24/1/05
9:29 AM
Page 6
--- -
- --
-
6
-
Miolo DADA
Miolo DADA
9:30 AM
Page 7
-
-
-
--
24/1/05
Q
— uAnDo Eu fIqUei sAbENdO qUe Era Neta De CoRisco e DadÁ? Ah, eu já tinha uns doze anos. Foi um choque. Imagine, uma avó... Qual a imagem que você tem de uma avó? Porque criança, você sabe, quando vê uma pessoa de trinta anos acha que é um velho. Então, mesmo que a avó seja jovem, ativa, é sempre a pessoa mais velha que a gente conhece, não é? E aí tem aquela coisa da avó fazer as vontades dos netos, mimar, contar histórias, fazer bolo... Sei lá, era assim a minha avó. Eu convivi com ela desde que nasci. Era a minha avó e pronto. De repente, ficar sabendo que ela tinha sido cangaceira, que aquela perna mecânica... Ufa! Nem sei... Por que eu resolvi escrever essa história? Olha, acho que, no começo, eu escrevi foi pra mim mesma. Era uma forma de eu entender. E aceitar. E conforme eu ia tecendo as palavras foi me dando uma clareza, sabe? Que aquele acontecido todo era parte da história do país. Não podia ficar escondido embaixo do tapete, não. O quê? Falar isso tudo de novo? Olhando pra câmera? Ai meu Deus! Que vergonha. É difícil, não é? parece que a gente tá falando sozinha. Vou tentar... Ficou bom? Posso ler a história agora? Então vou começar.
--- -
7
24/1/05
9:30 AM
Page 8
--- O mEnINo
ficou olhando aquele monte de gente, curioso. Na porta, uma caminhonete. Na sala, refletores, filmadoras, microfones. Puxou a amiga e perguntou: — A tua avó é famosa, é? — É — a menina resmungou. O menino ficou se perguntando o que aquela senhora tão normal, parecida com tantas avós, tinha de especial para ser famosa. Será que era a perna mecânica? — Por quê? — Por que o quê? — Que ela é famosa. — Porque foi cangaceira. — Cangaceira? — ... — Que nem o Lampião, a Maria Bonita? — É. Bandida. A menina tinha falado baixo, mas por uma fração de segundo a avó parou de responder para a entrevistadora e olhou na direção da neta, com um olhar profundo, magoado. — Bandida? — É — a menina começou a puxar o amigo pela manga da camiseta. — Vem lá fora. — Espera aí, eu quero ver. O menino chegou mais perto. Ficou ouvindo a conversa. — É verdade que a senhora tinha só doze anos quando entrou para o bando de Corisco? — Treze. — E como é que foi que a senhora tomou essa decisão, de virar bandida, cangaceira? A avó baixou os olhos. O menino achou que ela ia chorar. Então ela levantou o rosto e o seu olhar estava seco, duro e digno. Respirou fundo e falou, com voz pausada:
- --
-
8
-
Miolo DADA
Miolo DADA
9:30 AM
Page 9
-
-
-
--
24/1/05
— Primeiro que tudo, eu nunca fui bandida. Depois, Corisco me carregou à força. E agora, se for pra fazer esculacho de minha vida, da de Corisco, me chamar de bandida, vamos é já parando por aqui, que fama eu já tive é muita na minha vida e quero mais não, quero respeito e sossego. O ar ficou carregado, a entrevistadora, sem graça, pediu desculpas, mandou o câmera e os assistentes desligarem as máquinas e se afastarem, e ficaram as duas conversando, baixinho. O menino saiu e encontrou a amiga sentada no murinho do canteiro que ficava na frente da casa. Tinha arrancado uns matinhos da terra e enquanto olhava para o nada, com o olhar perdido, picava as plantas que iam caindo no chão à sua frente. Ele sentou ao lado dela. Por um tempo ficaram os dois em silêncio. Então, ele disse: — Tua avó falou que nunca foi bandida. — Não, né? Então por que é que, de repente, ficam me apontando na rua e cochichando: “Ói lá a neta da cangaceira. Não sabe não? A costureira, dona Dadá, é Dadá de Corisco. Diz que andava armada até os dentes e mandou foi muitos pro inferno.” — Você não sabia? — O quê? — Da história da tua avó. — Não sei o que deu nela de, de repente, começar a dar entrevista. Agora toda hora é televisão, é jornalista, é pesquisador. — Você devia é ficar contente, de ter uma avó famosa. — Uma avó bandida. — Ela disse que nunca foi bandida. — Então por que andava armada? — Você já perguntou? — Não. Os dois entraram de novo na sala. Dadá agora estava com a cara serena e mostrava uma bolsa bordada para a entrevistadora. A moça mexia nos bordados, admirada. Eram desenhos de flores, grandes, coloridas.
--- -
9
24/1/05
9:31 AM
Page 10
--- — Mas dona Dadá, como é que a senhora conseguia fazer bordado tão bonito, tão delicado, se vivia embrenhada no meio da caatinga, fugindo da polícia? — Ah, minha filha, é que a gente não vivia assim, só fugindo e atacando. Tinha tempo de calmaria, tempo de amar e dançar, de parir e chorar, de cozer e bordar... — E como é que era a vida nesses tempos? Dadá começou a contar, animada, com os olhos brilhando: — Ah, era bom demais! Não tinha persiga, não sabe? Tudo ficava mais fácil. A gente vivia bem, com luxo, tinha vestidos escolhidos, tinha rouparia do jeito que queria, vestidos de seda, viu? Que aquelas roupas de couro, de pano grosseiro eram só para a viagem, para não rasgar as roupas bonitas na caatinga... — Seda? Não era difícil conseguir seda? — Os homens traziam quando voltavam de expedição ou encomendavam com os coiteiros: corte de tecido, jóias, perfumes. Iche! Eles disputavam para fazer de sua mulher a mais bonita, a mais bem vestida, a mais cheia de jóias. E os homens também, era tudo vaidoso. Não pense que era só nós. Gostavam de se vestir bem, perfume então! Frasco de cheiro, que a gente chamava. Teve vez até de volante descobrir nosso esconderijo por causa de sentir o perfume — Dadá falou rindo. — E comida? Verdade que vocês só comiam rapadura com farinha e água? — Quem foi que te disse essa bestice? Jacuba era só para os tempos de luta, aí sim, faltava de tudo! Em tempo de calmaria, quando a gente tava em um abrigo bem seguro, iche! Comida não faltava. Era a fartura, era buchada, bode assado, farinha com carne assada no umbu. — Carne assada no umbu? — Não sabe o que é, não? Vou te ensinar a fazer, anote aí no seu caderninho — e Dadá ditou a receita para a entrevistadora:
- --
-
10
-
Miolo DADA
Miolo DADA
9:31 AM
-
Page 11
-
-
--
24/1/05
0
RecEIta dE caRne AssaDa no UmbU Arranque a raiz de um umbuzeiro Corte sua tampa Cave o interior retirando o miolo Coloque dentro a carne e o sal Feche de novo com a tampa Recoloque a raiz no lugar Tampe com terra e acenda uma fogueira em cima Deixe assar por algumas horas
— Era vida normal, então? — a entrevistadora continuou. — Como se vocês estivessem em casa? Os homens descansavam das batalhas, as mulheres faziam as tarefas domésticas: cozinhavam, lavav... — Menina, você tá mesmo é desinformada. Ó, vou te dizer uma coisa: mulher é que não ia pra beira do fogo, de jeito nenhum. Ela podia até lavar e temperar a comida, mas quem cozinhava eram os homens. Era bacana. Cada dia um cozinhava, outro lavava a panela, negócio tudo organizado. Não tinha isso de “não faço”. Chamava, era seu dia, tinha de fazer. Tudo limpinho, ajeitado, acabava de comer a gente dividia. — Nossa, homens e mulheres dividindo o trabalho? — Era sim. Costurar? Lavar roupa? Cada um que cuidasse da sua, podia ser homem, podia ser mulher. — Puxa, do jeito que a senhora fala, parece que era o paraíso para as mulheres. Dadá baixou o olhar, falou baixinho: — Ah, não era não — olhou direto no olho da entrevistadora e sorriu. — Mas hoje eu não quero falar de coisa triste, só de festa.
--- -
11
9:31 AM
Page 12
--- Porque no sertão a gente gosta muito de festa. Na casa dos meus pais, tinha almoço de domingo com os parentes e os amigos, tinha brincadeira de roda das moças e dos rapazes. Domingo em roça de sertão é dia de tocar realejo, cantar, dançar coco e embolada. E no cangaço a gente sentia falta dessa festaiada. Então, sempre que podia a gente organizava um baile, chamava tocador de realejo e cantador, e dançava até cansar. Vou te dizer, menina, que cangaceiro gostava tanto de música que até no meio de batalha com volante, tiro, facada, xingação de cá e de lá, os cangaceiros cantavam. — Cantavam o quê? — O nosso hino de guerra, ué! — e Dadá cantou:
.
2
2
Olé mulé rendeira, Olé mulé rendá
Tu me ensina a fazer renda
Que eu te ensino a guerrear
- --
-
12
-
24/1/05
-
Miolo DADA