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ARTES
O escultor pernambucano Abelardo da Hora prepara-se para as comemorações de seus 80 anos com o vigor e a inquietação de sempre
Fotos: Flávio Lamenha
Weydson Barros Leal
Cantata Para uma Bela Dama, escultura em bronze, 2003
A arte, depois de
Abelardo
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N
um texto escrito em 2001, como apresentação da série de desenhos Meninos do Recife, o pintor José Cláudio afirmou que “não se poderia imaginar a arte de Pernambuco sem a presença de Abelardo da Hora”. E continuava: “A Arte de Pernambuco se divide em antes e depois de Abelardo da Hora”. Na verdade, talvez por fazer parte, ele mesmo, de toda uma geração de artistas que de alguma forma surgiram ou aprenderam com Abelardo, José Cláudio não quis provocar, mas a verdade é que “depois de Abelardo” – e com ele – surge a grande e definitiva arte pernambucana. Abelardo da Hora foi mestre e professor de artistas, como Gilvan Samico, Francisco Brennand, Guita Charifker, Maria Carmem, Wellington Virgolino, além do próprio José Cláudio e tantos outros que, por sua vez, tornaram-se – por coincidência ou não – referências de mais de uma geração de novos pintores e escultores pernambucanos. Sua obra pode, sem nenhum favor, ser comparada em força e expressão à de um Portinari, e historicamente tem, como crítica e denúncia social, tanta importância quanto a do pintor de Brodósqui. Ocorre que, na obra de Abelardo, o traço lírico também é seu forte, e a representação do corpo feminino nas enormes esculturas de suas inconfundíveis mulheres revela, na mesma intensidade, o lirismo de um Dante ou de um Camões em suas obras épicas ou expressionistas.
"A minha obra é feita de Amor e Solidariedade: o Amor pelas mulheres e a Solidariedade pela gente e pela cultura do povo". Abelardo da Hora
Nesta direção, o próprio Abelardo confessa: “A minha obra é feita de Amor e Solidariedade: o Amor pelas mulheres e a Solidariedade pela gente e pela cultura do povo”. Sua ligação ou sensibilidade pelas causas populares é o traço central de sua biografia. Abelardo Germano da Hora, nascido em 31 de julho de 1924 na Usina Tiúma, em São Lourenço da Mata, nos arredores do Recife, desde muito cedo despertou para a condição dos trabalhadores rurais e dos pobres da cidade, que sofriam na base da pirâmide social. Desenhista, pintor, entalhador e principalmente escultor, toda sua obra não-lírica, de forte apelo dramático e expressionista, sempre buscou a denúncia do infortúnio dos pobres – homens, mulheres e meninos que afloram entre rios e ruas do Recife. Neste ponto, revela-se também sua mão de poeta, e seus poemas – a maioria inéditos – refletem exatamente sua obra plástica em lirismo e drama. Não fosse já pela sua obra de importância basilar na arte brasileira, Abelardo da Hora ainda representa para os artistas do Recife, desde 1961, uma espécie de pai ou eminência tutelar, quando se fala em exContinente dezembro 2003
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Vendedor de Pirulitos, estudo para escultura
Série Meninos do Recife (1963), bico de pena sobre papel
posição pública de obras de arte. Foi neste ano que ele redigiu, como linhas gerais para um projeto de lei municipal, um texto que acabou sendo votado e aprovado na íntegra, e por unanimidade, na Câmara dos Vereadores do Recife. Fazendo parte, até hoje, do Código de Obras da cidade, seu texto/lei obriga toda edificação com mais de 1.000 metros quadrados, construída no município, a conter uma obra de arte como parte integrante. Como diz Abelardo, isto transformou o Recife, nos últimos 40 anos, “numa galeria de arte a céu aberto”. E sua idéia até hoje é copiada por governos municipais do Brasil e de outros países. Reconhecido internacionalmente como um dos maiores escultores brasileiros de todos os tempos, Abelardo da Hora prepara-se para completar 80 anos em 2004. Nessas oito décadas, sua presença na história política e cultural brasileira está acima de uma simples participação como professor, artista engajado ou militante do extinto Partido Comunista, pois, em cada evento ou obra em que pôs o seu nome, percebe-se a dimensão de seu gênio humanista. Às vésperas de uma data Continente dezembro 2003
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“A Arte de Pernambuco se divide em antes e depois de Abelardo da Hora” José Cláudio
em que muitos dão como encerrada a participação na arte ou na vida, pondo-se à espera das homenagens devidas, Abelardo surpreende por uma vitalidade e inquietude incomuns, o que justifica um ritmo de trabalho diário e intenso no ateliê onde trabalha, em sua casa, no Recife. Mesmo tendo vivido em Paris por mais de um ano e em São Paulo por três anos, entre 1964 e 66 – (“se dependesse do amigo Pietro Maria Bardi, não teria jamais voltado a Pernambuco”, ele lembra) – Abelardo fez de sua casa, na rua do Sossego, um pequeno museu onde dezenas de esculturas de bronze e concreto – sendo em sua maioria imensas mulheres – estendem-se pelas salas, quartos e corredores. Também sobre colunas ou em nichos e parapeitos que ocupam até a cozinha, Abelardo expõe bustos e esculturas de corpo inteiro de mulheres ou de grandes nomes da cultura pernambucana – como Gilberto Freyre e Luis Gonzaga – de que se orgulha por ter realizado: percebe-se que, para ele, é o ato de louvar, muito mais do que ser louvado, o que lhe enriquece o espírito. Assim, após nos dizer um de seus
O gênio humanista de Abelardo da Hora é percebido em cada evento ou obra em que põe o seu nome
Escultura em cimento, da série Hiroshima
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poemas e se ver elogiado como poeta, ele imediatamente corrige: “A verdadeira poeta da casa é Margaridinha”, referindo-se à sua mulher, Margarida Lucena da Hora, com quem está casado há 55 anos. Entre suas últimas criações, ainda não instaladas nos espaços a que se destinam, estão a escultura de Luis Gonzaga – em fase de acabamento –, que ficará na BR-232, no caminho entre o Recife e Caruaru, e o Monumento ao Frevo, um grande conjunto escultórico em que passistas de frevo empunham o estandarte do Clube Vassourinhas, de onde Abelardo é sócio-benemérito. Essa peça, assim como a primeira, realizada em bronze, dará as boas-vindas, nos jardins do novo Aeroporto Internacional dos Guararapes, aos passageiros que chegarem ao Recife a partir de 2004. Nos armários e gavetas onde Abelardo guarda antigos jornais, catálogos de exposições no Brasil e no exterior, publicações sobre mostras individuais e coletivas (que exibe com igual ou maior orgulho), e volumes de livros e enciclopédias, onde seu nome é citado com reverência crítica, escondem-se os registros impressos de uma obra reconhecidamente “maestra”, aberta aos olhos do povo e da cidade, inconfundível em seu traço grave e trágico, alegre e sensual. Para uma narrativa de sua vida, em que cada um desses registros se organizasse cronologicamente de forma a recontar os seus 80 anos, um livro seria apenas parte do que sempre ficaria por contar. Uma humanidade inteira, em cada escultura de Abelardo da Hora, nos ensina o sentido de toda existência. •
Os Cantadores, escultura em cimento, exposta no Parque 13 de maio
Weydson Barros Leal é poeta e crítico de arte.
Casa-ateliê do artista
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