Devotos

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seus vão viver e você vai viver

Cap.01

Seus sonhos vão viver. E você vai viver pra ver1.

1 Trecho de letra de “C.O.S.”, faixa de Agora tá valendo (1997), primeiro disco dos Devotos do Ódio


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Mas os Devotos, que, um dia, foram do Ódio, escolheram o Alto José do Pinho como local de gravação de seus CDs e DVDs, em comemoração aos seus vinte anos de carreira. O bairro, outrora conhecido e divulgado aos quatro ventos como um dos mais perigosos e violentos da região metropolitana do Recife, era, naquele domingo, palco de um programa em família.

No dia 21 de setembro de 2008, milhares de pessoas ocuparam a rua principal do Alto José do Pinho. Um enorme palco fora erguido no local. Jornalistas de rádio, televisão e publicações impressas dividiam o espaço sem esconder um certo nervosismo e uma boa dose de emoção. Pessoas de classe média transitavam tranquilamente, misturando-se aos moradores do morro. Havia também gente de outros Estados, de Maceió, de João Pessoa, de Natal. Entre os convidados, Lirinha, vocalista do Cordel do Fogo Encantado, e Clemente, vocalista dos Inocentes e da Plebe Rude, esperavam na casa de Cannibal, localizada a poucos metros do palco, pela hora do show. A economia informal se encarregava de faturar uns trocados com a ocasião. Dois bares, várias barracas de churrasquinho, vendedores de amendoim e de pipoca transitavam naquele domingo, que parecia bom para o comércio local. O número de câmeras chegava a ser assustador. Das televisões, dos documentaristas, do público consagrado definitivamente como cinegrafista amador em tempo integral e em era digital. E uma enorme grua à direita do palco registrava todos os lances, todos os olhares, todas as reações de todos os presentes. A cena, por sua estrutura imponente de palco e quantidade de público, poderia perfeitamente ter como cenário qualquer lugar do mundo.

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Ao saírem da casa de Cannibal para o backstage, um longa-metragem começou a rodar nas cabeças de Cannibal (baixo e voz), Neilton (guitarra) e Celo (bateria). Certamente, ao começarem a brincadeira que sempre levaram muito a sério, há exatas duas décadas, não sonhavam que o roteiro incluísse um capítulo como aquele que estavam vivenciando. Vestindo a camisa do Alto Falante, feita por Neilton, e um lenço azul na cabeça para disciplinar seus dreads, Cannibal sentia novamente o gostinho da primeira vez no palco. “Galera, eu nunca estive tão nervoso em toda a minha vida. Até parece que é a primeira vez que a gente toca.” Se alguém ousasse dizer, há alguns anos, que seria possível realizar tal evento no Alto José do Pinho, seria tido como louco. Por essa ninguém esperava. Nem seu Biu, o guarda. Tampouco seu Antônio, o ferreiro. Talvez a única que imaginasse algo parecido fosse dona Maria, mãe adotiva de Cannibal. Porém, assim como o ferreiro e o guarda, já não estava mais viva para testemunhar o momento máximo da carreira da banda que o filho fundou. Pois, entre os vivos, nem dona Detinha, responsável pela desapropriação das terras do Alto José do Pinho e pela implantação do sistema de água encanada no local, era capaz de imaginar tamanha façanha. Que o diga então o próprio José do Pinho.


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O começo

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Boa parte da área dos 41,5 hectares do Alto José do Pinho pertencia a duas famílias: Vieira da Cunha e Cesário de Melo. Elas alugavam os terrenos para as pessoas construírem suas casas de taipa, cobertas com capim. Existem duas versões sobre o senhor que dá nome ao Alto. Uma diz que José do Pinho seria um velhinho que, no início do século passado, animava as festas do pequeno povoado, tocando violão embaixo de um pinheiro. A versão que consta no documento “História do Alto José do Pinho contada por seus moradores”, registro de 1987 com o relato dos habitantes mais antigos do bairro, é mais saborosa. Segundo essa fonte, José do Pinho, além de fabricar violões de pinho, era proprietário de algumas terras no Alto. E, ao contrário das famílias Vieira da Cunha e Cesário de Melo, que possuíam administradores de terras responsáveis pela cobrança dos aluguéis de suas terras, o próprio José do Pinho ia cobrar o aluguel das suas. Boêmio, José do Pinho era presidente-fundador de uma troça carnavalesca chamada Inté MeioDia. Em um ano de dificuldades financeiras, José do 1 As informações deste subcapítulo têm como base o documento “História do Alto José do Pinho contada por seus moradores”, idealizado e realizado por dona Detinha no ano de 1987. Ela reuniu os moradores mais antigos do Alto José do Pinho, gravou o depoimento deles e mandou transcrever o material gravado.

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Pinho teria pedido emprestada uma quantia de dinheiro à família Vieira da Cunha para poder colocar seu bloco na rua. O carnaval daquele ano estava garantido, mas a dívida acabou não sendo paga, e José do Pinho, proprietário de terras que fabricava violões de pinho e dono de troça carnavalesca, foi obrigado a vender a parte que lhe cabia no latifúndio do Alto para a família Vieira da Cunha. Restaram-lhe o violão e a lenda. Aos poucos, o Alto José do Pinho foi se modernizando. A iluminação pública só chegou ao local nos anos de 1950. Até então, a população vivia na base do bom e velho candeeiro, e o rádio de pilha ligava os moradores do Alto José do Pinho ao mundo. Como em todos os locais, o Alto também contava com certa divisão de classes sociais. Aqueles que possuíam uma renda um pouco maior do que a dos outros se estabeleciam no centro. As ruas, naquela época, eram numeradas por ordem de importância e conveniência. Assim sendo, a rua que oferecia melhor infraestrutura era a rua 1, depois a rua 2 e assim por diante. Os mais pobres habitavam os arredores do Alto, ou seja, a periferia da periferia, em regiões que, ainda hoje, são conhecidas por lá como Mangubas. Mas o principal problema que a comunidade enfrentava era a falta de água encanada. A líder comunitária dona Detinha, 75 anos, chegou ao Alto José do Pinho em 1972. Naquela época, luz elétrica era um privilégio de poucos. Água encanada, de ninguém. Era preciso buscar água nos chafarizes do bairro vizinho da Bomba do Hemetério, e carregá-la em baldes na cabeça até o morro. Pelo menos, o eterno sobe e desce na busca da água já era feito com as ruas calçadas, benfeitoria implantada no bairro entre o fim dos anos 1950 e o início da década de 1960. A situação continuou assim até 1985, quando dona Detinha criou o


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conselho de moradores do Alto José do Pinho e começou a desenvolver um trabalho comunitário no morro. Dona Detinha era a encarregada de apresentar o Alto (e suas carências) aos governantes locais. Em 1986, ela fez um abaixo-assinado que pedia água para a comunidade e o levou até a Companhia Pernambucana de Saneamento – Compesa. A ideia de dona Detinha era construir um poço, mas não havia lugar viável para a obra no morro. A solução não poderia ter sido melhor: no primeiro governo de Miguel Arraes (1987-1990), todo o Alto José do Pinho foi cavado, e cada casa passou a ter torneira no quintal, “luxo” impensável antes de dona Detinha comprar a briga. Mas a maior vitória de dona Detinha ainda estava por vir. Ao saber que o então presidente João Figueiredo vinha visitar o bairro de Brasília Teimosa para desapropriar umas terras por lá, ela não se fez de rogada: escreveu uma carta em que relatava o histórico de abusos das famílias “proprietárias” do Alto — àquela altura, representadas por imobiliárias —, foi até Brasília Teimosa e conseguiu entregar a carta ao próprio presidente da República. Oito dias depois, em um domingo, chegava um telegrama na casa de dona Detinha. O remetente: João Baptista Figueiredo. O assunto: pedir que dona Detinha procure o então governador de Pernambuco, Marco Maciel, para resolver a questão. O resumo da história: as terras do Alto José do Pinho foram desapropriadas, e dona Detinha, junto com o conselho de moradores do bairro, distribuiu seiscentos títulos de posse com o povo. Além de água encanada, todos, a partir de 1985, passaram a ter casa própria no Alto José do Pinho. Como dona Detinha gosta de dizer, do alto da sabedoria de seus 75 anos de idade e três décadas deles dedicados ao trabalho comunitário, “Isso aqui (o Alto) virou uma cidade”.

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Tem de tudo

O Alto José do Pinho sempre teve tradição musical. Boa parte dos primeiros habitantes do bairro vinha da zona rural de Pernambuco, e trouxe com eles suas principais tradições folclóricas: caboclinho, maracatu e afoxé. Nos anos 1940 e 1950, ficaram conhecidos os caboclinhos Tupinambás e Tabajaras, que animavam os carnavais do bairro. Os maracatus Estrela da Tarde e Estrela Brilhante não ficavam atrás e, por muitos anos, foram dois dos mais conhecidos e concorridos blocos carnavalescos do Recife. Também é grande, ainda hoje, o número de terreiros de umbanda. Com população predominantemente negra, o Alto, ainda hoje, conserva tradições de seus antepassados, tanto na religião quanto nos folguedos. O afoxé Ylê de Egbá, fundado em 1986, é um dos mais respeitados do Brasil, e participou da gravação do CD e do DVD em comemoração aos vinte anos de carreira dos Devotos. Curioso notar como isso foi decisivo para a formação cultural dos músicos que criariam o novo movimento musical do Alto nos anos de 1990: é grande o número de bons bateristas surgidos no Alto José do Pinho. Boa parte deles cresceu ouvindo os tambores de maracatu e do afoxé, transformando a força das batidas desses ritmos em influência para a música que viriam a fazer anos mais tarde, como punk e hardcore.

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O Alto hoje

O conselho de moradores do Alto José do Pinho calcula que a população atual do bairro esteja na casa dos 20 mil habitantes. O Alto é dividido em 72 ruas, levando-se em conta escadarias, becos e vielas. O centro conta com uma pequena praça, onde se destaca uma imagem de Cristo crucificado, feita de cerâmica branca. Nesta praça, funciona o terminal de ônibus que atende à população, ligando o bairro ao centro do Recife. Ela abriga, ainda, um posto policial e uma lanchonete, e está cercada de pequenos bares por todos os lados. É comum, mesmo nos dias de semana, ver gente sentada nos bancos jogando dominó e conversa fora. Em frente à praça, fica o mercado municipal. Nos fundos dele, está o minúsculo estúdio da rádio comunitária Alto Falante, inaugurada em 2002 pela ONG de mesmo nome, formada pelos músicos das bandas do Alto José do Pinho. Ela é veiculada a partir de caixas de som colocadas nos postes do bairro. A programação vai das oito da manhã às sete da noite, com intervalo de meio-dia às duas da tarde. A rádio leva ao ar prestação de serviços, programação musical variada, do samba de Cartola ao punk do Sex Pistols e até um programa dedicado à literatura, produzido por estudantes de jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco. Do lado do mercado público, funciona uma banca de jogo do bicho, bem em frente ao posto policial! Logo atrás da banca de jogo do bicho, fica a sede do boneco Zé do Pinho, que desfila nos 30

carnavais do bairro. O animado Brega do Bolinho, clube que serviu de palco para vários shows de rock das bandas do Alto, também fica a poucos metros da praça. Há duas escolas públicas no bairro: a Maria Tereza, inaugurada em 1955, e a Santa Maria, aberta em 1968 e também conhecida como colégio das freiras. E, por ironia do destino, uma de suas salas de aula serviu de cenário para a gravação do clipe da música “Os peitinhos”, da não exatamente religiosa banda Matalanamão. Na esquina da rua principal está a sede do Bonsucesso Futebol Clube, time de futebol desativado, fundado em 1 de abril de 1949, e que chegou a disputar a terceira divisão do campeonato pernambucano. O clube, que hoje abriga as oficinas de break de Zé Brown, do Faces do Subúrbio, e reuniões do grupo de terceira idade do bairro, foi palco do primeiro evento roqueiro organizado pelas bandas do Alto, o Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll. Eclética por necessidade e por obrigação, a casa também abriga bailes funk, shows de brega e as oficinas periódicas da ONG Alto Falante. O clube serviu, também, como local de várias reuniões organizadas por dona Detinha, e todos os prefeitos do Recife e governadores de Pernambuco que passaram pelo poder desde 1979 se reuniam com a líder comunitária no Bonsucesso para discutir os problemas do bairro. O convívio religioso é democrático. Existem, pelo menos, quatro templos evangélicos e duas igrejas católicas em funcionamento hoje. Fora os terreiros de xangô e umbanda localizados na Manguba, a periferia do Alto, “cidade” que dona Detinha ajudou a construir.


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