Revista Continente - Especial Copa

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#150 ano XIII • jun/13 • R$ 11,00

CONTINENTE

TORCEDOR ANÔNIMO, APAIXONADO, FIEL, ELE ESTÁ JUNTO AO SEU TIME, PRO QUE DER E VIER

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NOVOS COLUNISTAS O ESCRITOR RONALDO CORREIA DE BRITO E O CINEASTA KLEBER MENDONÇA FILHO INTEGRAM O TIME DA REVISTA CAPA definitiva.indd 1

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Por trás de um grito de “gol!”, o ato de torcer por uma equipe de futebol esconde um comportamento de significado muito mais complexo do que apenas “acompanhar o time do coração” TEXto Álvaro Filho FOtOS Jarbas Araújo Jr.

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con esPecial ti nen te IMAGeNS: reprodUção

É sempre assim, desde o longínquo 21 de dezembro do ano da graça do Senhor de 1971: precisamente às 19h9, os torcedores do time argentino do Rosário Central param o que estão fazendo e, independentemente de onde estejam – emperrados no trânsito, relaxados no cinema, num descontraído happy hour, ou pior, em pleno serão no escritório –, levantamse e, solitários ou em grupo, gritam: “gol!”. Não há um estádio por perto, muito menos uma partida, tampouco algum jogador de futebol ou uma mísera bola. Aparentemente, é um urro descontextualizado, quase um surto psicótico, mas que, além das aparências, traduz em poucas letras e altos decibéis a força de uma paixão que dura a vida 1 na cHina Conta-se que o futebol surgiu no século 3 a.C. 2 na ingLaterra As regras do esporte só foram universalizadas em 1848

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inteira e é repassada de gerações em gerações até todo sempre, amém. A cena – que se repete, religiosamente, há mais de 40 verões e ganhou o status de o gol mais longo da história – é uma homenagem ao atacante Aldo Pedro Poy que, nos referidos dia e hora, usou a cabeça para que o Rosário, da província de Santa Fé, derrotasse o eterno rival Newell’s Old Boys e avançasse rumo à final do Campeonato Argentino, conquistando, em seguida, o primeiro título de sua história. É apenas mais um dos fatos que compõem os muitos episódios que evidenciam a paixão dos argentinos pelo futebol, como a criação da Igreja Maradoniana, dedicada ao ídolo-mor do esporte no país, Diego Armando Maradona, e que acolhe seus novos fiéis numa cerimônia de batismo que revive o gol de mão de El Pibe contra a Inglaterra, na Copa do México, em 1986, gesto que foi eternizado como la mano de Dios. Mas a paixão do torcedor pelo futebol não é exclusividade de uma nação, povo, credo ou cor. É talvez o sentimento mais universal do planeta, percebido da mesma forma e intensidade por gregos, troianos e brasileiros, a partir do exato momento em que a bola começa a girar com um jogador correndo atrás dela. Tão arraigado e natural, que se leva a crer que é atávico ao homem, um registro ancestral em nosso DNA, desde os tempos em que os chineses bateram a primeira protopeladinha de que se tem notícia, dois mil anos antes de Cristo. Mas não é. O pesquisador catarinense Arlei Damo, doutor em Antropologia do Esporte pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, lembra que o ato de torcer, como nós o conhecemos, é muito, mas muito mais novo. Não tem nem 100 anos. “O torcedor é uma invenção do século 20, um termo cunhado para definir aquele que acompanhava o futebol”, explica Arlei Damo. “Aqui, no Brasil, esse personagem só foi aparecer dos anos 1930 em diante, no Estado Novo, com Getúlio Vargas.” Não é de se estranhar, afinal, o futebol competitivo (e com ele, a

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possibilidade de seu time ganhar ou perder), historicamente, é também um recém-nascido. As regras só foram universalizadas em 1848, na Inglaterra, apoiadas pelos avanços tecnológicos que surgiram com a Revolução Industrial, que permitiram a demarcação do campo de jogo com precisão métrica, a contagem do tempo graças ao cronômetro e até a aferição do peso da bola, patrocinado pela descoberta da vulcanização por Charles Goodyear, em 1872. O prosaico apito só seria usado pelos árbitros oito anos depois.

corrente Hereditária

A nomeação do ato de torcer pode até ser nova, mas é em outros sentimentos mais antigos que ele procura abrigo. E de abrigo o arquiteto pernambucano Cristiano Borba entende. Doutorando em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco, ele estuda a relação dos torcedores com os equipamentos esportivos, os estádios de futebol, em bom português. Para ele, torcer é fazer parte de uma corrente hereditária, na maioria das vezes, com vínculos familiares. “Torcer por um time é manter esse laço, quase sempre estabelecido em nossa sociedade machista com o pai ou outro parente do sexo masculino”, explica, bebendo numa teoria evidenciada pelo já citado

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3 máscara Um dos ritos do torcedor é vestirse completamente com as cores do seu time, incorporando-o 4 educação no campo Crianças são levadas aos estádios desde cedo, gesto que explicita o desejo dos pais de formar adeptos um só corpo 5 Na arquibancada, público forma um sólido bloco de vibração pelo seu time de coração

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Arlei Damo, que classificou esse culto ao ancestral como uma forma de “totemismo moderno”. Cristiano vai mais longe. Segundo ele, a identificação de um torcedor com um time se estende para o estádio. “É para lá que ele ruma em todas partidas, que se sente em casa. A torcida estabelece laços de afetividade com o lugar, sabe como se localizar nesse espaço e como se comportar durante a dinâmica do jogo, na hora da entrada do time, quando sai o gol e até para reclamar do juiz”, explica. Puxando pela memória, ele não consegue estabelecer outro tipo

Antropólogo divide os torcedores em dois grupos não excludentes: os nacionalistas e os clubistas de relação com a mesma intensidade. “Talvez, do fiel com a paróquia, mas acho que, no caso do futebol, vai mais além, pois o torcedor não se sentiria à vontade em qualquer outra ‘igreja’”, explica. O antropólogo Arlei Damo divide os torcedores, basicamente, em dois grupos, não necessariamente excludentes: os nacionalistas e os clubistas. No primeiro, estão os que torcem pela seleção do país, aproveitando-se de sentimentos preexistentes, como o conceito de pátria. “O segundo não, obedece a vínculos parentais, geralmente. E essa amálgama sentimental explica um pouco o porquê de dificilmente um torcedor trocar de time, afinal não existe um ex-pai, ex-irmão ou ex-avô”, argumenta, referindo-se ao “vira-

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6 Hooligans Torcedores ingleses são conhecidos pela violência nos estádios

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casaca”, personagem tratado no universo futebolístico com um certo desprezo por ter deixado, como afirma o gremista Damo, o “barco da família à deriva”. Nacionais, clubistas, fiéis ou traidores, todos os torcedores carregam em si, como elemento primordial e comum, o sentimento de estarem numa disputa. Uma sensação que entrou em campo quando o futebol abandonou o caráter meramente lúdico e passou a ser encarado como uma competição, na virada do século 19 para o 20, repetindo dentro das quatro linhas os valores caros ao capitalismo, como a necessidade de burocratização (criação das regras e de uma instituição de controle, no caso, a Fifa), divisão de tarefas (cada jogador tem uma função no time) e a valorização do funcionário mais eficiente (ou seja, o craque), entre outros. “Há muita coisa em jogo”, adverte o antropólogo alemão Martin Curi, radicado no Brasil. Doutor pela Universidade Federal Fluminense, esse torcedor do Bayern de Munique acredita que o estádio é uma espécie de palco onde o jogo das relações entre as pessoas na sociedade continua a ser jogado. “Cada time carrega uma identidade com valores extracampo e os torcedores que se associam a ele costumam, mesmo de forma não consciente, comungar desses ideais e

lutam por ele”, observa, lembrando os casos clássicos de rivalidades políticas na Espanha – como os catalães do Barcelona e os bascos do Atlético de Bilbao –, e religiosas, no embate sangrento entre os católicos do Celtic e os protestantes do Rangers, na Escócia.

VIOLÊNCIA

Para Arlei Damo, a violência é inevitável. “Uma partida de futebol parte da igualdade para a desigualdade, gerada por uma diferença de performance, e essa cisão provoca um grau de tensão”, afirma, lembrando que nem sempre os gestos de violência são físicos. No caso do futebol, eles podem ser traduzidos em insultos e gestos. Martin Curi diz que até mesmo os torcedores “pacíficos” costumam delegar aos violentos o trabalho sujo, em outras palavras, apoiando veladamente a ação de componentes mais violentos, como os hooligans ingleses ou as torcidas organizadas brasileiras. Curi lembra, porém, que nem toda manifestação aparentemente violenta nas arquibancadas é um sinal de violência. “Há torcedores que gostam de ficar sentados nas cadeiras, confortáveis e com a sensação de segurança; e outros que preferem ficar em pé, atrás do gol, pulando e gritando, sem necessariamente brigar.

E as duas formas de torcer são válidas”, explica, lembrando que o modelo de arenas adotado pelo Brasil para serem construídas, visando à Copa do Mundo de 2014, pode acabar extinguindo o segundo grupo de aficionados. “Costuma-se dizer que é um padrão europeu, mas não é verdade. Na Alemanha, há uma área, geralmente atrás das traves, para quem quer torcer em pé, no meio da bagunça”, diz. O antropólogo alemão crê que o Brasil “comprou” mesmo foi o modelo inglês que, apavorado com o hooliganismo, aboliu as classes populares dos estádios, em nome de arenas modernas, seguras e, consequentemente, proibitivas, quando o assunto é o preço do ingresso. “E quem faz o futebol brasileiro caminha também para seguir a mesma linha e excluir um tipo de torcedor que erroneamente é tido como violento, mas que, em sua maioria, é apenas feliz”, teoriza. O arquiteto Cristiano Borba assina embaixo. Para ele, as arenas, ao contrário dos estádios tradicionais, são impessoais. “Construídas para serem familiares a qualquer torcida, mas não a sua”, justifica ele, torcedor do Náutico e que, desde março deste ano, trocou o estádio dos Aflitos pela Arena da Copa, em São Lourenço da Mata, novo “lar” alvirrubro. Neste junho, seis capitais do Brasil – Rio de Janeiro, Minas Gerais, Brasília, Salvador, Recife e Fortaleza – começam a sentir o gostinho de Copa do Mundo, com a realização da Copa das Confederações, que reúne, além da anfitriã, as melhores seleções dos cinco continentes e a atual campeã do mundo, a Espanha. Mais do que um aperitivo para o Mundial, é uma oportunidade para que os organizadores testem os sistemas de receptivo turístico, mobilidade e segurança urbana, além de toda a logística que envolve as novíssimas arenas. Uma chance também para perceber se o torcedor do terceiro milênio é realmente diferente daquele do século passado e se os gritos que se ouvirão na arquibancada terão menos paixão e decibéis que o eterno e inexplicável “gol!” berrado pelos fanáticos hinchas do Rosário Central.

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crenças A fé move montanhas… e bolas de futebol TEXto Álvaro Filho fotos Jarbas Araújo Jr.

O atacante do seu time se benze, o goleiro adversário abaixa a cabeça numa oração solitária, enquanto o juiz faz o sinal da cruz. Ao seu lado, na arquibancada, um torcedor se ajoelha para uma promessa que, provavelmente, não conseguirá cumprir. Mesmo de longe, você vê o técnico, lá embaixo, cruzando os

dedos numa figa. O massagista beija uma medalhinha com a efígie de uma santa. No camarote da presidência, o dirigente pega o celular, liga para o babalorixá de confiança e faz um pedido que envolve sacrifício animal. Vale tudo. É decisão de campeonato. Quarenta e cinco do segundo tempo. A bola está na cal, na marca do pênalti. A

fé move montanhas, mas será capaz de empurrá-la para dentro ou fora do gol? É a pergunta que vale um milhão de dólares. O jornalista e ex-técnico da Seleção Brasileira, João Saldanha, disse certa vez que, se macumba ganhasse jogo, o Campeonato Baiano terminava empatado. Mas isso não evitou que o Náutico, durante a campanha do histórico hexacampeonato, em meados da década de 1960, contratasse um pai de santo para fazer frente ao número excessivo de baianos no elenco do rival Sport. O título veio e o trabalho de Pai Edu foi reconhecido pelos cartolas com “bicho” pela conquista, faixa de campeão, volta olímpica e foto oficial. Cinco décadas depois, no início de 2013, o Santa Cruz, além de nutricionistas, fisiologistas, massagistas, médicos e preparadores físicos, requisitou também os serviços de um padre, durante sua prétemporada, no pequeno município de Sairé, no interior de Pernambuco, que benzeu o elenco e os materiais esportivos. Dois dias depois, o religioso trocou a batina pela camisa tricolor e assistiu, da arquibancada, ao Santinha vencer o amistoso contra o Porto de Caruaru. Mas, se a ajuda divina vai ser suficiente para o time sair do “inferno” da Terceira Divisão, só o tempo dirá. Certo, mesmo, é que os católicos levam vantagem nas disputas pela taça, ou Santo Graal, da Copa do Mundo. Com os títulos somados do Brasil, da Itália, Argentina, França, Espanha e do Uruguai, ganham de goleada contra os protestantes Alemanha e Inglaterra: 15x4. Se bem que o status de ser católico nunca ajudou o Vaticano, “lar” do papa e berço da Santa Sé, a ter, inclusive, uma seleção para disputar uma vaga num Mundial. Em matéria de influência divina, por sinal, o islã também passou em branco, apesar dos mais de 1,3 bilhões de seguidores. E o que dizer da Índia? E da China? Quase dois bilhões de adeptos do hinduísmo, xintoísmo e budismo e nada mais do que a parte de baixo do ranking de seleções da Fifa. A falta de uma prova concreta de que a religião é capaz de promover o milagre da multiplicação de gols e títulos não impede, porém, que os torcedores se comportem como verdadeiros fanáticos religiosos. O

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7-9 mandinga e reza Cada torcedor se agarra à religião a que pertence pela vitória de seu time

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caso mais emblemático acontece na Escócia, com a bipolarização entre os católicos do Celtic e os protestantes do Rangers, ambos de Glasgow. O dia em que acontece o clássico entre os dois, o Old Firm, costuma ser o mais violento do ano no país. No livro Como o futebol explica o mundo, o jornalista Franklin Foer registra que a procura pelos hospitais em Glasgow é cerca de nove vezes maior em dias de Old Firm e, não raro, os incidentes terminam em morte. Para se ter uma ideia, ele cita o caso de um torcedor do Celtic que morreu, ao ser atingido por uma flecha no peito, após um clássico. E não foi na Idade Média, mas em 1999. Apesar do acirramento entre as partes, o lado protestante costuma ter jogadores católicos no elenco, e vice-versa. Esse tipo de comportamento que mistura o meio-campo entre futebol e fé vem intrigando os pesquisadores. O professor de História Social da

O estádio segue como uma espécie de altar dedicado ao deus do futebol, a quem se promete até sacrifícios em troca da vitória Universidade de São Paulo, Hilário Franco Júnior, dedicou boa parte de sua pesquisa ao assunto, no livro de sugestivo título A dança dos deuses, uma verdadeira bíblia para quem quer entender um pouco mais sobre os vários aspectos que envolvem o futebol. Nele, Hilário sugere que a industrialização e o tecnicismo rebaixaram um pouco a importância das religiões tradicionais, mas, como sempre é preciso crer em algo para preencher o “vazio espiritual”, há quem tenha substituído as antigas divindades por times de futebol.

Ainda segundo Hilário, isso explica, em parte, todo o repertório religioso que envolve o universo futebolístico, com defesas que, de tão difíceis, são milagrosas, gols improváveis, ao ponto de serem espíritas, camisas e uniformes tratados como mantos sagrados, e estádios que, de tão místicos para os torcedores, se transformam em templos ou catedrais. Sem falar nas estátuas erguidas em homenagem aos jogadores que fizeram história no clube, não por acaso elevados ao patamar de ídolos que, assim como os deuses mitológicos gregos, vivem eternamente no panteão... da bola. Fanatismo ou não, parece estar longe o tempo em que a religião vai tirar o time de campo. Se isso acontecer um dia, claro. Enquanto isso, o estádio segue como um verdadeiro altar dedicado ao deus do futebol, a embalar fiéis seguidores em cânticos e orações, exigindo, às vezes, até o sacrifício humano (na maioria delas, o humano com a camisa da equipe adversária) na promessa do paraíso de ser campeão. Até porque, quem nunca apelou para os céus na hora de o time do coração marcar ou defender um pênalti, numa final de campeonato, que atire a primeira pedra.

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CLEMILSON CAMPOS / JC IMAGEM

a DISTÂNCIA Os jogos pelo controle remoto

Cada vez mais, torcedores preferem assistir às partidas pela TV, tendo a internet como veículo para manter-se a par das informações sobre seus times texto Ivan Moraes Filho

É de Vinicius de Moraes a frase: “Amar é querer estar perto, se longe; e mais perto, se perto”. O Poetinha é um dos que melhor trouxeram para a arte as ilusões e desilusões do amor romântico, da proximidade, do toque. A necessidade de dividir o mesmo espaço com o ser amado classifica essa forma de relação. Botafoguense, Vinicius não era um

fanático torcedor, nem presença nas arquibancadas ao alvinegro. Era de maneira constante – e remota – que se relacionava com seu time do coração. Num país – e num estado – em que o futebol desperta paixões mesmo em quem não se interessa por esporte, nada mais natural que a maioria dos aficionados não frequente as

arquibancadas e adote outras formas de, digamos, amar. Uma pesquisa da Pluri Consultoria, realizada em 2012, afirma que, juntos, Sport (2, 2 milhões), Santa Cruz (1,4 mi) e Náutico (0,8 mi) têm 4,4 milhões de torcedores. Números do IBGE, divulgados no mesmo ano, são convergentes: a maior parte de quem escolheu um time de futebol para chamar de seu não pode ser vista levando baculejo da polícia nos campos. Tem gente que não frequenta o estádio porque mora fora da cidade – ou do país. Há quem tenha sido afastada deles por conta da violência, do aperto, da má qualidade do futebol ou da lei seca que proíbe a cervejinha no intervalo da pelada. Ou mesmo os torcedores de paixão duvidosa, que simplesmente acreditam que têm programas melhores para fazer no domingo à tarde. “Sou tão apaixonado quanto qualquer torcedor. Acompanho as notícias, procuro saber os resultados.

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Apenas não curto ir a campo”, afirma Leo Crivellare. Torcedor do Sport, o diretor de audiovisual nem lembra a última vez em que pôs os pés na Ilha do Retiro. “Não me sinto à vontade na multidão, sempre acho que pode acontecer alguma coisa errada. Além do mais, prefiro mesmo assistir às partidas pela televisão. Há mais câmeras, replay, essas coisas. Na arquibancada, às vezes, você vai conversar e acaba perdendo o melhor momento do jogo.” “A vantagem de ficar em casa é de sentar-se com o conforto que os estádios não têm, e tomar uma cerveja sossegado”, argumenta o jornalista Eduardo Guerra, doente pelo Santa Cruz que, desde 2005, não põe os pés no Arrudão. “Como é que vou levar meus filhos a uma partida de futebol e passar todo o tempo na tensão, pensando na segurança deles, sem prestar atenção ao jogo?” questiona. Há quem alegue motivos emocionais para continuar amando a distância, como é o caso da cineasta Andrea Ferraz, ex-ferrenha integrante das fileiras tricolores. “Deixei de ir porque senti que ficava com o humor muito alterado. Não estava me fazendo bem. Ia a campo porque amava estar no meio da torcida, sentindo o calor e, sobretudo, os picos de emoção. Da alegria à tristeza, em minutos. Isso me

Há quem tenha se afastado dos estádios por conta da violência, do aperto, da má qualidade do futebol ou da lei seca alimentava. Com o tempo, esse estado começou a me perturbar mais do que alimentar. Parei, há uns seis anos”. Andrea permanece defendendo sua equipe, sofrendo junto, fazendo cara feia para quem disser que sua torcida não é a maior de Pernambuco. Mas não compra mais ingresso. “Torcer a distância deve ser como amar a distância. A gente acompanha o outro de longe, alegrandose e sofrendo com os destinos traçados. A gente se mobiliza, cria esperanças, sonha e fantasia, mas se protege também. A distância é uma proteção.”

FORA DO BRASIL

“Na verdade, a paixão aumentou com a distância”. Quem diz isso é o vendedor Lynésio Augusto, há 12 anos morando entre Portugal e Espanha. Frequentador de sites sobre futebol e fóruns virtuais, em que se discute assuntos relacionados ao Sport, o expatriado recebe de bom grado as novas tecnologias.

“Logo que me mudei do Recife, a coisa era muito difícil. Aos poucos, fomos conseguindo ouvir rádios pela web e, agora, muitos jogos já são transmitidos por canais internacionais de TV por assinatura. Não perco um”, garante o torcedor. Dono de uma vasta memorabilia rubro-negra (com toalhas, DVDs, camisas e moletons), o aficionado só voltou ao Recife duas vezes em todos esses anos. Na Ilha, só conseguiu estar uma vez. “Assisti Sport 0x0 Salgueiro. Um jogo horrível, verdadeira pelada. Mas valeu a pena.” Desde 2007 morando em Montreal, no Canadá, o administrador João Paulo Leitão também confia na internet para ficar por perto do seu Náutico. “Dá para ler à vontade sobre o time, debater com outros torcedores, opinar em sites, blogs”. A maior dificuldade é para assistir a jogos ao vivo, quando a única alternativa é recorrer a sites que pegam “emprestadas” imagens da tevê e transmitem por streaming. “É difícil achar sites para ver os jogos com qualidade de imagem razoável. Tenho uns sete sites nos favoritos, para sempre ter certeza de que vou achar o jogo. Pior é quando trava a imagem, e você perde lances da partida.” Torcedores no “exílio”, como Lynésio e João Paulo, acabam também servindo

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10 leo crivellare Videasta evita ir ao campo por conta da multidão. Acompanha as partidas pela TV 11 j oão paulo leitão Radicado no Canadá, ele conta que usa a internet para assistir a jogos e ler notícias 12 a ndrea ferraz Tordedora deixou de ir a campo porque ficava com o humor muito alterado

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como “embaixadores informais” de seus clubes no exterior. “Ando sempre com a camisa do glorioso. Os gringos daqui sempre perguntam que time é e, hoje, toda a vizinhança conhece o Timbu por minha causa”, diz Leitão. Lynésio não se contenta em desfilar e tirar fotos com o uniforme do Leão. “Dou muitas camisas de presente aos meus amigos. Por minhas mãos, já tem gente divulgando o Sport em Portugal e até em Moçambique”, orgulha-se. Nem todo mundo lida com a distância tranquilamente. Atuando há cerca de nove meses como juiz trabalhista, em São Paulo, Leonardo Burgos não esconde sua tristeza em estar longe do Santinha. “Sempre procuro marcar minhas vindas ao Recife levando em conta os finais de semana de jogo no Arruda.” O tricolor é daqueles que pegam ônibus de madrugada para ir ver o time jogar em Mossoró, pela série C e, agora, conta os dias para poder acompanhar, em Campinas, o embate contra o Guarani, no segundo semestre. “Vou, com certeza. Assim como fui, também, com alguns amigos, assistir ao jogo entre Santa e São Raimundo pela Copa São Paulo de Futebol Junior, em Sumaré, a 115 quilômetros da capital.” Burgos tem mais de 15 camisas do Santa, mas não pode vestir no trabalho, nem costuma usar nos dias em que

Torcedores no “exílio” acabam também servindo como “embaixadores informais” de seus clubes no exterior o time não joga. “Sou um torcedor discreto”. Se o Santa está em campo e a partida não for transmitida pela TV, a discrição transforma-se em agonia. “Não tenho coração para acompanhar pelo rádio, nem pelo celular.” A tensão é tanta, que, em 2012, enquanto seu clube goleava o Águia de Marabá por 6x1, pela série C do Brasileirão, isolou-se do mundo. “Desliguei o celular e fui ao cinema sozinho.”

EM BUSCA DE GENTE

Diferentemente do relacionamento amoroso, em que os encontros a dois são os mais ansiados, a paixão pelo futebol normalmente requer muita companhia. Exclusividade no relacionamento é a última coisa que deseja quem costuma gabar-se de ter a maior torcida – nem que seja a do quarteirão. “Num jogo contra o Brasiliense, em 2010, o Náutico precisava vencer para permanecer na segunda divisão. Eu

estava nervoso, gritava sozinho na frente do computador, foi um sufoco, mas ganhamos”, lembra João Paulo Leitão, que, naquele momento, não teve com quem comemorar. “A única vantagem de torcer fora do Recife é que, quando a gente perde, não tem ninguém pra tirar onda. Em compensação, quando ganhamos, é chato comemorar sozinho”, diz Burgos. Talvez, por isso, quem tem a oportunidade de ir a um jogo de seu time fora de casa, não desperdiça a chance. No tempo em que morou em São Paulo, o executivo rubro-negro Leonardo Mamede (que hoje vive na Suíça) perdeu a conta de quantos jogos frequentou, tanto na capital quanto no interior paulista. “Tive a oportunidade de ir a Jundiaí, Itu, Campinas, Santo André, São Caetano, Bragança Paulista, Santa Bárbara do Oeste, Mogi Mirim... O interessante é que você reencontra várias figuras do Recife nesses jogos e começa a formar uma torcida de ‘expatriados’”. Em comum, os “torcedores remotos” têm a internet não só para se manter a par das informações sobre seus times, mas também para se sentirem juntos de outros torcedores e zoar os adversários. Longe da tensão e dos estádios, também parecem alheios às confusões causadas por grupos intolerantes que protagonizam cenas de violência acontecidas nas suas proximidades. Viajando a trabalho pelo interior da Paraíba, Leo Crivellare teve uma companhia insólita para acompanhar a final do Pernambucano de 2012, quando o seu Sport perdeu para o Santa Cruz. “Estava de folga, passeando no município do Congo, quando vi um cara com a camisa tricolor, ouvindo o jogo pelo rádio. Cheguei perto e me apresentei, disse que era rubro-negro, que queria saber da partida, que estava em paz. Ficamos juntos na torcida, um contra o outro, na maior tranquilidade. No final, ele saiu feliz e eu triste. Mas ficamos amigos.”

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COBERTURA Entre torcer e trabalhar

Como os jornalistas e cronistas esportivos cultivam a tão discutida imparcialidade, escondendo ou declarando para que time torcem TEXto Inácio França

Em qualquer outra área do

jornalismo, repórteres e editores reagem automaticamente, quando questionados se conseguem manter a imparcialidade a despeito de suas convicções políticas, interesses pessoais ou afetivos. A maioria dos jornalistas invoca a objetividade como critério para identificar o que é notícia ou o que deixa

de ser, mesmo que sejam desmentidos diariamente pelos seus próprios textos. Hoje, em Pernambuco, a neutralidade da cobertura de futebol parece ser prérequisito para garantir os ossos no lugar. As palavras de Rodrigo Raposo, repórter da Rede Globo e narrador do canal Sportv Premiere, dão a dimensão do quanto é importante não transparecer

simpatia por qualquer um dos três rivais pernambucanos: “Por dinheiro nenhum do mundo, digo por qual time eu torço. Na rua, não canso de escutar a pergunta ‘qual seu time?’. Para quem expõe a própria imagem, lidar com torcedor de futebol é muito arriscado”. Antes de trabalhar na televisão, Raposo passou por cinco emissoras de rádio, mas só depois que chegou às telas passou a sentir a fúria dos torcedores. “Certa vez, nos Aflitos, um homem nas sociais me xingava tanto, que me vi obrigado a interromper uma gravação e fui lá encará-lo. Perguntei se ele queria resolver o problema comigo. Sei que errei, corri um sério risco, mas os gritos do sujeito estavam me atrapalhando.” José Gustavo Silva nunca bateu boca com torcedor, mas se orgulha de ter brigado com dirigentes dos três clubes da capital. No Santa Cruz, o ex-presidente Romerito Jatobá ameaçou impedir sua entrada no Arruda, insatisfeito com

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Rodrigo Lobo/JC Imagem

13 dia de jogo Fotógrafos e repórteres possuem áreas especifícas para trabalhar no campo

Pernambuco, Carlos Lopes dá uma pista para os torcedores mais curiosos: “Os jornalistas esportivos revelam involuntariamente por qual time torcem na hora da crítica e não do elogio. Se a crítica for mais ácida do que o habitual, pode ficar certo de que ele torce por aquele time que está mal das pernas; então, ele critica porque não pode ficar xingando o técnico ou o cartola pelo microfone. Eu mesmo, admito, sou tão duro na hora de criticar meu time, que os leitores mais assíduos do blog já perceberam que sou tricolor”. Lopes foi o único dos entrevistados a revelar seu time. Mesmo assim, ele garante que não é tão difícil relatar honestamente aquilo que viu nos jogos e escutou de jogadores, treinadores e da própria torcida. “Quando comecei na profissão, entendi imediatamente que, ou fazia meu trabalho para receber o salário no final do mês, ou ficava torcendo na arquibancada.” Profissional de rádio há 33 anos, o narrador da Rádio Clube, Bartolomeu Fernando, nunca ficou angustiado ou constrangido em gritar gol do Náutico, Santa Cruz e Sport. Ele torce pelo Fluminense. “Lá em Venturosa, não pegavam as rádios do Recife, só a Rádio Globo e a Nacional, do Rio de Janeiro.”

DISTÂNCIA APARENTE uma série de textos publicados no Diario de Pernambuco, sobre os erros cometidos durante o Brasileirão 2006, que resultou no rebaixamento para a série B. “Quando entendeu que o jornal iria triplicar as matérias negativas, se insistisse na proibição, ele liberou minha entrada, dizendo que ‘não aconteceria nada comigo’. Vê se pode!” Editor-assistente do mesmo jornal e comentarista da Rádio Clube, José Gustavo defende que a relação com o público seria mais honesta, caso os profissionais da imprensa esportiva revelassem seus times de coração. “Quando qualquer diretor pergunta qual é meu time, eu digo na hora, respondo sem medo. O que vai fazer você ser respeitado é a qualidade do trabalho.” Apesar de suas convicções, ele evita revelar o time publicamente, por temer a violência das torcidas organizadas. Editor do Blog de Primeira, site integrante do portal da Folha de

Longe do cotidiano da cobertura esportiva, a professora de Comunicação da UFPE, Yvana Fechine, afirma que a neutralidade é um objetivo impossível em qualquer área do jornalismo. “Qualquer olhar é interessado ou situado a partir de classe social, do gênero ou repertório cultural de quem olha. A prática jornalística gera efeitos de objetividade, quando se aplicam estratégias de linguagem – ao não se usar o ‘eu’ e ‘nós’ nos textos, por exemplo – que garantem uma aparência de distanciamento. Mas são estratégias de linguagem, o olhar é sempre interessado”, explica Fechine. Quando Gabriel Accetti nasceu, há 31 anos, Claudemir Gomes já cobria futebol, há quase uma década, na equipe comandada por Adonias Moura no Diario de Pernambuco. Representantes de gerações diferentes, ambos discordam da professora Yvana e garantem que, no jornalismo esportivo, a paixão pode ser mantida à margem. O motivo é

surpreendente: o ambiente do futebol profissional é tão corrupto, tão cheio de intrigas, que as paixões clubísticas não duram muito tempo. “Você vê tanta sacanagem, que acaba percebendo que não adianta nada torcer. No futebol, só existe um inocente. Sabe quem é? O torcedor”, assegura Claudemir, a meio caminho entre a amargura e a resignação. Com a experiência de quem já foi repórter, editor e atualmente apresenta o programa Esportes no canal 11, da TV Universitária, e é colunista da Folha de Pernambuco, ele conta que, independentemente da corrupção, aprendeu os truques para garantir longa vida na profissão com seu primeiro chefe, Adonias Moura. Segundo ele, Moura perguntava aos candidatos à vaga de repórter por qual time torcia. Se o jovem afirmasse não torcer por time nenhum, perdia a chance de conquistar o emprego. “Ele dizia

Jornalistas esportivos podem revelar, sem querer, seus times, quando criticam mais do que elogiam os desempenhos deles que a gente só faz bem aquilo de que gosta. O segredo dele era fazer rodízios entre os repórteres: tricolores cobriam o Sport, rubro-negros passavam um ano acompanhando o Náutico, alvirrubros iam direto para o Santa Cruz. Depois, mudava tudo. Quando o torcedor do Sport chegava à Ilha do Retiro, já tinha feito amigos no Arruda e nos Aflitos.” Na opinião de Accetti, que já trabalhou na atualização da homepage do Sport, a experiência ajudou-o a manter-se neutro na rivalidade entre os três clubes recifenses. Repórter da Folha, ele compartilha o mesmo sentimento do veterano Claudemir. “Muitas vezes, o ambiente num clube de futebol é tão pesado, que não há como uma pessoa manter o amor por ele. Para mim, é fácil ser imparcial, porque já não há paixão. Vou lhe dizer qual é meu único vínculo emocional com o futebol: torço contra os times mantidos por bilionários russos e árabes. E só.”

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Con TI nEn TE

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Histórias de paixão pela seleção nacional de futebol, no período de Copa do Mundo, reafirmam o valor desse personagem emblemático na luta travada no gramado

ToRCEDoR TEXTO Samarone Lima ILUSTRAÇÕES Pedro Melo

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em novembro do ano passado, quando suspeitou que estava grávida, a psicóloga Emília Miranda, 33 anos, foi ao médico com o marido, o administrador Pedro Leite, de 30, para fazer os exames. O ultrassom revelou as batidas aceleradas de um coraçãozinho de poucas semanas. “Está com pouco mais de um mês”, informou o médico. Emocionados com a notícia do primeiro e desejado filho, Emília e Pedro foram despertados para outra realidade, a futebolística, quando o médico começou a fazer os cálculos matemáticos das 40 semanas de gravidez. “Espera aí. O parto deve acontecer em julho!” O pai, torcedor apaixonado do Santa Cruz, frequentador de estádios, entendeu imediatamente a mensagem. Julho + 2010 = Copa do Mundo. “É o mês da Copa”, disse. Em segundos, os dois homens deixaram de ser médico e paciente normais e se transformaram em dois apaixonados torcedores antecipados de um torneio que sacode o planeta, a cada quatro anos: a Copa do Mundo. O médico acessou a internet, baixou a tabela da competição, e iniciou-se uma especulação sobre a data do parto, cruzamento de jogos. Os cálculos revelaram que Emília será mamãe entre a semifinal e a final do torneio. “Se nascer na hora da final, vou levar um celular com TV digital para a sala de parto”, brinca o pai. A futura mãe observou tudo com paciência, e a poucos dias do início do torneio, sabe que não vai ser fácil o parto com a proximidade de algo tão tumultuado. “Acho melhor Ana nascer depois de tudo.” O “tudo” a que Emília se refere é aquela balbúrdia, o frenesi, a expectativa, os jogos, bandeiras tremulando nas ruas, paredes pintadas de verde e amarelo, pagodes, reuniões de família, um país inteiro fazendo mandingas, rezando, aguardando o gol salvador, as vitórias, classificações, e, se tudo correr bem, o título. São cinco estrelas em cima do escudo, coisa que nenhuma seleção conseguiu, mas os brasileiros querem sempre mais. A obsessão,

entre os dias 11 de junho e 11 de julho, será o hexacampeonato.

coM voSSA vÊniA

Nos meios jurídicos, todos sabem o que representa uma audiência marcada diante de um juiz. Em junho de 1998, a dois dias do jogo de estreia do Brasil na Copa da França, o advogado Clávio Valença recebeu a informação. A juíza tinha marcado uma audiência, envolvendo um caso de pensão alimentícia, para o dia 10 de junho. Ele esfregou os olhos sem acreditar. A audiência era na mesma hora do jogo de abertura da Copa: Brasil X Escócia. Valendo-se dos conhecimentos jurídicos e sabedor das paixões humanas que envolvem qualquer jogo da Copa, Clávio não teve dúvida. Dia 8 de junho, protocolou um requerimento à juíza, escrito em formato de cordel, elencando o sentimento nacional diante da camisa amarela, as mudanças que ocorrem no país, nos dias de jogo, para que a audiência fosse cancelada. “De pão, circo, chuteira Rádio, folhetim, televisão

Sendo a nação brasileira Feita de fome e ilusão Por que tanta trabalheira Ante o Brasil campeão? Por que marcar audiência Decidir quem tem razão Mesmo fome de menor Sendo objeto da ação? Nada há mais importante Que o Brasil ser campeão.” O requerimento-cordel lembrava fatos que se repetem em cada quatro anos: “bancos dão feriado”, “indústria fecha o portão”, “Assembleia sem deputado”, “ministério sem ladrão”, “executivo parado”, “sanfoneiro sem baião”, e recorria a cenas poéticas, para demonstrar que a audiência, no dia de jogo da seleção, era um contrassenso. “Tufão de vento cansado Sertanejo sem sertão O diabo sem ser danado Mas o Brasil campeão.” Ao final, e sem mais delongas, solicitou o adiamento da audiência.

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“Requeiro pois ao Estado E a vossa compreensão Deixe o seu fazer de lado Adie a sua decisão Ajude este advogado Ver o Brasil campeão.” Nos versos, a eterna certeza do brasileiro de que a seleção sempre será a campeã. “Por isso contrariado Requeiro a alteração do dia mencionado na sua intimação seja outro dia marcado com o Brasil já campeão.” Por fim, uma dose de ironia, refletindo o clima no país a dois dias da Copa da França: “Sendo este acatado Por vossa jurisdição Gastarei meu feriado Sem lhe tomar atenção Tomo uma no fiado Até o Brasil campeão.”

A petição chegou às mãos da juíza, Clávio soube à boca miúda que o texto, de conteúdo excessivamente popular, não agradou em nada à magistrada, mas tudo foi resolvido de uma forma mais sensata: “O juiz do Tribunal suspendeu todas as audiências nos horários de jogos do Brasil. Mas se fosse confirmada naquele dia e horário, eu não iria de jeito nenhum”. Cercado de amigos, ele conseguiu assistir ao Brasil ganhar de 2 x 1 da Escócia, mas o requerimento se tornou um clássico do direito ao futebol da seleção.

MiLHÕeS De PALPiteiRoS

Por ter participado de todas as Copas, o brasileiro repete gestos, manhas, crenças, agonias do passado. Em cada Copa, há um jogador a ser convocado não pelo treinador, mas pela torcida. Na Copa dos Estados Unidos, em 1994, o nome do atacante Romário foi gritado em estádios, programas de rádio e TV. O técnico Carlos Alberto Parreira enfrentou a pressão até jogar a toalha. Mesmo contrariado, chamou o atacante, no último jogo

das eliminatórias, contra o Uruguai. O Baixinho fez os dois gols da vitória, brilhou na Copa e o Brasil foi tetra. O fenômeno se repetiu para a Copa da África. Dois jovens craques revelados pelo Santos Futebol Clube, Neymar, de 18 anos, e Paulo Henrique Ganso, de 20, estavam arrasando adversários, fazendo jogadas geniais, levaram o time ao título do Campeonato Paulista após golear vários adversários, e a possível convocação dos dois, um sopro de poesia e talento na seleção, se tornou uma queda de braço da torcida e mídia, contra o treinador Dunga. No dia 11 de maio, quando o treinador anunciou os 23 convocados para a Copa, os nomes de Neymar e Ganso ficaram de fora. “A seleção ficou igual ao treinador: medíocre”, avalia Valença, um dos milhões de palpiteiros da escalação. O inglês Alex Bellos, autor de Futebol, o Brasil em campo, de 2003, faz uma comparação que parece ter sentido. “Os britânicos dividem o século 20 em blocos demarcados pelas guerras mundiais de 1914-1918 e 1939-1945. O Brasil mede sua história recente pelas Copas do Mundo, já que é nesse tempo que mais se identifica como nação”. Maria do Carmo Lira, 57 anos, funcionária pública, três filhos, é daquelas que só assistem a jogo na TV “por assistir”, quando está de folga e sem ter o que fazer. Não sofre, não torce, não faz mandingas. Não tem a paixão clubística. Mas quando o assunto é a seleção, ela é capaz de contar a vida a cada quatro anos, pela emoção da camisa amarela. “Ah, mas a Copa é outra coisa”, diz. “Aí eu fico nervosa, dá uma taquicardia. Já comprei minha camisa. Em todos os jogos do Brasil, estarei com ela.” A Copa de que ela mais se lembra é a de 1970, realizada no México, há 40 anos, quando tinha 17 anos. “Fiquei muito impressionada. Morava em Casa Amarela e meu vizinho morreu durante um jogo da seleção, de infarto.” O vizinho não teve tempo de ver o Brasil ganhar o tricampeonato, na primeira Copa totalmente televisionada, arrebatando de vez a cobiçada taça Jules Rimet. Maria guarda também outra lembrança importante dessa Copa, que é um reflexo dos tempos. Após a vitória contra a Itália, o título, ela ficou

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pontos da primeira fase. “Desde aquela época, comecei a buscar uma solução para aquela injustiça”, diz. Após profundas análises de todas as competições, as vitórias, soma dos pontos, ele escreveu um documento intitulado Nova fórmula para mudar o futebol. É capaz de passar horas detalhando seu estudo, mostrando as incongruências, apontando as seleções que foram campeãs sem merecimento. “A melhor seleção foi desclassificada por um regulamento falho”, opina. Para o brasileiro, claro, a “melhor seleção” é sempre a do Brasil.

eStRAnHo conFeSSo

em casa, porque o marido não gostava de futebol. Perguntada se ficou com vontade de ir às ruas, comemorar, ela responde: “Isso é o que mais a gente quer”. O marido agora é “ex”. Lembrar da história pelos momentos marcantes da Copa, e não por guerras, vai se espalhando por gerações. Maria conta que, na Copa de 1982, o filho caçula estava com menos de dois anos. “Eu botava ele para dormir com a camisa do Brasil. Quando nossa seleção marcava um gol, ele levantava do berço, gritava ‘goool’ e depois voltava para dormir”.

inJUStiÇA

O trauma da derrota inesperada para a Itália, na Copa de 1982, até hoje é

lembrado por milhões de brasileiros. A seleção, sob o comando de Zico, Sócrates, Falcão, treinada por Telê Santana, encantou o mundo. Ganhou os três jogos da fase inicial, aplicou goleadas. Na fase seguinte, bateu a Argentina, e esbarrou na seleção da Itália, que vinha de três empates e apenas uma vitória. O Brasil perdeu por 3 x 2 e voltou para casa. O economista e agropecuarista Aroldo Mota, de São Bento do Una, no Agreste de Pernambuco, ficou tão ofendido com a eliminação precoce do “melhor time”, que resolveu criar uma nova fórmula para a disputa das Copas, com outros critérios, que valorizam vitórias e gols, acumulando os

No meio desse vendaval que é a Copa, o professor de literatura e artista plástico Rodrigo Fischer é um peixe fora d’água, do aquário, de qualquer paixão envolvendo a seleção. “Nunca torci. Nunca tive essa paixão, esse falso espírito de brasileiro, que manda o espírito de nacionalidade à Copa do Mundo. Só torci quando criança, na baderna.” Antes de ser chamado de chato, ele avisa: “Também não torço contra”. No dia 15 de junho de 2010, uma terça-feira, às 15h30, quando o Brasil entrar em campo no estádio Ellis Park, em Johanesburgo, para o primeiro jogo, contra a Coreia do Norte, Fischer estará comprando algum ingresso para o cinema. Já sabe que não terá o problema das filas. “Eu não sou solitário. Algumas pessoas também vão ao cinema na hora de jogo da seleção”, garante. A pergunta é simples: quantos de nós conhecem uma pessoa que não sente absolutamente nada quando a seleção brasileira entra em campo, em um jogo da Copa do Mundo? Rodrigo, de certa forma, responde. “Não me emociono, sou indiferente, mas não conheço nenhum partidário. Tenho amigos que não gostam de futebol, mas que ficam loucos na Copa.” Ele só fica irritado quando vai ao cinema e a sessão foi cancelada, por falta de público. O problema é que ele não tem com quem reclamar. Todos os funcionários certamente estarão em alguma salinha, diante da TV, gritando “Vai Brasil, pra cima deles!”. É a Copa.

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renato larini

Crônica

xico sá o videoteipe da derrota na hora do sexo Das tragédias masculinas a cegueira pelo futebol sempre foi a mais grega e incompreensível. Até bem maior, para muitos de nós, do que a paixão roxa por uma gazela que não nos dá bola. Superior, inclusive, senhoras e senhores, às dores cachaceiras do mais injusto dos pares de chifre. Em uma jornada de derrota acachapante, não há musa ou deusa que reacenda a chama de um macho ludopédico. Foi o que A., a mais bela das crias da minha costela, empreendeu naquela noite em que o Palmeiras despachou o Sport do sonho de conquistar a América, ano da graça de 2009. Na cobrança de penalidades máximas. Bem que ela tentou filosofias baratas de consolação e, depois, outros agrados orais na alcova. Como se houvesse conforto possível para um homem que ainda gargareja o antisséptico da desgraça. Nunca se fizera de gueixa como naquele momento. Aos meus pés. Para o que der e vier. Tudo mesmo. Quanto mais tentava me reanimar, mais o videoteipe do jogo rebobinava e zunia na minha cabeça.

A deusa-mor de quatro, entregue ao arco e à lira, oferecimentos impensáveis, com direito a lingeries rubro-negras, rendas, caprichos, afagos, bajulações de todos os naipes no ego do cabra, sussurros de Folhetim, aquela do Chico, no ouvido, me fez vaidoso supor que eu era o maior a possuí-la, uma beleza, tudo que adoramos na boca de uma fêmea. E eis que, em um rápido, milagroso e surpreendente lázaro priápico, ensaiamos um chumbregamento. Ela se sentiu poderosa, sestrosa, uma del fuego. E não é que partimos à conjunção carnal propriamente dita?! Tudo pronto para o ataque. No exato momento do coito, amigo, ali a caminho das Índias, esqueço toda aquela gemedeira gostosa e berro como um desse animais de arquibancada: – Não podia perder aquele pênalti, porra! Foi como aquele “uuuhh” da massa, quando a bola vai para fora e a torcida senta, decepcionada com o gol que deveras já comemorava. Acontece com os melhores torcedores do Chelsea da Inglaterra! Acontece com os mais viris frequentadores do Arruda, da Ilha e dos Aflitos. Tentei explicar-lhe depois de negar fogo. Apelei até para a ciência: uma pesquisa da Universidade da Geórgia (EUA) comprovou que nas conquistas dos seus clubes o homem fica pelo menos 27,6% mais potente no sexo. Nas tragédias, o índice de testosterona despenca. Inconsolável, a moça não me deu bola. Não entendeu ou fez questão

de não compreender. Mal sabe até hoje que não há miséria maior para a alma masculina do que o apego aos 11 semelhantes que o defendem na mais épica das batalhas. A Monte Castelo de todos os domingos, a Guararapes de todas as finais de campeonato. A batalha de todas as tardes, do radinho de pilha fanhoso de todos os porteiros. Do grito de quase-gol que vem de lá dos porões de todos os canteiros de obras, do fundo do cortiço mais pulguento da Pauliceia e do sótão-pensão onde morei na Barão de São Borja, no Recife de todas as dores emparedadas. Domingos capazes de derrotar o mais brutamontes dos homens, o mais seco, o mais sem emoção, o mais sem sangue nas veias. Por isso que não há miséria maior do que o “desábito de vencer”, como escreveu João Cabral de Melo Neto sobre o seu América. Não o América carioca do amigo José Trajano, que já teve as suas glórias. O desaparecido América alviverde do Recife, no qual o poeta jogou, centerhalf de primeira, antes de ser campeão juvenil em 1935 pelo Santinha. Uma vez, em uma entrevista com o ex-center half, na primeira metade dos 1980, ali na bifurcação de Parnamirim com Casa Amarela, o homem-facasó-lâmina pôs a marejar as retinas quando contava o seu arrojo como homem de marcação e exibia algumas raras fotos guardadas em uma velha caixa de sapatos. Tempos depois, numa entrevista que deu gosto (pois a literatura foi deixada de banda), o pernambucano se queixaria a Fábio Victor, repórter da Folha de S.Paulo, sobre as dores da bola. Somente no exílio sevilhano, o poeta se livrou da aspirina e da dor-de-cabeça de torcedor. Deu adeus ao futebol. Para sofrer menos, disse, escolheu as touradas e las dolores do flamenco. Sorte dele, pois não há tragédia mais incompreensível do que a devoção por aqueles marmanjos suados tentando penetrar na área e acertar o barbante inimigo. Mas chega de falar de penetração depois da triste história aqui narrada. Não vale nem como metáfora. Caem dos meus olhos, como no melô brega sobre o assunto, duas lágrimas geladas.

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PeDro Melo

na rede blogs de torcedores esquentam debate

De figura passiva, que somente ouvia os comentários alheios, o espectador passa a agente, diversificando pontos de vista texto Inácio França

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As ferramentas que possibilitam a interatividade na internet transformaram o papel da torcida e o jeito de expressar a paixão por um time de futebol. De figurante passivo do mundo, desde a era do rádio, quando a vaia era a única manifestação crítica que lhe era permitida, o torcedor comum, aquele que paga ingresso para assistir às partidas no cimento da geral, passou a ocupar amplos espaços de opinião e debate na chamada web 2.0, ou seja, em blogs, comunidades virtuais e redes sociais. Na maioria dos blogs e comunidades de torcedores, a criatividade passa longe. Boa parte dos blogueiros amantes do futebol reproduzem o formato das resenhas esportivas ou dos sites esportivos da mídia tradicional: são blogs de opiniões sobre partidas transmitidas pela TV, contratações milionárias, atuações de jogadores, esquemas táticos, repercussão das principais manchetes da semana. Também é comum a publicação de textos com piadas e xingamentos às torcidas adversárias. Nem sempre o bom gosto prevalece. Curiosamente, foi uma rede de blogs repleta de lugares-comuns e postagens repetitivas que criou uma das mais bem-humoradas críticas contra um árbitro de futebol: pelo menos 300 blogs de torcedores do Grêmio passaram a veicular, a partir de 1º de abril, uma contagem regressiva registrando o tempo que faltava para a aposentadoria do juiz Carlos Eugênio Simon, odiado pelos tricolores gaúchos. Os árbitros, que já tinham de conviver com os xingamentos durante os jogos e os programas de computador do tipo “tira-teima” das emissoras de TV, agora precisam enfrentar a ira das torcidas que criam as mais diferentes formas de pressão pela internet. Em 2005, durante a fase semifinal da Série B do Campeonato Brasileiro, o Blog do Santinha, de torcedores do Santa Cruz, publicou o telefone do árbitro carioca William Marcelo de Souza Nery, acusado de ajudar o Santo André em lances decisivos. O juiz não teve sossego nos dias seguintes à partida. A criatividade e o humor ausentes das coberturas de futebol sobram nos textos e nas campanhas do blog Bora Bahéa Minha Porra. A brincadeira começa pelo nome do blog, que passou a ser

chamado de BBMP há pouco mais de um ano. Logo no primeiro texto, mantido nas páginas de arquivo como cartão de apresentação, os torcedores Fábio Domingues, Marcos Carneiro, Bruno Cartaxo e José Ricardo Novoa anunciam que criaram o blog para se divertir e não para estimular violência entre as torcidas nem para fazer análises sérias. Em 2009, quando o Bahia penava para escapar de mais um rebaixamento para a Série C, o blog manteve no ar uma escrachada caricatura do presidente do clube, que havia prometido raspar a cabeça caso o time fosse rebaixado novamente. A cada derrota, a cabeleira do cartola ia ficando mais curta. No fim, o time escapou do vexame e o dirigente manteve as madeixas intactas.

o blogueiro eduardo chikui afirma que a internet 1.0 era quase uma cópia do pouco interativo mundo impresso GARiMPo neceSSÁRio

Alguns blogs são produzidos e mantidos coletivamente, com a colaboração de vários torcedores – em alguns casos, de diferentes times, que garantem a atualização constante. É o caso do Gol de Letras, gerenciado por Lilian Alcântara, uma garota de 17 anos do município de Caratinga, interior de Minas Gerais. Lilian é a responsável pela articulação de uma rede de torcedores mineiros, paulistas, cariocas, paranaenses, catarinenses, gaúchos e baianos. Com surpreendente maturidade, ela acredita que “esta oportunidade de trocar ideias com torcedores distantes impulsiona uma visão bem mais crítica em relação ao que ouvimos e lemos, não só no futebol”. A relação de colaboradores do Gol de Letras inclui pessoas com perfil semelhante ao de Lilian, como Alessandra Formagini, estudante do Ensino Médio de 16 anos que mantém outro blog exclusivamente sobre o Grêmio. No mundo masculino das resenhas de rádio ou dos programas de TV, dificilmente adolescentes como Lilian e Alessandra teriam

suas opiniões ouvidas com atenção e respeito. A mineira conta que, na internet 2.0, as coisas são bem diferentes: “É nos blogs e nas comunidades do Orkut que o torcedor costuma debater as notícias do time na mídia, separar o que é especulação e o que é mentira, além de divulgar novas fontes de informações”. Outro colaborador do blog da mineira é o engenheiro de produção Eduardo Kazuharu Chikui, de 29 anos e torcedor do São Paulo. Ele acredita que novas mudanças irão acontecer na relação entre os times e suas torcidas. “A internet 1.0 era quase uma cópia do mundo impresso, em que poucos falam para muitos quase sem interação, mas agora o acesso ficou muito mais amplo. No ano passado, por exemplo, o Muricy Ramalho foi demitido num sábado pela manhã e, em menos de duas horas, um grupo de torcedores já tinha no ar, e com publicidade em vários meios de comunicação não pagos, o site Volta Muricy.” Apesar da pouca inspiração de uma infinidade de páginas, muitos sites de torcedores reservam surpresas e informações curiosas que, dificilmente, seriam notícias na mídia corporativa. O blog Brfut (ou Blog do Marcão), mantido de forma colaborativa por sete torcedores de seis times diferentes do Rio de Janeiro e São Paulo, revela histórias curiosas, como a do Amazônia Esporte Clube, do antigo território federal de Rio Branco (atual estado de Roraima), que passou duas semanas em Manaus, em outubro de 1950, para disputar amistosos contra time locais. Só ganhou um. O exemplo do Brfut ilustra uma situação minoritária na blogosfera, pois a maioria dos torcedores nada mais faz do que repetir ou repercutir em suas páginas a pauta da mídia convencional ou dos grandes portais da internet. Apesar disso, assim como acontece em quase todas as áreas, a verdade do futebol deixou de ser monopólio dos comentaristas e cronistas esportivos. O blogueiro Eduardo Chikui resume o atual momento da relação dos torcedores com os clubes: “Ainda existe muita força dos veículos tradicionais de comunicação, mas novas oportunidades parecem surgir a toda hora e ainda sem um limite visível”.

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memÓria “e tudo por arte e obra de uma simples esfera de couro”

Jornalismo e música mostram que a conquista da Copa de 1958 fortaleceu a autoestima do brasileiro, povo que colaborou para derrubar teses racistas e enriquecer a mitologia do futebol texto Gilson Oliveira

Para aquele 1958 ser perfeito, só faltava

mesmo a conquista do ouro da Copa do Mundo de futebol. Brasília, cujo revolucionário projeto arquitetônico atraía os olhares internacionais, já estava sendo exibida na capa da revista Manchete. Adalgisa Colombo levava o país para o topo da beleza mundial, ficando em segundo lugar no concurso Miss Universo. Elizeth Cardoso gravava Chega de saudade e inaugurava a bossa nova, ritmo que se difundiria pelo planeta... O Brasil vivia os “anos dourados”, como ficou conhecido o período em que Juscelino Kubitschek foi presidente da República (1956-1961) e a economia brasileira cresceu como poucas vezes em sua história, gerando na população um clima de grande otimismo e criatividade

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reProDUÇÃo liVro BRASIL UM SÉCULO DE FUTEBOL, aPraZÍVel eDiÇÕeS

1 vitóRiA na volta olímpica, jogadores brasileiros erguem a bandeira da Suécia, país que sediou a Copa de 1958 e foi derrotado pelo Brasil na final

conquistado um vice-campeonato. E o “ouro” veio da forma mais sensacional. Talvez inspirado nos “50 em 5” de JK, em 29 de junho de 1958, dia da partida final da Copa, o Brasil meteu 5 X 2 na equipe da Suécia, país que sediava a competição. Para a torcida brasileira, os cinco gols (e gol “é o orgasmo do futebol”) valeram mais que 50, 500 ou 5.000... A explosão de alegria que invadiu o país está na música popular e nas manchetes de jornais, que funcionaram como flashes de um momento histórico. Uma marcha carnavalesca – A taça do mundo é nossa – captou bem a euforia reinante: “A taça do mundo é nossa,/ com brasileiro não há quem possa./ Ê-êta esquadrão de ouro,/ é bom no samba, é bom no couro”. No Recife, a Rozenblit incrementou as comemorações lançando Escola do Feola, de Luiz Queiroga, que anos depois estaria na trilha sonora de Isto é Pelé, filme de Luiz Carlos Barreto e Carlos Niemeyer: “Didi/ Pelé/ Vavá/ bailaram lá na Europa/ e a Copa vem prá cá/ no duro !...”

voZ DoS ARticULiStAS

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entre os artistas. A propaganda oficial dizia “50 anos em 5”, sugerindo que, em apenas meia década, o desenvolvimento do país equivaleria ao de meio século. O próprio JK, conhecido como “presidente sorriso” e “presidente bossanova”, era um dos símbolos daqueles tempos de esperança e modernidade, mas foi o chamado “esquadrão de ouro” que fez o brasileiro ter a sensação de que realmente vivia em uma potência mundial e jogar para escanteio o crônico complexo de inferioridade que sentia em relação a outros povos. Se os anos são dourados e o esquadrão é de ouro, por que eu vou querer saber de prata?! Um pensamento semelhante a esse parece ter visitado o selecionado brasileiro – que em 1950 já havia

O espírito do verso “não há quem possa”, que expressava o orgulho do brasileiro pelo espetáculo que a seleção dera para o mundo (europeus assistiram à Copa também pela televisão), ganhou na imprensa um tom analítico, com alguns articulistas aproveitando para desmoralizar de vez as teses racistas, que, com a ascensão do nazismo, haviam se fortalecido em vários países. Na manhã de 29/6/1958, dia da partida final da Copa, o Diario de Pernambuco já trazia um artigo de Austregésilo de Athayde, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, baseado no desempenho do Brasil nas partidas anteriores. Com o título Vitória de raça, ressaltava o artigo: “Com a vitória dos brasileiros, empenhados contra os europeus, algumas alusões, entretidas nos preconceitos raciais, foram por água abaixo. Batemos arianos puros e misturados. Foram de roldão austríacos, russos, galeses e franceses”.

Publicado no dia seguinte, também no DP, o artigo Com o futebol, o Brasil principia, do jornalista Aníbal Fernandes, focalizava a influência social, cultural e histórica do esporte em terras brasileiras: “ (...) Monteiro Lobato, que criou o tipo do Jeca Tatu, em que muitos enxergavam o brasileiro, a vegetar de cócoras (...) foi o primeiro a mostrar que o futebol ia tirando o Jeca Tatu da modorra”. Depois de citar outras frases de Lobato – como “estamos diante da maior revolução de costumes operada em terra de Santa Cruz desde o dia de Cabral.(...) E tudo por arte e obra de uma simples esfera de couro, estufada no ar”... –, Aníbal conclui o artigo referindo-se ainda ao escritor paulista, mas falando também de suas experiências: “Isso mesmo li em jornais da França, da Itália e da Suíça: o jogador brasileiro formou-se na pelada. O Figaro de Paris, na véspera do jogo contra a França, dizia que a esquadra brasileira atingira a perfeição. (...) Porque é justamente o futebol que está assegurando ao Brasil, no mundo, um êxito publicitário que jamais conseguiu”.

DeUSeS eM cAMPo

Um dos entusiastas do futebol, e principalmente do estilo brasileiro de jogar, Gilberto Freyre defendia que este nascera, em síntese, da fusão das formas de ser do negro e do branco, uma vez que os gramados possibilitavam uma integradora mistura de raças e classes sociais. Para Freyre, o futebol, ao ser abrasileirado, ganhou uma estética semelhante à do samba e à da capoeira. Por influência ou não do escritor, essas ideias marcam letras como as de A copa do mundo é nossa (“é bom no samba, é bom no couro”) e Escola do Feola (“bailaram lá na Europa”). Explicando os aspectos artísticos da maneira verde-amarela de jogar, o sociólogo colocou a mitologia grega no campo de suas teorias: o jeito brasileiro seria uma mistura do dionisíaco (ligado à emoção e ao corpo) com o apolíneo (força e razão, típico do jogador europeu). Em 2010, a pátria está novamente de chuteiras, como dizia Nelson Rodrigues, e, segundo as pesquisas, bastante confiante em ganhar o hexacampeonato na África do Sul. Com as graças de Apolo... e de Dionísio!

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Artigo

reProDUÇÃo liVro BRASIL UM SÉCULO DE FUTEBOL, aPraZÍVel eDiÇÕeS

álvaro Filho FUtebol e televisÃo, Uma caixinha sem sUrpresas A notícia não é das melhores. Talvez você não tenha percebido ou sido avisado, mas o futebol-arte morreu. E faz tempo. Jaz sepultado sob o verde gramado do estádio Jalisco, em Guadalajara, no México, palco da final da Copa do Mundo de 1970. Que os deuses do futebol o tenha em bom lugar, amém. Ele merece. Quem foi testemunha do fato disse que a cerimônia fúnebre teve pompa, com a presença de personalidades do mundo da bola, incluindo a família real brasileira. Ele mesmo, o rei Pelé, em carne, osso e genialidade. O mesmo Pelé que aproveitaria a ocasião para, assim como o futebol-arte, se despedir de Copas do Mundo, o que definitivamente faz emblemática a Copa de 1970, para quem tem o chamado esporte bretão em boa conta. Talvez seja por isso, pela coincidência de datas, que muitos liguem a passagem do futebol-arte desta para pior à despedida de Pelé de Copas do Mundo. Não se pode, é claro, ignorar que a aposentadoria de alguém reconhecido mundialmente (a despeito de certa resistência argentina), como nada mais, nada menos, o Rei do Futebol, tenha contribuído para o empobrecimento do espetáculo. Mas mesmo se Pelé conseguisse driblar a idade como fazia com os adversários e se perpetuasse infinitamente correndo atrás de uma bola, ele também não estaria praticando mais aquele esporte a partir da Copa do México. Afinal, o futebol-arte não tinha nada a ver com a maneira que era jogado. Não era uma manifestação física, mas metafísica. Ele não era tático, nem tátil, era etéreo, mais para o onírico do que para o real. Não acontecia dentro das quatro linhas, e, sim, em outro campo, o campo dos sonhos. O futebol-arte era um sonho bom, ninado pela narração

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radiofônica, uma forma de narrar hiperbólica por natureza. Somente se utilizando de metáforas, dos “gigantes em campo”, de “touros com a bola nos pés” e “homens-elásticos” embaixo das traves, era possível traduzir uma paixão através de palavras. O rádio colado no ouvido do torcedor funcionava como uma espécie de modem, conectando-o ao futebol. Se a Copa de 1970 ficou marcada pela saída de Pelé dos gramados, também se notabilizou pela entrada de outro player, que não precisou nem assumir o agora vago trono real para mostrar a sua majestade. O Mundial no México foi o primeiro na história das copas a ser transmitido pela televisão para todo o planeta. Assim,

é preciso se fazer justiça e inocentar de uma vez por todas Pelé da morte do futebol-arte. Ele e a sua geração podem descansar em paz, sem um grama de peso na consciência por terem sido mandantes de um crime, ao decidirem se retirar dos palcos da bola. O futebol-arte morreu ao vivo e em cores, transmitido pela TV.

eviDente DeMAiS

Através do rádio era possível “ver” uma partida até com os olhos fechados, mas na televisão é necessário tê-los sempre abertos. E não se sonha de olhos abertos. A narração em TV deu um cartão vermelho às metáforas, mandando também para o chuveiro os gigantes, touros e homens-

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1 PeLo RÁDio adalgisa Colombo (e), primeira Miss Brasil do antigo Distrito Federal, entre torcedores, na Copa de 1958

tipo de artimanha, mas quando era menino assisti a um jogo em que Pelé, imagine, errava um passe de meio-metro. Pior, como um zagueiro de usina, chutou a bola para fora do estádio. Uma covardia. O videoteipe, aliás, é a antítese do futebol-arte. Não precisa ser um filósofo, um Walter Benjamin da vida, para saber que a reprodução constante de um drible ou de um gol subtrai a cada replay, um pouco da aura do lance até exaurir a última essência de arte que existia nele. Nelson Rodrigues, o cronista esportivo, já havia percebido isso, a ponto de vaticinar que “o videoteipe é burro”. Míope, no estádio, Nelson Rodrigues recorria a quem estivesse ao lado para lhe narrar a partida. E por causa disso, por não ver direito, não houve quem enxergasse a essência do futebol-arte melhor do que ele. Desprovido da aura que lhe conferia o status de arte, o futebol transmitido pela TV foi buscar alternativas de se manter sedutor. A mais eficiente delas foi deixar de

o futebol-arte, no rádio, não era contado, mas insinuado. A partida transcorria num jogo de bola e de sedução elásticos. A transmissão televisiva é autossuficiente, dispensa essa fauna de atores. Na frente das câmeras, nada de semideuses “correndo como o vento” ou “entortando a cintura” dos adversários. O futebol na TV perdeu a inocência, deixou de ser criança e de acreditar nessas histórias. Na tela há pobres mortais, assim como eu e você, correndo atrás da bola. No rádio, o futebol não era contado, mas insinuado. A partida transcorria num jogo de bola e de sedução. Na TV, o jogo não tem mistério, é explícito, devassado. A narração televisiva não abre espaço para mitologias. Nunca se viu numa tela de TV um chute lá onde a coruja dorme. Aliás, não se tem notícia de que alguma vez

as câmeras flagraram uma coruja dentro de um estádio, dormindo ou acordada. A televisão é de uma aridez tamanha, que nem agrião nasce na zona do agrião, muito menos um jogador fica plantado em campo. Sem falar que as bolas nunca mais tiraram tinta da trave. Como se não bastasse ter dissipado a aura do futebol-arte pós-Copa de 1970, a televisão ainda quer macular a memória dele. Não respeita nem os mortos. Pelo contrário, numa espécie de exumação do cadáver, a TV tenta provar que o futebol nunca foi arte, mas apenas futebol. Vez ou outra aparece um videoteipe registrando partidas dos tempos em que o futebol era apenas falado. Hoje eu evito esse

ser jogo e virar game. Videogame. Do parente próximo, o computador, a televisão copiou o fetiche do scout, substituindo paulatinamente a fertilidade da metáfora pela precisão monocromática das estatísticas, caindo numa pobreza estética do tamanho do Maracanã. Da arte ao game show, o futebol se transformou numa caixinha sem surpresas. Previsível. E na falta do que se dizer, os narradores de televisão comentam sobre tempo de posse de bola, número de chutes a gol e quantidade de faltas. Quase como se alguém que tivesse a oportunidade de ficar em frente a um Picasso prestasse atenção apenas às dimensões da moldura da tela.

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PeLADeIRos Por toda parte e em horários distintos, é possível flagrar em solo pátrio o amor dos brasileiros pela bola, que é rolada em qualquer superfície. Foi isso que constatou o fotógrafo Arnaldo Carvalho, quando saiu pelo Recife e interior pernambucano em busca dos craques anônimos

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A bola não é a inimiga / como o touro, numa corrida,

e embora seja um utensílio / caseiro e que se usa sem risco, não é o utensílio impessoal / sempre manso, de gesto usual: é um utensílio semivivo / de reações próprias como bicho; e que, como bicho, é mister / (mais que bicho, como mulher) usar com malícia e atenção / dando aos pés astúcias de mão. João cabral de Melo neto , O futebol brasileiro evocado da Europa continente junho 2010 | 77

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Um psicólogo do futebol imagina a seguinte cena: meninos jogam

na rua; a bola sobra para o cavalheiro que passa. Que fará o austero transeunte? Ficará indiferente? Devolverá a bola com as mãos? já vimos todos nós o que ele irá fazer: o homem, sem perder a gravidade, rebate a bola com o pé, aparentemente para prestar um serviço à garotada, mas na verdade porque não resiste ao elástico e impulsivo prazer de dar um chute. É sempre um grande prazer, uma das coisas agradáveis da vida, dar um chute na bola, sobretudo quando conseguimos colocá-la na meta almejada.

Paulo Mendes campos, na crônica Adoradores da bola

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Para estufar esse fil贸 / Como eu sonhei /

S贸 / Se eu fosse o Rei / Para tirar efeito igual / Ao jogador / Qual / Compositor / Para aplicar uma firula exata / Que pintor / Para emplacar em que pinacoteca, nega / Pintura mais fundamental / Que um chute a gol / Com precis茫o / De flecha e folha seca chico Buarque de Hollanda, Futebol

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o gol, mesmo que

seja um golzinho, é sempre gooooooooool na garganta dos locutores de rádio, um dó de peito capaz de deixar Caruso mudo para sempre, e a multidão delira e o estádio esquece que é de cimento, se solta da terra e vai para o espaço.

eduardo Galeano, na crônica Contem-me, pediam os cegos

@ continenteonline Veja outras fotos de peladas feitas por Arnaldo Carvalho no site www.revistacontinente.com.br

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Futebol se joga no estรกdio?

Futebol se joga na praia, futebol se joga na rua, futebol se joga na alma.

carlos Drummond de Andrade, Futebol

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arnalDo CarValho

Crônica

samarone lima onde a bola é mais redonda Os homens chegam devagar, sonolentos, com chuteiras, tênis, sandálias. A pelada dominical no Campo de Seu Abdias, às margens do rio Capibaribe, no Poço da Panela, é para madrugadores da pelota. Às 6h, os dois primeiros times estão em campo, após breves aquecimentos, sorteio dos times, distribuição dos coletes. A bola sobe para um céu azul. Os primeiros chutes parecem despertar músculos e acordar artilheiros. O campo tem raros tufos de grama. É na terra batida que chuteiras amarrotadas, meiões arreados, calções de várias cores se misturam, harmonizando os homens e suas circunstâncias, na busca do gol possível, da vitória que permita o único prêmio nas manhãs dos peladeiros: permanecer em campo, para mais um jogo, até que a derrota os separe dessa relação amorosa com o campo e a bola. Do lado de fora, alguns poucos torcedores observam. Comentaristas duros soltam um “isso é uma miséria” para um passe errado, ou “olha pra essa desgraça”, após um gol perdido debaixo da barra. Alheios a tudo, os homens correm, suam, gritam, fazem faltas, gols, chutam a bola para o mangue, interrompendo o jogo nos momentos mais dramáticos. Há quase 15 anos, das 6h às 9h, os atletas do Caducos Futebol Clube trocam passes, rendem-se no interminável culto à bola, e renovam a amizade. Se em muitos campos de terra batida surgem craques para clubes, nos Caducos, a esperança da glória futebolística já passou. Quase todos os jogadores estão acima dos 30 anos. O objetivo é somente jogar. Se possível, vencer. A escalação deixa de lado os nomes de batismo. Prevalecem os populares apelidos. Peitão toca para Dinho Papeira, que passa para Camorim, que chuta para a defesa espetacular

do goleiro Bode. Batman cruza para Day, que toca para o Mudo, que passa para Noé debaixo da barra, que chuta para Calango encaixar, derrubando o boné. Cioba fica ao lado, reclamando por não terem tocado para ele. Ciço Boi e Carne de Vaca há tempos têm faltado. Quando jogam, mal aguentam o primeiro tempo. Pedem para sair. “Estou morto”, é o argumento. Aqui, a bola parece ser mais redonda. Desliza para os lados do campo com facilidade, após o grito de “vira o jogo”, “toca”. Em algum momento, galinhas atrevidas podem atravessar o campo, sem interromper a disputa. Ao lado, compondo a paisagem, varais com roupas adormecidas no sereno. Após “dois tempos de 15”, os derrotados saem de campo, abrindo a temporada de reclamações. Aquele passe errado, falha na marcação, aquele gol perdido “sozinho”. Indiferente, o time vencedor bebe a santa água e aguarda o próximo adversário. E tudo recomeça, com o sol já esquentando, até que todos tenham jogado, durante três horas. Terminada a jornada, os homens sentam para acertar as contas. Quem pagou a taxa de R$ 1,00 está em dia com o caixa. Os nomes são anotados em caderno antigo, de capa verde. Dois ou três ficarão encarregados de levar os coletes para lavar, trazendo de volta no próximo domingo. Do caixa, sai o dinheiro para um guaraná e o pagamento do aluguel do campo: R$ 30,00 por mês. Noé repete seu ritual dominical. Ainda suado, de chuteiras, pede uma cerveja e bebe sossegadamente, como um jogador que acabou de ganhar um título. O brega começa a tocar, enquanto os Caducos comentam lances, jogadas, gols. Numa caixa de papelão, os apetrechos são recolhidos. Duas bolas, pagas a crediário, junto com o dinheiro acumulado, apito, cartões amarelo e vermelho. Em algum momento do domingo, a pelada acaba. Restam o cansaço, o suor, a certeza de ter começado bem o dia. Aos poucos, o domingo normal, o dos outros, vai chegando. “Até domingo”, repetem os companheiros de pelada, dispersandose. E é como se fossem irmãos.

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acervo Uma exposição alojada por baixo das arquibancadas

Museu do Futebol, no Estádio do Pacaembu, em São Paulo, abriga boa parte da história do esporte no Brasil, com seus times, heróis e fatos revelantes exibidos em versão high tech texto Fábio Victor Fotos Flávio Lamenha

o museu começa ao ar livre.

Sobrevivente do art déco com influência fascista que marcou a arquitetura de prédios públicos paulistanos na Era Vargas, o estádio do Pacaembu vale, sozinho, uma visita. Tanto melhor se for num dia em que a feira livre ocupe a vasta praça defronte, a Charles Miller – terças, quintas, sextas e sábados –, o que garante o pastel com caldo de cana, refeição de rua típica da cidade. No acesso principal ao estádio, inaugurado em 1940, está a entrada do Museu do Futebol, instalado embaixo das arquibancadas, nos intestinos do monstro de concreto. Da confusão/ comunhão entre estádio e museu, um como extensão do outro, vem o melhor do que se seguirá. Não é um museu convencional, com acervo convencional. Quem busca troféus, camisas antigas, chuteiras lendárias, pertences dos grandes craques e registros documentais dos grandes times, esqueça. No lugar de obras ou objetos, “experiências” audiovisuais; em vez da contemplação, a interatividade tão cara à arte contemporânea. Não à toa, a museografia é de Daniela Thomas, expoente da cenografia brasileira que transpõe sua experiência com cinema e teatro para as exposições que monta, quebrando parâmetros entre as formas de arte, e de Felipe Tassara. Nesse sentido, a primeira sala do museu, um hall batizado de Grande área com imenso pé direito, é enganosa: por suas paredes

num dos espaços, é possível conferir gols antológicos, escolhidos por 26 nomes ligados ao futebol espalham-se flâmulas, cartazes, ilustrações de times e jogadores de todo o Brasil – itens de uma memorabilia que pouco se repetirá a partir de então. Após a escada rolante que leva ao primeiro dos dois pavimentos, em frente à qual um Pelé em vídeo dá as boasvindas em três línguas, têm início as “experiências”.

BReU AtRÁS De BReU

A sala dos Anjos barrocos é a primeira que vale a pena. Num ambiente escuro, 25 ícones do futebolarte nacional têm suas imagens projetadas em painéis acrílicos suspensos, criando um belo efeito espectral, ampliado por um som de tambores. Estão lá Pelé, Garrincha, Didi, Zizinho, Nilton Santos, Zico, Romário e os pernambucanos Vavá e Rivaldo, este um dos quatro ainda em atividade da galeria – junto com Ronaldinho Gaúcho, Ronaldo e Roberto Carlos. Em seguida, monitores de TV espalhados por cabines que lembram naves exibem gols antológicos

escolhidos por 26 nomes ligados profissional ou afetivamente ao futebol, que em depoimentos justificam suas preferências. Pelo subjetivismo da seleção de depoentes e, portanto, dos gols escolhidos, é uma das salas mais sujeitas a contestações. Torcedor do Inter de Porto Alegre, Luís Fernando Veríssimo elege como gol mais emocionante de sua vida o de Figueroa na vitória sobre o Cruzeiro na final do Brasileiro de 1975. Galvão Bueno cita um não gol, o pênalti perdido de Baggio que deu o tetra à seleção em 1994. E, nessa, o sujeito gasta minutos dentro da nave, relembrando alguns gols de fato inesquecíveis, como o terceiro de Paolo Rossi contra o Brasil em 1982, e muitas vezes tentando entender o que é aquele depoimento e que raios aquele gol sem graça está fazendo ali. Basta então virar para trás para ver/ouvir a homenagem a grandes locutores de rádio: em cabines com fones de ouvido, narrações de “gargantas de aço” como Pedro Luiz, Osmar Santos e Ary Barroso são sincronizadas com imagens e efeitos num monitor à frente. O pobre torcedor do Sport sai de lá se perguntando por Roberto Queiroz ou Ivan Lima, mas, num átimo, uma nova escada rolante já o joga no segundo pavimento e num outro breu. Concreto, ruína, montes de areia, jeito e cheiro de um canteiro de

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Página anterior 1 tecnoLoGiA

Painéispr ojetam imagens que narram o contexto histórico das Copas

Nesta página 2 ANJOS BARROCOS

nesta sala, 25 imagens de grandes craques do futebol-arte nacional são projetadas em painéis de acrílico suspensos

3 MeMóRiA osqua dros giratórios da sala Origens resumem a história do Brasil a partir do esporte mais popular no país

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obras, convite ao atordoamento. Há dois telões, mas as imagens projetadas vazam para todos os lados. São torcidas brasileiras, gritando seus cânticos. Nenhuma é identificada.“Quer dançar, quer dançar, o Timbu vai te ensinar” – surgem os alvirrubros nos Aflitos. “Arreia, Jovem, arreia”, “Chegando lá na Ilha do Retiro, vou abrir alas que o Sport vai jogar”. Dá vontade de ficar. Imagens lembram a massa do Santa Cruz no Arruda, mas cadê os gritos? Surge uma multidão, de pronto tentamos adivinhar que time é aquele, o que dizem aqueles coros. No breu de um canteiro de obras, nas entranhas do Pacaembu, a sala Exaltação mostra as 30 maiores torcidas do país (disso só saberá quem ler o folder) e é a mais sensorial e surpreendente do museu.

GÊnioS DA BoLA

Um passeio pelos primórdios do futebol no Brasil é o que vem a seguir, em Origens. Quadrinhos giratórios com fotos antigas e um filmete compõem uma aula

o ambiente mais exuberante e multicolorido é a sala que conta a história das copas, através de fotos e vídeos resumida de história do Brasil a partir do seu esporte mais popular, função complementada pela sala seguinte. Em Heróis, Leônidas da Silva e Domingos da Guia são equiparados a artistas e intelectuais do século 20, fundadores da identidade nacional, como Villa-Lobos, Gilberto Freyre, Portinari, Drummond e Caymmi. Há uma salinha-corredor dedicada à derrota do Brasil para o Uruguai na final da Copa de 1950, apropriadamente batizada de Rito de passagem. Cai-se então no ambiente mais exuberante e multicolorido do museu, a sala que conta a história de todas as Copas, por meio de totens com fotos e vídeos dos Mundiais e do seu contexto histórico. Os

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totens evocam buquês de flores, ou árvores, ou cogumelos, ou taças. Segue-se uma sala dedicada a Pelé e Garricha e outra, espaçosa, voltada a números e curiosidades, que parece acolher tudo que não foi mostrado por falta de espaço. Informações de almanaque, descrição de regras do jogo, um painel dedicado aos árbitros (com depoimentos maravilhosos de mães de juízes), um para o futebol feminino etc. Nesta sala, há uma abertura para a arquibancada do Pacaembu, pela qual o visitante vê todo o estádio. A parte final, com jogos em campinhos virtuais e cobranças simuladas de pênalti com goleiro de mentira, é talvez a única agradável para crianças (dois amigos contaram que seus filhos não gostaram do museu, algo difícil de crer diante da algazarra de colegiais numa quinta-feira, o dia em que a entrada é grátis). No térreo, há ainda um espaço para exposições temporárias, um auditório, uma loja e um café-restaurante.

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33 mil visitas Inaugurado em setembro de 2008 pelo governo de São Paulo, com concepção e realização da Fundação Roberto Marinho e investimentos privados via Lei Rouanet, o Museu do Futebol custou R$ 32,5 milhões. Já é o quarto mais visitado da cidade, atrás do Masp, da Pinacoteca e do Museu da Língua Portuguesa – precursor do modelo audiovisual e interativo. Recebe quase 33 mil visitantes por mês. É gerido por uma organização social, o Instituto de Arte do Futebol Brasileiro, entidade privada sem fins lucrativos, que recebe verba pública para administrá-lo. Neste ano, de um orçamento previsto de R$ 7,5 milhões para o museu, R$ 5,5 milhões vêm do governo. O resto sai de bilheteria, aluguel de espaços (auditório, loja e restaurante) e visitas guiadas a empresas. a visitação ao museu ocorre de terça a domingo, das 10h às 18h (bilheteria até 17h), sendo fechado em dias de jogo no Pacaembu. Os ingressos custam R$ 6 e R$ 3 (estudantes e idosos) e às quintas a entrada é gratuita. Informações: (11) 3664.3848 e no site www. museudofutebol.org.br

AQUeLeS SenÕeS

O futebol não é essencial à vida (há quem discorde) e pode até não ser arte (há muito mais gente que discorda), mas é impossível ignorálo como elemento formador da identidade nacional e como espelho da nossa sociedade miscigenada. É o terreno onde a mistura vicejou, fez o país grande no mundo, pôs fim ao “complexo de vira-latas do brasileiro”, como defendia Nelson Rodrigues. E é, como se vê todo dia nos estádios, nos botecos e nos escritórios, a grande festa popular do país. O Museu do Futebol reflete essa significação, o bastante para que seja celebrado como uma boa iniciativa e um grande programa para quem gosta do esporte ou de história do Brasil. Mas tem seus senões. Faz falta que não exiba como as artes nacionais interpretaram e interpretam o próprio futebol. Há também quem ache que concentra demais seu conteúdo no eixo Rio – São Paulo. Ora, se pensarmos que Ademir, Vavá e Rivaldo, os três pernambucanos

com poucas menções aos times de fora do eixo sul-sudeste, o acervo não representa a diversidade do futebol no país de maior projeção no futebol, tiveram de sair cedo do Recife para serem reconhecidos – como reflexo inequívoco de que no século 20 o centro-sul já consolidara sua dominação econômica no país –, parece natural que haja mesmo mais times e referências do Rio e São Paulo. Por outro lado, ainda com menções aqui e ali a times de fora do eixo, o acervo de fato não dá conta da diversidade imensa do futebol no país. Seria bem-vindo, por exemplo, um painel com o mapa do país no qual se contasse um pouco da história do futebol pelas regiões. “O clamor dos pernambucanos sempre se fez ecoar no Brasil, e esta é uma boa ideia a ser considerada”,

disse com bom humor, ao ouvir a sugestão, o curador do museu, Leonel Kaz, para quem o acervo dali é uma obra em progresso. “A cada minuto que passa mais me convenço – e não digo isso porque você é pernambucano – que devo esse museu a Gilberto Freyre. Se eu não tivesse lido Casa-Grande & Senzala, esse museu não existiria”, afirmou Kaz, com os olhos marejados. A diretora do espaço, Clara Azevedo, pondera que qualquer museu é uma seleção e que escolher implica excluir. Mas avisa que há muitos novos projetos em estudo, entre eles o de uma cabine com hinos de clubes. Na sala das Copas, o climão aumenta. Percebemos ali que apenas dois Mundiais, pela conquista inédita ou sublime, mereceram um totem/buquê só para eles: os de 1958 e 1970. Pela tacanhice do atual treinador e pelas ausências gritantes de “anjos barrocos” no grupo convocado por ele à África do Sul, é possível prever que, no futuro, 2010 será uma nesga num pé de totem no Museu do Futebol.

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Artigo

reProDUÇÃo Do liVro PELÉ: O SUPERCAMPEÃO, eDitora MCGraW-hill

evaldo costa pé de preto, cabeÇa de branco

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PeLÉ e ZAGALLo

a dupla cisão entre pé x cabeça e preto x branco continua sendo a exata tradução da sociedade brasileira

não é difícil entender por

que damos tanta importância ao Mundial de Futebol. Acostumados a contemplar nossa condição de pobresterceiros-mundistas-em-quase-tudo, não suportamos o insucesso numa área – se não única, mas sem dúvida a mais importante – na qual somos “o” primeiro mundo. De fato, o futebol brasileiro é um caso de sucesso global. Somos no mundo da bola o que os Estados Unidos são na economia e na guerra. E não é de hoje. Olhe os grandes campeonatos de clubes do mundo: há muito tempo suas principais estrelas são jogadores brasileiros. Mas numa dimensão o futebol brasileiro não tem a projeção devida. Se, com a bola nos pés, somos, indiscutivelmente, os maiores, com a prancheta na mão ficamos em posição modesta em um possível ranking global. Ou seja, temos centenas de estrelas dentro dos campos e raríssimos treinadores com reconhecimento internacional. Parreira tem, embora sempre em seleções periféricas. Felipão teve, em Portugal. Não vale citar Zico, no Japão, Renê Simões, na Jamaica, e outros do gênero: estão no terceiro mundo. Alguém poderia dizer que nossa língua marginal atrapalharia. Mas como explicar os êxitos de portugueses (como Mourinho), italianos, eslovenos e sabe-se lá mais o quê? Agora, tem uma coisa um tanto difícil de compreender: por que somos tão bons para fazer e tão pouco competentes para comandar? Sabemos tocar, mas não conseguimos reger? Numa canção gravada em 1974, Gilberto Gil bradou: “Viva Pelé do pé preto!/Viva Zagallo da cabeça branca!”. Fazia a louvação do encontro de gerações – o pé preto do moço, a cabeça branca do velho – como receita de sucesso. Errou no futebol, mas acertou na vida. A dupla cisão pé/cabeça e preto/branco continua

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sendo a mais perfeita tradução da sociedade brasileira. Começou na casa-grande e na senzala e sofreu atualizações. Hoje se exprime no par colarinho branco/colarinho azul, sem jamais deixar de reproduzir a fratura essencial: aqui, o pé que amassa a grama não é o mesmo que pisa o carpete da federação. Entregue a suas elites, sem dúvida menos competentes que seu povo, o Brasil brilha no palco, mas some nas coxias. Pé de preto, cabeça de branco sintetiza uma visão do apartheid social brasileiro. A maioria de pele escura entra com o corpo, a arte e o suor, a minoria de pele clara com o saber acumulado ao longo das gerações e o poder de mandar. Claro que isso não é tão simples. Há outras cisões a considerar. Principalmente, certo antiintelectualismo que supervaloriza a intuição e a inocência em desfavor do estudo e do método, que têm no futebol sua base de apoio mais agressiva. Como se fosse possível

negar que, levado a treinar para aprender a cabecear, Ronaldo Nazário não seria um jogador ainda mais fantástico. Valorizamos mais o malandro que se dá bem que o trabalhador esforçado. Artilheiro genial, Romário era mais aclamado por driblar os preparadores físicos do que por ludibriar os zagueiros. Como se não houvesse modo de combinar genialidade e técnica, habilidade e força, arte e ciência. Treinador, para que treinador?, perguntamo-nos. Treinador que impõe sua presença incômoda (“Vocês vão ter que me engolir!!”), é odiado. Treinador que amofina e perde, é idolatrado. Não é que gostemos de perder. É que preferimos manter as coisas do jeito que sempre foram, para nos sentirmos mais confortáveis. Manda quem sempre mandou, obedece quem conhece o seu lugar. Assim, leves, criativos, ingênuos e românticos, prosseguimos bons com a bola nos pés, sofríveis sentados no banco.

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11 DE CÁ

Delano escolheu pintar uma jogadora; Farfan fez a releitura de uma foto famosa de Pelé; Tereza preferiu o calor das torcidas; Christina debulhou uma bola de futebol. De seu lado, Gil Vicente tascou-lhe um cartão vermelho, enquanto Ploeg, José Cláudio e Mauricio Arraes optaram pelo lirismo das várzeas, cada qual de um ângulo diferente. George e José (ambos Barbosa), assim como Mané Tatu, se fixaram na seleção. O que o leitor verá nas próximas páginas é uma galeria de pinturas que foram feitas com exclusividade para a continente, com a intenção de tornar visível, pela arte, a vibração que toma conta do Brasil nesses dias de Copa do Mundo

Uma seleção de craques das telas, tintas e pincéis continente JUNHO 2010 | 89

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COPA 2010

REPRODUÇÕES: MAÍRA GAMARRA

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JoSé ClÁUdIo

FélIX FARFAN

O ipojucano recebeu do arquiteto e amigo Moisés Agamenon um ingresso para assistir ao primeiro jogo da Seleção Brasileira no Recife: um amistoso no Arruda, em 1982, contra a Suíça. Todas as partidas anteriores no Estado haviam sido não oficiais, pois a Fifa só considera os duelos entre países. No dia seguinte, o artista pintou o quadro, registrando o 1 X 1 do placar.

Desde os anos 1990, o acreano radicado em Pernambuco trabalha em recriações. Farfan, que já “reinterpretou” Rembrandt, Van Gogh e João Câmara (com quem trabalhou por oito anos), recriou para a exposição a foto clássica do Rei Pelé dando seu soco no ar (seguido do atacante Jairzinho) na Copa de 1970.

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BRASIL E SUÍÇA NO ARRUDA

Óleo sobre eucatex 120 x 80 cm 1982

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PELÉ

Técnica mista sobre tela 100 x 140 cm 2010

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ChRISTINA mAChAdo Buscando provocar sensações lúdicas, a artista pernambucana utilizou a plasticidade da argila, da terra e o couro de uma bola descosturada para recriar, de maneira nostálgica, as peladas no bairro da Madalena jogadas pelos seus dois filhos há mais de duas décadas. A tela recebe o sugestivo título de Passa a bola, pisa na bola... e assim caminha a humanidade.

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PASSA A BOLA, PISA NA BOLA E ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE

Bola de couro e argila sobre tela 90 x 90 cm 2010

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JoSé BARBoSA Primeira vez que utiliza uma cena televisiva como inspiração, o quadro intitulado O choque da decisão representa uma final assistida pelo artista, que buscou retratar o futebol enquanto dança, movimento, e a tensão de um jogo televisionado ao vivo.

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O CHOQUE DA DECISÃO

Acrílico sobre tela 120 x 180 cm 2010

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COPA 2010

MAURICIO ARRAES Torcedor do Íbis, o recifense simpatiza com as peladas, como a que pintou em óleo sobre tela. As peladas, aliás, constituem um quadro do cotidiano brasileiro, tema recorrente na obra deste seguidor da tradicional escola figurativista pernambucana.

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PELADA EM OLINDA

Acrílico sobre tela 80 x 70 cm 2010

DELANO Recatado e introvertido, Franklin Delano vive isolado em sua casa nas ladeiras de Olinda, onde se esconde e de onde espreita a realidade que evita. Quebrando com a hegemonia masculina futebolística, o artista representou a crescente atuação feminina no futebol, retratando uma figura andrógina em seu quadro.

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MULHER NO FUTEBOL

Óleo sobre tela 120 x 80 cm 2010

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GIl vICeNTe O ex-aluno da Escolinha de Arte do Recife acompanha de perto os jogos do Náutico (seu time) e da Copa do Mundo, mas retrata um momento menos eufórico do futebol: a expulsão, na acrílica sobre papel Cartão vermelho para você. O vencedor do prêmio Funarte fez sua primeira individual em 1978. Recentemente, expôs em Madri, participando da mostra Brasil Arte Contemporânea.

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CARTÃO VERMELHO PRA VOCÊ

Acrílico sobre papel 96 x 66 cm 2010

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GeoRGe BARBoSA “O futebol é quase uma instituição.” Esta é a percepção do alvirrubro George Barbosa acerca da paixão brasileira pelo jogo. O artista, que costuma fazer séries temáticas sobre lugares que visita, admira o local de prestígio ocupado pelos esportes na sociedade. 8

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FUTEBOL

Óleo sobre tela 100 x 100 cm 2010

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COPA 2010

TeReZA CoSTA RÊGo Com trabalhos que retomam temas como a história, a representação feminina e os animais, a artista confessa sentir dificuldades em retratar o jogo de bola tão valorizado pelos brasileiros. Para superar esse desafio, mergulhou nas multidões das batalhas históricas, representando a alegria das torcidas.

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A TORCIDA

Acrílico sobre eucatex 100 x 100 cm 2010

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mANé TATU Manoel Cláudio, ou Mané Tatu, segue a escola figurativa do pai, o artista plástico José Cláudio. O tricolor pernambucano é apaixonado pelo seu time. Fez uma tela mais “universal”, unindo elementos representativos do futebol, e, para tal, utilizou o preto e branco, sem especificações de times. 10 NA ZONA DO AGRIÃO

Acrílico sobre duratex 90 x 100 cm 2010

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RoBeRTo ploeG Grande apreciador de futebol, Roberto Ploeg vivenciou em sua juventude a alegria de ver a seleção holandesa, conhecida como a “Laranja Mecânica”, ser vice-campeã na Copa de 1974, na Alemanha. Além de jogar todas as segundas, à noite, Ploeg inspirou-se nas peladas dos meninos das redondezas de seu sítio em Ouro Preto para pintar sua tela.

11 PELADEIROS

Óleo sobre tela 90 x 70 cm 2010

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11 DE Cá Artistas plásticos pernambucanos interpretam o futebol exposição no paço Alfândega Rua madre de deus, s/n, Recife Antigo 5 a 24 de junho Segunda a sábado, das 10h às 22h; domigos, das 12h às 20h continente JUNHO 2010 | 95

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