Revista Continente - Especial Fliporto 2013

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Ministério da Cultura apresenta:

IX Festa Literária Internacional de Pernambuco Homenageado: José Lins do Rego

ESPECIAL 2013

14 a 17 de Novembro Praça do Carmo - Olinda

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O COMPLEXO DIÁLOGO ENTRE TRADIÇÃO E MODERNIDADE UM ESCRITOR EM BUSCA DE REVISÃO CRÍTICA

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JOSÉ LINS DO REGO TENSÃO ENTRE DOIS MUNDOS

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O PERNAMBUCO “TATUOU” AS SUAS MELHORES CRÔNICAS

DOCUMENTAIS Desencontros, lembranças e testemunhos Talles Colatino • Xico Sá • Micheliny Verunschk • Thiago Soares Raimundo Carrero • Flávia de Gusmão • Ronaldo Correia de Brito Samarone Lima • Carol Almeida • Fabiana Moraes • Carolina Leão Bernardo Brayner • Rogério Pereira • Julián Fuks • José Castello Bruno Albertim • Carlos Henrique Schroeder • Paulo Sérgio Scarpa Ivana Arruda Leite • Adelaide Ivánova • Miguel Sanches Neto Luís Henrique Pellanda • Cristhiano Aguiar • Ricardo Lísias Ricardo Domeneck • Fabrício Carpinejar • Cecilia Giannetti Marcelino Freire • Anco Márcio Tenório Vieira • Joca Reiners Terron

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REPRODUÇÃO

ESPECIAL 2013

aos leitores Esta edição especial da revista Continente está totalmente dedicada à figura do escritor paraibano José Lins do Rego (1901-1957), em sintonia com a merecida homenagem que a Festa Literária Internacional de Pernambuco – Fliporto promove em 2013. Autor de romances como Menino de engenho e Fogo morto, consagrados pelo público e pela crítica, Zé Lins, por outro lado, ficou marcado também por sua vinculação com os valores do regionalismo (cuja figura de proa foi seu amigo e “tutor” Gilberto Freyre), que se opôs diretamente a certas bandeiras lançadas pelos modernistas de 1922. No “meio do redemoinho” dessa batalha estética e ideológica, as obras do paraibano muitas vezes foram analisadas e taxadas a partir dos parâmetros oriundos da animosidade despertada por essa querela, e não por suas qualidades (ou deficiências). O escritor merece, portanto, uma apreciação renovada – mais serena e menos preconceituosa – do conjunto de sua obra. O artigo que abre a revista, por exemplo, escrito pelo professor Anco Márcio Tenório Vieira, parte da problematização das tensões entre o velho e o novo, a tradição e a renovação,

o modernismo e o regionalismo, na obra de José Lins, e ainda mostra que, sem abdicar de uma narrativa formalmente “clássica”, o escritor foi capaz de renovar o uso da linguagem, incorporando ao estilo culto a oralidade da cultura popular nordestina. No texto do crítico Cristiano Ramos, de teor mais combativo, encontramos uma espécie de manifesto contra os lugares-comuns a respeito do escritor, os quais teriam sido estabelecidos por uma tradição acadêmica engessada e por críticos simpáticos às causas do modernismo de 22. As incursões do autor de Pedra Bonita por outros gêneros, como a crônica e a crítica literária, foram analisadas pelo escritor paraibano Cristhiano Aguiar. Além dessas abordagens, o leitor da Continente encontrará, na interessante perspectiva desenvolvida pelo escritor e professor José Luiz Passos, um paradoxo (ou complexidade?) na postura política do autor de Fogo morto. Textos do memorialista Edson Nery da Fonseca, que conheceu pessoalmente José Lins, e do falecido crítico literário Luiz Carlos Monteiro, publicados em número anterior da revista, são reproduzidos aqui pelo valor e relevância de suas visões.

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sumário Tradição, região e modernidade

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Revisão crítica

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Cronista e crítico

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Ficção e memória

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Literatura e política

Cristiano Ramos Os lugares-comuns sobre o escritor que circulam como verdades dogmáticas

Anco Márcio Tenório Vieira

Ao entrelaçar presente e passado, o autor paraibano acabou revelando todo um universo social, cultural e existencial

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Luiz Carlos Monteiro A utilização da memória e a reconstrução do tempo vivido através da ficção

Recifensização

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Cristhiano Aguiar Além de prosador ficcional, o escritor participou dos debates do seu tempo

José Luiz Passos A literatura para além das dicotomias políticas e ideológicas

Edson Nery da Fonseca A relação de José Lins com Gilberto Freyre e com Pernambuco

EDIÇÃO ESPECIAL Eduardo Cesar Maia ILUSTRAÇÃO DE CAPA Moura

COLABORADORES Anco Márcio Tenório Vieira é professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE. Cristiano Ramos é professor e crítico literário. Cristhiano Aguiar é escritor. Edson Nery da Fonseca é escritor e biblioteconomista. Eduardo Cesar Maia é jornalista e professor. José Luiz Passos é professor titular de literatura brasileira na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, e autor dos romances Nosso grão mais fino (2009) e O sonâmbulo amador (2012). Luiz Carlos Monteiro foi poeta e crítico literário .

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ZENIVAL

CON TI NEN TE

ESPECIAL

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TRADIÇÃO, REGIÃO E MODERNIDADE NA OBRA DE

JOSÉ LINS DO REGO TEXTO Anco Márcio Tenório Vieira

José Lins do Rego (1901-1957) integra uma geração de escritores e de intelectuais brasileiros que, entre os anos de 1920 e 1930, foi responsável não apenas por mudar a sensibilidade estética e as regras do “bom gosto”, do “belo” e do “bem escrever” predominantes até então, mas também por alargar a compreensão e o entendimento que os brasileiros tinham do seu próprio país. Essa empreitada intelectual, que podemos observar nos vários movimentos de vanguarda daquelas duas décadas, teve no Modernismo de 1922 e no Regionalismo de 1926 as suas reflexões mais verticalizantes e os seus frutos mais duradouros. Se a Semana de Arte Moderna buscava construir uma nova sensibilidade no campo artístico, o Congresso Regionalista encerrava uma reflexão que ia além do cultural e do estético, agregando ao seu projeto historiadores, antropólogos, sociólogos, economistas, urbanistas, médicos higienistas, folcloristas e políticos. No entanto, os dois movimentos encerravam algumas

intersecções. Uma delas, é que eles não romperam com o nosso modo romântico de pensar o país, em perseguir uma explicação sobre o que somos, como nos constituímos e qual o nosso papel no mundo e na construção do seu futuro. Esse modo romântico, que firma a pauta das manifestações artísticas do Brasil desde as primeiras décadas após a nossa independência política, em 1822, vem revestindo todos os nossos principais movimentos artísticos e literários, movidos que são por encontrar e delinear o que nos caracteriza ou nos particulariza enquanto brasileiros. No entanto, se o Modernismo e o Regionalismo encerravam um modo romântico de pensar o país, esse modo romântico se dilatava em projetos, perspectiva e horizontes distintos, particularmente no que diz respeito ao debuxar do nosso caráter. Autores como Graciliano Ramos, Jorge de Lima, Raquel de Queiroz, Jorge Amado, Érico Veríssimo, José Américo de Almeida, Adonias Filho... não irão tomar o Brasil como uma realidade

sociocultural inconsútil, e, sim, como uma realidade que se caracteriza pela diversidade regional. Os vários brasis e o conjunto dos seus problemas e das suas realidades sociais, políticas, econômicas e culturais são as matériasprimas desses escritores. Por ter como mentor um sociólogo-antropólogo — Gilberto Freyre — e não um artista ou um literato, o Regionalismo de 26 buscou construir um projeto civilizatório que pensasse as realidades socioculturais brasileiras em todos os seus aspectos. Tomando a ideia de cultura antes como signos que se interpenetram permanentemente do que como valores que não transigem ou que guardem essências incontestáveis, os escritores da chamada “Geração de 30” demonstram, por meio de suas obras, que não há uma “Alma”, um ”Caráter” ou uma “Identidade” que nos defina, o que existe, sim, são “Almas”, “Caracteres” e “Identidades”. Não somos uma nação inconsútil, mas uma grande colcha urdida por retalhos de experiências humanas. Se há uma unidade de valores que chamamos

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CON ESPECIAL TI NEN TE IMAGENS: REPRODUÇÃO

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ENGENHO DO CORREDOR

Casa em que nasceu o escritor, localizada no município de Pilar, na Paraíba; abaixo, José Lins ainda criança junto a familiares

A RENOVAÇÃO DA LINGUAGEM

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de realidade sociocultural brasileira (o que os regionalistas irão chamar de Tradição), essa unidade se fundamenta em cima da diversidade (Região). Logo, não há um macunaíma que nos traduza como um povo dotado ou não de Caráter, de uma Alma, mas, sim, uma dialética entre alguns valores que nos são comuns (como a miscigenação de raças, a língua portuguesa, a religiosidade de base cristã, as raízes musicais, as bases alimentares etc.) e o modo como esses mesmos valores tomaram feições diversas nas várias regiões do Brasil (Região). É essa permanente dialética entre unidade e diversidade que, segundo Gilberto Freyre, impedia e vinha impedindo que o Brasil se constituísse em uma

cultura “uniforme”, “indistinta” e amorfa. Assim, é a partir desses valores encerrados na Região e na Tradição que os brasileiros, segundo Freyre, deveriam ler a modernidade americana ou europeia e escolher as ideias e sugestões que melhor contribuíssem para a construção de um Brasil moderno. No Regionalismo, os conceitos de Tradição, Região e Modernidade se interpenetram, pois um não convive sem os demais: transigem, medem-se, e permitem estabelecer, através da conciliação entre o regional e o humano, a tradição e a experimentação, “o gosto”, segundo Freyre, “pela renovação do método literário, científico ou artístico com a simpatia humana pelo assunto regional e pelo público brasileiro”.

Deixando à margem das suas preocupações os experimentalismos dos romances-invenção dos modernistas de 22, os regionalistas vão se valer, em suas poéticas, de uma narrativa “clássica”, em que predomina a linearidade (obras com início, meio e fim) e as ações interligadas visam construir uma sequência de acontecimentos. Mas apesar desses caminhos diversos — a prosa experimental em contraposição à prosa discursiva —, tanto o Modernismo quanto o Regionalismo convergem ao mesmo ponto, quando este ponto é a reoxigenação da língua portuguesa. Com essa geração, saí a sintaxe lusitana, o texto retórico, bacharelesco, cheio de ouropéis e entra o que Gilberto Freyre definiu como uma “(...) linguagem franca, por vezes crua, por vezes, nada convencionalmente erudita de tão cheia de primitivismo, de plebeísmo, de infantilismos, de intimismos”. No caso específico de José Lins do Rego (e esse fenômeno acometeu quase todos os prosadores e poetas dessa geração), é instigante observar como ele fez a transição entre o cronista que, ao longo dos anos 1920, escreveu nos jornais e revistas de Pernambuco, Paraíba e Alagoas, e o prosador ficcional, que irá compor, a partir de 1932, um conjunto de obras que termina por se constituir em um dos mais incitantes romances de formação da língua portuguesa: o chamado “ciclo da canade-açúcar” — Menino de engenho (1932), Doidinho (1933), Banguê (1934), O moleque Ricardo (1935), Usina (1936) e Fogo morto (1943). Acompanhando a trajetória intelectual de José Lins ao longo dos anos 1920, vemos que o cronista retórico que escrevia no Diario do Estado (Paraíba) — “As crianças, flores perfumosas do jardim da vida, sorriso doce, casto e encantador que muitas vezes nos estorvos da existência acalenta e pacifica milhares de desesperos e acerba dores, farpas sagradas de reminiscências purificadas, (...)” —, em nada lembra o autor que, treze anos depois, inicia o ciclo da cana-de-açúcar com esta narrativa: “Eu tinha uns quatro anos no

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

3-4 PONTO EM COMUM Os modernistas de 22 (ao lado) e os regionalistas convergiam ao menos em uma pauta: a reoxigenação da língua portuguesa

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dia em que minha mãe morreu. Dormia no meu quarto, quando pela manhã me acordei com um enorme barulho na casa toda. O quarto de dormir de meu pai estava cheio de pessoas que eu não conhecia. Corri para lá, e vi minha mãe estendida no chão e meu pai caído em cima dela como um louco”. Como se dá essa passagem, na qual a sintaxe do romancista não se reconhece mais na do cronista? Segundo o próprio José Lins, ela se dá no ano de 1923, quando conheceu Gilberto Freyre. Segundo ainda as suas palavras, registradas em crônica (1941) e republicada no seu livro Gordos e magros (1942), despois que conhecera Freyre, a sua vida foi outra, “[...] foram outras as minhas preocupações, outros os meus planos, as minhas leituras, os meus entusiasmos... Por esse tempo era eu um jornalista de oposição, exaltado pelo panfleto político... Para mim teve início naquela tarde de nosso encontro a minha existência literária”. Em ensaio intitulado Recordando José Lins do Rego (1962), Freyre rememora esse encontro, a amizade que dela nascera e os seus frutos intelectuais: “Completamo-nos na influência que, juntos, exercemos sobre escritores, artistas, homens de estudo e até homens de ação, tanto mais velhos como mais novos do que qualquer de nós, da nossa região e do nosso país. Completamo-nos através das influências que eu recebi dele e das que ele recebeu de mim”. Afora o fato de Freyre ter apresentado a José Lins uma infinidade de novos autores da literatura moderna,

“Completamonos através das influências que eu recebi dele e das que ele recebeu de mim” Gilberto Freyre foi na reeducação do seu olhar em relação ao mundo que o cercava e no seu modo de escrever que as suas influências se revelam de forma mais explícita. Perseguindo antes uma língua da rua do que do livro, Freyre, em seus textos, une a plasticidade do falar cotidiano com a norma culta. Esse mesmo procedimento vai ser tentado por José Lins. Segundo Freyre, como o intuito inicial do escritor paraibano era se tornar um ensaísta (e, de fato, ele escreveu alguns ensaios nessa década que depois teve as suas publicações abortadas), ele buscou “um domínio sobre a língua portuguesa do Brasil que representasse, como preferência por um estilo com alguma coisa de oral e folclórico, outra tradição de pouco relevo em nossas letras”. Para dominar essa língua mais plástica, mais coloquial e menos retórica, ele vai mergulhar na “tradição de Gil Vicente, Fernão Lopes, Fernão Mendes Pinto, Garrett, Antônio Nobre, ainda mais que a de Frei Luís de Sousa, Vieira, Eça, Oliveira Martins”. E aqui se dá um fato interessante. Ao tentar se preparar para exercer a atividade de ensaísta, buscando o equilíbrio entre a

Tradição da prosa erudita e a da língua oral dos prosadores da sua Região, José Lins termina por encontrar a régua e o compasso das ferramentas linguísticas que o habilitam não só a ser um dos grandes cronistas da sua geração (ele escreveu centenas de crônicas e ensaios ao longo de toda a sua vida, publicados em jornais e revistas de todo o Brasil, além de mais de uma dezena de livros que reuniram esse vasto material), como também a iniciar a composição da sua prosa ficcional. Mas se é na Tradição, isto é, nas crônicas, nos dramas e na literatura de língua portuguesa que José Lins vai buscar a “linguagem franca” que possa traduzir o seu universo ficcional; se é munido da língua oral dos prosadores da sua Região que ele vai depurar a língua de “Gil Vicente, Fernão Lopes, Fernão Mendes Pinto, Garrett, Antônio Nobre” e subtrair dela tudo que seja arcaísmo medieval, retórica romântica e ultrarromântica; é por meio da psicanálise, da sociologia, da antropologia cultural e do romance moderno (Marcel Proust, James Joyce, D. H. Lawrence, H. L. Mencken, Joseph Conrad...) que ele vai construir psicologicamente os seus personagens; perceber a distinção entre raça e cultura, e a importância da realidade material para a construção de um imaginário social e cultural; e, principalmente, dominar os procedimentos formais e técnicos do romance moderno. Diverso dos prosadores realistas e naturalistas da segunda metade do século 19 e princípio do século 20, não

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CON ESPECIAL TI NEN TE IMAGENS: REPRODUÇÃO

encontramos nos seus romances, muito menos em suas crônicas e ensaios, a busca por tentar naturalizar as relações entre a palavra (signo) e as coisas que ela nomeia. Pelo contrário. No autor paraibano, a busca por traduzir a realidade em linguagem artística passa sempre por uma permeação: seja da própria memória do narrador ou dos relatos e registros históricos que ele ouvira da boca de outrem, seja pela sua interiorização psicológica. Lembro aqui, como exemplo, o parágrafo inicial do seu livro de memórias, Meus verdes anos (1956). Cito: “Tanto me contaram a história, que ela se transformou na minha primeira recordação da infância. Revejo ainda hoje a minha mãe deitada na cama branca, a sua fisionomia de olhos compridos, o quarto cheio de gente e uma voz sumida que dizia: — Maria, deixa ele engatinhar para eu ver”. Note que, apesar de ser sujeito da história narrada, a recordação aqui evocada por José Lins só se tornou parte das suas memórias porque ele acatou como sua as lembranças alheias. Assim, entre o relato da “primeira recordação da infância” e os fatos que o geraram, só resta a linguagem e a busca por dirimir as tensões geradas entre o fato em si (a mãe no leito de morte), a recordação daqueles que o vivenciaram (os testemunhantes), a memória de quem os ouviu e os tomou como seu (José Lins) e, por fim, a sua fixação em letra de forma.

TENSÃO ENTRE MUNDOS

Essa mesma consciência da linguagem, do ruído entre o que se narra e aquilo que é narrado, irá pautar as suas obras ficcionais: sejam as que formam o ciclo da cana-de-açúcar, sejam os seus demais romances: Pureza (1937), Pedra Bonita (1938), Riacho doce (1939), Águamãe (1941), Eurídice (1947) e Cangaceiros (1953). No caso do ciclo da cana-deaçúcar, temos os livros escritos na primeira pessoa, tendo o personagem Carlos Melo como narrador, e na terceira pessoa (O moleque Ricardo, Usina e Fogo morto). No entanto, em todos esses romances nos deparamos com uma tensão entre a interioridade do personagem e a exterioridade do mundo. No caso, entre o modo como as pessoas veem o personagem e o modo como ele se vê; entre o que ele deseja ser e o que ele é; entre o que ele é e como ele

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A consciência da linguagem, do ruído entre o que se narra e aquilo que é narrado, irá pautar as suas obras ficcionais

socialmente se apresenta. No caso das narrativas protagonizadas por Carlos Melo, a palavra se plasma entre o que pode ser dito e o que é indizível. Ao interiorizar valores morais e éticos que, aparentemente, não lhe dizem mais respeito, Carlos Melo se vê tomado por uma paralisia que o impede de agir. Quais valores acatar e promover: os da velha sociedade patriarcal ou os do mundo do capital e do pragmatismo que se firma a cada dia? Essa mesma tensão entre mundos desarmônicos, encontramos também em O moleque Ricardo e em Fogo morto. No primeiro, o descompasso se dá entre os valores rurais encerrados pelo personagem Ricardo e aqueles valores morais e éticos que ele vai encontrar na cidade grande, entre a lembrança de um engenho idílico e um Recife convulsionado por questões sociais. No segundo romance, temos três personagens trágicos vivendo em

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uma terra que não os reconhece mais. O Mestre José Amaro, desterrado do seu universo, expulso do engenho onde vivia, torna-se aos olhos da comunidade, tal como um personagem kafkiano, em um lobisomem que corre “de noite como bicho danado”. Na outra ponta, temos seu senhorio, Lula de Holanda Chacon, que assim como o seu agregado, é um desterrado, não da terra, mas do seu tempo. Tal como o Mestre José Amaro, Seu Lula possui uma filha solteira, vitimada por crises histéricas. Se o sapateiro sofre o estigma de ser lobisomem, Seu Lula carrega a pecha da epilepsia. Entre um e outro, o Dom Quijote gordo, o Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, o Papa-Rabo, acreditando que sozinho pode lutar e vencer todos os moinhos de vento. Um lobisomem, um epiléptico e um lunático: eis os remanescentes de um mundo que, assim como os engenhos, também vai ficando de fogo morto. Por meio dessa tensão, José Lins entrelaça os tempos presente e passado, e revela todo um universo social, cultural e existencial em que o velho — representado pelo mundo dos engenhos de cana — ainda não se esvaiu de todo, e o novo — simbolizado pela Usina e as novas relações de classe por ela estabelecidas — ainda não se firmou. É disso que fala o ciclo da cana-de-açúcar.

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5-7 PROSA DE 30 Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz e Jorge Amado foram companheiros de geração

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Os engenhos estão em crise, mas toda a cultura que os constituiu continua presente no dia a dia das pessoas: a subserviência dos mais humildes, o mandonismo dos patrões, o ranço aristocrático, a ausência de cidadania e de direitos do homem do campo, o medo do desconhecido, as crenças religiosas. Carlos Melo, Ricardo, Mestre Amaro, Seu Lula, Capitão Vitorino são, aqui, exemplos por excelência do “herói romanesco”: aquele que está em permanente crise com o seu meio e consigo mesmo. Crise que se manifesta por sua completa incapacidade de lidar com os dois mundos (o novo e o velho) que são colocados perante si. E diante de tal incapacidade no agir, resta-lhe, no caso de Carlos Melo, apenas, como consolação, narrar o mundo que ele viu e o mundo que ele conhece pelas memórias dos outros. Ao narrar, ele busca entender a si mesmo e aos outros, o seu mundo interior e o mundo que o cercava, o passado que o prendia a um tempo que aparentemente já não era o seu e o presente que lhe imobilizava. Na sua narrativa, tempos e espaços se entrecruzam, e entre um e outro restam apenas as suas memórias e as palavras que tentam narrar o dizível e o indizível. A nostalgia do narrador sobre o universo social, cultural e econômico vivido por ele, é a única panaceia que lhe resta

Sem abrir mão de uma narrativa “clássica”, ele constrói um universo ficcional que plasma os limites da linguagem e da alma humana diante de uma terra que sempre lhe pareceu hostil. Mas o mundo retratado por José Lins não se restringe apenas ao seu universo afetivo da zona da mata paraibana. Eurídice é ambientado no Rio de Janeiro; Água-mãe, em Araruama; Pureza, em um pequeno lugarejo à margem da Great Western; Riacho doce na Suécia e em Alagoas. No entanto, é narrando a hisstória dos que não têm história — no caso, os sertanejos pobres — que José Lins vai falar não só do fenômeno do messianismo (Pedra Bonita) e do cangaço (Cangaceiros), mas vai, por meio do foco narrativo na terceira pessoa, explorar os traços de oralidade do sertanejo e narrar fatos que são narrados e interpretados pelos próprios personagens. Ao lermos os personagens contarem e recontarem os mesmos episódios, nós, leitores, não só nos deparamos com uma realidade que é passível de ser lida e interpretada por várias perspectivas,

mas que também parece estar aquém ou além da linguagem. Assim, segundo Sônia Lúcia Ramalho de Farias, é pelo recurso da oralidade e pela redundância, recursos que “modulam a composição poética dos folhetos de cordel e do cancioneiro do Nordeste”, que José Lins do Rego modula a própria escrita dos seus romances e, diríamos nós, dá voz aos que estão à margem da história. Explorando, nesses dois romances, “um domínio sobre a língua portuguesa do Brasil que representasse, como preferência por um estilo com alguma coisa de oral e folclórico, outra tradição de pouco relevo em nossas letras”, como lembrava Freyre, José Lins do Rego inscreve o sertão nordestino na literatura brasileira, apreendendo a voz e a sintaxe daqueles que são os seus mais legítimos porta-vozes: os cantadores de cordel. Neste ponto, o seu sertão se particulariza ante os sertões narrados por Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz e Jorge Amado. Mais: ele antecipa muitos dos experimentos literários e linguísticos que vamos encontrar nas obras de Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho. Ao entremear uma certa tradição narrativa em língua portuguesa (“Gil Vicente, Fernão Lopes, Fernão Mendes Pinto, Garrett, Antônio Nobre”) com a oralidade do cordel e dos prosadores da sua região, José Lins encontra a “linguagem franca” que traduz o seu universo ficcional. No entanto, Tradição e Região aqui dialogam com as técnicas do romance moderno e com os estudos que revelam o caráter arbitrário entre as palavras e as coisas. Se, como sabemos, a busca pelo nosso caráter, pela alma brasileira, resultou, não raras vezes, em manifestações artísticas que se transformaram em discurso político ou em epifenômeno da nacionalidade, em José Lins do Rego esse Caráter e essa Alma se traduziram em obras que mergulham na alma humana, expõem os nossos conflitos de desterrados no aquém-mar e, principalmente, revelam a nem sempre pacífica interpenetração de culturas e de povos que marca o nosso modo de estar no mundo.

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CON ESPECIAL TI NEN TE

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REVISÃO A condenação sem embargos

Com 2013 para terminar, não é

Muitas vezes subestimada, a obra de José Lins do Rego merece uma cuidadosa releitura crítica, que ultrapasse os lugares-comuns que circulam como verdades TEXTO Cristiano Ramos

prematuro concluir: crítica literária, pesquisadores e mídia perderam outra chance de fazer justiça a José Lins do Rego. Alguma movimentação (por conta dos 70 anos de Fogo morto) não conseguiu mais do que ratificar julgamentos estapafúrdios. Qualquer revisão séria de nossas historiografia e crítica literárias terão que forçosamente passar por Zé Lins – não para devolvê-lo às prestigiosas alturas alcançadas nas décadas de 1930 e 1940 (pois também seria um despropósito), mas para tirálo do lugar de bode expiatório dos mais surrados de nossos palanques intelectuais e fábricas de lugarescomuns acadêmicos.

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O leitor talvez nem saiba dessas polêmicas. Se jamais se preocupou com a fortuna crítica do autor do ciclo da cana-de-açúcar, nem teve professor que lhe empurrasse os clichês pregados nos manuais, provavelmente desconhece a tendência depreciativa em torno do romancista paraibano. Necessário explicar que, não muito depois das publicações, seus livros foram considerados exercícios memorialísticos menores, desprovidos de imaginação e qualidade formal. Desse tronco problemático, outras acusações mais sérias foram surgindo, galhos que chegaram a defender que José Lins do Rego “nem escritor é”!

LÓGICA MANIQUEÍSTA

O próprio regionalismo é tema que merece novos estudos, requer investigações que não desconsiderem pesquisas anteriores, mas também não sigam constrangidas por lentes anacrônicas, nem oprimidas pela força das “vozes oficiais” de nossos compêndios literários. Boa parte das interpretações surgidas no século 20 sobre a cultura brasileira se baseou em dicotomias: campo x cidade, conservadorismo x progresso, tradição x ruptura etc. E, talvez, nenhum outro embate represente tanto essa lógica maniqueísta quanto as disputas políticas e intelectuais entre os modernistas de 1922 e os signatários do Manifesto Regionalista (1926), liderados pelo pernambucano Gilberto Freyre. Apesar dos exageros que realmente cobriam de passadismo muitas das ideias regionalistas, alguns dos pressupostos nos chegaram bastante atuais, como o princípio de “ser da sua casa para ser intensamente da humanidade”; ou seja, que a universalidade não implica apagamento das raízes culturais locais, muito pelo contrário. O tempo deveria ter sedimentado o raciocínio dialético segundo o qual tanto o movimento de 22 quanto os regionalistas colaboraram na construção de nossa modernidade. Ao invés disso, maioria insiste na retórica simplista, perpetuando um vale-tudo que mais atrapalha do que esclarece. José Lins do Rego foi amigo íntimo de Gilberto Freyre, foi também aquele que comprou de forma mais

convicta as brigas sugeridas pelo sociólogo, bem como o escritor que mais incorporou os pressupostos estéticos regionalistas à sua ficção. Daí a condição de imã, para onde eram atraídos os ataques mais radicais, as análises mais equivocadas, os vereditos menos pensados. Wilson Martins, por exemplo, compartilhando a ideia de que o narrador de Menino de engenho era limitado pelo memorialismo, foi capaz da estranhíssima frase: “É difícil distinguir, na sua obra, a parte da memória e a parte da imaginação – mas, em caso de dúvida, poderemos decidir sem erro pela primeira contra a segunda”. Ora, se o romancista era tão pouco imaginativo, como poderia ser difícil distinguir o que é dado pela memória do que é criação ficcional? Curioso notar que, nas últimas décadas, tornou-se quase consenso o estatuto ficcional de qualquer rememoração, que toda tentativa de

Qualquer revisão séria de nossas historiografia e crítica literárias terão que forçosamente passar por Zé Lins relembrar é também ato de recriar, que o real é sempre refigurado. Não raro, até os discursos históricos e jornalísticos são colocados em xeque, por se proporem relatos verdadeiros. Então, como poderiam ser tão pobres de imaginação os romances de Zé Lins? Como tais estudiosos chegaram à sua condenação como “não literário?” Difícil saber, pois mesmo nomes como Nelson Werneck Sodré, Massaud Moisés e Wilson Martins dispensaram citações, acreditaram que suas hipóteses eram tão óbvias, que não precisam de comprovação.

AS CONTRADIÇÕES DA CRÍTICA

O elenco das supostas “fragilidades” de Zé Lins é grave: falta de inventividade e de integração entre o meio físico e os traços humanos, personagens pouco trabalhados, lirismo exacerbado, mau gosto, ausência de tensões etc. Esta última é sintomática, expõe como

quase todas as apreciações sucumbem à pressão dos clichês, deslizam em armadilhas primárias. Vários desses mesmos comentadores também citam: convivência entre elementos nostálgicos e melancólicos, elegíacos e amargurados, a busca de recuperação do passado e o ratificado sentimento de perda, o exercício de reconstrução memorialística e a narração da desintegração de uma sociedade, decadência no plano do conteúdo e linguagem amena no plano formal... Em outras palavras, citam relações de tensão, de diversos tipos. Caso seja necessário mais algum elemento tensivo, citemos José Maurício Gomes de Almeida (A tradição regionalista no romance brasileiro), que destaca a ambiguidade entre o eu criança (objeto da narrativa) e o eu adulto (narrador que refaz seu passado), e exemplifica com trecho de Menino de engenho: “As reclusões forçadas, a que submetiam o menino que precisava de ar e de sol, iam perdendo mais a minha alma do que salvando o meu corpo”. O breve espaço desta matéria é insuficiente para listar todas as incoerências dessas exegeses. Acrescente-se, porém, registro de que muitos chamaram Zé Lins de um “mero contador de histórias” (como se alguém pudesse ser “meramente” um contador, como se houvesse aí nenhuma arte), e que lhe impingiram a imagem de escritor menor, capaz de uma única obra-prima: Fogo-Morto – como se fosse demérito um romancista evoluir lentamente até chegar a um grande livro (quantos chegam?), como se não fosse ridículo acusar de artista medíocre o autor de “uma só” obra genial. Entre os admiradores que não sabem retrucar as acusações, e os críticos e pesquisadores que reverberam quase mecanicamente tais juízos sobre Zé Lins, fato é que a discussão termina numa pobreza assustadora. Faltam cuidados básicos na elaboração das pautas e na curadoria dos eventos, rigor na elaboração e desenvolvimento das pesquisas, respeito nas atitudes, e, sobretudo, consciência de que tratar José Lins do Rego, com justiça, é mais do que correção pontual, é a mesma chave que pode abrir outros tantos cômodos desse tão malcompreendido edifício: a literatura brasileira.

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MEMORIALISMO O eterno retorno

José Lins do Rego aprisionou o tempo vivido na construção de seu universo ficcional, marcado pelas referências ao mundo rural onde nasceu TEXTO Luiz Carlos Monteiro

O desempenho ficcional de José Lins do Rego aparece com frequência associado ao regionalismo nordestino e aos efeitos decorrentes da utilização da memória no romance. A sua performance literária inicial, na década de 1920, se ensejava timidamente no âmbito da crônica, do conto e nas tentativas de investir na crítica literária. A prosa de ficção somente tomaria impulso a partir de 1930, com ele marcando presença ao lado de autores como Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz e Jorge Amado, já bastante desgarrados da tradição naturalista. No período que vai desde a estreia, com Menino de engenho (1932), a Fogo morto (1943), saíram, ano a ano, exatamente 10 romances, além de, coincidindo com Usina (1936), Histórias da velha Totônia, um livro destinado ao público infantil e adolescente. Nessa produção romanceada, encontra-se a faceta mais importante e reveladora de sua obra, que

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PARCERIA

O editor José Olympio publicou a maior parte da obra de José Lins

pouco se afastará das raízes paraibanas que a estigmatizaram. E isso se fará visível mesmo com ele vivendo fora do seu estado a partir de 1915, morando em cidades como o Recife, Maceió e o Rio de Janeiro, de algum modo seduzido pelos apelos da vida urbana, sem contudo perder totalmente os referenciais do mundo rural em que nasceu. O romance de cunho intimista Pureza (1937), embora ambientado na zona rural, destoa da prosa praticada até então por José Lins, com os romances Menino de engenho, Doidinho, Banguê, O moleque Ricardo e Usina, do ciclo da cana-deaçúcar. Numa passagem definidora de Pureza, o personagem central, Lourenço, aconselhado por um médico a procurar uma estação de repouso, revigora-se de sua doença na explosão do amor físico. Antes da realização carnal do desejo, mostra-se sensualmente sugestiva a narração de uma sessão inesperada de voyeurismo. Lourenço, do alto da janela do seu quarto, no chalé onde se recupera, presencia, sem laivos de malícia ou obscenidade, o banho descuidado de Margarida no rio fronteiriço: “Vi então Margarida se pondo nua, se espreguiçando com medo da água fria. O corpo dela às minhas vistas. Um arrepio passou-me pelas costas. Uma sensação de alegria estranha, uma vontade de viver imensa. (...) O corpo de Margarida nas águas do Rio Pureza”. As temáticas da cana-deaçúcar, do cangaço e do misticismo sertanejo sofrerão outras tentativas de deslocamento ambiental e social, tipológico ou psicológico, com maior ou menor sucesso em Riacho doce (1939), Água-mãe (1941) e Eurídice (1947). Em Homens, seres e coisas (1952), uma espécie de diário crítico, José Lins deixa entrever suas preferências literárias (com predominância de autores franceses, como era comum à época), explicita sua filiação à crítica impressionista, debate a política literária do momento e escreve sobre amigos próximos ou ausentes, personagens que marcaram seus livros e situações banais ou curiosas do cotidiano. Ao tempo do lançamento de Eurídice, em 1947, testemunha sobre a sua própria condição de autor: “Publico amanhã o

meu décimo primeiro romance e volto hoje a me lembrar do primeiro que publiquei, em 1932, da tentativa do rapaz provinciano, em editora desconhecida, desprotegido, a custear a edição de sua novela, e sôfrego, na província, à espera da crítica dos grandes da metrópole”.

O FIO DA MEMÓRIA

Mais à frente, no mesmo texto recortado e sem título, não esconde o sucesso de crítica e desvenda também suas inclinações proustianas, aplicadas ao Nordeste longínquo: “A sorte dera ao novelista estreante uma crítica animadora. E escreve ele outro romance em 1933. O fio de suas memórias começa a correr como um regato que viesse das cabeceiras de sua vida. Todo o sonho de sua infância e o mundo de sua gente entram na composição do seu processo de contar. E o que era apenas a vontade de um livro único, cresce no desejo do levantamento de

José Lins era dono de uma oralidade irrefreável, aliada a uma forte e instintiva ligação telúrica e humana todo um universo. O tempo perdido caiu nas armadilhas do caçador”. Sem participar do rigor obsessivo de um Graciliano Ramos, por exemplo, não se pode dizer de José Lins, apesar das imposições editoriais a que sempre buscou atender, que tenha se descuidado do estilo e da poética na construção de seus romances. Dentro da sua oralidade irrefreável, aliada a uma forte e instintiva ligação telúrica e humana, empregou o melhor do seu esforço na consecução das obras que o tornaram popular e o consagraram junto à crítica. E nisso, no saber traduzir os anseios populares, na grande fidelidade que manteve em relação a si mesmo, na coerência de propósitos que sempre o animaram e deram impulso ao artista vigoroso de sua gente que foi e continua sendo, talvez resida o segredo de sua trajetória de ficcionista bem-sucedido, no Brasil e em outros países.

CRONOLOGIA E OBRAS 1901 – 3 de junho. Nascimento de José Lins do Rego, no Engenho Corredor, em Pilar, estado da Paraíba. Filho de João do Rego Cavalcanti e Amélia do Rego Cavalcanti. 1911 – Estudos numa escola de Itabaiana. 1912 – Estudos no Colégio Pio X, em João Pessoa, Paraíba. 1920 – Ingressa na Faculdade de Direito do Recife. 1923 – Bacharel em Direito. 1924 – Casa-se com Filomena Massa (Naná). Desse casamento, nasceram três filhas: Maria Elizabeth, Maria da Glória e Maria Cristina. 1925 – Nomeado promotor público, em Manhuaçu, Minas Gerais. 1926 – Em Maceió, Alagoas, exerce a função de fiscal de bancos. 1932 – Prêmio de romance da Fundação Graça Aranha conferido ao romance Menino de engenho. 1935 – Mudança para o Rio de Janeiro, onde passa a exercer as funções de fiscal do imposto de consumo. 1941 – Prêmio Felipe d’Oliveira, conferido ao romance Água-mãe. 1947 – Prêmio Fábio Prado, conferido ao romance Eurídice. 1951 – Acompanha como presidente a Delegacia Brasileira de Futebol a Lima. 1956 – Membro da Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira nº 25, em substituição a Ataulfo de Paiva. 1957 – 12 de setembro. Morre José Lins do Rego. Romances • Menino de engenho. Rio de Janeiro, Andersen, 1932. • Doidinho. Rio de Janeiro, José Olympio, 1933. • Banguê. Rio de Janeiro, José Olympio, 1934. • O moleque Ricardo. Rio de Janeiro, José Olympio, 1935. • Usina. Rio de Janeiro, José Olympio, 1936. • Pureza. Rio de Janeiro, José Olympio, 1937. • Pedra Bonita. Rio de Janeiro, José Olympio, 1938. • Riacho doce. Rio de Janeiro, José Olympio, 1939. • Água-mãe. Rio de Janeiro, José Olympio, 1941. • Fogo morto. Rio de Janeiro, José Olympio, 1943. • Eurídice. Rio de Janeiro, José Olympio, 1947. • Cangaceiros. Rio de Janeiro, José Olympio, 1953.

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PERFIL Um homem como os outros

José Lins do Rego sofria como um pobre diabo pelo seu clube, foi péssimo aluno, agitador da Faculdade de Direito e se dizia soldado raso de Pernambuco TEXTO Edson Nery da Fonseca

Gilberto Freyre tratou exaustiva e magistralmente do assunto em epígrafe no ensaio Em torno da recifensização de José Lins do Rego, escrito para o número especial da revista Ciência & Trópico, dedicado aos 80 anos que o escritor paraibano não chegou a completar, pois morreu, como é sabido, em 1957, antes mesmo de seu 60º aniversário. Vou tentar a ousadia de abordá-lo sem citar aquele belo ensaio de quem mais contribuiu para a recifensização de José Lins do Rego. Dele e de todos nós porque, mesmo tendo nascido no Recife, somente com a pregação regionalista de Gilberto Freyre é que passamos a ter consciência de nossa recifensidade. Assim como Shakespeare, no abalizado conceito de Harold Bloom, inventou o humano, Gilberto Freyre inventou a recifensidade, a olindensidade, a pernambucanidade, a nordestinidade, a brasileiridade, a americanidade, a tropicalidade, a morenidade e muitas outras vivências psicohistóricas e socioculturais. Em papel timbrado da Livraria José Olympio Editora, José Lins do Rego escreveu, em dezembro de 1947, este autorretrato: “Tenho quarenta e seis anos, moreno, cabelos pretos, com meia

dúzia de fios brancos, um metro e 74 centímetros, casado, com três filhas e um genro, 86 quilos bem pesados, muita saúde e muito medo de morrer. Não gosto de trabalhar, não fumo, durmo com muitos sonos, e já escrevi 11 romances. Se chove, tenho saudades do sol, se faz calor, tenho saudades da chuva. Vou ao foot-ball, e sofro como um pobre diabo. Jogo tênis, pessimamente, e daria tudo para ver o meu clube campeão de tudo. Sou homem de paixões violentas. Temo os poderes de Deus, e fui devoto de Nossa Senhora da Conceição. Enfim, literato da cabeça aos pés, amigo dos meus amigos e capaz de tudo se me pisam nos calos. Perco então a cabeça e fico ridículo. Não sou mau pagador. Se tenho, pago, mas se não tenho não pago, e não perco o sono, por isso. Afinal de contas sou um homem como os outros. E Deus queira que assim continue”. Não falou, portanto, de sua recifensidade nem de sua paraibanidade e nordestinidade. Abstraiu a circunstância geográfica num autorretrato predominantemente psicológico, embora comece com dados etário-morfológicos e familiais. Ainda está para ser reconstituída em detalhes a vida de José Lins do Rego no Recife, como estudante dos

cursos chamados antigamente de preparatórios e aluno da Faculdade de Direito de 1919 a 1923. Ele não chegou, infelizmente, a completar suas memórias, iniciadas com o livro Meus verdes anos, publicado em 1956. Mas numa crônica de 1948 confessou que mal sabia onde ficavam as salas de aulas, embora participasse de todas as agitações da escola; que gritava pelos corredores, “cantando em voz alta e desafinada, árias de operetas da moda”; que “botava apelidos” e “se fizera de terror em arruaças de rua e boêmia”; que fora “aluno péssimo do Dr. Amazonas”; que, bacharel de 1923, “não entrou no quadro de formatura, porque consumiu em cerveja das ruas do Santo Amaro as verbas do avô”.

ALUNO “SIMPLÃO”

Na mesma crônica, escrita para ser lida em cerimônia que não houve, acrescentou José Lins do Rego da velha escola, que teve entre seus alunos poetas como Castro Alves, filósofos como Tobias Barreto e juristas como Clovis Beviláqua: “Aqui nada deixei que valesse nada. Fui criatura de triste figura em curso de generosas simplesmentes”. Recorde-se que simplesmente era o grau mais baixo de aprovação

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Confesso, entretanto, que não tenho mais paciência nem saúde para enfrentar a poeira dos arquivos. Em compensação, vou contar um episódio do qual talvez seja eu – desculpem a nota pessoal – a última testemunha viva. Em 17 de março de 1948, José Lins do Rego leu no Recife uma conferência sobre Augusto dos Anjos e o Engenho Pau d’Arco, incluída, em 1952, em seu opúsculo Homens, seres e coisas, publicado por Simeão Leal na coleção Os Cadernos de Cultura. A conferência fora agendada por Gilberto Freyre para ser lida na Faculdade de Direito, mas o Diretório Acadêmico não se interessou. Diante do impasse, o Departamento de Documentação e Cultura entrou em cena e promoveu-a no salão nobre do Círculo Católico. Eu mesmo a datilografei, indicando no fim do texto que as citações

“Vou ao foot-ball, e sofro como um pobre diabo (...) e daria tudo para ver o meu clube campeão de tudo” José Lins do Rego

nos exames ou concursos de antigamente, correspondendo às notas 4 ou 5 na escala de 1 a 10. Dizia-se, na gíria, “fulano foi aprovado com um simplão”. De modo que José Lins do Rego poderia ter dito de sua passagem pela Faculdade de Direito do Recife o que o Dr. Alfredo Freyre me disse uma vez daquela escola da qual foi catedrático de Economia Política. Irritado com a nota oficial do Diretório Acadêmico contra seu filho Gilberto, assim me falou o velho Freyre, que

era um homem sem papas na língua: “Esta Faculdade foi em minha vida semelhante a uma estaçãozinha de estrada-de-ferro onde o trem faz pequena parada e a gente salta para esticar as pernas, não bebe a água porque pode estar infectada, dá uma mijada e prossegue a viagem”. Seria interessante uma pesquisa em jornais recifenses dos quais José Lins do Rego foi colaborador nos anos 1920, tanto quanto na coleção do semanário Dom Casmurro, que ele fundou com Osório Borba.

se referiam à 12ª edição, de 1945, do livro Eu e outras poesias, ainda com o selo de uma editora que não existe mais: a Bedeschi. No mesmo dia, José Lins do Rego foi homenageado com um almoço, tendo sido saudado magistralmente por Odilon Nestor (cf. Palavras a José Lins do Rego, Diario de Pernambuco de 19 de março de 1948). Agradecendo a homenagem, o romancista fez um belo discurso do qual, por estar esquecido, reproduzo alguns trechos: “Meus amigos de Pernambuco. Vocês sempre foram as minhas maiores alegrias. Desde menino que o Recife foi para mim uma espécie de cidade de espanto. Aqui com dois anos levaram-me a um Pierreck, para satisfazer a minha primeira vaidade de literato. Botaram-me entre as mãos para que pudesse ficar quieto ao fotógrafo um pássaro de pano. E o menino

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dos cabelos de cachos, do orgulho da tia Maria, ficou-se em pose, mostrando assim que os fotógrafos não lhe fariam nunca medo”. O francês Louis Pierreck foi, talvez, o primeiro fotógrafo profissional do Recife. Numa fotografia pertencente à minha ex-aluna e amiga Eunice Coutinho Robalinho de Oliveira Cavalcanti está impressa a indicação de que a Casa Pierreck era “honrada com a preferência da alta sociedade pernambucana”, que os clichês das fotos eram numerados e conservados em arquivo e que ficava à Rua Rosa e Silva, nº 54. Mas ninguém se iluda pensando que era no Bairro dos Aflitos. Houve, durante a República, várias tentativas de mudar o nome da Rua da Imperatriz Teresa Cristina – que até 1859 se chamava Aterro da Boa Vista – para Floriano Peixoto e, depois, Rosa e Silva. Mas, como assinalou Vanildo Bezerra Cavalcanti,

“Sempre mantenho o Recife como a minha cidade-sede, o meu quartel-general, a minha região” José Lins do Rego essas trocas não vingaram (cf. Vanildo Bezerra Cavalcanti, O Recife do Corpo Santo, Recife: Conselho Municipal de Cultura, 1977, p. 255). Vê-se pela crônica de José Lins do Rego que Louis Pierreck era fotógrafo procurado por gente de todo o Nordeste; e que o episódio por ele evocado teve projeção proustiana sobre sua carreira de escritor, como reconhece neste outro trecho da mesma crônica: “Ali estava em germe a matériaprima para o José Lins do Rego das

entrevistas, dos romances, de todos os desfrutos da carreira. Infante do Exército do Pará, disse o nosso Jayme Ovalle. Não, soldado raso de Pernambuco, pronto ao seu serviço em qualquer dia e hora de minha vida. Posso eu estar onde estiver, sempre mantenho o Recife como a minha cidade sede, o meu quartelgeneral, a minha região onde o povo é o meu povo, onde os amigos são os meus melhores amigos. E que povo e que amigos como gemas de primeira ordem! Vocês aqui podem se esquecer de mim, eu é que não me esqueço de vocês. Os meus dias de mocidade ruidosa passei-os nas ruas desta cidade. Nela aprendi lições para o meu desempenho de homem de letras e de homem cívico” (Cf. José Lins do Rego, Infante do Exército do Pará, Diario de Pernambuco de 28 de março de 1948). As ruas, os bairros, os rios, os mangues, as chuvas torrenciais, os clubes populares – Toureiros, Vassourinhas, Pás-Douradas, Paz e Amor –, o frevo e o passo nos carnavais, os xangôs, a politicagem – toda a cidade do Recife aparece no quarto romance de José Lins do Rego, O moleque Ricardo, publicado em 1935. Obra considerada por Virginius da Gama e Melo como “o grande romance político do Recife, talvez o mais completo romance político da nossa língua” (cf. Virginius da Gama e Melo, O romance político do Recife, in José Lins do Rego, coletânea organizada por Eduardo F. Coutinho e Ângela Bezerra de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991 (Coleção Fortuna Crítica, 7), p. 285).

DESCRIÇÃO ANTOLÓGICA

O último capítulo desse romance é uma das páginas mais belas da literatura brasileira. Para Otto Maria Carpeaux é “a maior do romance brasileiro” (apud Virginius da Gama e Melo, p. 282). Ele fala, nesse capítulo, dos rapazes que, por terem tomado parte numa greve, ludibriados por falsos líderes socialistas, foram mandados para o presídio de Fernando de Noronha como criminosos comuns. Num terreiro do Fundão, o culto afrobrasileiro se transformara em protesto contra aquele degredo aplicado sem julgamento. E José Lins do Rego

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

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1 AMIGO E TUTOR Passeio de barco com Gilberto Freyre no Capibaribe 2 FARDÃO Com Manuel Bandeira, no dia da posse na Academia Brasileira de Letras 3 CAPA DA 2ª EDIÇÃO Primeiro romance do autor narrado em terceira pessoa

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descreve o protesto com a força de um coro de tragédia grega. Vale a pena reproduzi-lo: “Os cantos das negras, os passos das negras, no Fundão, tiniam no terreiro com os instrumentos roncando. Naquela noite o negro velho vestia as suas vestes sagradas sem saber o que ia fazer. Todos já estavam prontos para os ofícios, para as rezas familiares. Seu Lucas de lado tirava as rezas. Era o cantar mais triste que um homem podia tirar de sua garganta. Os negros respondiam no mesmo tom. E foi crescendo a mágoa e foi subindo a queixa para o céu estrelado do Fundão. O sapatear dos negros estremecia o chão, os instrumentos acompanhavam as queixas, os lamentos. E com pouco Seu Lucas começou a dizer o que queria, o que sentia. As palavras do ritual não eram aquelas que lhe queriam sair da boca. Deus estava no céu. Ogum no céu com S. Sebastião. Ele queria cantar outra coisa que não aquilo que ele cantava todas as noites. E os negros na dança iam ouvindo o que Pai Lucas dizia. O mestre

falava dos negros que iam pra Fernando. – Que fizeram eles? Que fizeram eles? – Ninguém sabe não. Que fizeram os negros que iam pra Fernando? A voz de Seu Lucas vibrava. Todo o seu corpo se estremecia. – Que fizeram eles que vão pra Fernando? E os negros respondiam, misturando a língua da reza deles com as perguntas do sacerdote, de braços estendidos para o céu. – Que fizeram eles? Ninguém sabe não. E o canto subia, subia com uma força desesperada. As negras sacudiam os braços para os lados como se sacudissem para fora do corpo. Os peitos, as carnes se movimentando numa impetuosidade alucinante. A terra do Fundão estremecia. Pés de doidos, de furiosos furavam a terra. E seu Lucas com a boca para cima misturando as suas mágoas com as suas rezas. – Que fizeram eles que vão pra Fernando? Ninguém sabe não! O sacerdote quebrando o ritual para deixar escapar a sua dor. Seu Lucas não era mais

um deus naquela hora. Como um homem qualquer ele falava pelos pobres que no mar se perdiam. O canto dele varava a noite, varava o mundo: – Que fizeram eles que vão pra Fernando? Ninguém sabe não!” José Lins do Rego gravou esse final de capítulo do seu romance O moleque Ricardo na discoteca do Departamento de Documentação e Cultura. Mas só Deus sabe o que foi feito dessa e de outras gravações, da fototeca, dos arquivos do D.D.C., depois que um prefeito socialista extinguiu aquele órgão por considerá-lo elitista. Em compensação, O moleque Ricardo está em sua vigésima primeira edição, de 1999, tendo aparecido também no volume I da Ficção completa do autor, editada pela Nova Aguilar em 1976. É a permanência da palavra escrita, que os meios eletrônicos jamais substituirão. Podemos dizer dessa página de José Lins do Rego o que Gilberto Freyre escreveu do poema de Manuel Bandeira Evocação do Recife, isto é, que ela permanecerá enquanto houver literatura brasileira e enquanto existir a língua portuguesa.

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ENSAÍSTA E CRÍTICO Um romancista em praça pública O autor de Menino de engenho não hesitou em fazer parte do debate público do seu tempo, mas seus textos críticos e ensaísticos estavam, em geral, aquém da força de sua ficção TEXTO Cristhiano Aguiar

“E assim derruba-se tudo para que uma arquitetura de feira de amostras possa se exibir à vontade. O homem foge do natural para um arrivismo mercantil. A cidade que crescera horizontalmente força o seu destino e procura, por todos os meios, condensar-se em lata de sardinha. E com isto cometem-se crimes contra o bem-estar, contra o bom gosto, contra a vida.” Não, não estamos comentando a destruição do Edifício Caiçara. Não se trata, tampouco, de um artigo assinado pelo Movimento Passe Livre, ou um editorial criticando as polêmicas obras da Copa do Mundo. Estamos, na verdade, em 1942. Publicado no livro Gordos e magros, o ensaio O homem, a casa e a cidade, escrito por José Lins do Rego, nos lembra o quanto o autor de Menino de engenho não hesitou em fazer parte do debate público do seu tempo. É preciso realizar um balanço não apenas da obra do autor paraibano, mas também das camadas e camadas de debates críticos a respeito de seus livros. Dois textos publicados pelo jornal curitibano Rascunho, por exemplo, já começaram este trabalho. Em O curioso caso de José Lins do Rego, Cristiano Ramos faz um cuidadoso balanço dos clichês por trás de algumas afirmações críticas a respeito de Zé Lins. No mesmo Rascunho, Rinaldo de Fernandes realizou trabalho semelhante na coluna que mantém no jornal. De fato, o autor de Fogo morto sofre de uma leitura excessivamente ideológica de sua literatura. Por outro lado, porém, ele me parece “vítima” de sua própria retórica. E não há lugar melhor para entender essas contradições do que nos seus ensaios. Embora as coletâneas originais estejam há muito fora de catálogo, temos duas boas antologias publicadas pela José Olympio. Ambas nos dão um bom panorama da sua faceta como crítico e ensaísta. Tratase de Ligeiros traços: escritos da juventude, organizada por César Braga-Pinto e O cravo de Mozart é eterno, organizada por Lêdo Ivo. Ligeiros traços está melhor amarrada, com uma boa introdução do organizador, complementada por ótimas notas de rodapé e uma datação precisa dos textos. O volume organizado por Lêdo Ivo, por outro lado, carece de notas explicativas e a datação original dos textos não é indicada. Há, somente, a indicação da coletânea

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que originalmente os editou. Muitos dos textos, porém, foram publicados primeiro em jornais e revistas e teria sido interessante indicar as datas e locais originais de publicação.

O TOM PANFLETÁRIO JUVENIL

“O menino é o pai do homem”, diz Brás Cubas redizendo Wordsworth: à primeira vista, isso não seria verdade ao lermos Ligeiros traços, que compila textos escritos por Zé Lins dos 18 aos 23 anos de idade. Como pode o autor de Cangaceiros ter escrito frases como: “E os garimpeiros do ideal esculpem emoções, ascendem belezas em difusão por toda parte, garantem a integridade da nossa cultura, com a condição bárbara de deixar a terra de seus motivos, de seus sonhos, de suas saudades” ou (ao tratar da poesia de Carlos Dias Fernandes) “A sua figura de homem forte e sadio é uma projeção de seiva florida sobre os seus ritmos masculinos”? A resposta não é difícil: o talento de Zé Lins está aqui em latência e um longo percurso ainda seria percorrido. Ele mesmo, posteriormente, vai negar seus escritos de juventude, afirmando serem tão somente panfletários. Ao escrever sobre livros e artes, por exemplo, interessava-lhe menos elaborar leituras e análises das obras e mais explicitar o impacto juvenil das sensações causadas pelas mesmas em sua própria sensibilidade. Sua visão sobre o Brasil ainda é rasa; o repertório de leituras, pouco. Sua crítica se conforma com as muletas retóricas porque elas são o suficiente para implementar o gesto laudatório ou demolidor, pontos de chegada da sua crítica naquele momento. Devemos imaginar o Zé Lins daquele tempo como um jovem literato que se deixava levar pelo que pode haver de provinciano em toda cena literária, esteja ela em Itabaiana ou em São Paulo. Ele bem poderia ser um dos precários poetas e jovens intelectuais criados por Roberto Bolaño, talvez mesmo García Madero, o narrador de Os detetives selvagens. O jovem Zé Lins, aliás, certamente teria organizado um blog. E participaria ativamente de debates no Facebook e no Twitter, compartilhando textos dos seus blogueiros e articulistas preferidos.

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Identificamos seu precoce interesse em pensar o Brasil, seu compromisso de criar uma arte sintonizada com a cultura popular

A leitura de Ligeiros traços, contudo, não é de interesse apenas para os especialistas. Gostaria de sugerir que pudéssemos ler essa coletânea como uma espécie de involuntário romance de não ficção, fragmentário e epistolar, no qual acompanhamos os embates, as descobertas, as paixões e as brigas de um artista ainda jovem. Descobrimos suas leituras formadoras, os primeiros mestres e as amizades; deduzimos, nas entrelinhas, as marcas das noites boêmias no Recife – o lança-perfume, as prostitutas, os bailes, a cocaína e o álcool. Presenciamos sua chegada na Faculdade de Direito, bem como suas primeiras reações ao Modernismo; identificamos seu precoce interesse em pensar o Brasil, seu compromisso de criar uma arte sintonizada com a cultura popular, especialmente a nordestina. A tensão, nunca resolvida, entre uma aguda consciência social e as bases conservadoras do seu pensamento já se revelam de maneira nua e crua também. Da mesma forma, uma das maiores qualidades do Zé Lins ensaísta já está presente em seus textos de juventude: o mérito

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INTELECTUAIS PÚBLICOS José Lins do Rego, Olívio Montenegro (de pé) e Gilberto Freyre

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CRONISTA O livro reúne artigos jornalísticos escritos por José Lins entre 1919 e 1924

de, mesmo se as ideias não são originais ou aprofundadas, agregar uma vivacidade e um vigor àquilo que está sendo debatido. Os ecos ouvidos em Ligeiros traços podem ser retomados anos depois, na sua ficção. Um dos melhores textos, por exemplo, é a homenagem que ele faz, em 1919, ao poeta José Passarinho, cantador negro de origem humilde, transformado em personagem do seu romance de 1943, Fogo morto. Ligeiros traços termina sua narrativa com a chegada de um personagem que será o definitivo mentor intelectual do nosso protagonista: Gilberto Freyre. Não por acaso, nos textos de O cravo de Mozart é eterno, a sombra do autor de Casa Grande & Senzala se faz presente do início ao fim da coletânea. Comparando os dois livros, percebemos que ele encontrou uma maior maturidade no modo de se posicionar como intelectual público. Seu projeto literário também está melhor definido; o papel de Freyre nesse processo é fundamental. A convivência com o sociólogo pernambucano o ajuda a fornecer as bases para pensar o Brasil, o Nordeste e sua própria ficção. Como bem aponta Sônia Lúcia Ramalho de Farias em O sertão de José Lins do Rego e Ariano Suassuna, nesse momento Zé Lins assume para si o ideário regionalista de Freyre, que propõe o resgate da tradição cultural nordestina como uma retomada de valores considerados genuinamente nacionais. Vários textos de O cravo de Mozart é eterno são atravessados por essa questão. Seja ao traçar perfis de escritores e intelectuais, como o já citado Freyre ou Graciliano Ramos, seja ao comentar livros ou obras de arte (Foi uma vitória da Marinha, O pintor Cícero Dias, O quinze), o Brasil, a sua diversidade cultural, a importância do Nordeste, a força do popular, a reflexão sobre como melhor dizer o nacional através da arte surgem com frequência. Seria um equívoco afirmar que esses são os únicos tópicos dos seus ensaios e da sua crítica

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RETRATO José Lins do Rego, pintado por Cândido Portinari

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compilados em O cravo de Mozart é eterno, mas certamente aparecem repetidas vezes e em posição de destaque.

FORMAÇÃO DO ESTILO PRÓPRIO

Assim como na juventude, o jornalismo continuou a ser o espaço privilegiado para expor suas ideias. Não encontramos mais aquela retórica bacharelesca de outrora: como atestam seus próprios textos (Espécie de história literária e Gilberto Freyre são exemplos), regionalistas e modernistas em muito podiam discordar, mas convergiam na busca (através de caminhos diversos) por uma renovação dos usos, repertórios e modos de dizer da literatura brasileira. Por outro lado, tal como nos escritos de juventude, os textos continuam a ser menos propostas de análise e mais testemunhos de trajetórias intelectuais, em que se reafirmam os valores literários que o ensaísta paraibano julgava pertinentes. A linguagem agora é bem a sua própria e tem um jeitão de “causo”, de conversa de bar. Essa constatação me parece importante, pois chama atenção para o fato de que há, sim, um estilo próprio desenvolvido por José Lins do Rego, resultado de um contínuo processo de amadurecimento. Intervenção, calor da hora, opinião: essas são as características

que se consolidam no ensaísmo da maturidade. Um bom exemplo disso é O provinciano Machado de Assis, no qual José Lins do Rego primeiro toma uma posição a respeito de uma polêmica entre Álvaro Lins e Afonso Arinos, manifestando seu apoio ao primeiro. Arinos atacara Lins afirmando que o crítico pernambucano era um provinciano por nunca ter viajado muito. Ressaltando a centralidade de Machado de Assis não só na literatura brasileira, como na produção literária de todo o continente, José Lins do Rego rebate Arinos lembrando que Machado “nunca deixou a província fluminense”. Por fim, após lembrar outros nomes ilustres que pouco ou nunca saíram do país (entre os citados, Mario de Andrade), reitera o compromisso que ele, José Lins, tem com um lugar e com uma tradição, enfatizando o quanto isso não impede que se alcance uma universalidade.

AGENDA IDEOLÓGICA

Conforme bem apontaram Rinaldo de Fernandes e Cristiano Ramos, qualificações como “regionalista”, “escritor testemunhal”, “mero contador de histórias”, “memorialista”, “escritor apenas da cana-de-açúcar”, contam verdades parciais sobre sua ficção. Mas o

próprio José Lins do Rego, em alguns textos de O cravo de Mozart é eterno, contribui para criar essa aura ao redor de si mesmo. Em Coisas de romance, ele afirma que, ao ser perguntando sobre suas influências, falou apenas “dos cegos cantadores de feira”. Em seguida, reitera o quanto “o romance brasileiro não terá em absoluto que ir procurar os Charles Morgan ou os Joyce para ter existência real. Os cegos da feira lhes servirão muito mais como a Rabelais serviram os menestréis vagabundos da França.” Linhas depois, reproduz uma conversa com Manuel Bandeira, na qual o poeta lhe diz: “Você é motor que só funciona bem queimando bagaço de cana”. Não só o autor de Pedra Bonita dá razão a Bandeira, como associa essa conversa a Fogo morto. Desse modo, podemos levantar a hipótese de que a agenda ideológica que em muitos casos impediu uma perspectiva mais acurada por parte da crítica a respeito da sua ficção, também foi assumida por José Lins ao teorizar sobre seu próprio trabalho. Mas isso não o impediu de, em Paulo Prado, passada a época de embate mais aguerrido entre modernistas e regionalistas, reconhecer a importância de Oswald de Andrade e de Prado, ou de enfatizar, em outros textos, o quanto “regionalismo” não é necessariamente sinônimo de qualidade literária ou agudeza sociológica. As ideias de Freyre são fundamentais para entendermos José Lins do Rego e o regionalismo de 30 de modo geral, mas nenhum daqueles autores, José Lins incluso, cabem perfeitamente em uma gaveta. Ao contrário de outros autores, como Octavio Paz, Borges ou Paul Valéry, nos quais o ensaísmo se revela tão importante e fecundo quanto suas criações poéticas e ficcionais, os ensaios de José Lins do Rego estão aquém da força de sua ficção (a exceção, talvez, pudesse ser feita aos seus relatos de viagem, merecedores de um estudo em separado). No entanto, vale a pena, sim, voltar aos escritos, ficcionais ou não, desse homem que amou de peito aberto sua terra, seus livros, seus frevos e seu Flamengo.

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anú


O romance que virou lenda.

BREVE Lançamento também em E-BOOK

A Cepe Editora lança uma nova edição de um livro mítico da literatura pernambucana. Publicado como folhetim no Jornal Pequeno, de 1909 a 1912, causou grande comoção na sociedade da época, levando muita gente a acreditar – como ainda hoje – que a história reproduzia um drama real.

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LETRAS E POLÍTICA “Eu não acredito na vitória do mal” Após a publicação de Fogo morto, romance que representa a decadência de um universo de valores senhoriais, Zé Lins saiu em defesa de um usineiro TEXTO José Luiz Passos

Enquanto o mestre Zé Amaro,

seleiro às antigas, vai “perdendo o gosto pelo trabalho”, o capitão Vitorino Carneiro da Cunha, por alcunha PapaRabo, se considera um “homem de partido” e visita amigos e parentes, anunciando sua candidatura à chefia política do Pilar. Ele acha que a longa dominação dos coronéis está com os dias contados. O próprio Vitorino é primo de dois coronéis: o catatônico Lula de Holanda, do Engenho Santa Fé, e o enérgico José Paulino, do Santa Rosa. Mas, ao contrário do primos, o

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RODRIGO SOLDON/REPRODUÇÃO

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velho Vitorino é pobre, monta um burra esfalfada e se alimenta da grandiosidade moral dos próprios bordões, que cantam contra tudo que lhe pareça corrupção, maltrato ou desrespeito. No intervalo das suas andanças, Vitorino prefere a companhia do compadre Zé Amaro, cujo ressentimento para com os poderosos invoca, na presença do cangaceiro Antônio Silvino, mais outra forma de oposição aos desmandos da velha ordem. José Lins do Rego publicou Fogo morto em 1943. Num romance em que todos

RUÍNAS Antiga usina de açúcar conhecida como Engenho Central do Bracuhy

os personagens estão em movimento, buscando veementemente alguma coisa que já passou ou que ainda não existe, não podemos desprezar o fato de que tal trânsito passe quase sempre diante da casa do mestre seleiro. Passa o velho cabriolé do coronel Lula, tilintando; passam os tangerinos com seus bichos; o cego Torquato, mensageiro secreto dos cangaceiros; passa o negro Passarinho, cantando romances de cavalaria, e também Floripes, o ex-moleque do Santa Fé, afilhado do coronel Lula, que, aliás, avisa ao mestre Zé Amaro:

“O capitão Vitorino anda dizendo que o mestre vai votar contra o coronel José Paulino, e o meu padrinho mandou falar com o senhor para tomar cuidado”. De suas mágoas profundas, o mestre seleiro responde a Floripes que ele, Zé Amaro, não era “escravo de homem nenhum”. Seu ressentimento tem razão de ser. O mestre recebia o lembrete de um coronel para que ele votasse no outro coronel. E o lembrete vinha pela boca de um afilhado deles, sendo o suposto adversário político um terceiro membro da mesma família, ainda que pobre e moralmente rebelado. A força do romance de José Lins ganha sua densidade maior nesses instantes em que os opostos se tocam e as diferenças se confundem, promovendo curiosamente o esclarecimento das relações em questão. Vitorino Carneiro da Cunha esbraveja contra os corruptos e é, ele próprio, catálogo do politicamente incorreto, sempre lembrando aos demais sua condição de homem branco, munido de sobrenome e de uma tabica, que ele silva no ar contra os agressores. Bem a propósito, os moleques da região passam pelo capitão, montado em sua burra, e sem falta gritam: “Papa Rabo!”, apenas para ouvirem de volta: “É a mãe!”. E lá vai Vitorino defender o coronel Lula de Holanda das ameaças de Antônio Silvino, e defender o cego Torquato e o negro Passarinho, e, também, no final, amparar o próprio compadre Zé Amaro, já suposto por muitos ser lobisomem correndo à noite na trilha de sangue, como reparação para algo que ninguém dali entende. Até nisso o capitão e o mestre se irmanam em seu desespero de quem busca valores melhores para um mundo que os congela dentro de um mito de inocência pastoral.

POLÍTICA DO COMPADRIO

Aliás, num romance em que “tudo se fora na enchente do tempo”, o recurso à fragilidade esplêndida dos “aluados”, Vitorino e Zé Amaro, restaura o nexo oracular que, em geral, atribuímos à sabedoria dos inocentes. O sacrifício do inocente marca a divisão entre vivos e mortos; entre o antes e o depois. Essa transigência endêmica no romance é motor de um estilo. Vitorino, consciência-

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limite desse mundo, enxerga a dependência entre opostos; torna visíveis os laços entre o cangaceiro e o coronel mais influente de todos; entre o seleiro e seu espoliador moral, o coronel mais pobre de todos. Sendo um romance sobre como votar, e sobre os muitos lados de um voto, Fogo morto é, também, denúncia de uma situação política ainda nossa contemporânea. Não o velho voto de cabresto, nem o coronelismo clássico, mas a transigência para com o compadrio. Ora, José Lins vivia no bojo desses mundos misturados, em que, por exemplo, o modernizador Agamenon Magalhães (ministro da Justiça de Getúlio Vargas e, também, seu interventor em Pernambuco) enfrenta o problema da centralização do fabrico de açúcar no Estado. Por incrível que pareça, num gesto a modo de Papa-Rabo, vingador de grandes e pequenos, José Lins do Rego, depois de publicar o romance, sai em defesa dos usineiros, de um usineiro em particular, enquanto na sua ficção a usina representava justamente o soçobro de um universo de valores senhoriais, ainda supostamente resistentes à corrupção no trato. Na crônica Um caso de confisco, publicada por José Lins no jornal O Globo, ele argumenta em favor de Antônio Ferreira da Costa Azevedo, o “Tenente” da Usina Catende, do seguinte modo: Mas afinal de contas o que há entre a usina maior do Brasil e o Sr. ministro da Justiça? Que fez de tão monstruoso o industrial para que o

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Fogo morto aparece como revisão da mescla entre os valores de antes e o novo ensejo de modernização tosca legislador do confisco prepare um instrumento de tamanha força para destruí-lo? (...) Conheço o Sr. Costa Azevedo desde os seus começos da vida na Paraíba, onde fundou uma fábrica de açúcar, e conheço, de sobra, o ministro de hoje desde as suas origens políticas ao lado de Manoel Borba. O Sr. Costa Azevedo é homem de seu trabalho, mestre de ação tenaz, de consciência limpa, de trato infatigável, de consideração de senhor de engenho dos grandes dias. Entre o criador de riqueza, o capitão de indústria, que revolucionou os processos rotineiros da lavoura de sua terra, e o político solerte, capaz de manobras infernais para chegar aos seus fins, vai uma distância que não se calcula. O Sr. Tenente não dispõe de poder para a luta a que foi arrastado. É homem que com o suor de seu rosto e os calos de suas mãos produziu uma fortuna que é mais da terra do que dele. O Sr. ministro da Justiça pretende botá-lo abaixo pela legislação que concebeu em coito danado. Eu não acredito na vitória do mal.

O ANTIGO E O MODERNO

No contexto da superação dos quadros da administração política da Velha República, Fogo morto aponta como revisão da mescla entre os valores de antes e o novo

ADAPTAÇÃO Levado ao cinema pelo diretor Marcos Farias, Fogo morto contou com atuações de Ângela Leal e Othon Bastos

ensejo de modernização tosca, não raro indiferente à malha de interdependências que marcava esse mundo velho e suas formas de mistificação. Ora, essas formas deram a José Lins matéria para uma forma literária que se constrói como jogo de alianças e supostas semelhanças entre desiguais. No romance, as novas regras são denunciadas por Vitorino mesmo quando ele próprio busca apoio nos valores “de antes”, de um mundo velho, de uma República que já ficara velha e, a despeito das mudanças, ainda precisava transigir com a presença do coronel José Paulino, o “senhor de engenho dos grandes dias”. Como disse, Fogo morto é de 1943. A crônica sobre a lei antitruste, de Agamenon Magalhães, cujo principal alvo era a usina de Costa Azevedo, é do dia 16 de junho de 1945. Em outubro do mesmo ano, o próprio Getúlio Vargas é deposto pelo exército que lhe havia dado apoio. Costa Azevedo morre em 1950. Dois anos depois, José Lins (que havia acusado as usinas no mundo da ficção e defendeu o usineiro de uma lei a seus olhos totalitária) tem seu pedido de visto aos Estados Unidos negado, possivelmente por pertencer ao Partido Socialista. A imaginação do escritor ainda nos serve de antídoto contra a perversa ingenuidade do falso quixotismo, presente nas bocas de escritores, críticos e gestores da política; gente que alardeia o coro da certeza e a regra de mão única. Ao menos em literatura, nem sempre as opiniões corretas engendram os melhores frutos. E se há uma grandeza em José Lins, ela reside precisamente na imensa teia de relações que vão da incorporação do dado histórico a torções míticas do mesmo dado, a fim de tornar o campo do romance um painel de interesses vivos, dentro do que nos pareceria, na vida, reles ou comezinho, tal como a defesa apaixonada que os tolos fazem do destino compartilhado entre um seleiro e o seu senhor.

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O PERNAMBUCO “TATUOU” AS SUAS MELHORES CRÔNICAS

DOCUMENTAIS Desencontros, lembranças e testemunhos Talles Colatino • Xico Sá • Micheliny Verunschk • Thiago Soares Raimundo Carrero • Flávia de Gusmão • Ronaldo Correia de Brito Samarone Lima • Carol Almeida • Fabiana Moraes • Carolina Leão Bernardo Brayner • Rogério Pereira • Julián Fuks • José Castello Bruno Albertim • Carlos Henrique Schroeder • Paulo Sérgio Scarpa Ivana Arruda Leite • Adelaide Ivánova • Miguel Sanches Neto Luís Henrique Pellanda • Cristhiano Aguiar • Ricardo Lísias Ricardo Domeneck • Fabrício Carpinejar • Cecilia Giannetti Marcelino Freire • Anco Márcio Tenório Vieira • Joca Reiners Terron

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O COMPLEXO DIÁLOGO ENTRE TRADIÇÃO E MODERNIDADE UM ESCRITOR EM BUSCA DE REVISÃO CRÍTICA

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JOSÉ LINS DO REGO TENSÃO ENTRE DOIS MUNDOS

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