58
ESPECIAL
Continente maio 2006
ESPECIAL
O muro antes do abismo A ruptura moderna com o pensamento religioso e o aristotélico teve papel libertário. No entanto, não são poucos os que estão tratando de rever os excessos cometidos em nome da relatividade e da subjetividade Fábio Lucas
Continente maio 2006
59
N
o meio de uma peça que rodou o país mais de uma vez, o diretor e ator Jorge Fernando promove a suspensão do riso, ao perguntar à platéia: “Qual de nós, nesta sala, será o próximo a morrer?” O público disfarça, alguns sorriem sem graça, outros fazem de conta que o assunto nem é com eles. Enquanto Jorge Fernando exalta a mensagem que não é nova, mas persiste recusada: “Viva a morte!” O dia marcado para cada um reserva-nos o lugar comum onde todos se dissolvem na mesma massa primordial de átomos que se dispersam e se acham. É o desfecho da breve aventura consciente num planeta isolado, encravado no vácuo, entre deuses que se revezam na solidariedade e na guerra de seus filhos sobre a Terra. A morte encerra o mistério e a resposta, e de seu inescapável horizonte os vivos se nutrem, na esperança que pede mais tempo, ou à espera do esquecimento. A comédia da vida pára quando se defronta com a tragédia da morte. Mas por que morrer é trágico? Todos somos filósofos na hora em que o pensamento é mais inútil. O falecimento do outro transforma o inferno sartriano em parada obrigatória, na busca de um significado que a morte parece atirar para longe. Aliás, Sartre resumiu bem, a este propósito, que a morte é aquilo que retira da vida qualquer significação. E por que será que é ali, na sensação iminente do abismo, que mais meditamos a seu respeito?
Para o filósofo francês André-Comte Sponville, a morte é o pior dos fracassos Continente julho 2006
Montaigne acha que a morte pode ser uma solução para todos os males
Um dos entrevistados para o curta-metragem Os Arquitetos do Mar, exibido durante a última edição do Cine PE, é provocado acerca do futuro. Com simplicidade de dar inveja a um grego antigo, o homem respondeu: “O futuro? Eu não sei como tudo começou, também não sei como vai terminar.” Uma postura que é receitada por filósofos atuais, como o francês André-Comte Sponville, seguidor de Espinosa, Montaigne e Epicuro. A noção clássica epicurista de que a morte não nos atinge – pois quando estamos vivos ela não existe, e quando ela chega, somos nós que não existimos mais – é tomada por Montaigne como obstáculo à felicidade. Para Sponville, é o maior dos fracassos, que apaga todos os outros, e que faz do luto um dever diário de luta contra a realidade – com a realidade, já que não se permite a fuga, que nada resolve. Ainda por cima, porque se morre a cada segundo, desde que se nasce: ela é destino, e não acaso. De acordo com o alemão Martin Heidegger, o homem é um ser-paraa-morte, a exibir rugas na pele, e a conter a deterioração da vida tanto nos ossos como existencialmente, na constituição ontológica. O mesmo Montaigne vê a morte como chance de cura, na possibilidade aberta pelo suicídio. Seria “a receita para todos os males”, porque depende apenas de nossa vontade. Nisto Montaigne recorda ainda os antigos, estóicos ou epicuristas, que enxergavam no suicídio menos o motivo existencialista identificado por Albert Camus – “o problema fundamental da filosofia”, segundo ele – e muito mais uma solução. Para os estóicos, o suicídio era a mais livre e racional forma de morrer do filósofo, uma espécie de ápice depois de longa trajetória. Para o hedonismo epicurista, Continente julho 2006
O Triunfo da Morte (c. 1560), quadro de Pieter Breughel, o Velho
Continente julho 2006
poucas são as razões para se abandonar voluntariamente a vida, porém a sabedoria advoga não haver o que temer na morte, e que “não há necessidade de se viver no império da necessidade”. Sponville esclarece que Epicuro jamais pregaria o suicídio, mas que o admite. A morte voluntária, como desejo efetuado, é um tema filosófico que concerne, como a eutanásia, à liberdade. “A permanente possibilidade do suicídio torna a vida inteira voluntária: não se pode escolher ter nascido, nem ser mortal, mas, sim, viver por mais ou por menos tempo, continuar ou não a viver. É nisso que a idéia do suicídio faz parte do arsenal do homem livre”, escreve o francês no livro Impromptus – cujo título, na tradução brasileira, lembra a auto-ajuda, com o nome de Bom-Dia, Angústia! Epicuro também escreveu que a morte, sendo a privação da sensibilidade, não representa nada para o ser humano. Mas para a filosofia – ou mais simplesmente, para a consciência e o pensamento – vale reconhecer que surge um embotamento na perspectiva da morte, como se a vida não fosse capaz de se extrair de seus limites, de se olhar fora de si. O absurdo apontado pelos existencialistas é o absurdo do vivente que, mal se acostuma ao real, é forçado a admitir: terá, logo, logo, que renunciar a ele. Nem a constatação de ser breve e, por isso, dever ser aproveitada (resumida na expressão latina carpe diem, algo como “a vida é curta, curta a vida”), nem tampouco o consolo de que
somos um milagre que passa do pó ao pó, são capazes de liberar o peso da realidade que definha enquanto o tempo individual se gasta. Por mais que os gregos nos bradem sobre a leveza da morte – como em Sócrates, para quem a filosofia seria o exercício de morrer e de estar morto – não deixamos de pensar nela como algo trágico, de pensar a morte como o essencialmente impensável. Pode-se associar este comportamento a um sinal dos tempos. Octavio Paz debitou à sociedade de consumo o pânico pela idéia da morte, observando que o desejo de “curar” a morte exprime um desejo prometeico cuja obsessão criou um hedonismo viciado, oposto ao hedonismo epicurista, defensor dos prazeres, sim, mas com plena aceitação dos limites da vida. Ainda segundo Paz, o esquecimento da morte é uma prova da morte do indivíduo, no esmaecimento das vidas individuais provocado pela sociedade de massas. A vida é uma totalidade que inclui a morte, e se nos recusamos a contemplá-la, recusamo-nos a contemplar a vida. Na mesma linha, Sponville enfatiza que ser homem é ser mortal, na solidão do corpo, “prisão do prazer e do sofrimento”, e não dá para pensar na vida sem encarar a morte. Uma só é bela porque a outra é amarga. A noção espinosista da vida como esforço constante e fonte de prazer se choca diretamente contra o muro existencialista diante do abismo da morte. De uma ou outra maneira, com vertigem ou resignação, a queda irá definir, pondo a termo, a vida que se viveu. • Figura da Festa do Dia dos Mortos, celebrada no México, sempre a 2 de fevereiro
Continente julho 2006
Agonia e finitude em Unamuno Conflito e vida, em oposição à harmonia e morte, são o fulcro do pensamento unamuniano Eduardo Maia
N
a filosofia, na literatura e até na ciência, a morte é uma preocupação que acompanha a humanidade desde do começo das civilizações. A capacidade adquirida no processo evolutivo de elaborar raciocínios abstratos fez do homem o único animal sobre a terra que tem a capacidade (e a maldição) de reconhecer o fato inexorável de sua finitude. Grandes pensadores em todas as épocas se ocuparam do tema: em uma passagem célebre, o Sócrates platônico caracteriza a morte como um “sono sem sonhos”; o escritor argentino Jorge Luis Borges, por sua vez, comparou a morte com o sono – todas as noites morremos para renascer a cada novo dia; já Flaubert escreveu que “a morte talvez não tenha mais segredos a nos revelar que a vida”. Destacarei aqui, neste Especial da Revista Continente Multicultural sobre o tema “Morte”, o pensamento de um filósofo em particular, Dom Miguel de Unamuno, por acreditar que sua vida intelectual e pessoal foi uma permanente e agônica meditação sobre a morte. Não se trata de um pensador de orientação estóica – como o foi Sêneca –, que tenha buscado a sabedoria da resignação frente à perspectiva da aniquilação total. A atitude vital e intelectual de Unamuno pode ser colocada no extremo oposto: “A vida, desde o seu principio até o seu término, é luta contra a fatalidade de viver, luta de morte, agonia. As virtudes humanas são tanto mais altas quanto mais profundamente se originam deste supremo desespero da consciência trágica e agônica do homem”. As disputas íntimas e sociais constituem em Unamuno a entranha mesma da vida, a concretização e o encontro da verdadeira estatura pessoal por cada indivíduo: “Vivam de tal maneira que o morrer seja para vocês uma suprema injustiça”. Conflito e vida, em oposição à harmonia e morte são o fulcro do pensamento unamuniano: “A vida é luta (...) o que mais une os homens uns aos outros são nossas discórdias. E o que mais une cada um consigo mesmo, o que faz a unidade íntima de nossa vida, são nossas discórdias íntimas, as contradições interiores de nossas discórdias”. O estado de harmonia total, de paz perene, é o lugar da morte: “Só se fica em paz consigo mesmo, como Dom Quixote, para morrer”. O personagem de Cervantes foi o modelo literário, filosófico e, principalmente, ético de Unamuno.
Continente julho 2006
A insistência do homem Miguel de Unamuno na afirmação da sua individualidade – do seu eu – vem da constatação de caráter pré-existencialista de que, apesar de todas as teorias políticas, antropológicas e filosóficas, o homem concreto é o único que existe verdadeiramente. “Eu, eu, eu, sempre eu! -dirá algum leitor-; e quem és tu? Para o universo, nada; para mim, tudo”. A existência humana toma a sua significação e finalidade na realização de cada vida individual, na batalha cotidiana de cada homem de carne e osso com o seu entorno e, principalmente, na luta íntima e incessante que a da própria consciência de si mesmo. “O homem concreto é o sujeito e o supremo objeto ao mesmo tempo de toda filosofia”. Tome-se, por exemplo, um conceito como o de “angústia”; todos compartilhamos dessa idéia geral do que tal palavra significa, mas, de fato, o que verdadeiramente existe não é essa angústia universal idealizada, mas a angústia que cada homem, individualmente e intransferivelmente, pode sentir; a angústia de um indivíduo concreto numa determinada situação e momento é a verdadeira angústia. A postura do filósofo foi a de pensar esse homem palpável e sensível, ao invés de investigar serena e abstratamente, “um conjunto de pensamentos vazios de alma, de entidade carnal e espiritual”. Para Dom Miguel de Unamuno, o afã de imortalidade está em cada homem. Nossa essência é a de permanecer “sendo”, numa negação peremptória e constantemente ao possível nada, ao “não-ser”. Para o filósofo Julián Marías, “Unamuno viveu para a morte; voltado sempre para ela, antecipando-a, angustiado pela necessidade de perduração, de imortalidade, não do nome somente, mas da pessoa e da carne”. O terrível para Unamuno, continua Marías, é que “a aniquilação não significa se encontrar frustrada a fé em outra vida, mas o não encontrar; não que se passe algo horrendo, mas, o que é infinitamente mais angustioso pensar, que não passe nada.”. Uma coisa é se preparar e estar cheio de coragem para afrontar qualquer coisa na hora da morte, mas e se não há nada para se enfrentar? Aí está o sentimento trágico para Unamuno: na possibilidade de que a mais dura tragédia seja a de que não haja tragédia – não haja nada. “Tremo – dizia – ante a idéia de ter que me desgarrar de minha carne; tremo mais ainda ante a idéia de ter que me desgarrar de todo o sensível e material, de toda substância”. Em uma de suas principais obras literárias, Niebla (Névoa), Unamuno faz com que seu protagonista, Augusto Pérez, dirija-se ao próprio autor: “Pois bem, meu senhor criador Dom Miguel, também o senhor morrerá, também o senhor, e voltará ao nada de que saiu... Deus deixará de lhe sonhar! Morrerá o senhor, sim, morrerá, ainda que não queira!” •
O escritor e pensador espanhol Miguel de Unamuno
Capa do livro Del Sentimiento Trágico de la Vida, de Unamuno Continente julho 2006
A morte mais popular da “Sétima Arte” está num filme de Ingmar Bergman. Mas, a mais expressiva é apresentada numa obra de Fritz Lang, ainda na época do cinema mudo
O ator Bengt Ekerot no papel da Morte, no filme O Sétimo Selo
Fernando Monteiro
Duas mortes cinematográficas R
esponda rápido: o nome Bengt Ekerot lhe diz alguma coisa? “Não” – será a resposta mais provável de quase todo o mundo, excluindo-se aqueles sujeitos (os cinéfilos) que sabem até quem é o apache caindo, espetacularmente, numa daquelas cenas do ataque à diligência de Stagecoach (ou seja, o dublê e também diretor de segunda unidade, Yakima Cannut). Cultura inútil? Pode ser, mas isso já foi a melhor maneira de impressionar muita gente, como faz Rubem Ewald Filho com o joguinho de identificar cenas de velhos filmes em desfile, por segundos, nas madrugadas do Oscar. Vamos, então, responder sem mais delongas: Bengt Ekerot é o ator que faz o papel da Morte em O Sétimo Selo, um dos filmes mais aclamados do sueco Ingmar Bergman. Nesta altura, você certamente já se lembrou do rosto branco de cera, sob o sinistro capuz da figura que joga xadrez com o cavaleiro medieval vivido por Max Von Sidow. Nascido em 1920 e falecido em 1971, Ekerot se tornou, em virtude da ampla divulgação do filme de 1957, talvez a Morte mais popular da “sétima arte”, como imagem-símbolo de Det Sjunde Inseglet, uma das obras-primas indiscutíveis do realizador hoje retirado na ilha de Faro. E agora que você já sabe quem é BE, chegou a hora de dizer que aquela sua composição hierática e irônica – uma Morte disposta a debochar dos muitos adiamentos propostos por todos aqueles com quem ela marca encontro – não foi a primeira nem a melhor personificação da “Indesejada” no cinema, pois, antes, um ator alemão já compusera uma “Odiada das Gentes” ainda mais assustadora (e humana)... Estou me referindo ao excelente Bernhard Goetzke, escolhido por Fritz Lang para viver a “morte cansada” do seu filme Der Müde Tod (A Morte Cansada, 1921), uma produção de baixo Continente julho 2006
orçamento que o mestre do Expressionismo cinematográfico transformou num dos títulos mais memoráveis da idade muda. Nome de proa da escola alemã, Lang se destacou dos colegas Murnau, Pabst, Wiene e Wegener, pelo lado mais “humanista” do que estetizante, ao usar o cinema com um acento intimista, que o distinguia dos outros e, ao mesmo tempo, levava seus filmes mais longe, como metáforas de antecipação (Metropolis) ou fundamente baseadas na tradição fantástica do folclore alemão. A Morte Cansada é um exemplo disso: tem estreitas ligações com os contos populares germânicos, sem deixar de mão a alegoria da sociedade alemã saída da derrota na Primeira Guerra. Desde 1914, havia se adensado o clima escapista, decadente e de insegurança, gerado pelo fim do império austro-húngaro, numa Europa martirizada pela última das guerras entre “cavalheiros” aparentemente dispostos a decretar o fim de todas as guerras. Os contos de Hoffmann devem ser evocados, de imediato, como atmosfera de Der Müde Tod, com mais a idéia – cinematograficamente original – de trazer a Morte, no começo dos anos 20, para “estrelar” uma produção que também faria eco aos pesadelos kafkianos, então só conhecidos de Max Brod e da noiva do rapaz tcheco tristonho (a quem Otto Maria Carpeaux chegou o ser apresentado, em Praga). Não alarguemos demais, entretanto, a vista sobre o cenário largo e os personagens daquele fim de era. Fiquemos, por ora, na Áustria e na Alemanha pré-Hitler, com essa “Morte” convocada, pelo gênio de Lang, para aparecer nas telas, bem menos maligna do que se esperaria ao vê-la em “carne e osso”. Do que trata esse filme, hoje restrito às exibições em cinematecas? A história é a de um misterioso senhor chegado que chega a uma vila perdida nos Alpes. Ele é a Morte – cansada de si mesma – que resolveu comprar um terreno vizinho (não poderia ser diferente) do cemitério. Ali, o sombrio estrangeiro faz construir um muro imenso, ao redor da nova “morada”. Aparentemente escondida dos aldeões, ele descansa no seu retiro, até deparar, certo dia, com um casal em lua-de-mel. O rapaz desperta a atenção do “anjo negro”, o qual decide levá-lo num “passeio”. Ao perceber que seu marido não reaparece, a noiva vai até o limite das portas do cemitério, onde uma procissão de almas está entrando. O seu amado se encontra entre elas, mas não pode vê-la. Em desespero, a jovem busca a ajuda de um alquimista local, que lhe recorda a passagem da Bíblia onde se afirma ser o amor “mais forte do que a morte”. Assim influenciada, ela decide se suicidar de modo a poder ir pedir, à própria “Ceifadora”, o marido de volta. O que se vê, a partir daí, é um jogo de três histórias paralelas – ao modo de Intolerância, de Griffith – e como resultado da entrevista com a Morte, no seu “escritório” (uma impressionante sala atulhada de velas que são, na verdade, as precárias vidas das almas). A moça terá três chances de derrotar a “Inimiga”, unicamente com a força do sentimento humano, de maneira a provar a tal supremacia do amor. Só diante disso, a “Tenebrosa” poderá consentir em devolver o marido dessa heroína típica da íntima colaboração de Fritz Lang com a roteirista Thea von Harbou (sua esposa). Lil Dagover foi a jovem atriz escolhida para o papel da decidida esposa germânica, com o acréscimo das três personagens diferentes, nos episódios passados no Oriente Médio, em Veneza e na China. Lil já havia aparecido no clássico de Robert Wiene, O Gabinete do Doutor Caligari (1920). Mas, no filme de Lang, quem domina a cena é Bernhard Goetzke, “a morte cansada”, criatura mais do que exausta de provocar o sofrimento e a dor, pela definitiva separação das pessoas etc. Talvez por isso é que aflora, na máscara inesquecível composta pelo ator, o traço de uma sutileza não incluída na “Morte” bergmaniana encarnada por Bengt Ekerot: a esperança de se ver, afinal, derrotada. • Continente julho 2006
Edgar Allan Poe
A morte como leitmotiv O escritor norte-americano foi um mórbido e obsessivo cultor do tema tanto em seus poemas quanto em seus escritos em prosa Alberto Oliva
S
e for dada a um homem eloqüente e talentoso uma vida de tragédias e incertezas, como serão suas palavras? Ralph Waldo Emerson uma vez escreveu: “O talento só não basta para fazer o escritor. Deve haver um homem por trás do livro”. Certamente há um homem por trás de contos como “A Máscara da Morte Escarlate”, “O Gato Negro”, “A Queda da Casa de Usher” e de poemas como “Annabel Lee” e “O Corvo”. O homem é Edgar Allan Poe, crítico infame, homem atormentado por um passado que modelou sua obra, sombrio e transcendental, respeitado como um dos mais famosos e controversos escritores da literatura mundial. Por obras como “O Corvo”, considerado um dos mais conhecidos poemas de todo o Ocidente, ele assumiu seu lugar junto a mestres como William Shakespeare e Mark Twain no imaginário popular. Porém nos círculos literários, as reações à obra de Poe sempre foram ambivalentes. Escritores franceses, principalmente Charles Baudelaire, já o ovacionaram como dono de um gênio elevado. No entanto, houve reações negativas por parte do novelista americano Henry James que disse que “o entusiasmo pela obra de Poe é o sinal de um período primitivo da reflexão”. Continente julho 2006
Images.com/Corbis
Edgar Allan Poe no traço de Luiz Trimano
Poe acreditava que o estranho era um ingrediente essencial da beleza, e por isso sua obra é frequentemente exótica. Suas histórias e poemas são protagonizados por aristocratas introspectivos e atormentados, personagens que parecem nunca trabalhar ou socializar, apenas se escondem em castelos medonhos e sombrios decorados simbolicamente por tapetes e cortinas que escondem o mundo real de sol, janelas, paredes e chãos. As salas secretas revelam bibliotecas centenárias, estranhas obras de arte e ecléticos objetos orientais. Os aristocratas tocam instrumentos musicais ou lêem livros antigos enquanto lamentam tragédias, sendo elas freqüentemente a morte de entes amados. O tema da morte na vida, como ser enterrado vivo ou levantar do túmulo como vampiro, aparece em muitas de suas obras, incluindo “O Barril de Amontillado”, “Ligeia” e “A Queda da Casa de Usher”. Mas os curiosos cenários criados por Poe não são meramente decorativos. Eles refletem o interior agoniado e funesto das psiques de seus personagens. Eles são expressões simbólicas do subconsciente, e, logo, são centrais em suas obras. Os versos de Poe sempre foram bastante musicais e estritamente métricos. Seu mais bem-conhecido poema, durante sua vida até os dias de hoje, é “O Corvo”(1845). Nesse arrepiante poema, traduzido por Machado de Assis, o atormentado e insone narrador, que está lendo e lamentando a morte de sua “extinta Lenora” à meia-noite, é visitado por um corvo (um pássaro que come carne morta, logo, um símbolo da morte) que fica imóvel em cima de uma porta repetindo o famoso refrão do poema, “nunca mais”. A obra termina numa memorável imagem de morte na vida: “E o Corvo aí fica; ei-lo trepado No branco mármore lavrado Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho. Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída Do lampião sobre a ave aborrecida No chão espraia a triste sombra; e fora Daquelas linhas funerais Que flutuam no chão, a minha alma que chora Não sai mais, nunca, nunca mais!” Grande parte da popularidade de Poe se deve também ao fascínio dado à sua peculiar e afligida vida. Abandonado pelo pai, quando ainda estava amamentando, sua mãe morreu de tuberculose antes de ele completar três anos de idade. Seu irmão William morreu jovem e sua irmã Rosalie foi declarada insana. Anos depois, parcialmente devido à sua própria petulância, Poe brigou e se distanciou para sempre de seu pai adotivo, John Allan, que o retirou da Universidade de Virginia por causa de dívidas de jogo. Em 1836, com 27 anos, ele se casa com sua prima Virginia Clemm, de 13 anos de idade, atitude que já foi interpretada como uma tentativa de ter a vida familiar estável que sempre lhe faltou. Em 1842, Virginia rompe uma artéria e vive como uma inválida até morrer de tuberculose cinco anos depois. Enquanto assistia a lenta morte de sua mulher, Poe se afundava cada vez mais no alcoolismo, doença que o acompanhou e acabou causando a sua morte em 1849. Rufus Griswold, inimigo que Poe curiosamente escolheu para ser o carrasco de seu trabalho, escreveu seu obituário que começa assim: “Edgar Allan Poe está morto. Ele morreu em Baltimore antes de ontem. Sua morte chocará muitos, mas poucos a lamentarão. Muito conheciam o poeta pessoalmente ou por reputação. Ele tinha muito leitores na América e nos países europeus, mas quase nenhum amigo. Se sua morte for lastimada, será porque com ela o mundo literário perdeu uma das mais brilhantes, porém insuportáveis estrelas.” • Continente julho 2006