Especial Fliporto

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FOTO: alexandre berzin

RECIFE CIDADE ABERTA De paisagens de rio e mar a cenas de degradação e fantasmagoria, as interpretações de fotógrafos sobre o espaço urbano retratado na ficção

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con enSaio ti nen te

ABEl MENEzES

AMÍlCAR DÓRIA MATOS

CélIA lABANCA

Nascido em Caruaru, no agreste pernambucano, o médico, residente em Olinda, é autor do romance Delírica dança. Em A gargalhada final (1996), exprime sua relação intensa com o Recife.

Jornalista e escritor, publicou o primeiro livro, O sexo poupado, em 1974. Em A trama da inocência (1983), aborda a polêmica atração de um homem por uma menina.

Bacharel em Direito e diretora do MAC, a escritora e curadora publicou três romances, sendo o último A noite tem razão – Uma história real quilombola. Aminta foi lançado em 2008.

CÍCERO BElMAR

ClARICE lISPECTOR

DOUGlAS T. DE AlMEIDA

Autor de Umbilina e sua grande rival (homenagem à literatura de cordel) e Acabou-se o que era doce. Em Rosselini amou a pensão de Dona Bombom (2005), conta um pouco das tradições do Recife.

A ucraniana naturalizada brasileira estreou em 1943, com o romance Perto do coração selvagem. Durante a infância, residiu no Recife, experiência abordada em diversos textos.

Autor do romance Saudade do futuro, de 1989, com o qual teve entrada ruidosa no campo literário. Com o livro, ganhou o prêmio Leda Carvalho, concedido pela APL.

FOTO: riCardO MOUra

Em O Recife dos romancistas, Abdias Moura pretendia contestar a tese de que “Pernambuco é uma terra de poetas, historiadores e ensaístas, mas nunca produziu bons romancistas”, enquanto oferecia visibilidade a uma produção literária local. Juntamo-nos a ele no desejo de estimular nos leitores a vontade de conhecer esses textos, propondo um “diálogo” entre escritores e fotógrafos. Da seleção, já feita por Abdias, escolhemos e enviamos trechos de romances para 14 fotógrafos, pedindo que, a partir deles, fizessem seus registros livremente. As imagens feitas instigam o interesse pelos textos originais, que pedem uma leitura integral.

Entrevista

ABDIAs mouRA “nÃo FIz sELEçÃo PoR méRITo Do EsCRIToR, APEnAs PELA TEmáTICA” Embora rejeite o rótulo de “escritor

ABDIAS MOURA

”Foi uma busca maluca, porque eu pensava que eram poucos romances”

nordestino”, o jornalista e sociólogo Abdias Moura não nega suas raízes. Pelo contrário, ele as exalta. Do afeto pela cidade em que vive, surgiu o livro Recife dos romancistas, uma homenagem à capital pernambucana que, muitas vezes, foi personagem de textos literários. Abdias recebeu a Continente para conversar sobre a obra que inspirou esta edição especial da revista.

CONTINENTE Como surgiu a ideia do livro? ABDIAS MOURA A ideia surgiu quando, na Argentina, minha mulher me deu o livro Buenos Aires das novelas. O título prometia muito, mas é um trabalho diferente do meu. Ele reuniu autores que viviam na cidade, mas escreveram novelas sobre assuntos diversos, não só sobre o lugar. Como eu já tinha escrito 13 obras, a maioria ensaios sociológicos e alguns pequenos romances, resolvi fazer um livro de homenagem ao Recife. Recentemente, perguntaram-me se me considero um escritor nordestino, brasileiro ou universal. Eu disse que gostaria de ser considerado universal, com raízes no nordeste brasileiro. De todo modo, eu sentia, como recifense, que precisava celebrar a minha cidade e, em vez de fazê-lo com um trabalho meu, juntei os trabalhos dos outros. Procurei reunir todos os romances que foram escritos sobre o Recife,

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Gastão de Holanda

Gilvan Lemos

Fernando Monteiro

José Iremar da Silva

O escritor recifense, bacharel em Direito, estudou Literatura em Paris. De volta ao país, radicouse no Rio, onde dirigiu a editora Fontana e a revista José. Lançou, em 1975, O burro de ouro.

Nascido em São Bento do Una, chegou ao Recife em 1949, com 21 anos. Publicou o primeiro livro, Noturno sem música, em 1956. Escreveu mais de 10 obras, entre romances, novelas e contos.

Poeta, romancista, cineasta, estreou em 1973, com Memória do mar sublevado. Em 1974, foi premiado pela APL com a peça O rei póstumo. A cabeça no fundo do entulho foi lançado em 1999.

Bacharel em Teologia, tem trabalhado, desde os anos 1970, com crianças e adolescentes em situação de risco, tema abordado em O menino das ruas do Recife (2007).

José Lins do Rego

Josué de Castro

Luzilá Gonçalves

Mário Sette

O paraibano protagonizou um avanço no romance regional moderno, que ganhou mais oralidade com livros como Menino de engenho, Doidinho e O moleque Ricardo (1935).

Autor de Homens e caranguejos (1967) e Geografia da fome, foi médico, geógrafo e ativista. Com os direitos políticos suspensos após o golpe de 1946, exilou-se em Paris, onde faleceu em 1973.

Romancista, editora e professora universitária, com mestrado e doutorado em Letras. Em A garça malferida (2002), realiza uma ficcionalização do período holandês.

Fundador da Academia Pernambucana de Letras, o escritor deixou uma obra na qual o cotidiano da Zona da Mata e do Litoral estão presentes, como em A filha de Dona Sinhá (1926).

não importando se os autores eram recifenses. O que interessava era que eles apresentassem uma visão pessoal da cidade. Entusiasmei-me muito, quando comecei a escrever, porque não imaginava que ia ter que lidar com 72 romancistas. CONTINENTE Houve dificuldades na produção do livro? ABDIAS MOURA Foi uma busca maluca, porque eu pensava que eram poucos. Eu queria incluir muitas publicações antigas, algumas delas desaparecidas. Outro grande problema que eu tive nesse livro foi separar o Recife de Olinda, porque, na minha visão, elas estão unidas fisicamente e espiritualmente. Mas, na prática, percebemos que os olindenses não querem pensar em uma subordinação ao Recife, e os recifenses têm a velha soberba de ser a capital.

CONTINENTE Foi estabelecido algum critério para seleção dos escritores catalogados? ABDIAS MOURA Eu recebi uma crítica curiosa do meu editor de Buenos Aires, que adorou o livro – disse que era enciclopédico, e só possuía um defeito: excesso de generosidade na inclusão de alguns autores. A questão é que não fiz seleção por mérito do escritor, apenas pela temática. Não quis fazer um julgamento dos livros, e coloquei todos, mesmo os que não considero bons. Alguns me agradam muito, outros nem tanto, e alguns, nem um pouco. Mas não usei o critério de qualidade da obra, apenas considerei a preocupação do autor em descrever o Recife. CONTINENTE Por que trabalhar com romance, em detrimento de outros gêneros? ABDIAS MOURA Até sugiro que algum corajoso faça o Recife dos contistas. Eu não suportaria outro

projeto desses. Existe o Recife dos poetas, eu fiz o Recife dos romancistas e, agora, pode ser que alguém faça o dos contistas. Não fiz e expliquei: a quantidade de contos surgindo é muito grande e eu não poderia abarcar esse universo. Aí, perguntam-me: você conseguiu todos os romances que falam do Recife? Desde que terminei o livro, só chegou um novo (O romance da Besta Fubana). Pode ser que, na segunda edição, eu precise incluir mais alguns. Mas, na verdade, não penso nessa continuidade. CONTINENTE Quanto tempo durou a produção do livro? ABDIAS MOURA Demorei nove meses. Mas fiquei louco nesse tempo. Eu não dava atenção a mais nada. Já levei seis anos em um livro, mas escrevendo-o nas horas vagas, e não foi o caso desse. Gianni Paula de Melo

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José Lins do Rego O moleque Ricardo Fotos Ana Lira

O trem puxava, as estações se sucediam. (…). O Recife estava próximo. A cidade se aproximava dele. Teve até medo. Falavam no engenho do Recife como de uma Babel. “Tem mais de duas léguas de rua”. “Você numa semana não corre.” E bondes elétricos, sobrados de não sei quantos andares. E gente na rua que só formiga. O dia todo é como se fosse festa.

Tudo isso agora estava perto dele (…). A cidade começava a mostrar os primeiros sinais. Arraial. Viu um bonde amarelo. Era o primeiro que se apresentava aos seus olhos. Não era tão grande como diziam. ENCRUZILHADA. Casa de gente pobre pela beira da linha, jaqueiras enormes, mulheres pelas portas das casas. E agora

o Recife. Tudo aquilo já era o Recife que estendia as suas pernas, que crescia, que era o mundo. O condutor chegou para ele com um embrulho: – Fique aí me esperando. Volto num instante. E Ricardo ficou só no meio daquela gente que carregava mala, que falava alto, que vinha e saía num rebuliço de festa (…).

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con ENSAIO ti nen te

Gilvan Lemos Cecília entre os leões Foto Roberta Guimarães

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Em plena Rua da Aurora. Sileno e o avô. A rua não era a mesma dos quadros de pintores saudosistas. Descaracterizada, diziam. Ou completada por prédios modernos, de muitos andares. Ali, olhe, na esquina com a Conde da Boa Vista. Nas esquinas: com a Riachuelo, a Mário Melo, a do Lima... Danou-se! Iam acabar com os velhos sobrados do Recife. Defronte, um em início de demolição. Que pena? Que pena. Sileno botara na cabeça que as joias de que o avô falava estavam escondidas num sobrado velho. Em qual? Difícil adivinhar. Quem sabe naquele? Na oportunidade, Sileno incentivava o avô, injetava-lhe lembranças. Sentado na beirada do passeio que desce em curva a Ponte da Boa Vista – oh! Vento carregado de maresia, almiscarado de lama podre, capibarizado de entulhos, deixa-o ouvir! – o velho não dava mostra de entender. O mesmo vento em seus cabelos, o casco da cabeça (Sileno ia dizendo: desdentada), as falripas brancas escasseando, ah!... Sentado na beirada do passeio etc. etc. O velho Nô (…). Se inventasse de fumar agora o vento não permitiria que acendesse seu cigarro clandestino, opositor da filha (minha mãe), cigarro clandestino. E para isso o velho estava ali. Verdade, o progresso não ia deixar um sobrado em pé. E se num daqueles já derrubados? Se num daqueles que não aqueles últimos daquele trecho desta rua? Se não daqueles da Augusta ou da de Hortas ou da Dias Cardoso ou da do Jardim ou ou ou, que não existem mais, suprimidos que foram para dar lugar à Dantas Barreto? Ó ventos ó tempo ó costumes! Mas mas mas, porém, mas porém: ainda existem muitos sobrados. Na Concórdia, Imperatriz, Nova, Duque de Caxias, Terço, Imperial, Livramento, Direita, Penha, Calçadas... E no Recife velho, quantos? continente NOV E M B R o 2 0 1 1 | 8 7

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con ENSAIO ti nen te

Luzilá GonçalveS Ferreira A garça malferida Fotos Eduardo Queiroga

Talvez um outro motivo daquela devassidão reinante no Recife fosse a falta de adaptação ao meio, que transparecia, entre outras coisas, nas vestimentas das pessoas – que se trajavam com roupas vindas da Holanda – e até na alimentação. Às vezes, Andresa e Adriaen eram convidados a almoçar em casa de amigos e se espantavam com seus modos de conversar costumes da Holanda, sem empreender um mínimo esforço de aculturação. Jeuriaen e Marieta haviam sido um exemplo

disso. Apesar do esforço evidente para se amoldarem aos usos culinários da terra onde pretendiam habitar definitivamente, continuavam a viver como na Holanda. Não comiam nunca a carne de bodes e carneiros do mercado, preferindo-lhes as carnes secas e salgadas que os navios traziam. Aos peixes frescos, cheirando a alga do mar, preferiam o bacalhau ressecado, o arenque defumado, o salmão rosado que os navios traziam no seu bojo. Preparavam tudo isso ao modo deles, cozidos em vinho da Espanha ou do

Reno. Peixe cozido no leite de coco, como os escravos haviam ensinado a fazer os da terra, tão bom ao paladar, nem em sonhos comeria um holandês. Marieta e Jeuriaen franziam o nariz ante o queijo de cabra da nova terra, lembrando que os do Reino e da Holanda eram infinitamente superiores. Ao coentro e à cebolinha nativos eles preferiam as alcaparras e azeitonas de além-mar. E as frutas frescas – com exceção da uvas de Itamaracá ou Olinda – eram substituídas por passas, figos secos, nozes e amêndoas.

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Josué de Castro Homens e caranguejos Foto Otávio de Souza

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Nas noites de lua cheia e maré alta, quando as águas se empinam ao máximo, atraídas pela força que a lua tem, Xico conduz sua jangada até a grande bacia que fica por trás do Palácio do Governo, onde se encontram as águas do Capibaribe e Beberibe. (…) Cadê o Beberibe? O Beberibe que desce de mais perto das colinas de Olinda? Aparecem mais afluentes

modestinhos: o Camaragibe, o Monteiro, o Tejipió, mas cadê o Beberibe? Já dentro da cidade o Capibaribe lança um braço para o lado, segue para o outro lado fazendo um cerco pro Beberibe não escapar. Alcança-o logo adiante, e aí os dois rios se entrelaçam, se confundem e afogam nas suas águas misturadas (…). No ímpeto do abraço bárbaro as águas se avolumam e, tontos da alegria do

encontro, os rios perdem os rumos, saem embriagados a cambalear pelos baixios, a se esfrangalhar pelos charcos, a se deitar pelos remansos, formando nessa boemia de suas águas as ilhas, os canais, os mangues, os pauis, onde assenta essa saborosa cidade do Recife, resumo das aventuras heroicas que os rios contaram e continuam contando ao se encontrarem numa praia do Atlântico.

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José Iremar da Silva O menino das ruas do Recife Fotos Chico Ludermir

O sol começava a aparecer através

dos telhados dos velhos prédios do Recife Antigo. O céu estava límpido. Ao longe, podiam-se contemplar pequenas

mechas de nuvens branquinhas como se fossem de algodão, em cima daquele azul celeste. Dos bares e lanchonetes já se ouvia o ranger das

pesadas portas de ferro, ao se abrirem, num cordial “bom-dia” para os fregueses do matinal cafezinho ou da saborosa “média”. Mais à frente está o monumento do Marco Zero; parecese com um pêndulo sem movimento, em contrastes com os enormes navios ancorados no cais do porto. (…) Do outro lado da rua, a calçada estava atrativa para um bando de pombos à procura de alimento. Eles disputavam cada grão encontrado ao longo da calçada, caído dos trens ou caminhões transportadores

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de produtos chegados de navios, até de outros países, ou que se encontravam estocados nos grandes armazéns da Alfândega. Nesse momento, Bô levantou-se de sua cama de papelão, abriu os braços, preguiçosamente, passou os dedos por entre os olhos, para limpar as remelas, procurou um lugar junto a parede para urinar e, em seguida, sentou-se num dos bancos da praça, a observar seus companheiros de rua. Todos dormiam sobre a calçada, encostadinhos junto à parede. Usavam camisas de meia,

esticadas até os joelhos, como se fossem lençóis, na tentativa de fugir do “friozinho” da madrugada recifense. Como num passe de mágica, a calçada deixou de ser dormitório e passou a ser transitada por pessoas que vinham dos subúrbios, cumprir mais um dia de trabalho. Eram executivos, marinheiros mercantes, garis, faxineiros, vendedores ambulantes, carroceiros, policiais, bancários e muitos outros populares. Bô atravessou a rua, acocorou-se em frente ao prédio da Bolsa de Valores. O ruído

dos motores dos veículos vindos das quatro pontes que ligam o bairro do Rio Branco aos demais bairros da cidade, fez os outros meninos despertarem de um sono profundo (…). Aos poucos, os meninos iam se levantando de suas camas de caixa de papelão, impressa com figuras ou nomes de marcas famosas de produtos nacionais e até estrangeiros – doces, leite em pó, sabão em barra, congelados, equipamentos eletrônicos e tantas outras mercadorias, muitas das quais até (quem saberia?) contrabandeadas.

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Cícero Belmar Rosselini amou a pensão de dona Bombom Foto Breno Laprovitera

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Danada de cidade que era o Recife, tudo nela se movia pelas forças místicas. Não fosse isso, Arcângela não estaria na casa de irmã Salete. Está certo que a velha cafetina era supersticiosa, crédula, mas quem haveria de negar que o Recife era tido e havido como uma cidade de mistérios? (…) Se bem que no Recife ocorriam muito mais coisas misteriosas do que um mero sopro de espírito nos ouvidos de alguém. (…) Já houve caso, ela mesma sabia, de vizinhos de um sobrado velho e desabitado, que se mudaram assustados com as vozes e gemidos de almas do outro mundo que vinham de dentro do prédio. Tanta gente já viveu e morreu no Recife, cidade secular, uma das mais antigas do Brasil, por onde passaram holandeses, portugueses, judeus, espanhóis, aos montes, e que agora eram almas penadas (…). Soldados mortos a se perder a conta em revoluções históricas. Sem falar dos religiosos falecidos em conventos e igrejas, reservatórios de angústia e morbidez, locais de freiras e padres que se finaram e não se conformaram, pois eram muitos os desejos e sentimentos frustrados nas celas dos conventos (…). Se dava para ouvir o bramido de religiosos que fizeram passagem para o outro mundo, (…) que diria do barulho que fazem os fantasmas das quengas, querendo mais chamego? (…) Outra coisa não, mas quenga o Recife teve muitas. “Ô terrinha para ter mulherdama! Já teve muita e ainda tem! Benza Deus!” c o n t i n e n t e N OV E M B R o 2 0 1 1 | 9 5

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Abel Menezes A gargalhada final Fotos Yêda Bezerra de Melo

Graça secreta certeza ensina o destino uno a todos (…) recife maurícia canais nassau ponte cais casas velhas memórias vau vaz traço carícia terra avanço ao mar ilha península enseada guia estrela vida forte cinco pontas porta da cidade sonhada, rua do jardim bailarina palmeiras largo do pirulito mágico domador gigante malandro palhaços descanso de blocos perfume adereços purpurina marafo meio-fio frevo sombrinhas de circo, logos inefável um falar em línguas amor divino afago afável sincrético convívio navega colombo

deságua caneca no pátio do terço tambores silêncio, sua bênção badia vidal de negreiros rua direita tortuosa ironia câmera lenta íntima pressinto grita-me acena diário fascínio paradiso a glória do cinema, privadas cidade cidadania ainda inexistente jeito trânsito o semáforo emblemático locus óbvio do desrespeito, países equívoco monstruoso racismo diáspora apartheid sub urbes alarga-se o fosso interclasses sério risco para a possível unicidade, espessa viscosa falida aristocracia capitais capitanias diversas todo

naipe renitente restos mastigam vorazes, cabreiro descarrilho ferido travessa do cirigado cominho coentro alho cola de sapateiro na rua das calçadas mudos cegos surdos sem brilho vagam meninos zumbis fora dos trilhos espoliados do mundo, férreo mercado de são josé vauthier oui français (…) panteras famintas sedentas lambe lambe damas manet renoir toulouse-lautrec enlevome cézanne seurat além da miséria beleza sonho profecia entre tantas única vejo-te poesia: onde estiveste mulher?

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Mário Sette Seu Candinho da Farmácia Fotos Alexandre Severo

Quieto e vazio o pátio de São Pedro. Meia-luz de lampiões embaciados e distantes. Um ar de recanto de uma outra época, de uma outra gente. Silêncio de abandono, de sobrenatural naquelas casinhas térreas aconchegadas como aves que vêm

dormir num só poleiro; naqueles sobrados esguios, lembrando sombras de coisas mortas; na igreja, presidindo o largo, numa silhueta que mal deixava divisar a beleza da fachada, nos dois becos laterais que se alongavam numa melancolia de trechos desertos...

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Célia Labanca Aminta Fotos Leo Caldas

Na época de Carnaval,

amedrontavam-nas os caboclinhos, que, sendo lindos manifestantes da resistência cultural do Estado, ao chegarem àquela rua, em seus típicos trajes de índios, correndo com passos firmes de ir e vir, para frente e para trás, sempre em filas indianas, frenéticos e fortes, marcadas pelos tacapes que portavam e com seus enormes cocares, quase as levavam à morte. Por aflição. (…)

(…) nenhuma delas tinha medo, no entanto, quando também aos domingos de todos os carnavais, à tardinha, por lá passava o Maracatu de Dona Santa cumprindo seu itinerário. Maracatu-rei, referência para todas as nações. Dona Santa era uma negra simpática e enorme de gorda. Segurava a boneca do maracatu que tinha uma saia longa, ricamente bordada com fitas coloridas, enfeitada de babados e bicos de organdi e bordado inglês,

que lhe encobria a mão esquerda. (…). Na saia da boneca, (…) apreciadores, com um alfinete, pregavam notas de dinheiro (…). Ainda, nos bolsos de Dona Santa, as moedas (…). Isso mostrava o prestígio e o respeito que todos tinham por aquela importante agremiação, que reproduzia a corte da qual se originaram na África todos que vieram a formar a afro-brasilidade (…). Recebiam, como os outros, dinheiro e cachaça. O grupo evoluía com sua rica coreografia (…).

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Douglas Tabosa de Almeida Saudade do futuro Fotos Priscila Bhur

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(…) O mar batia compulsivamente nos arrecifes. Meu coração não batia. A velocidade do pensamento era tal que eu não conseguia estruturar nada. Impalpáveis e espasmódicos, não me deixavam sentir o sal, a areia, o sol, os coqueiros. Sentada a poucos metros de mim, uma atraente garota. Brevíssimas comunhões de olhares passaram a nos inquietar. (…). Aos poucos, como que se metendo entre os seus olhos e o nosso silêncio, o sol fez-se leitoso,

depois, de chumbo, o chumbo depois fundiu-se e liquefez-se. Antes que a multidão tivesse a mesma ideia, fomos juntos para uma barraca de coco. Ali, já sorvendo aqueles familiares e estranhos frutos, percebemos melhor a delícia sensual do nosso silêncio agora ofegante. Da última fenda de nuvens o sol dourava os finíssimos pelos de seus braços e coxas. Desanimei pensando que para possuí-la teria de cumprir um longo ritual ignorado. Desviei o olhar para não sofrer. Com o

dedo soltei meticulosamente a carne do coco e senti que a água já ia pela metade. Misturei em seguidas as duas matérias do mesmo espírito. Deglutias, sentindo com enorme prazer o escorregar pela garganta da untuosa ambrosia. A chuva recrudesceu. A natureza conspirava a nosso favor. Num movimento quase instintivo ela agasalhou-se em mim e, olhando-me com um sorriso de proprietária, traçou delicadamente a aura do meu sexo por cima do calção. (...)

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Amílcar Dória Matos A trama da inocência Fotos Sérgio Bernardo

Naquela noite cinzenta e que se prenunciava chuvosa, meu carro estava estacionado em um dos caminhos que separam os três cantos da praça, pertinho de dois outros automóveis, em cujo interior casais se ocupavam de afagos e carícias, ostensivos ou facilmente imagináveis. A alguns metros dali, numa das ruas que margeiam a praça,

observei estacionado um carro da radiopatrulha, com dois ocupantes devidamente fardados, um dos quais encostado no veículo. O outro, que permanecia sentado no interior da viatura, certamente estava à espreita de algum chamado pelo rádio. “Curioso – pensei –, até parece que os guardas estão ali a proteger os casais que se acariciam, tanto nos

automóveis quanto nos jardins, sob o abrigo das árvores ou sentados em bancos.” E achei justo que assim fosse. Eu também tivera meu tempo. Já decorridos tantos anos (…). Ajunte-se: e já então, com irreprimido temor de que algum assaltante nos surpreendesse, arma em punho, a exigir-nos pertences e outras coisas ainda mais valiosas.

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Fernando Monteiro A cabeรงa no fundo do entulho Foto Ana Farache

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Camilo Cela já era Camilo Cela quando esteve no Recife (em maio de 1982), mas somente uma notícia, não muito destacada, apareceu num canto de página do Diario de Pernambuco, anunciando a vinda do futuro Prêmio Nobel de Literatura: ESCRITOR ESPANHOL FALA A ESTUDANTES DA UFPE TERÇA-FEIRA

“O escritor espanhol José Camilo Cela, apontado como um dos mais fortes candidatos ao Prêmio Nobel de Literatura de 1982, e integrante da delegação La Coruña/Recife, falará na Faculdade de Direito da UFPE, nesta terçafeira, às 20h30, sobre o tema ‘O Escritor diante da Sociedade’.

Camilo Cela, que estava em Brasília, chega hoje ao Recife, incorporando-se aos oitenta espanhóis que cumprem vasto programa cultural e de aproximação com as entidades representativas do povo pernambucano. No Aeroporto dos Guararapes, ele será recebido pelos amigos de La Curoña e ficará hospedado certamente no Grande Hotel, onde se encontrará toda a delegação.” NB: Esse detalhe do hotel é de um sabor provinciano quase cômico, percebe-se também que o repórter nunca ouviu falar do escritor que, de fato, ficou hospedado no velho hotel do Cais de Santa Rita, hoje transformado num Fórum da Justiça, que já deixou de ser fórum. Impressionantes essas mudanças de fisionomia! – no velho Cais do Abacaxi, conforme era chamado: creio que tais mudanças, sucessivas, aceleram a estranheza, móvel, da vida sob o sol do trópico, diria Gilberto Freyre (cito por hábito pernambucano de citar Gilberto Freyre, a propósito de tudo e de nada). A notícia prossegue: “Um dos livros mais conhecidos de Camilo Cela é A família de Pascoal Duarte, seu primeiro romance traduzido em diversas línguas e que, segundo a crítica, ‘abriu uma nova etapa na narrativa espanhola contemporânea’. Camilo Cela completará 66 anos no Recife, cidade que certamente tem uma simpática referência na sua bibliografia, pois um seu avô morou aqui muito tempo como imigrante, segundo informação do professor Vamireh Chacon.” Apesar dessa notícia (que Vamireh foi levar pessoalmente), ninguém se iluda que o Recife amanhecesse consciente da chegada do escritor, vindo na trapalhada de um comitê de “viagens culturais” recreativas sobre o qual o próprio Camilo se expressaria com humor, sumido em Casa Amarela... Mas Cela ainda está para desembarcar – e a notícia dessa chegada não é lida com mais interesse do que (na página seguinte): MARCEL PROUST NO RECIFE

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Gastão de Holanda O burro de ouro Fotos Ricardo Moura

O barco surgiu no Lamarão com a mesma sutileza da madrugada. O convés estava quase deserto e um moço debruçado no corrimão da sua nau contemplava a linha dos armazéns. Deucalião regressava ao Recife, ao velho Pernambuco invadido pela maresia (…). Da sua pequena fortaleza espia a cidade que se revela através de torres silenciosas, de chaminés ainda sem fumaça. O mar está calmo, o porto ungido pela silenciosa madrugada e a cidade, vista assim ao longe, parece uma cidade

abandonada. Os guindastes desenhamse imóveis contra o céu. Deucalião correra a vista pela paisagem, caçando um ponto de referência familiar bastante para que tenha a certeza de que está de volta. Sua partida, há seis anos atrás, quando era apenas um adolescente de dezesseis, fora praticamente uma fuga. Assim que entrara no cargueiro, cujo comandante assentara de transportálo de moço de bordo em direção ao garimpo do norte, refugiara-se no pequeno e imundo alojamento dos foguistas como se temesse olhar para

trás e arrepender-se (…). A noite era daquelas noites quentes do trópico, noite profunda e martirizante, sobre a qual o brilho das estrelas é apenas uma ironia (…). Mas Deucalião agora queria era começar uma história (…). Mais tarde resolveu chegar à sua cidade natal com dinheiro que desse para ser proprietário e descansar o resto da vida. Prudência demasiada para um jovem. Perdeu tudo, azoado com a fortuna. Observando a cidade que se ilumina ao estio, Deucalião pousa o olhar sobre ela, contempla-a com certa tristeza e compara-a aos acampamentos da floresta, tendo a impressão de que vai entrar em contato com um mundo ingênuo como o da sua infância desprovida (…). Fixando um campanário de igreja, tem um sorriso para aquela imagem benta e os seus olhos miúdos apertam como se estivessem a esquadrinhar uma proposição duvidosa.

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Clarice Lispector Onde estivestes de noite Foto Flora Pimentel

Por que não tentar, neste

momento, que não é grave, olhar pela janela? Esta é a ponte. Este o rio. Eis a penitenciária. Eis o relógio. E Recife. Eis o canal. Onde está a pedra que sinto? A pedra que esmagou a cidade. Na forma palpável das coisas. Pois esta é uma cidade realizada. Seu último terremoto se perde em datas. Estendo a mão e sem tristeza contorno de longe a pedra. Alguma coisa ainda escapa da rosa dos ventos. Alguma coisa se endureceu na seta de aço que indica o rumo de – outra cidade.

Este momento não é grave. Aproveito e olho pela janela. Eis uma capa. Apalpo tuas escadas, as que subi em Recife. Depois a pilastra curta. Estou vendo tudo extraordinariamente bem. Nada me foge. A cidade traçada. Com sua engenhosidade. Pedreiros, carpinteiros, engenheiros, santeiros, artesãos – estes contaram com a morte. Estou vendo cada vez mais claro: esta é a casa, a minha, a ponte, o rio, a penitenciária, os blocos quadrados de edifícios, a escadaria deserta de mim, a pedra.

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