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A modernidade A combinação de sensibilidade e reflexão, de arte e pensamento em Rembrandt, é o que grão-modernos como Kafka, Mann e Proust perseguiram a vida toda. Barroco e austero, ele não se encaixa em classificações Daniel Piza Continente março 2006
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A Aula de Anatomia do Doutor Tulp, 1632
roponho ao leitor um exercício curioso: tome um livro importante que trata de definir o que é arte moderna, como o de Giulio Carlo Argan ou o de Herbert Read (A Arte de Agora Agora), para ficar em apenas dois exemplos, e aplique os conceitos a uma pintura qualquer de Rembrandt, de preferência dos seus últimos anos, pondo um pouco de canto a identidade do autor e seu período histórico. Bingo: Rembrandt vai parecer ser o mais moderno dos pintores. A descontinuidade formal pode ser vista na maneira como Rembrandt divide a luz, e não há área luminosa em suas telas que não tenha um sombreado e não há áreas escuras que não sugiram luz. A presença tanto de elementos clássicos como dos românticos ou “anticlássicos” é comprovada pela maneira como suas figuras e cenas parecem mesclar o rigor da composição e a intensidade da paixão. A fusão entre figura e fundo é tão fundamental que não se pode extrair de nenhuma pintura de Rembrandt um único dado secundário, sem que ela não seja afetada por essa ausência. O jogo entre realidade e ficção e o uso da auto-referência são tão óbvios na sua série de auto-retratos, por exemplo, que Rembrandt parece um precursor dos pós-modernos na multiplicação de si mesmo, na polifonia de suas identidades. Barroco e austero ao mesmo tempo, Rembrandt nos faz pensar em gênios equivalentes de outras artes, que como ele são eternos e, por extensão, modernos. Sua consciência das ironias da natureza humana é igual à de Shakespeare. O domínio e o distanciamento de sua fase final permite paralelo com os últimos quartetos de Beethoven. A combinação de sensibilidade e reflexão, de arte e pensamento, é o que grão-modernos como Kafka, Mann e Proust perseguiram a vida toda. É claro que Rembrandt não é tecnicamente um moderno: nos modernistas, aquelas características – elipse, simultaneidade, metalinguagem – são predominantes e, mais fundamental, chamam a atenção para si mesmas, expondo-se na própria superfície de forma mais angulosa e lúdica. Mas é que ele não se encaixa em classificações. Rembrandt derruba diversos outros tabus da crítica de arte. Em vida, por exemplo, foi reconhecido por seus talentos. Mas também foi criticado quando velho, por estar fazendo uma pintura “voltada ao passado” – o que confirma que raramente a geração seguinte é indicada para dar o veredicto sobre a grandeza de uma obra. Rembrandt, como Mozart, também teve uma vantagem concreta sobre seus contemporâneos: o apoio do pai, desde cedo. Nascido em Leiden, na Holanda, em 1606, quando Shakespeare escrevia Rei Lear, na Inglaterra e Cervantes concluía Dom Quixote, na Espanha, aos 7 anos ele foi matriculado na Escola Latina pelo pai, dono de um moinho à beira do rio Reno. Seus irmãos,
de Rembrandt
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A Ronda Noturna, 1642
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provavelmente porque menos dotados intelectualmente, foram aprender ofícios em vez de freqüentar a escola. Mas os planos do pai não eram ver o filho se tornar o maior artista da Europa. Era vê-lo doutor, autoridade. E Rembrandt largou os estudos aos 15 anos, para se tornar um pintor. Mesmo assim, os pais o levaram para estudar com um pintor acadêmico, com quem Rembrandt passou três anos. E o enviaram para Amsterdã, quando atingiu a maioridade, cientes de seu promissor talento. Naquele momento, a Holanda vivia desenvolvimento acelerado – descrito magistralmente pelo historiador britânico Simon Schama em O Desconforto da Riqueza – e os ricos queriam absorver o melhor da cultura européia, especialmente os frutos do Renascimento italiano, que nesse momento tinha como capital a Veneza de Ticiano, Tintoretto e outros, além de Caravaggio em Roma. Os primeiros professores de Rembrandt em Amsterdã lhe ensinaram técnicas de cor, claro-escuro, desenho e perspectiva. Era nessa tradição que bebia também Rubens, o grande pintor flamenco, 29 anos mais velho que Rembrandt. Produzindo uma pintura por quinzena, Rembrandt era mais e mais procurado pelos comerciantes da cidade, o que elevou sua cotação no mercado rapidamente. Ele desenhava com a perfeição de um Leonardo ou Dürer e praticava os gêneros estabelecidos, como a naturezamorta, as cenas bíblicas ou o retrato de aristocratas. Num deles, o retrato de grupo, já mostrou a que viera ao mundo: na Lição de Anatomia do Dr. Tulp (1632), distinguiu-se da convenção, ao dar uma dinâmica à posição das figuras e uma expressividade a seus semblantes que eram
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inéditas. Suas inovações foram bem aceitas. Rico, casou-se em 1634 com Saskia, prima de seu marchand, e o casal logo montou uma mansão e a povoou de obras de arte, móveis antigos, porcelanas e muito luxo. Rembrandt retratou Saskia em pinturas tomadas por bom humor e sensualidade, apesar da feiúra do casal e da perda sucessiva de três filhos, em média aos dois meses de vida. Mas a morte da mãe, em 1640, e de Saskia, em 1642, lançá-lo-iam em melancolia. A sorte foi nossa, porque a partir daí a obra de Rembrandt atinge uma maturidade extraordinária. Uma de suas telas mais famosas, A Ronda Noturna, um tour de force em termos de composição e luminosidade, data precisamente de 1642, quando Rembrandt completava 36 anos. O quadro tem um movimento tremendo, os olhares se dirigem para todos os lados, e a sensação é de que ouvimos suas vozes. Há uma grandeza cênica nela, com suas medidas 3,65 x 4,37 metros, mas é preciso notar que há uma espécie de contenção que não se encontra em um Ticiano, por exemplo; seu drama não precisa de tantas vibrações de luz e contorno. E isso apontava para o futuro – o seu e o nosso. Nos anos seguintes, sua obra ganha mais liberdade, as linhas deixam de ser uma separação entre claridade e escuridão, os retratos ganham introspecção e sutileza. Uma revolução estava contida na forma como passou a distribuir os focos de luz: eles podiam estar em partes aparentemente menos importantes da figura. Num retrato como o de Jan Six (1654), as sombras ocupam metade de seu rosto, sem tirar nitidez de seus olhos, e ora as sombras parecem tomar a frente do quadro ora a roupa em vermelho e marrom parece ganhar um volume imponente. Como Balzac, Rembrandt produzia em todos estilos e com uma rapidez impressionante. Gravuras em água-forte nasciam uma atrás da outra,
Auto-rretrato com Saskia, 1635
Retrato de Jan Six, 1654
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O Artista em seu Estúdio, 1629
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bastando uns poucos traços com pena de junco para criar uma cena ou uma variação. Sua velocidade não era resultado da pressa, mas da busca de concisão, de síntese. Ao ver uma seqüência de seus auto-retratos gráficos, temos a sensação de que Rembrandt se reinventava sem cessar, ciente de que a verdade nunca se apreende, apenas se aproxima. Ou ao ver seu auto-retrato de 1658 na Coleção Frick, em Nova York, sentimos que aquela austeridade não elimina a noção de que o ser humano se leva muito a sério. Talvez por isso sua fase final, das obras cada vez mais ambíguas e fortes que faz ao longo dos anos 1660, tenha sido tão incompreendida pelos contemporâneos. Seu valor só seria resgatado por românticos como Delacroix, mais de 150 anos depois, sem que o Romantismo pudesse explicar como ser tão carnal e espiritual ao mesmo tempo – o que Van Gogh tanto perseguiria. Concubinado com Hendrickje, sua “noiva judia” (título de outra de suas telas mais conhecidas, de 1665), que em 1654 lhe dera uma filha, Cornelia, Rembrandt vinha enfrentando dificuldade financeira. As encomendas cessavam. Ela estava “fora de moda”. Foi obrigado a vender sua propriedade e a leiloar suas obras. Mas enfrentou tudo com uma energia que gênios sabem onde buscar. Passou a viver modestamente, num bairro pobre da cidade, e se sentiu mais livre ainda para as ousadias plásticas. Num auto-retrato de 1669, vemo-lo entristecido e também seguro de si; e a própria pintura é um prodígio de drama sereno, em que o colete vinho parece se diluir no fundo marrom, refletindo esses tons na face vivida do autor. Ele estava a poucos meses do fim. Sabia que tinha aberto fronteiras entre luz e sombra como ninguém.
Entre a luz e a escurid達o Do modesto e banal, at辿 o sublime e transcendente, tudo se converteu em um objeto de vis達o e reflex達o na obra de Rembrandt Mariana Oliveira, de Madrid Boi Esquartejado, 1655
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á 100 anos, na comemoração do terceiro centenário de Rembrandt, o historiador alemão Horst Gerson, especialista em sua obra, declarou que era muito difícil conhecê-lo em sua totalidade. A afirmação relativista batizou os três séculos em que as obras do artista foram estudadas de várias formas, com perspectivas completamente distintas, variando de acordo com o período. Contudo, a idéia de chegar a uma imagem coerente desse grande gênio sempre animou os historiadores da arte e segue até hoje, ano em que se comemoram os seus 400 anos. A idéia usual vinculada a Rembrandt está baseada, em boa medida, na maneira como o pintor era visto por alguns dos seus contemporâneos. Ele ainda é considerado um “herege da arte”, um artista que encontrou um estilo totalmente pessoal, no qual a expressão dramática, a luz e a representação fiel da natureza eram pontos chaves. “Deveríamos talvez lembrar de Rembrandt como o grande pintor das emoções e dos afetos, dos estados da alma, dos espaços e das luzes que nos submergem em sentimentos e emoções, dos retratos de personagens que estabeleciam entre si laços de empatia e lançam ao espectador sua humanidade”, opina o professor Fernando Marías, catedrático de História da Arte da Universidade Autônoma de Madrid. A luz na obra de Rembrandt exerce um papel fundamental. O pintor holandês resgatou o jogo entre claroescuro proposto por Caravaggio (1571-1610). A influência do pintor italiano sobre Rembrandt é bastante notória. O quadro São Jerônimo, de Caravaggio, e o São Paulo na Cadeia, de Rembrandt, tratam de temas parecidos. Comparando-os, percebem-se as similitudes e as diferenças entre os dois artistas. Caravaggio utiliza a luz de forma mais violenta e com mais intensidade, deixando bem marcada a separação entre o campo de luz e o de sombra. Em Rembrandt, a luz é mais difusa, tudo está mais misturado, não há uma distinção forte entre as duas zonas. Contudo, ambos valoravam mais a verdade e a sinceridade em detrimento da beleza e da harmonia, aventurando-se pelo caminho do Naturalismo. (Dentro das comemorações dos 400 anos do pintor, desde fevereiro, a exposição Rembrandt-Caravaggio reúne obras dos dois mestres, pela primeira vez, no Museu Van Gogh, em Amsterdam, até junho). Segundo Fernando Marías, Rembrandt encontrou uma maneira de, num mundo escuro (século 17), jogar Continente março 2006
Os Síndicos dos Tecelões, 1662
luz sobre alguns elementos, provocando sombras e deixando alguns objetos na penumbra. Os seus quadros podem ser entendidos como um grande negativo, que, com a entrada da luz durante algum tempo, começa a captar um pouco da realidade. Dentro desse contexto, as cores ficariam subordinadas à luz. O tipo de luz que determinado quadro recebia (diurna, de velas) impunha a sua coloração. Todo esse jogo entre o claro e o escuro e o aparecimento de sombras e penumbras são fatores diretamente ligados à dramaticidade dos quadros e de suas situações – uma verdadeira obsessão do pintor. O acervo deixado por Rembrandt é vasto: retratos, auto-retratos, retratos de grupo, temas bíblicos, históricos e mitológicos, pinturas de gênero e de natureza, sem falar nas suas gravuras. Em tudo que fazia, a busca por seu estilo próprio sempre o diferenciou dos pintores da sua época. Ele pode ser considerado um pintor fundamentalmente moderno. O artista talvez tenha sido um dos primeiros pintores a prescindir o cliente e pintar com liberdade o que queria. Rembrandt buscou inspiração no passado, na mitologia e nos temas bíblicos, mas estava sempre em diálogo com o presente. Poussin, por exemplo, resgatava temas antigos, parecidos com os escolhidos por Rembrandt, em uma pintura que era arqueológica. O pintor de Leiden levava os temas ao seu mundo contemporâneo. Também sua postura em relação às gra-
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vuras era eminentemente moderna. Ele tinha uma visão econômica do mercado (que poucos tinham) e queria levar sua arte a muitas pessoas. A ação moralizante, presente em muitas obras do período, não era encontrada em seus trabalhos. De acordo com Marías, a pintura de gênero holandesa possuía uma aura moral muito forte, enquanto as de Rembrandt simplesmente representavam o que ele via, sem nenhuma carga doutrinária. “Na Holanda protestante do século 17, nem tudo tinha que ser história menor de comédia, jogando com a moral. Também houve espaço para a história trágica, a descrição da natureza humana em sua grandeza e miséria, mas com um olhar isento de moral”, explica. Os desnudos femininos do pintor são naturais, quase reais. Suas musas não têm uma pele firme e uma beleza singular. Elas simplesmente são reais, têm carne, têm a marca da roupa nos braços, nas pernas, como uma mulher que realmente acaba de se despir, demonstrando a importância dada à naturalidade. Alguns dos retratos mais famosos pintados por Rembrandt são aqueles em que ele representa grupos e corporações. Ele passou do retrato individual ao retrato de grupo, e soube como nenhum outro pintor destacar as virtudes artísticas do conjunto e do coletivo humano. Soube incrementar o movimento, a narratividade, a teatralidade, tornando suas pinturas
uma narrativa. Em Lição de Anatomia do Dr. Tulp (1632), Ronda da Noite (1942) ou em Os Síndicos (1661) há uma sensação de que realmente está acontecendo algo, que uma trama se desenrola e que seus personagens não estão apenas posando. Há uma integração entre as várias figuras, algo realmente teatral. Estudos recentes acerca da vida de Rembrandt apontam que uma das suas grandes paixões foi o teatro. A natureza-morta era um gênero bastante explorado na Holanda do século 17. Rembrandt pintou alguns poucos quadros que ficaram no meio do caminho entre uma pintura de gênero e a natureza-morta. Rembrandt era um pintor muito focado na natureza humana e, portanto, a figura humana está presente na grande maioria de seus quadros, mesmo que de forma secundária, mas sempre imprimindo certa dramaticidade à cena. No quadro Menina com Pavões Mortos (1636), por exemplo, uma menina (ao fundo) contempla os pavões mortos que estão em primeiro plano. Porém, não há dúvida que um dos quadros mais impactantes e misteriosos produzidos por Rembrandt foi O Boi Esquartejado (1655). Aqui, o papel da figura humana é ainda menor (uma mulher aparece sutilmente na porta entreaberta, ao fundo). Toda a atenção está voltada para o boi esquartejado, no primeiro plano, pintado de forma cruelmente realista. A cor densa e táctil dá a impressão da verdadeira consistência da carne, sobre a qual incide a luminosidade do quadro, provocando sombras reais. O quadro demonstra que o pintor não tinha limites na sua busca pela representação da realidade e na sua audácia na expressão pictórica e colorista. Além da forte característica moderna, a obra é um típico Rembrandt, pela harmonia das cores e pela sensação de mistério que o artista deu a um tema tão trivial como esse. Essas fortes características fizeram com que a obra fosse bastante estudada e reproduzida, inclusive, por pintores modernos como Delacroix, Chaïm Soutine e Daumier, que terminou pintando uma série inteira sobre um matadouro. Historiadores da arte de todas as partes já propuseram uma leitura simbólica da obra: na pintura de gênero a presença de um animal desarticulado remeteria ao tema da prudência, virtude que alerta para a importância de preparar-se para as necessidades futuras. Especula-se que ele, com isso, queria referir-se à sua grave situação financeira que o levaria a bancarrota no ano Continente março 2006
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seguinte; outros vêem o quadro como uma metáfora da morte. Além de pintar, Rembrandt também teve uma grande atuação no campo das gravuras, destacando-se em relação aos seus colegas Jusepe Ribera, Abraham Bosse, Benedetto Castiglione o Salvator Rosa. Ele sabia que para fazer suas obras chegarem a um maior número de pessoas precisava de um suporte mais barato, mesmo que menos duradouro. As temáticas se repetiam nas telas e no papel e seu foco na luz também era prioridade nas gravuras. Para Fernando Marías, as gravuras de Rembrandt conseguem ser ainda mais interessantes que alguns dos seus quadros. Ele desenvolveu uma arte de água-forte sem perfis lineares, à base de traços livres, que lhe permitiam imitar toda a riqueza de iluminação da pintura. “Deu às suas estampas um trato que até então só era concedido à pintura, tratou-as como verdadeiras obras de arte, nas quais levantava problemas expressivos e formais, como as figuras queimadas pela intensidade da luz em Os Banhistas (1651), ou seus jogos de pele negra sobre o branco e suas profundas penumbras na fantástica Negra Tombada (1658)”, ressalta Marías. Com o passar dos anos, seus olhos já não lhe ajudavam mais como antes. Mesmo com dificuldades, ele seguiu pintando, seguiu deixando seu olhar, sua visão do mundo, filtrada por sua personalidade. “Um velho ‘cego’ que não podia deixar de olhar, de ver e entrever, e de pintar o visto e o sentido”, descreve Marías, referindo-se aos últimos anos de vida do artista que, enquanto pintava, vivia. Rembrandt foi um artista que pintou não apenas a natureza humana, com suas contradições, mas toda a natureza, desde o mais imaterial (uma nuvem, um raio de luz), a algo densamente material como a carne de um idoso, de um boi. Do modesto, banal, até o sublime, transcendente, tudo se converteu em um objeto de visão e reflexão desse holandês e de sua arte de luz e sombras. “O velho filósofo Rembrandt unia, em seu saber, passado e modernidade, escondia na sua arte o segredo da vida e da posteridade”, conclui Marías. Continente março 2006
Jacó abençoando os filhos de José, 1656
Rembrandt A pintura do holandês é o drama puro e simples do nascimento e da morte Joaquim Cardozo
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embrandt, filho do moleiro van Rijn, nasceu em Leyde em 1606; completa-se, assim, este ano, o sétimo cinqüentenário do seu nascimento; pode-se dizer ainda que esta data registra o terceiro centenário do apogeu da sua atividade artística, pois, como é de aceitação geral, com a execução, no ano de 1656, da Bênção de Jacob, o artista teria alcançado o domínio absoluto de sua arte. No momento em que, na Holanda, para comemorar praticamente esse duplo acontecimento, os museus de Amsterdã, de Roterdã e de Leide estão promovendo grandes exposições das suas obras, não é demais repetir, diante das reproduções de suas pinturas e águas-fortes, agora apresentadas no Museu Nacional de Belas Artes, as extraordinárias virtudes desse pintor unanimemente considerado como um dos maiores da humanidade. A pintura de Rembrandt é o drama puro e simples do nascimento e da morte: dos espaços de sombra dos seus quadros surgem figuras – incertas e imprecisas – caminham para uma região iluminada, aos poucos se organizam em formas seguras e exatas, para logo se dissolverem destruídas de novo pelo impacto violento da luz – como os seres vivos que assomam da escuridão do desconhecido, expandem-se, por certo tempo, em pleno
ESPECIAL fulgor da existência, e depois desaparecem queimados pela luz da consciência, desfeitos pelo ardor da própria vida. Há gravuras de Rembrandt em que esse ciclo é exatamente representado como um traço de uma linha que atinge, em sentidos opostos, dois infinitos que se confundem, em que a luz é revelada, numa graduação crescente e alcança a mais intensa vibração, como se resultasse de uma queda vertiginosa de altos níveis de energia: essa luz que ora desce do céu como um raio, ora penetra por uma janela como um jorro, uma chuva de partículas fulgurantes, ora explode no centro da tela como a desintegração instantânea de substâncias nucleares, luz para onde avançam, atraídos e dominados, todos os seres que aspiram viver e dentro da qual são abrasados e consumidos. A pintura de Rembrandt é o drama da própria consciência do pintor, que, para maior clareza, na série de pinturas em que se retrata a si mesmo e a Titus, e a Saskia, e a Hendrijke, reproduz o mistério do nascimento e da morte em termos de luz e sombra; basta olhar-se o seu último auto-retrato, de 1668, já próximo da sua morte – que sucedeu um ano depois –, para se ver um rosto não mais surgindo, mas se desfazendo na sombra, corroído pela luz. A série dos seus retratos dá ainda uma idéia da pintura religiosa e do realismo de Rembrandt que representam talvez o último termo da interpretação dos motivos religiosos que, segundo Dvorak, teve na arte cristã um sentido em tudo diverso do dos antigos, por desprezar a representação isolada dos tipos de divindade, e fixar a ação, o sucesso, a “história figurada de acontecimentos passados”, “sempre baseada na observação da vida ou da fantasia”. Foi um pouco na fantasia e muito na observação da vida que o grande pintor holandês encontrou aquele sentido humano e habitual das cenas religiosas que pintou. Como já o fizera Caravaggio, na Morte da Virgem e na Conversão de São Paulo, Rembrandt descreve os episódios bíblicos como se fossem cenas cotidianas, numa afirmação poderosa das condições ambientes, numa sinceridade sempre presente e atual: Jesus e a Samaritana, O Evangelista São Mateus, os Discípulos de Emaús diferem pouco dos seus retratos e quadros de gênero. Com isto, em verdade, ele apenas se adaptava à tendência geral da arte holandesa do seu tempo, arte que já usava largamente o “tenebrismo” caravaggesco, que assimilava e refletia as aspirações e exigências de uma nova maneira de sentir e compreender a vida. E era essa mesma compreensão objetiva, imediata e utilitária, tocada ainda por uma luz de idealismo, de audácia e de aventura, que animava os arrojados navegadores e os
Auto-rretrato, 1659
hábeis comerciantes dos Países Baixos, pioneiros da burguesia como classe revolucionária e triunfante. Mas essa integração no espírito realista do seu tempo, como a sua adesão à técnica do claro-escuro, não se verifica em Rembrandt sem o sinete da sua grande personalidade, sem que tivessem do seu espírito magnífico a marca inconfundível e impressionante, expressa na afirmação da própria vida como o sentido coletivo da existência, na substituição silenciosa de todos os seres pelo seu próprio ser, na redução do Cosmos ao seu eu corajoso, autoritário e comunicativo, imenso e solidário com as fraquezas e virtudes humanas. Desse “Miguel Ângelo que não teve Julio II”, como a seu respeito tão bem se exprimiu André Malraux, poder-se-á dizer que foi a expressão mais perfeita do sentimento e da cultura holandesas, a imagem mais verdadeira e harmônica de sua época e o modelo mais legítimo de um gênio universal. Artigo publicado em Para Todos, quinzenário da cultura brasileira, Rio de Janeiro, São Paulo, v. 1, n. 6, 1ª quinz. ago. 1956. Continente março 2006
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Na gravura, uma arte independente Até o século 19, Rembrandt era muito mais conhecido mundialmente como gravador Luciano Trigo
Auto-rretrato, 1630
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onsagrado ainda em vida como pintor de fama internacional, Rembrandt desenvolveu uma técnica tão sofisticada como gravador que se pode atribuir a ele a elevação da gravura ao status de gênero artístico de primeira grandeza. A utilização da água-forte em sua obra ultrapassa em muito os limites alcançados por seus antecessores. Seus temas eram os mais diversos: aproximadamente, entre as 400 gravuras que o artista deixou, incluem-se obras bíblicas e religiosas, retratos, paisagens e nus. As mais impressionantes foram feitas na maturidade, como o retrato de corpo inteiro de Jan Six, as famosas Cristo Curando o Enfermo e Cristo Pregando e a paisagem Três Árvores. A água-forte usa como suporte uma chapa fina de cobre, coberta com um verniz composto de piche, resina e cera. Os traços do desenho são marcados sobre a chapa com uma ponta seca (agulha com ponta afiada e resistente) ou buril (instrumento de aço, em forma de V), de modo que o cobre fique exposto onde a ponta penetra o verniz. Expostas a um banho de ácido, as partes não protegidas pelo verniz (ou seja, os traços do desenho) são corroídas, criando sulcos na superfície do metal. Quanto mais tempo a chapa permanece imersa no ácido, mais profundos são os sulcos. Para obter traços mais fortes que outros, a chapa é removida do banho de imersão. Os traços que já apresentam um nível adequado de corrosão são cobertos com uma nova camada de verniz, e a chapa é novamente imersa no banho. Atingido o resultado desejado, o verniz é removido da placa que, limpa, é recoberta de tinta. A tinta acumula-se nos sulcos, o excesso é removido da superfície e o papel úmido, colocado sob a matriz, é prensado e estampado. A técnica surgiu na Idade Média e foi aprimorada pelos árabes para ornamentar armamentos. As primeiras gravuras impressas em papel datam do século 15, produzidas no sul da Alemanha, mas por muito tempo essa técnica foi considerada inferior à xilogravura e à gravação em cobre. Nos século 16 e 17, gravadores da Antuérpia passaram a recorrer à água-forte com buril, na reprodução de trabalhos gráficos. Artistas holandeses como Esaias van de Velde, Jan van de Velde II e Willem Buytewech buscavam realçar as tonalidades nas gravuras de paisagens, quebrando as linhas longas de contorno em traços curtos. Já Hercules Segers obteve um maior efeito pictórico ao fazer a impressão sobre tela ou papel colorido, que retrabalhava com o pincel. Especialista nas gravuras de Rembrandt, o holandês Pieter Tjabbes veio ao Brasil pela primeira vez em 1984, para trabalhar como estagiário do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo. Foi
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Crianças sendo atraídas por Jesus, 1649
contratado logo depois pela Fundação Bienal e, desde então, passou por várias instituições brasileiras ligadas às artes plásticas. Em 2004, ele foi curador da exposição Rembrandt e a Arte da Gravura, que apresentou ao público brasileiro 83 gravuras do artista holandês. – Rembrandt via a gravura como uma arte completamente independente da pintura – declarou Tjabbes. – Não se tratava de um estudo, esboço ou mero exercício. Para Rembrandt, a gravura era muito importante. Tanto que até o século 19, ele era muito mais conhecido mundialmente como gravador. Rembrandt criou um verniz especial, mole e pastoso, que permitia traços mais livres, produzindo um efeito semelhante ao do desenho à pena. Ele desenhava diretamente sobre a chapa, mas antes fazia estudos detalhados no papel. Também utilizava uma solução diluída de ácido hidroclórico, de efeito corrosivo mais lento, evitando que traços leves se tornassem muito grossos. Pela sua perfeição, as águas-fortes de Rembrandt sempre tiveram excelente aceitação, e, no último ano de vida, muitas de suas gravuras foram vendidas a um colecionador italiano. Apesar de Rembrandt não ter produzido novas gravuras depois de 1661 (com algumas exceções), as gravuras antigas continuaram a ser reproduzidas e comercializadas até o início do século 20. – Rembrandt era um exemplo a ser seguido por todos os gravadores. Ele fez da técnica da águaforte uma forma de expressão artística maravilhosa, com a vantagem de poder ser reproduzida. Nas gravuras com cenas bíblicas, as figuras são bastante humanizadas. Ao contrário de muitos artistas da época, ele tratava as figuras da Bíblia como pessoas, e não como personagens. As primeiras matrizes de Rembrandt foram elaboradas sem o recurso da ponta-seca, só utilizada esporadicamente para fazer pequenas correções ou acrescentar detalhes. A partir de 1640, ele se interessou pelo potencial pictórico do traço aveludado da ponta-seca, muitas vezes em conjunto com o buril, obtendo impressionantes efeitos de claro-escuro. Mas algumas de suas gravuras foram elaboradas exclusivamente com a ponta-seca, desenhadas diretamente sobre a chapa de cobre. Rembrandt aplicava a técnica de tonalidade de superfície às suas gravuras para dar maior profundidade às sombras. A partir de 1650, ele passou a fazer experiências com diferentes tipos de papel. Mas seu preferido era o papel japonês, por sua cor amarelada e quente, adequada às paisagens em estilo italiano. • Continente março 2006
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