série, além de desenvolver outros projetos editoriais que privilegiem o recorte no design local. “Durante a produção de História do design gráfico, planejei encartar no livro uma linha do tempo do design brasileiro. A pesquisa, entretanto, acabou crescendo e se converteu num livro que será lançado em meados do próximo ano”, adianta a editora de arte Elaine Ramos.

Bea Feitler, que trabalhou na Rolling Stone e Vanity Fair, é a única brasileira citada na obra Páginas do livro de Meggs, que foi o projeto editorial mais ambicioso da editora Cosac Naify

Entre os designers brasileiros, por exemplo, apenas Bea Feitler, diretora de arte de importantes revistas nos Estados Unidos nos anos 1960 e 1970, como Rolling Stone e Vanity Fair, recebeu citação. Traço do relato de Meggs que desperta críticas defensoras de uma perspectiva mais internacional no registro e crônica da história do design, fertilizada pelas mais diversas culturas criadoras da expressão gráfica. QUALIDADE GRÁFICA Projeto editorial de maior investimento da editora, inclusive financeiro, a adaptação de História do design gráfico exigiu um período de três anos e meio para ser concluída, processo que envolveu desde uma acirrada disputa pelos direitos de publicação, à impressão, executada na China. De acordo com o designer André Stolarski, revisor técnico da obra, traduzida por Cid Knipel, um dos principais desa-

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fios consistiu em converter especificações técnicas sobre fabrico de papel e formato de cartazes do século 19, por exemplo, muitas delas sem termos equivalentes em português. “Optamos também por retrabalhar as imagens, buscando garantir maior nitidez e qualidade gráfica”, comenta Elaine Ramos, diretora de arte da Cosac Naify e autora do projeto gráfico do livro, em parceria com Maria Carolina Sampaio, o qual reúne 1300 ilustrações em suas 720 páginas. Encadernado em capa dura revestida com tecido, ao folheá-lo pela primeira vez o leitor pode surpreender-se com o papel fosco utilizado no miolo, devido ao uso frequente do papel couchê em livros de arte, fotografia e design, nos quais o aspecto iconográfico é predominante, incluindo-se aí também as edições norte-americanas de História do design gráfico. A diagramação, entretanto, é bastante arejada, permitindo que a massa de texto

flua confortavelmente entre as imagens, o que não ocorria em versões mais recentes da obra, cujo layout resultava bem mais denso. Os infográficos cronológico-temáticos, os quais registram o início de cada uma das cinco partes em que se divide o livro de Meggs, foram herdados de versões preexistentes, apresentando-se logicamente em sintonia visual com o projeto de design adotado, caracterizado por fios e uma paleta cromática baseada no azul e no preto. Esses gráficos auxiliam o mapeamento dos capítulos que virão a seguir dentro de um determinado intervalo de tempo, exibindo ainda datas e fatos históricos importantes relacionados à história que está sendo contada. Outro recurso que se destaca no livro é o emprego da cor azul tanto para as legendas quanto para as indicações de numeração das figuras, inseridas no corpo do texto, que reforçam através do cromatismo o vínculo entre esses dois elementos, facilitando a leitura e sua localização na página. “Em função do grande volume de texto e mesmo do caráter da obra, selecionamos uma fonte (a serifada Arnhem) com bom rendimento e legível em corpo pequeno. Nossa intenção, acima de tudo, era oferecer ao livro um projeto gráfico funcional, discreto e perene”, revela Elaine, ciente de que, para dar voz visual a esta história singular, nada melhor que uma silenciosa forma gráfica.

O LIVRO História do design gráfico Editora Cosac Naify Páginas 720 Preço R$ 198 Data 2ª quinzena de setembro

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PERFIL FLÁVIO PESSOA

Mentiras sinceras me interessam

Repórter faz making of de entrevista com Ana Paula Maia e revela suas “ficções” Astier Basílio

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Abro o Google. Digito: “Ana Paula Maia”. Aparecem 121 mil ocorrências, algumas entrevistas em vídeo. Dou preferência a essas últimas. À medida que vou escutando a voz mansa de sotaque bem carioca, que tenta ordenar o labirinto criativo e o mundo que se organiza em sua obra, me surpreendo. É que diferentemente de muitos escritores, as entrevistas de Ana Paula Maia variam muito. Há sempre uma pequena grande revelação, algo que até pode até passar despercebido e, como poderia esquecer?, grandes frases de efeito sobre o seu fazer literário. Dentre as revelações, há desde reminiscências, tais como bebedeiras em sala de aula, expulsões em colégios, até brigas familiares, como o caso de duas irmãs, primas da escritora, que se digladiaram com garfos. Soma-se ao fato de que tudo que Ana Paula escreve é dentro de um código de submundo. São lugares ermos, personagens embrutecidos. A grande imprensa se refestela em classificações como “Tarantino de saias”, “há cenas que nem a literatura suporta” que ela, se não gosta, não expressa nada, e ainda republica em seu blog. Ah, eu tenho que falar do blog, Killing Travis (http://www. killing-travis.blogspot.com). Aqui a escritora fala sobre o que está ouvindo (em geral coisas como Johnny Cash), o que está vendo (a preferência é variada, pode ir de Chuck Norris até Abbas Kiarostami) e ainda opiniões, frases de efeito, comentários sobre séries. Ana adora Lost e, ultimamente, tem escrito mais sobre as repercussões do livro e divulgado suas palestras. Ok, tudo pronto, lá vou eu pra mais uma entrevista depois de horas e horas no computador e de ter lido, de um sopapo, seu mais recente livro, Entre rinhas de cães e porcos abatidos (Record, 2009, 160 pgs, R$ 29,90). Detalhe: não é a primeira vez que eu entrevisto Ana. Detalhe número dois: não é a primeira vez que eu a entrevisto sobre este livro.

Decido enviar as perguntas por e-mail – nosso último papo foi por telefone. Escrevo 11 perguntas. Algumas, tenho que reconhecer, meio óbvias. Mas, juro, eu confiei no taco verborrágico – no bom sentido- de Ana e em duas coisas, já disse isso antes, que sempre aparecem em suas entrevistas – historinhas obscuras e frases de efeito. PESADELOS COM PERSONAGENS Vou comentar algumas perguntas. Esta aqui, por exemplo - “Você já chegou a dizer que gosta de brincar com esse universo que você cria. Agora, é verdade que os personagens te perturbam que você até chega a sonhar com eles?” – numa entrevista para um site, Ana Paula deita e rola contando sobre os pesadelos, dando descrições precisas sobre os personagens – ou seja, se estivéssemos em cinema, seria material para uns três discos de extra. No mesmo dia, Ana responde. Me espantei com a rapidez. E com o tom lacônico dela. Escreveu pouco. Veja, por exemplo, a resposta daquela pergunta, sobre os pesadelos: “Ah, sim. Personagens podem te assombrar. Existe uma relação muito estreita que é estabelecida. Há dias em que posso sentir o cheiro deles.” Em uma das entrevistas, Ana falou que “não podia ver um lixeiro”. É que a segunda novela de Entre rinhas, “O trabalho sujo dos outros”, fala sobre uma trinca da pesada: um lixeiro, um limpador de esgoto e um trabalhador de britadeira. Bom, se, como ela diz, não pode ver um lixeiro é que deve ter rolado algum tipo de laboratório. Fiz a pergunta. A número 5. “De que maneira o elemento real é importante na concepção de teu universo ficcional? Você chegou a conhecer uma rinha de cães? Chegou a conhecer um abatedouro de porcos?” “Quem está do lado de fora ver melhor. Quem está no lado de dentro das situações, de tamanha proximidade, não consegue definir o arranjo que

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Extras

Será que ela está dizendo a verdade nestas respostas?

Você defende bem seus personagens, não é? Você sente que há autonomia de sua parte ou a história pode tomar as rédeas e se direcionar por outros caminhos não planejados?

Em parte eu tenho o domínio, num primeiro momento. Quando a história começa a ganhar fôlego, percebo que a partir daí eu começo a ouvir os personagens. Eu gosto dos diálogos pois é uma forma de escutá-los. Quando se escuta as criaturas o criador pode ser tocado, mudar de ideia e até os rumos da história. O escritor precisa ser generoso com seus personagens.

Há muitas sobras de um livro pro outro? Você já disse que em A guerra dos bastardos pensava em algo muito maior, mas teve que parar. E a ideia de reaproveitamento de temas em outras obras é algo com o qual você trabalha. Como lidar com o excesso?

mentira pra alguém, pra você talvez. Sabe, escritores inventam muitas histórias e mentem quase o tempo todo. Eu só falo a mais absoluta verdade na ficção. Fora dela, desconfie. Nunca esqueça disso. Quanto a minha relação com meus pais é muito boa e sincera. Mas é aquilo... acredite se quiser”. Juro que fiquei perturbado e os editores captaram minha perturbação. Não só captaram como sugeriram que eu a usasse. A ideia dessa entrevista em tom de making of é deles. Retorno à entrevista com Ana, depois de comentar com a escritora, demonstrando algum senso de humor, de minha perplexidade com a revelação dela. Volto a pontos que acho que não se esgotaram, como o lance do sonho. Será que Ana Paula Maia aproveita alguma coisa dos sonhos? Será que ela sonha com passagens de seus livros? Os livros são barra pesada. Nesse último tem: zoofilia, Edgar Wilson mata um cara que transa com o porco e se estabelece. Eu vejo as coisas com distância, para tentar diferenciá-las e defini-las melhor”. Achei pouco. Comentei com os editores do Pernambuco. Aliás, enviei pra eles a primeira prova com as respostas. Eu não estava satisfeito. Primeira vez que escrevo pra cá. Sugiro, replicar algumas respostas. Eles mandam “apertar mais” a entrevistada. Eles têm razão. Ah, esqueci de dizer. Ana Paula Maia é meu contato no gtalk. Esqueci de dizer também que chegamos muito perto do que possa ser considerado uma amizade. Talvez tenha me inibido. Há um argumento numérico – números são ótimos pra se esconder ou se maquiar subjetividades, – precisamos de pelo menos mais três mil toques. Alerto Ana. Pode desenvolver bem as ideias. Desculpem, sou esquecido. Antes de dar continuidade a esse vai-e-vem da entrevista, convém lembrar uma resposta que me perturbou e que fez com que a forma dessa entrevista mudasse por completo. Na pergunta nove, eu mandei: “Seus pais tiveram alguma influência na sua formação como escritora? Você experimentou extremos, foi expulsa de escola, bebia em sala de aula... depois se tornou CDF na época da universidade. Como é sua relação com eles?” BEBEDEIRAS E BRIGAS COM FACAS Por que essa pergunta? Ana Paula, que eu tenha lido, e eu já li muita entrevista dela, quase nunca fala dos pais. Tudo bem, não tem nada a ver com a obra e tal, mas era uma curiosidade que descambava pra o terreno da biografia e fugia da literatura – mas, justifico-me, ela fez isso várias vezes. Sim, os demais dados, de bebida e tal, foi ela mesma quem disse, de maneira desencontrada, em outras entrevistas. Vamos à resposta dela, a mais longa da primeira etapa da entrevista: “Expulsa da escola? Bebia em sala de aula? Ei... estamos falando de mim! haha. Nunca, nunca. Eu devo ter contado essa

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A escritora parece que gosta de colocar em crise sua imagem. É possivel pensar suas entrevistas como literatura? durante o ato sugere ter saído com a falecida ex do abatedor de porcos; antropofagia, Gerson, espécie de Sancho Pancha de Edgar Wilson, esse Quixote sem utopia nenhum, mata, com o amigo, sua irmã rica pra pegar o fígado de volta, o órgão fica na geladeira e num dia de domingo, o pai de Gerson come o fígado com cebola e cerveja. Mas Ana Paula Maia não quer falar dos sonhos. “Eu poderia, mas nunca me aproveitei. São sonhos que devem ser esquecidos. Bastante cruéis. Não gosto deles. Faz tempo que não me alcançam”. A primeira vez que eu entrevistei Ana foi há dois ou três anos. Ela disse que suas maiores influências eram os filmes da Sessão da tarde. Literatura? Não, eu não lia. A escritora poderia ter dito pra mim o que disse pra Leda Nagle, no Sem censura da TVE. Que depois de virar CDF – sim, ela mencionou as desordens do ensino fundamental – ela começou a ler os filósofos clássicos gregos. Eu retomo esse

Existem, sim, essas sobras. Mas nem tudo deve ser aproveitado. Em A guerra dos bastardos as sobras nunca foram reaproveitadas. Pois este é um livro único. Fechado em si. Sem continuação. Exatamente como o meu primeiro romance é. Já este novo livro, Entre rinhas, é diferente. Neste livro existem duas novelas: a que dá título ao livro e a segunda chamada “O trabalho sujos dos outros”. Essas duas novelas fazem parte de uma trilogia. Sendo assim, falta ainda a terceira história para completar o projeto. A terceira parte poderá ser uma novela ou romance. Essas três histórias fazem parte da trilogia A saga dos brutos. Quando existe um projeto continuado, sim, é possível reaproveitar sobras das histórias anteriores, pois se trata do mesmo universo. No caso desta trilogia não só sobras podem ser reaproveitadas como também os personagens se cruzam e reaparecem pela trilogia.

primeiro contato com a filosofia. Ela não cai na minha. Me despista mais uma vez. “Até os 18 anos eu estava muito ocupada sendo criança e depois adolescente. Eu vivi bem todos esses períodos. Talvez por isso, hoje eu seja bastante centrada. Acho que fiz e faço as coisas no tempo certo e amadurecido”. FUI ENGANADO, TUDO BEM! Não me conformo. Nossa, ela me enganou, fico pensando. Entre uma e outra mensagem sobre a entrevista, Ana Paula Maia ri de mim com a melhor das brejeirices, com o melhor dos lirismos – “mas a história das primas é verdade, viu”. A escritora, num formidável lance de dados, embaralhou as regras do jogo e pôs em crise sua já imagem ficcional. Afinal, onde verdade e onde literatura no que ela fala sobre si mesma? Numa de suas entrevistas, talvez pra um site, em conversas com veículos não muito importantes Ana dá-se a falar e a falar muito, contou que sempre gostou do escuro e relatou que um dia escondeu-se ou que sempre se escondia em um quarto escuro, dentro de um armário com a luz escapando pela fechadura da porta. Minha última pergunta foi a 11: “Personagens embrutecidos, lugares ermos, referências da cultura pop, Charles Bronson, Sérgio Leone, Tarantino... você não tem receio de que a tua ‘persona’ fique meio rotulada? Como fugir da síndrome da ‘Tarantino de saias’?” “Mas eu posso citar Pierre Bourdieu, tá bom assim? Me diga: o que quer que eu cite não soará pop? As pessoas deixarão de fazer certas comparações com o tempo. Quando o meu projeto literário estiver mais evidente. O mais importante de tudo não são as referências que faço ou coisas que cito. Isso tudo qualquer um pode fazer. Qualquer um. O que vale é a obra, o texto, a literatura. Eu não sou personagem de mim mesma. Nunca me expus. As pessoas sabem pouco de mim. Eu só digo o que quero. O que me leva a falar de literatura não são meus conhecimentos pessoais. Eu respeito demais os meus personagens para me colocar à frente deles. Eu os analiso com devoção e respeito. Se existo como escritora é porque eles existem, primeiro, como personagens”.

MENTIRAS ONLINE Dois links para você conferir a autora falando sem parar sobre sua (suposta) vida e obra, em http://www.youtube.com/ watch?v=c9D-TIdfyxk, e em http://www.youtube. com/watch?v=vJGvbbjFgRg.

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ENSAIO JAÍNE CINTRA

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E quem diria, nós ainda somos a massa

Mesmo com seus nichos, a internet não matou a ideia de uma cultura massiva Thiago Soares Ando lendo, de maneira mais frequente do que acho que deveria, um certo entusiasmo em atestar o fim da massa. Com a disseminação da cibercultura, das redes telemáticas, das redes sociais, me parece que há algo, sobretudo na Academia, sugerindo um novo estatuto nas relações sociais. Autores que vêm estudando os fenômenos da cibercultura, ávidos por novidades e por conceitos que legitimem seus pontos de vista, seguem apontando em direção àquilo que sempre foi o “calo” das ciências humanas: o prefixo “pós”. Colocaram um “pós” na massa e geraram o termo “pós-massivo”, tentando arregimentar uma suposta superação do coletivo, da multidão, daquilo que o massivo representa. Como ninguém convenceu a todos de que havia necessidade de criar o termo pós-modernidade para falar de uma certa superação da modernidade, também acho difícil que “cole”, de maneira indiscriminada, a noção de pós-massivo em detrimento do massivo. A questão aqui me parece ser um jogo de distinção, como gostaria que víssemos o nosso cientista social Pierre Bourdieu, muito mais do que uma aposta acadêmica. Falar hoje em nome do pós-massivo, do telemático, das maravilhas da internet, da robótica, da inteligência artificial, soa muito mais up-to-date na Academia. Massivo? Pensar a massa? A quem interessa? É tudo tão ultrapassado, não? Para que estudar televisão, rádio, fotografia, mídia impressa, se a internet agrega tudo isso? Vejo programas de TV na internet, ouço rádio na internet, vejo coleções de fotografia inteiras na internet. Se consigo fazer tudo na internet, se toda a vida social navega pela rede, então, de que adianta estudar as formas, digamos, presenciais de cultura? Tudo é cibercultura, morte àquilo que não é ciber. — Pronto, aqui temos um problema. Nunca me convenço quando falam na morte de algo. Lembro logo daquele texto canônico de Roland Barthes, A morte do autor, que causou um certo furor na Academia na época e que, depois, muito depois, Barthes ou seus estudiosos, foram dizer que, não, não havia morte nenhuma do autor. Tratava-se de uma espécie de morte simbólica, uma morte, assim, somente para uma parcela da comunidade acadêmica que insistia em ler um texto literário indo “em busca” do que “o autor quis dizer com aquilo”. Acho que com morte não se brinca. E sou quase adepto do princípio de que, se não morreu, é preciso dar vida. Talvez isso seja um dos motivos pelos quais hesito muito em aceitar de maneira irrestrita a convocação de que, assim como o autor morreu, a massa morreu. Tudo agora seria pós-massa, o senso de coletividade estaria em declínio.

A noção de massa, como pensada na Sociologia e na Comunicação, remonta ao pensamento de Auguste Comte, já no século 19 e traz à tona a perda de um senso do indivíduo para a coletividade, algo como um conjunto de pessoas indissociáveis, indiferenciáveis, que passam a adotar padrões de comportamento e estilos de vida semelhantes, mesmo vivendo em contextos culturais distintos. A massa pode ser pensada a partir da Revolução Industrial, da padronização da vida nas cidades, da divisão do trabalho. Com a circulação da informação, da imprensa e dos meios de radiodifusão, tem-se o que Harold Lasswell chama, em seu clássico texto Propaganda: techniques in the world war, de 1927, de “meios de comunicação de massa”. A televisão e o cinema viriam somar às

O Twitter nada mais é do que sermos um indivíduo num grande mar coletivo, formado por milhões mídias impressas e radiofônicas e se tornariam o triunfo do sistema massivo de comunicação. Os meios de comunicação exerceriam funções sociais, a partir das demandas e dos fluxos comunicacionais. No caso dos meios de comunicação de massa, tem-se o fluxo centralizado de informação, com o controle do polo da emissão por grandes empresas em processo de competição entre si, já que são financiadas pela publicidade. Como atesta André Lemos, “busca-se, para manter as verbas publicitárias, sempre o hit, o sucesso de ‘massa’, que resultará em mais verbas publicitárias e maior lucro”. No entanto, com a chegada da internet e da chamada cibercultura, há autores como Pierre Lévy, Dominique Wolton e o próprio André Lemos que propagam a ideia de que o conceito de massa estaria superado. Estaríamos vivendo na sociedade pós-massiva, em que os sistemas de comunicação funcionariam a partir de redes telemáticas, onde qualquer um pode

produzir informação, “liberando” o polo da emissão. As funções pós-massivas não estão centradas sobre um território específico, mas virtualmente sobre o planeta. O produto é personalizável e, na maioria das vezes, insiste em fluxos comunicacionais bidirecionais (todos-todos), diferente do fluxo unidirecional (um-todos) das mídias de função massiva. Experiências na internet com blogs, gravadoras e músicos, softwares livres, podcasting, wikis, entre outras, mostram as mídias de função pós-massivas. Essas vão insistir em três princípios fundamentais da cibercultura: a liberação da emissão, a conexão generalizada e a reconfiguração das instituições e da indústria cultural de massa. — Tenho a impressão de que compartimentar as lógicas sociais em Massiva e Pós-Massiva só tira a dinâmica de tudo. Acho que o interessante é, justamente, reconhecer como estas duas instâncias se problematizam, se atritam e, indiscriminadamente, se completam. E então, volto a tocar no ponto de que a classificação, a nomeação, só parecem tirar o fluxo dinâmico da vida. Insisto em reconhecer que chamar este período em que vivemos de Pós-Massivo é quase uma afronta ao que há de mais ordinário no dia-a-dia: a nossa cotidianidade. Enquanto autores insistem em dizer que não há mais um senso de perda da individualidade para a coletividade, entro na plataforma social do microblog Twitter, que nada mais é do que sermos um indivíduo num grande mar coletivo. Leio que a perspectiva é de que 25 milhões de pessoas, até o ano que vem, estejam conectadas no Twitter. E percebo o interesse institucional – empresas, marcas, braços corporativos – em comunicar via Twitter. Twittar significa falar para muitos, para uma coletividade fluida e autorreferente. Identifico os múltiplos interesses sobre o Twitter: escritores e poetas têm a chance de criar micronarrativas, microcontos; jornalistas estão plugados com a informação 24 horas ao dia; pessoas expõem suas idiossincrasias para muitos; marcas podem saber o seu índice de popularidade nos trending topics (os tópicos mais comentados). O Twitter, me parece, trai a ideia de Pós-Massivo porque todo o anseio dos usuários é para o coletivo. É falar para muitos, é ter, mesmo que distante, a utopia de que se está diante da multidão. Alone with everybody, já havia cantado Richard Ashcroft. FENÔMENO Mas penso que o Twitter é um fenômeno muito recente e que a noção de Pós-Massivo é, naturalmente, mais antiga. Volto então, para alguns fenômenos menos urgentes. O Youtube, por exemplo: uma plataforma de vídeos digitais em que se postam trechos, produtos audiovisuais e que todos com acesso à internet e com uma conexão média podem assistir online. O Youtube seria o trunfo do que se convencionou chamar de Pós-Massivo: havia nele a utopia da liberação do polo de emissão, a promessa de reconfiguração da indústria da música e da televisão. No Youtube, todos podem postar, eu, você, nossos filhos, sobrinhos, todos, indiscriminadamente. E então, não sei bem por que, mas de alguma forma meio obscura, o Youtube passa a funcionar como uma espécie de memória nostálgica coletiva: vídeos muito antigos, propagandas da TV quase esquecidas, aquela cena da novela que tinha “parado” o Brasil, aquela gafe de um jornalista ao vivo no ar, e que ninguém lembrava. Estava tudo lá, disponível a qualquer hora, de qualquer lugar.

PARA ENTENDER O MASSIVO E O PÓS-MASSIVO Teorias da cultura de massa Luiz Costa Lima

Apresenta textos clássicos dos estudos mais importantes sobre massa, entre eles, Doutrinas sobre a comunicação de massas, de Abraham A. Moles, e Comunicação de massa, gosto popular e a organização da ação social, de Robert Merton e Paul Lazarsfeld, além do clássico texto de Theodor Adorno e Max Horkheimer, A indústria cultural: o Iluminismo como mistificação de massa

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Internet, e depois?

Cibercultura

Trata-se de uma interessante provocação para os arroubos futuristas, no entanto, segue apontando sinais sobre a superação do conceito de massa e indicando o triunfo do PósMassivo..

Apresenta o cerne dos questionamentos sobre o estatuto do Massivo e apresenta aquilo que seria o ideal Pós-Massivo. Revisa grande parte dos conceitos sobre virtualidade, interatividade e fornece escopo filosófico para discutir suas problemáticas.

Dominique Wolton

Pierre Lévy

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ENSAIO REPRODUÇÃO

De alguma forma, mais uma vez, o Youtube traiu o princípio do Pós-Massivo, porque nele se encontra tudo o que o Massivo encena: a ânsia pelo coletivo, por aquilo que todos querem ver, pela multidão. Lembro que vídeos que faziam muito sucesso passam a ser chamados de “hits” – termo que, segundo André Lemos, classificaria um princípio notadamente massificante. “O hit pertence à massa”, chega a nos dizer o autor. E, então, noto aquilo que é disposto no Youtube, esta plataforma que encarnava tão bem os ideais Pós-Massivos, como “hits”: o funk da MeninaPastora, as cenas tórridas de sexo de Daniela Cicarelli numa praia na Espanha, a menina Maísa puxando a peruca de Silvio Santos. São muitos, são inúmeros os “hits” do Youtube. Quando ligo a TV e vou assistir ao programa da Oprah Winfrey, um dos que possui maior audiência nos Estados Unidos, percebo que a rede de TV americana ABC fez parceria com o Youtube para levar para o palco da Oprah as pessoas que seriam “hits” na plataforma de vídeos. O Youtube não encenaria o fim do controle das emissões de informação, a liberdade total e irrestrita daqueles que postam vídeos? O que dizer de um programa de TV, na maior emissora de televisão dos Estados Unidos, que elege aquilo que teria virado “hit”? Acho que estamos diante de um sintoma do agendamento: o Youtube agenda a pauta da TV, esta exposição na TV condiciona as emissões do Youtube. Tudo muito cíclico, tudo muito, digamos, Massivo. Logo o Youtube, que ia tão bem em sua empreitada Pós-Massiva... — Acho que o Pós-Massivo é mesmo uma utopia. RECONHECIMENTO Continuo a procurar onde não somos mais massa. Leio alguns textos que falam que a internet representa o triunfo da comunicação de nicho, do que se convencionou chamar de consumo através da lógica “cauda longa”. Tudo cada vez mais direcionado, tudo de uma forma a atingir, de maneira muito direta e específica, alguém. Mas, ok, reconheço que a internet fomenta a chegada a esta lógica um-para-todos. No entanto, a questão que se encena aqui é que o “todos” é sempre mais relevante que o “um”. Tentar chegar a falar para todos é o anseio de quem se lança nos meandros da internet. Lembro do dia em que a cantora piauiense Stefhany, mais um “hit” do You Tube, foi ao programa Caldeirão do Huck, na Rede Globo. Entre as inúmeras coisas que ela falou, uma registrei bem: “A internet me lançou, mas o meu sonho era chegar na Rede Globo”. Talvez, nas palavras de Stefhany, resida um pouco do que chamo de utopia do PósMassivo: a internet é sempre um veículo para algo além daquilo. Posta-se, fala-se, lança-se na internet para sair dela; para, por sua vez, habitar um outro espaço: a Rede Globo, a multidão, o real coletivo. Acho, porém, que há, obviamente, uma transformação na massa com a emergência da cibercultura. Quando Lasswell chegou a falar sobre meios de comunicação de massa, do rádio, da televisão, dos veículos impressos, vivíamos sob o estigma da noção de alcance. O sinal de uma emissora de TV chega até determinada localidade; se uma antena não for poderosa, capta as ondas do rádio com ruídos; um jornal só chega até determinada cidade, não vai além, não há interesse em ir além. Sob a alcunha do alcance residia um certo conforto geográfico, a limitação de um espaço, até onde aquele dispositivo de comunicação chegava. Com a internet, obviamente, não se vive mais sob o pretexto do alcance.

Na internet, estamos em busca daquilo que nos diz respeito: a pornografia, as pessoas, os afetos e os anseios O fluxo comunicacional rompe geografias, línguas, estatutos. Estamos, talvez, apontando para algumas questões que resumem o triunfo do Pós-Massivo. No entanto, mais uma vez, somos traídos pela tradição cultural. O autor indiano Homi Bhabha, ao falar sobre questões de ordem culturais que incidem sobre a perda de um senso de nação, de patriotismo, de nacionalidade, chama atenção para a ideia de entrelugar. Sem citar a internet, os arroubos tecnológicos, Bhabha atenta para alguns traços identitários que emergem como forças capazes de condicionar o nosso estar-no-mundo. Muitas vezes, minha raça, minha opção sexual, minha etnia, meus interesses de consumo, são muito mais relevantes que a minha geografia. Estou num lugar, mas em direção a outro, o entre-lugar: habito um país, mas minha nação são os negros com os quais eu identifico minhas dores e anseios. “A Grande Mãe Rússia nunca existiu para mim”, me disse uma ucraniana numa rua de Kiev,

referindo-se ao fato de que ela nunca se sentiu russa, mesmo sob a cortina de um Estado que insistia em forçar-lhe uma identidade. Remeto a Bhabha, a essas questões sobre identidade, nação e afins, para atestar que, naturalmente, nas lógicas da cibercultura, cada vez mais, vemos a emergência de um senso desterritorializado. A geografia, o espaço determinado, não importam na internet. Estamos em busca daquilo que nos diz respeito: a pornografia, as pessoas, os afetos, os anseios. A internet segue apontando para um princípio que é central quando se fala de massa: o coletivo. Acho que a imagem que vem à minha cabeça é a de que, quando os sociólogos falavam de massa, no século 19, estavam localizando este grupo indiscriminado de pessoas com um senso de coletividade num ambiente geograficamente localizado, que pode ser aquela fábrica enorme e futurista, cheia de indivíduos iguais e indissociáveis no clássico filme Metrópolis, de Fritz Lang. Todos em fila, todos iguais, todos caminham guiados por algo que os conduz, silenciosamente. Hoje, embora ainda seja possível reconhecer espaços em que esta clássica imagem de Fritz Lang se construa, penso que a massa é algo muito menos estável. Acho que estamos no momento de visualizar uma massa fluida, líquida – para usar um termo tão caro a Zygmunt Bauman, uma massa que se constrói e se destrói a cada momento, a cada segundo. Algo frouxo, sem as amarras do academicismo, sem as classificações tão necessárias. De uma coisa não abro mão: a massa ainda existe, eu faço parte dela. Encontro em cada dispositivo da cibercultura, um espelho do que podemos chamar de algo Massivo. E só me resta supor que o Pós-Massivo, como já sinalizei anteriormente, é somente uma utopia. Como acho que a Literatura, muitas vezes, nos explica mais sobre o mundo que qualquer teoria, indico: — “Não me habita mais nenhuma utopia, quero porque quero, o êxtase”.

Brigitte Helm como Maria em Metropólis, de Fritz Lang.

PARA ENTENDER O MASSIVO E O PÓS-MASSIVO Teorias da comunicação de massa

Teorias da comunicação de massa

Mauro Wolf

Melvin De-Fleur e Sandra BallRokeach

Trata-se de uma revisão bibliográfica extensa feita pelo autor sobre questões do campo da Comunicação. Detém-se, de maneira pontual, sobre questões ligadas à chamada Mass Comunication Research e centra seu olhar, marcadamente, sobre autores norte-americanos.

Uma espécie de clássico dos cursos de Comunicação, o livro traz um apanhado amplo, panorâmico e, por vezes, essencialmente vago sobre as correntes da comunicação. O conceito de massa, no entanto, encontra-se contemplado em inúmeros momentos.

Cibercultura André Lemos

Ao contrário da abordagem de Pierre Lévy, vemos aqui uma imersão mais sociológica sobre os meandros da cibercultura, com o autor entrando em contato com as expressões desta cultura tecnológica planetária. Estão aqui os esboços do que o autor chama de Pós-Massivo..

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Artur Rogério

INÉDITOS

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Alto-mar

Mas agora estamos em alto-mar. Eu lembro que tinha a Igreja Matriz, a ladeira e uma sequência de casas feias, depois a curva e o declive e logo assim de cara uma outra ladeira mais acochada e mais inclinada e lá no alto tinha a mulher de cabelos tingidos de cortina de teatro, aí, assim, circulando os lindíssimos pés dela, tinha um coelho cinza, um pneu, um travesseiro, uma caixa secreta, declarações de amor, o desejo por um cigarro, a plantação de milho, a goiabeira, o araçazeiro, a padaria, o posto de gasolina, o livro, a memória, o sentido, o tiro. Faz tempo. O banheiro do mundo abrigado debaixo da anágua na qual chafurdamos e nos deliciamos bastando apenas a parte da barra. É mais ou menos isso, a estrela pescada num fio de náilon nunca ancora na Terra, nem envia convites pra recepções. É quando a gente avança os recifes, naufraga pelo contrário, beija a barba dum cara solitário que dá uma gargalhada com um molusco agarrado à dentadura. Se não, a gente fica tudo igual, tipo shopping center, tipo a marola idiota. Eu só sei que estamos falando daquele tipo de coisa que não sai da minha cabeça. Mas isso faz tempo, tem coisa que eu nem me lembro direito. Tem hora que fico detido no posto de gasolina. Tem hora que vejo um bicho enigmático e delicado, feito uma borboleta da água, encarcerado numa piscininha formada quando seca a beira-mar. Tu sabes como é grande o mundo. Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão. Viste as diferentes cores dos homens, as diferentes dores dos homens, sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso num só peito de homem... sem que ele estale.

SOBRE O AUTOR Artur Rogério é escritor e um dos criadores do grupo literário experimental Urros Masculinos

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E o poema dizia assim. E tudo isso vem como um ácido. Tomo um grande caldo dum ácido, uma grande onda, e dentro dessa onda, eu morto grande, eu encontro um poema preservado no cérebro dum joelho solto e infestado de bichos-de-pé muito grandes. Às vezes volto lá e ainda encontro areia, água, rochas, peixes, coqueiros, bares, aquela planta que se mexe, um posto de gasolina e uma padaria. Antes eu vivia num lugar que ainda existe. A vida dessa mulher é o nosso carvão, o nosso prozac e é a minha saída. Isso foi quando eu tinha vinte e cinco anos e trabalhava num negócio no Recife. Isso foi quando eu tinha vinte e cinco anos e me fodia. E os que virão. E vocês também. Mas ela não conhecia outro papo e o que ela falou era o que eu queria, foi pra ouvir todas aquelas desgraças que desci até o grotão. Tinha uma mulher que morava numa casinha cardíaca, duas janelas sem janelas, a boca cremada, e ela contava histórias duma vida que não era a dela, assim, não dava pra botar fé naquela vida.

Por exemplo, ninguém conhece a vida de Cheung Tit. Não pelo velho, mas pelos meus pés pequenos, meu queixo pequeno, minha sardinha pequena, minhas mãos, minha falta de habilidade com a língua, pela demasia de livros com textos como este, de literatura nunca nascida. Por exemplo, ninguém conhece a vida de Bipasha Basu. Não pelo velho, mas pelos pés pequenos, pelo queixo pequeno, pela sardinha pequena, pelas mãos e pela nossa falta de habilidade com a língua, pela demasia de livros com textos como este, de literatura nunca crescida. Acho que Misael admirava Carlos Drummond. Misael era um colega de turma, de pequeno, do ensino baixo, da Escola Noronha Filho, Misael era um cara inteligente. Digo que autoridade física lhe era nula, mas aquele ímã de notas azuis fundidas com infinitos trejeitos femininos, e os ombros de alicate, e uma interpretação humana aprendida na beira do esgoto perto do quadro com a imagem de Jesus Cristo perto de três gatos pretos de porcelana que enfeitavam a parede do sofá, digo que é essa palhaçada que nos ataca e nos alegra e nos critica, digo, Misael também não deixava de também ser um tanto inconveniente e sexy. Acho que conheci Misael pessoalmente há uma semana mais ou menos, quando decidi escrever um conto solicitado por um jornalista do Recife. Acho que ela geme com “Água viva’ de Clarice Lispector. Não sei se ela se acha bonita ou feia, acho que ela deve ser bonita quando fica em dúvida entre uma ou outra marca de manteiga, ou se prefere o poeta Olavo Bilac naquele poema “Língua portuguesa” ou o poeta Fernando Pessoa naquele “Para ser grande”. Acho que visitei um seminário do curso de Letras e uma iluminadíssima educadora falou que não gosta de achar, o negócio dela é ter certeza, falar, documentar, simplesmente. Sei que a minha memória começa aqui, justamente sobre este fio de náilon, uma vida de sessenta e cinco anos, o que não é grande coisa. Não lembro quando foi que tudo começou. E uma menina menstruada que engolia a massa do biscoito de coco. E um cachorro, um avestruz, uma mariposa assada. E ela não para de rir do nosso tempo perdido. Aliás, isso não é verdade, tinha um cruzeiro lá naquela parte de recifes, que é a divisão entre a praia e o alto-mar, a uns mil metros de onde eu estava sentado. Foi numa praia, lá em Peroba, lá em São José da Coroa Grande, lá na Praia do Porto, tinha uma ilha de pedras com um coqueiro no meio. E daí, abriu-se um portal que me levou a um gigantesco forno recheado de pães, tortas, padeiros e porcos. E as ondas. E o silêncio. E a calmaria. Eu lembro que um animal, tipo um siri, prendeu-se à minha calça e eu dei uns cascudos naquele cabeçudo irritante. Não lembro quando e como isso aconteceu, acho que foi naquela esquina da Avenida General Polidoro, ali onde tem uma padaria e, às vezes, no final da tarde, uma preta vestida de baiana vende acarajé.

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Renata Santana

INÉDITOS

PERNAMBUCO, SETEMBRO 2009

O resgate

Tinha nas mãos um cheiro forte de tonner, quando queria levar entre os dedos o aroma azedo de Teresa. Ainda procurava em suas mãos um pouco do suor das pernas dela e se embriagava de lua e gim, em frente à janela aberta. — se passar um carro vermelho quatro portas em 20 segundos, é porque Teresa vai voltar... 1 2 3 4 5 7 8 ... — vermelho, e não prata e não vinho... 9 10 11...

SOBRE A AUTORA Renata Santana é jornalista, recifense, escritora e faz parte dos grupos literários Nós Pós e Dremelgas

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... Curvou – se mais e respirou toda a noite barulhenta, todas as pessoas que iam que vinham, todas as mulheres de cabelos cacheadinhos, mas que não eram iguais aos de Teresa. Mas que não tinham aquele queixo redondo. Bom de morder. — ah! 20...20 segundos passa rápido — arhh.. vou começar de novo, quem já esperou 20 anos, espera mais 30 segundinhos, só mais 30 segundinhos, só isso e não espero mais, não custa nada. No dia em que os bombeiros vieram retirar o corpo, cujo cheiro já incomodava os vizinhos, os peritos riram do suicida equivocado que, ao invés de se jogar da janela do apartamento, aprisionou-se dentro dela. Esperando o resgate.

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A CEPE – Companhia Editora de Pernambuco informa:

CRITÉRIOS PARA RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO DE ORIGINAIS PELO CONSELHO EDITORIAL 1. Todos os originais de livros submetidos à CEPE são analisados pelo seu Conselho Editorial, que delibera a partir dos seguintes critérios: • Contribuição relevante para Pernambuco; • Adequação à missão institucional da CEPE e sintonia com a sua linha editorial, que privilegia obras inéditas, escritas ou traduzidas para o português; que tenham relevância para a cultura pernambucana, nordestina e brasileira, nos seguintes campos do conhecimento humano: científico, técnico, literário e artístico. 2. Para obter a aprovação com vistas à publicação pela CEPE, as obras devem preencher os seguintes requisitos de qualidade: • De estilo (correção, clareza, coerência, rigor, coesão e propriedade). • De conteúdo (nível apropriado de aprofundamento dos temas, evidência de pesquisa e reflexão, consistência de argumentação e elaboração, originalidade da abordagem).

História, ciência e atualidades em bons livros

DICIONÁRIO COROGRÁFICO, HISTÓRICO E ESTATÍSTICO DE PERNAMBUCO

ADMINISTRAÇÃO DA CONQUISTA

José Antônio Gonsalves de Mello

A ECONOMIA AÇUCAREIRA José Antônio Gonsalves de Mello

Neste trabalho acerca do Brasil holandês, José Antônio Gonsalves de Mello supera seu poder de síntese e de historiógrafo, fazendo um esboço da organização das terras conquistadas pela Companhia das Índias Ocidentais.

O livro aborda a produção açucareira de Pernambuco – base do sistema econômico no Brasil holandês –, cujos 149 engenhos vieram a atingir, em 1641, a produção de 447.562 arrobas, e discute o engenho como comunidade autônoma.

R$ 25,00

R$ 25,00

O VALEROSO LUCIDENO

Diogo Lopes Santiago

GUEL ARRAES – UM INVENTOR NO AUDIOVISUAL BRASILEIRO

É um testemunho pessoal de Diogo Lopes Santiago, que residia em Pernambuco à época da invasão holandesa e ao início da Insurreição Pernambucana, em crônicas e diários, resultando numa narrativa minuciosa.

O livro reúne artigos que analisam as obras do diretor pernambucano, sua trajetória audiovisual e suas inovações em minisséries e filmes. Apresenta ainda uma reflexão do próprio Guel Arraes acerca de suas produções.

Sebastião de Vasconcellos Galvão

Publicados em 1908, 1910, 1922 e 1927, os volumes do Dicionário Corográfico, Histórico e Estatístico de Pernambuco, de Sebastião de Vasconcellos Galvão, ganharam reedição sob a coordenação de Leonardo Dantas. R$ 150,00

3. O Conselho Editorial não analisa: • Originais incompletos, em progresso ou ainda sujeitos à correção do autor. • Livros individuais ou coletivos na condição de projeto. Os textos devem ser entregues com o seu conteúdo pronto, acabado, sem acréscimos nem rasuras. 4. Serão imediatamente desconsiderados e rejeitados originais que atentem contra as declarações de direitos humanos e congêneres, as leis e os dispositivos morais e éticos, nomeadamente os casos de: • Violação dos direitos políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais; • Que fomentem ou mostrem simpatia pela violência e desrespeito a crianças, idosos, bem como os preconceitos de raça, religião, gênero etc.

HISTÓRIA DA GUERRA DE PERNAMBUCO

Alexandre Figueirôa e Yvana Fechine

R$ 40,00

R$ 35,00

O CASO EU CONTO COMO O CASO FOI

DOM HELDER – CIRCULARES CONCILIARES E CIRCULARES INTERCONCILIARES

Frei Manoel Calado

Os dois volumes englobam uma extensa bibliografia sobre o Brasil holandês, e contêm o testemunho do frei Manoel Calado do Salvador, um contemporâneo e participante da ocupação holandesa no Nordeste. R$ 25,00 (unid.)

5. O Conselho não recebe dissertações ou teses em estado bruto (devem ser feitas as reformulações necessárias de modo a reduzir o excesso de tecnicismos típicos do trabalho acadêmico). 6. As obras, inclusive as coletivas, devem estar corretamente padronizadas e revisadas, de modo a permitir a leitura crítica e análise final da obra. 7. O autor deve enviar à CEPE cópia impressa dos originais em quatro vias. 8. Não são recebidos originais em CD, disquete, e-mail ou qualquer outro formato eletrônico. 9. O comprovante de envio dos originais pelos Correios (AR – Aviso de Recebimento) valerá como protocolo de entrega. 10. Em caso de entrega dos originais na sede da Companhia Editora de Pernambuco – CEPE, o portador deverá se dirigir à secretaria da Presidência, onde assinará o protocolo. 11. Todos os originais são de responsabilidade exclusiva do autor. O Conselho não se ocupa de eventuais perdas ou danos no trajeto de encaminhamento nem devolve os originais recebidos. Companhia Editora de Pernambuco Rua Coelho Leite, 530 – CEP: 50100-140 Santo Amaro – Recife – PE. Informações adicionais pelo telefone: (81) 3183-2708

Paulo Cavalcanti

Composto por quatro volumes, a obra, que tem como subtítulo geral Memórias Políticas, narra as experiências de Paulo Cavalcanti dentro do contexto sociopolítico que vai da Coluna Prestes ao fim da ditadura. Caixa com 4 livros – R$ 120,00

Ambrósio Richshoffer

Luís Carlos Luz Marques e Zildo Rocha (Org.)

OLINDA CONQUISTADA

Em cerca de 600 cartas, Dom Helder Camara expõe suas ideias e relata sua atuação nos bastidores do Concílio Vaticano II, que levou a Igreja latino-americana a assumir a opção pelos pobres e a tomar partido pela justiça social.

Coletânea sobre o período do Brasil holandês, apresenta as obras de Ambrósio Richshoffer e do Pe. João Baers. Duas visões de um mesmo momento histórico, descrevendo o dia a dia do domínio holandês no Brasil.

Caixa com 6 livros – R$ 160,00

Pe. João Baers

R$ 30,00

próximos lançamentos ALIMENTAÇÃO E SOCIEDADE

MARCO ZERO

Incansável no combate à fome e na defesa da criança desassistida, Nelson Chaves contribuiu para a causa com importantes pesquisas no campo da Nutrição e através dos artigos que quase semanalmente publicava na imprensa pernambucana. As pesquisadoras Maria Christina Malta de Almeida Costa e Eunice Salzano Lago reuniram neste livro textos que falam dos aspectos sociais, culturais e antropológicos em suas inter-relações com a nutrição.

Desde 2000, quando foi lançado o número zero da revista Continente, até 2007, quando veio a falecer, o sociólogo, jornalista e poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo assinou a coluna Marco Zero, sobre questões culturais. Este livro é uma coletânea dos melhores momentos dessa trajetória. Com desenvoltura, Alberto fala de poesia, cultura de massa, pirataria de bens culturais, mercado, telenovelas, linguagem, leitura e cinema, entre outros temas.

Nelson Chaves – Maria Christina de Almeida Costa e Eunice Salzano Lago (Org.)

FAÇA SEU PEDIDO

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DIÁRIO DE UM SOLDADO

Alberto da Cunha Melo

0800 081 1201 livros@cepe.com.br

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RESENHAS DIVULGAÇÃO

Álbum mostra andanças de personagem, ora em busca de si própria, ora de aventuras Danielle Romani

Megan McKeenan, a mocinha, percorre os Estados Unidos fugindo de uma família desajustada e de suas dores existenciais

NOTAS DE RODAPÉ

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quase todos acabavam morrendo de cirrose hepática ou overdose: apesar dos percalços vividos pela personagem Megan McKeenan, para surpresa dos que acompanharam todos os episódios da saga, não é que a história tem um final quase feliz? Publicada originalmente nos Estados Unidos em doze volumes, a partir de 2005, a série está disponível aos brasileiros em duas edições encadernadas, com o selo da Devir, e surpreende exatamente pelo desfecho, bem resolvido, maduro, belo exemplo de que muitos podem aprendem com a dor, podem achar as respostas se tiverem paciência e um pouco de resignação. O trabalho da dupla não é aquilo que a gente costuma chamar de genial, mas é correto, criativo, e tem uma narrativa original,

centrada sobre Megan, que do primeiro capítulo até o último, conhece e vive em diversas cidades americanas, fugindo dos problemas familiares, tentando juntar “os pedaços” e descobrir quem é e o que quer. Situação vivenciada, digamos, pela grande maioria da humanidade... Cada capítulo representa um ano de vida da protagonista, que sai de casa aos 15 anos – sem que os pais se preocupem muito com isso – e que nem sempre é o foco dos acontecimentos. Em alguns episódios, na verdade, ela sequer aparece, participa apenas como interlocutora, enviando cartas, ou como espectadora de fatos que são deflagrados ao seu lado. Em todo caso, Megan vai amadurecendo capítulo por capítulo. Seja vivenciando os problemas na pele, seja observando as agruras alheias.

RELATÓRIO

INFANTIL

Câmara Brasileira do Livro e Sindicato Nacional do Editores de Livros traçam panorama literário

Campanha serve de mote para nova coleção

Dados precisos e informações curiosas sobre a produção e vendas do mercado editorial brasileiro em 2008 foram divulgados a partir de pesquisa realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE/ USP). A iniciativa revelou que tanto o preço dos livros como a produção editorial sofreu queda no ano passado. No que diz respeito aos temas mais publicados, a categoria dos

exemplares científicos, técnicos e profissionais teve aumento de 34,5%. Ainda se destaca o gênero literatura infantil, com crescimento por volta de 42%. Em tempos de crise, no entanto, o rendimento do mercado não deu sinais de cansaço. Houve alta de 6,56% no faturamento e de 5,64% em relação aos exemplares vendidos, totalizando R$ 2,43 bilhões pelas vendas de mais de 210 milhões de livros.

O tema da Campanha da Fraternidade 2010, Economia e Vida, inspirou as edições SM a lançar catálogo de obras infantis e juvenis. Do Brasil, tem Navios negreiros, Pivetim, Malcriadas, De cara para o futuro, Além do portão da vida, Como peixe no aquário, O tesouro de Ana, A filha do rei, O menino que caiu no buraco, A cabeleira de Berenice e O mistério no fundo do pote.

A edição brasileira é um prato cheio para os que gostam de colecionar histórias em quadrinhos, pois além de reproduzir as capas originais de todos os capítulos, traz como “brinde” os comentários e troca de figurinhas entre os autores durante o processo de elaboração do roteiro.

QUADRINHOS Local – Fim de Jornada Autores: Brian Wood e Ryab Kelly Editora: Devir Páginas: 208 Preço: R$ 36,50

RAUL KAWAMURA/DIVULGAÇÃO

Em busca de um final, ainda que ele seja quase feliz

Uma história comum, com personagens que nada têm de especial, nascidos em famílias desajustadas, vagando em busca de respostas, carregando dores de um passado distante e fugindo da realidade. De que forma? Da possível: botando o pé na estrada, afogando o medo em sexo, álcool e drogas, esmurrando quem quer que lhe apareça pela frente ou apenas deixando a vida passar. Local, megassérie em quadrinhos dos norteamericanos Brian Wood (roteiro) e Ryan Kelly (desenhos), mescla um pouco de tudo isso e algo mais: traz sem dúvida um “ranço” de road movie, de geração beat, de pé na estrada, enfim, de gente anticonvencional, um pouco perdida, um pouco desajustada. Mas tem um diferencial, que se resume em algo pouco factível de ser visto nas sagas produzidas no final do Século 20, onde

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LANÇAMENTOS HISTÓRIA, A CIÊNCIA DOS HOMENS NO TEMPO

Parte de uma tese de doutorado, o livro de José Carlos Reis, lançado pela editora da Universidade Estadual de Londrina, assume o desafio de pensar o tempo em suas vertentes cronológica, filosófica, arqueológica, religiosa, moral e histórica. A narrativa histórica, diz ele, é influenciada pelo positivismo, estruturalismo e outras escolas. Combinação de fatores essa que associa os movimentos naturais e as mudanças humanas à perspectiva da morte e do simbólico.

Autor José Carlos Reis Editora Eduel Páginas 256 Preço R$ 40

AMIZADE IMPROVÁVEL

Andar sem fé eu vou Em recente e polêmico episódio no Brasil, o Ministério Público Federal solicitou ao Supremo Tribunal de Justiça a retirada das imagens de Jesus Cristo das repartições públicas. Será o início da morte da fé no País? Temas radicais desse porte, além do terror fundamentalista de origem islâmica, levaram o escritor Sam Harris (acima) a investir num estudo rigoroso e radical em A morte da fé, seu segundo livro lançado por aqui, ambos pela Companhia das Letras. O primeiro foi Carta para uma nação cristã (2008). A Igreja Católica é o alvo preferido do autor. Harris elenca os males da Santa Inquisição e das guerras santas, tudo com um rigor argumentativo muito bem fundamentado. O que mais escandaliza o norte-americano é violência com que a fé se manifesta nas religiões.

Um gênesis da República

“Qual é a alternativa para a religião tal como nós a conhecemos? Pensando bem, essa é uma pergunta errada. A química não foi uma alternativa para alquimia; foi uma troca da ignorância pelo conhecimento”, provoca. (Raimundo Carrero)

FILOSOFIA A morte da fé Autor: Sam Harris Editora: Companhia das Letras Páginas: 387 Preço: R$ 54

A Bahia sempre foi palco de revoluções políticas e religiosas, que marcaram profundamente a história social do Brasil. Embora nem sempre bem analisada, a Sabinada, liderada pelo médico Francisco Sabino Vieira, mudou a paisagem de Salvador durante muitos dias, trazendo os primeiros momentos da República. Quem conta muito bem esse episódio, com as ferramentas de um historiador erudito, é Paulo César de Souza, em A Sabinada. Souza faz um levantamento não só criterioso do episódio, mas também reúne excelente material documental para demonstrar como os movimentos populares foram importantes para a política brasileira. Um dos capítulos mais instigantes trata do bloqueio à capital baiana, que ficou sem

abastecimento, gerando confusões e conflitos. Um livro que se pode ler com a atenção de um drama social, que provocou muitas dores, com um texto que mostra o quanto pode ser inquieta a leitura da história. (Raimundo Carrero)

As ilustrações do francês Laurent Cardon são destaque do livro, destinado ao público jovem, que trata de temas como violência e desigualdade social numa metrópole. O enredo envolve três adolescentes de classes sociais diferentes que, ao se unirem por um objetivo comum – descobrir quem são os pais de um deles –, desenvolvem uma grande amizade. Nessa obra coletiva, uma curiosidade: Índigo é o pseudônimo de Ana Cristina Ayer de Oliveira. O livro integra a coleção Quero Ler. Autores Índigo, Ivana Arruda Leite, Maria José Silveira Editora Ática Páginas 98 Preço R$ 16,90

ALUSÃO E ZOMBARIA

HISTÓRIA A Sabinada Autor: Paulo César de Souza Editora: Companhia das Letras Páginas: 267 Preço: R$ 49

A autora mapeia o universo intertextual de Machado de Assis, reunindo as referências literárias, históricas e filosóficas diluídas em seus nove romances e contos. A finalidade é mostrar a manipulação sistemática de citações e outros artifícios retóricos, usados para estruturar a narrativa, urdir as tramas e caracterizar personagens, e também para dessacralizar gêneros e autores. A obra, em segunda edição, ainda aponta erros de MA, como atribuir a Molière versos que este não escreveu. Autor Marta de Senna Editora Casa de Rui Barbosa Páginas 130 Preço R$ 15

ANTOLOGIA TEATRAL DA LATINIDADE

INICIATIVA

Em segunda edição, revista Eita! reitera projeto editorial ousado e mutável Mantendo a proposta de alterar o seu projeto gráfico a cada número, a segunda edição da revista Eita!, da Fundação de Cultura da Cidade do Recife, propõe-se a falar de como a arte pode fazer diferença. Lançada durante o festival A letra e a voz, a publicação traz como destaques os textos de Fernando Monteiro, que discorrem sobre uma pesquisa amadora que fez baseada nas

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listas de livros mais vendidos, e Cristhiano Aguiar, que foi perguntar a nomes como Anco Márcio Tenório, Milton Hatoum e Miró se eles já haviam cometido algum pecado cultural. Já Amarelo mangá, conto de Marcelino Freire, dialoga com as imagens do Japão e do Recife de Raul Kawamura (ao lado). O layout é assinado pelas designers Fernanda Lisboa e Clara Gouvêa, do Estúdio Vivo.

Autores representativos da dramaturgia contemporânea latino-americana analisam a representação da dor e mostram como o sacrifício dos inocentes parece ser a única resposta a uma civilização marcada pelo individualismo. A morte e a banalidade do mal são os temas que unem os textos, escritos entre 1981 e 1993, editados como parte de um projeto da Faculdade de Letras da UFMG. O ritmo da leitura é crescente, com novos personagens, elementos cênicos e complexidade de sentimentos a cada história. Autores César Brie, Juan Radrigán, Ramón Griffero e Michel Azama Editora Aufmg Páginas 246 Preço R$ 35

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RESENHA FLÁVIO PESSOA

Farei tudo o que o meu mestre mandar O Barão Sacher-Masoch ensina a bem-aventurança de contar com um carrasco Paulo Carvalho

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O filósofo Gilles Deleuze costumava afirmar: “a literatura é uma saúde”. Queria dizer com isso que “os belos livros” não ofereciam apenas uma forma para o que se viveu, não eram simples lembranças de um autor. O que estava em questão, na verdade, era a possibilidade de escrever para liberar a vida, para encontrar zonas de indiscernibilidade, para, enfim, escapar da redundância, do vulgar. A literatura, enquanto saúde, tratar-se-ia exatamente disso: “um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se”, extravasando “qualquer matéria vivível ou vivida”. Assim como Deleuze, poderíamos afirmar: no métier do escritor, como no pensamento ou na vida, o difícil não é conseguir o que se deseja (escrever “em lugar de algo”, encontrar um meio de representação dos fantasmas, identificar, imitar, mimetizar), senão, propriamente, desejar (isso é, escrever “por” algo, estabelecer sempre que necessário uma nova sintaxe, uma “língua estrangeira”, uma minoração da língua maior que possa revelar “a vida nas coisas”)… O escritor, antes de ser um paciente ensimesmado, às voltas com suas próprias neuroses, é uma espécie de médico que destrava a potência de si e do mundo. “Sinto-me algo exaurido, mas a sua crueldade me atrai um tanto. Como a amo, como a adoro! (…) Quanta bem-aventurança ser seu escravo!” As palavras de Severin, personagem de A Vênus das peles (1870), do austríaco Leopold von Sacher-Masoch, dão conta de um homem em êxtase, açoitado até desmaiar com um chicote para adestrar buldogues (o mesmo chicote “com o qual se tratavam escravos insubordinados na Rússia”). O carrasco? Sua mulher, Wanda. Severin é aquele que, a partir de Masoch, passou a se chamar de “masoquista”. Em Sacher-Masoch: o frio e o cruel (título original de 1967, lançado no Brasil recentemente pela Jorge Zahar), Gilles Deleuze descreve como encontrou em A Vênus das peles a saúde de que a literatura pode ser capaz: “o masoquista se serve do sofrimento para construir um corpo sem órgãos”, ou seja, para desejar e não simplesmente para alcançar o prazer por intermédio da dor. O escritor austríaco, da mesma maneira que Sade, emprestou seu nome a uma perversão. No entanto, as semelhanças com o escritor francês ficaram por aí. Primeiro porque a obra de Masoch, celebrada por seus contemporâneos, foi obliterada pela sintomatologia da perversão, e em grande

medida, esquecida em função da popularidade de seu pseudocomplemento, Sade. Fala-se de masoquismo apenas para associá-lo ao sadismo; fez-se, assim, de Masoch, um simples e “pequeno Sade invertido”. Em O frio e o cruel, Deleuze acena para a tarefa de dissociar essa pseudounidade: “basta ler Masoch para sentir que seu universo nada tem a ver com o de Sade”. As técnicas, problemas e projetos empregados pelos dois programas são completamente distintos. Para Deleuze, Wanda não é o oposto sádico do Severin masoquista: a mulher-carrasco “pertence essencialmente ao masoquismo” porque vive sua crueldade dentro desse universo do escravo, que lhe subordina através de um contrato. Como disse Deleuze em entrevista a Madeleine Chapsal, “há um sadismo do masoquista, mas esse sadismo encontra-se no interior do masoquismo e não é o verdadeiro sadismo”. Levando em consideração que “as especificidades clínicas do sadismo e do masoquismo não são separáveis dos valores literários de Sade e Masoch”, é preciso recuperar separadamente a obra de cada um, a fim de resgatar seus mecanismos diferenciais, suas originalidades artísticas, suas saúdes e suas gagueiras. Segundo Deleuze, seria necessário recorrer à própria sintomatologia, àquilo que nela há de mais heterogêneo, ou seja, ao entrecruzamento dos universos clínicos e artísticos. A obra de Masoch, como a de Sade, serve de ponto de partida para os enunciados da clínica psiquiátrica e não deixa de ser curioso como um escritor, ao invés de um psiquiatra, pode se tornar o mestre de uma perversão. Deleuze sempre deixou claro que não se permitiria falar da psicanálise ou da psiquiatria se não fosse a existência desse ponto neutro (habitado por médicos, pacientes, artistas e filósofos) que é a sintomatologia, um ponto “pré-medicinal” ou “submedicinal”, onde a arte e a clínica se ajudam mutuamente na construção de um “quadro”. Certamente toda obra de arte guarda sintomas, tal como o corpo ou alma, mas o que diferencia Masoch ou Sade é fato de terem tomado o fantasma como objeto da arte (o fantasma é a primeira e última palavra) e não, como acontece frequentemente, como ponto de partida, como um ideal transcendente. “Ela rascunhou um contrato mediante o qual me comprometo, por palavra de honra e juramento, a ser seu escravo, enquanto ela assim o desejar”. Ao ansiar que Wanda lhe inflija sofrimentos, Masoch o faz a partir de um contrato. Através do contrato é que é possível “desfazer o liame entre o desejo e prazer” e assim levar o desejo cada vez mais longe, conjurando a interrupção que lhe ameaça o prazer. Dessa maneira, Deleuze afirma que Wanda lança sobre Severin uma onda de dor, mas Severin não a toma como prazer, senão como forma de “remontar-lhe o curso e constituir um processo ininterrupto de desejo”. Para Deleuze, essa é uma das contribuições de Masoch “à arte do Romance” (o que faz plena de saúde e feliz de seu próprio movimento) porque desloca a questão do sofrimento através de um contrato instaurador de um suspense infinito. Outra contribuição, diz respeito ao papel do animal. A psicanálise viu no animal figuras edipianas, enquanto que a arte não parou de produzir exemplos em que essa relação homem-animal extrapola a imitação, atingindo zonas em que a mulher e o animal, o animal e o homem se fundem, tornam-se indiscerníveis. Como aponta Deleuze, A Vênus das peles é um romance de adestramento onde Séverin–cachorro adestra Wanda-carrasco. Quer dizer, “em vez de o homem transmitir suas forças adquiridas às forças inatas do animal”, é “a mulher que transmite forças animais adquiridas às forças inatas do homem”. São séries que se abrem uma dentro da outra, alcançando desvios animais, femininos, produzindo um estremecer dentro da língua, levando-a ao limite que pressupõe essa frágil saúde irresistível dos “belos livros”.

O LIVRO Sacher-Masoch: o frio e o cruel Editora Jorge Zahar Páginas 136 Preço R$ 29

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