Um cigano fazendeiro do ar

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Apresentação

A ARTE D E V I V E R E M V O Z A LTA (O U OS TRU QU ES D O V E L H O B R A GA ) Alvaro Costa e Silva

É curioso que Rubem Braga, o inventor da crônica moderna no Brasil, não tenha se dado bem no seu casamento com a cidade grande, sendo a crônica um gênero urbano por excelência. Ao longo da afanosa carreira de jornalista, ele viveu em muitas delas – São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, até Paris, antes de acomodar-se de vez no Rio de Janeiro – mas nunca conseguiu desligar-se de Cachoeiro de Itapemirim, onde nasceu. Mais: elegia a roça, o mar, os rio – lugares onde gostaria de ficar para sempre, caçando, pescando, dormindo, bebendo, fumando, pensando na morte da bezerra ou fazendo absolutamente nada. De preferência, sozinho e calado. Isso se não tivesse uma mulher bonita por perto. Quem melhor flagrou nele essa característica de bicho do mato cosmopolita foi José Lins do Rego (aliás, um dos poucos romancistas brasileiros cuja leitura lhe caía bem), ao comentar: “O que quer, se quando está em Florença quer voltar ao Vermelhinho, se quando vai a Paris prefere estar pescando em Marataízes?”. O bar da Cinelândia carioca ou a cidade no litoral sul do Espírito Santo não saíam do seu horizonte. Paulo Mendes Campos, com quem Braga dividiu na década de 1940 um apartamento em Copacabana, contou, na apresentação do livro As boas coisas da vida (o último que o cronista publicou em vida, em 1988), que “nenhuma boate lhe deu prazer parecido ao que sentiu na choupana de um velho caboclo do Acre, onde compartilhou da cachaça e do peixe moqueado do seringueiro, entre vozes distantes de bichos noturnos”.

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Rubem Braga buscava o mato na cidade. E, por vias tortuosas ou inesperadas, sofisticadamente líricas, sempre o encontrava. Não fosse assim, como teria escrito “A borboleta amarela”, um de seus textos mais conhecidos e que dá título à antologia publicada em 1955? Na verdade trata-se de uma sequência de três crônicas em que narra a perseguição, a distância e sem a rede do entomologista, a uma borboleta por um homem encantado, depois que ela lhe mexeu com as asas nos cabelos, exatamente na esquina da avenida Graça Aranha com a rua Araújo Porto Alegre, um das mais movimentadas do centro do Rio. Braga é possessivo: “A minha borboleta! Isso, que agora eu disse sem querer, era o que eu sentia naquele instante: a borboleta era minha – como se fosse meu cão ou minha amada de vestido amarelo que tivesse atravessado a rua na minha frente, e eu devesse segui-la. Reparei que nenhum transeunte olhava borboleta; eles passavam, devagar ou depressa, vendo vagamente outras coisas – as casas, os veículos – ou só vendo; só eu vira a borboleta, e a seguia, com meu passo fiel”. O jornalista Marco Antonio de Carvalho, autor deste Rubem Braga: um cigano fazendeiro do ar, sabia que, para dar um retrato integral do homem que escolheu para biografar, precisava entender e explicar quem foi o menino Rubinho, para a vida inteira marcado pelo seu tempo de formação em Cachoeiro de Itapemirim. É sintomático que, na “Nota do autor”, Carvalho refira-se à professora de literatura Maria de Lourdes Patrini, que insistiu para que ele, também nascido em Cachoeiro, não apenas lesse com cuidado a obra de Rubem Braga, “mas que contasse a sua história, a partir da minha vivência cachoeirense”. Foi o estopim desta biografia, que o autor, infelizmente, não viu publicada: a primeira edição saiu no fim de 2007, e ele morreu em junho daquele ano. Conheci Marco Antonio de Carvalho durante o período de pesquisa e escrita para a feitura do livro, e posso dar testemunho de sua total dedicação, até mais, obsessão, para com a figura e personalidade de Rubem Braga, que ele não conheceu pessoalmente. Como se Carvalho visse na figura

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sisuda do cronista, com aqueles bigodes em forma de trapézio e as casmurras sobrancelhas, a sua íntima “borboleta amarela”, a qual devia perseguir em busca da leveza, da beleza e do mistério que Braga soube emprestar a simples crônicas. Até pouco antes de terminar a biografia, Marco Antonio de Carvalho não se dava por satisfeito: “Sinto que ainda me falta alguma coisa, preciso escarafunchar mais. É muito difícil para o biógrafo abandonar o biografado. Mas tenho de cumprir o prazo que dei a meus editores, dar um ponto final nessa loucura”, contava ele, que bancou grande parte do trabalho do próprio bolso. A investigação consumiu dez anos. Primeiro grande ponto a favor: não teve as limitações de tempo e espaço que, muitas vezes, prejudicam trabalhos dessa natureza. Um segundo: incluiu 270 entrevistas realizadas em Cachoeiro de Itapemirim, Vitória, Rio de Janeiro, São Paulo, Roma, Paris, entre outras cidades. Como se sabe, para realizar uma investigação como esta, é fundamental a informação em primeira mão, que só se consegue em longas conversas (muitas vezes, mais de uma) com aqueles que conviveram com o objeto principal da biografia. Com faro e perspicácia, Marco Antonio Carvalho descobriu ou teve acesso a cartas, destinadas a familiares e a companheiros de geração e ofício, as quais, por seu teor íntimo, constituem um tesouro para qualquer biógrafo. Some-se a isto a pesquisa e leitura cuidadosa de dezenas de coleções de jornais e revistas, de onde Carvalho retirou textos inéditos em livro, muitos dos quais escritos em primeira pessoa, que lhe facilitaram a reconstituição da trajetória do cronista que soube usar a primeira pessoa com charme discreto mas sempre com os dois pés na realidade. Destaque-se ainda a reunião de fotos que vão do início do século xx até a morte do cronista (de câncer na laringe, no dia 19 de dezembro de 1990) e uma bibliografia de mais de quatrocentos livros. O resultado é um monumento – bem redigido e documentado – não apenas sobre a crônica como gênero literário, mas também sobre um rico período da vida intelectual e política do país. Braga, que começou a escrever crônicas assinadas aos quinze anos, foi um verdadeiro padroeiro do gênero no Brasil. Os anos 1950 compreen-

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dem a chamada época de ouro da crônica brasileira, quando se consolidou a relação de estima entre o cronista e o grande público leitor de jornais e revistas. Antes tivemos a base plantada por José de Alencar e Machado de Assis – autores do que se chamava à época, segunda metade do século xix, “folhetim” –, que evoluiu com a contribuição de Lima Barreto, João do Rio, Olavo Bilac, Humberto de Campos, além dos modernistas Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Seguindo a fila puxada a partir da década de 1930 por Rubem Braga, o período mais produtivo – quando se criou a forte impressão, perdurável até hoje, de que a crônica era, é, um gênero genuinamente brasileiro – apresentou um elenco de craques: Nelson Rodrigues, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Antônio Maria, Sérgio Porto (e sua persona Stanislaw Ponte Preta), José Carlos (Carlinhos) Oliveira, passando pelos poetas Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Mulheres, também. Formava no primeiro time uma linha de frente com Cecília Meireles, Rachel de Queiroz, Clarice Lispector e Elsie Lessa. Com reservas à altura: Eneida e Maluh do Ouro Preto, por exemplo. Se voltarmos mais no passado, há de se registrar que o pseudônimo Madame Chrysanthème (tirado do romance homônimo do escritor francês Pierre Loti) escondia a escritora Cecília Bandeira de Melo Rebelo Marco Antonio de Carvalho trata em detalhes de tudo que envolveu seu biografado, por mais doloroso que fosse − por vezes, de maneira discreta, mas sem omissões. Este leitor muito particular só lhe faz uma restrição: Carvalho não considerava Rubem Braga um grande frasista. Discordo. Aqui ficam alguns exemplos: “Sou do tempo em que os telefones eram pretos e as geladeiras, brancas”; “Fazer política é namorar homem”; “Peixe e hóspede, depois de três dias, fedem”; “Crônica é viver em voz alta”; “Ultimamente têm passado muitos anos”. Passaram-se muitos anos, é verdade. Menos para Rubem Braga, que tinha o toque de mágica de transformar o efêmero em eterno. Ao ler esta biografia, você vai conhecer muitos dos inesgotáveis truques do cronista maior.

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Abertura

1944-45, I tá lia a guerra de um rep ó rter O jipe seguia, os faróis apagados, em busca da velocidade ideal: não tão rapidamente que seus ocupantes pudessem se expor a um desastre, mergulhando o veículo nas laterais da estrada, cercada de árvores cinza e nuas; nem tão lento, de forma a se tornar um alvo fácil para um inimigo que, apesar de derrotado e em fuga, permanecia atirando, de quando em vez. O correspondente de guerra Rubem Braga, aos 32 anos, estava no assento traseiro do veículo, com o italiano Nartiro Pedrazzoli. O também correspondente Raul Brandão seguia sentado à frente, ao lado do motorista Atilano Vasconcelos Machado, gaúcho de Bagé. Numa curva, de repente, surgiu uma coluna alemã, com carros puxados a cavalo, metralhadoras montadas, soldados de bicicleta, a cavalo, a pé. Machado jogou o carro para a direita e saiu em disparada pelo campo, passando ao lado dos alemães. Um nazista ergueu o fuzil e apontou. Rubem sentiu que seria atingido e instintivamente fez um sinal com a mão: “Não, não”. O soldado baixou a arma por um instante – o bastante para que o jipe passasse a toda velocidade entre duas árvores. Mas o motorista viu à frente um canal e freou bruscamente; Braga foi então lançado no ar com tanta força que caiu muito além da vala. Quando se ergueu, viu Nartiro subindo uma encosta, zonzo, em direção aos alemães. Gritou seu nome e ele retornou, aos tropeções. Viu Machado, mas Brandão desaparecera. Sentiu que quebrara um dedo, mas a dor maior era no peito; estava certo que ferira também uma costela. Chamou Brandão, com cuidado, mas não houve resposta: estavam a menos de dez metros da estrada por onde passava a coluna alemã.

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Escondem-se, arrastam-se, e aproximam-se de uma cabana de camponeses, que os protegem até a chegada dos médicos. Rubem avisa que é preciso recolher o corpo de um homem – estava certo de que Brandão tinha morrido. Pouco depois, o outro correspondente chega, carregado: está ferido na testa e sente uma dor muito forte em uma das pernas. Mas está calmo e lúcido. Rubem mantém a calma e o comando: pede que os camponeses cubram o jipe com galhos para que os alemães não desconfiem da sua presença. Apesar da tensão, há algo de cômico: o uniforme de Machado está empapado de gema, clara e casca de ovos; é que, sem nada mais com que agradecer à chegada dos liberatori, como chamavam as tropas aliadas, os camponeses italianos as detinham, a cada curva, para saudá-las e presenteá-las com o que lhes restava: ovos. Rubem acredita que será melhor permanecer ali, até a chegada das tropas aliadas, mas sente que é urgente socorrer Brandão, que geme esticado sobre a mesa. Um camponês sai em busca de algum médico, numa aldeia vizinha, mas retorna sem novidades. Nartiro se propõe a pedalar até S. Ilário, para arranjar o médico – mas então é a dona da casa que faz objeções: duas bicicletas da família tinham sido levadas pelos alemães e, agora, só restava uma, velha e enferrujada, escondida no sótão. Tinha medo de emprestar aquela última aos desconhecidos. Rubem mostra que tem dinheiro no bolso e que pagaria pela bicicleta, se o italiano não voltasse. Conversa com ele e deixa claro: se Nartiro tivesse medo de ir – ou, depois, não quisesse voltar –, ele próprio, Rubem, poria uma roupa de paisano e buscaria socorro. Nartiro se irrita: – Eu voltarei! – e saiu com a bicicleta. Minutos depois, um padre apareceu, numa bicicleta nova, o que não era bom sinal. A primeira pergunta ao ferido foi se este era católico; depois, qual era a nacionalidade dos três desconhecidos – interpelações que levaram Rubem a desconfiar que aquele era um sacerdote fascista e que poderia denunciá-los assim que saísse. Enquanto ponderava no que fazer – um tiro era impensável: os alemães ouviriam; agredir o padre, tirar dele a bicicleta? –, o sacerdote saiu rapidamente, deixando-os ainda mais assustados.

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O silêncio baixou sobre a casa. A mulher cozinhava uma aromática sopa em um enorme caldeirão, quando Machado entrou correndo: – Seu Rubem, vem cá! Depressa! Rubem saiu, em pânico, até a janela – e viu: um jipe alemão vinha, a toda velocidade, em direção à casa. Em minutos estaria ali. Não havia tempo para esconder Brandão. Rapidamente, disse à mulher que, se perguntassem se havia mais soldados na casa, dissesse que sim: os nazistas matariam a todos se a mulher mentisse. – Seu Rubem! – gritou novamente Machado, da janela. Os gritos, lá fora, não eram de dor ou apreensão: o jipe era alemão, o motorista tinha um gorro de pala alemão na cabeça, as armas que empunhavam eram alemãs – mas eram todos partigiani, italianos da resistência. Era Nartiro que voltava, trazendo cinco homens armados e um médico. Brandão foi rapidamente transportado para o jipe, todos se aboletaram ali e partiram na direção de Montecchio, em busca de um médico para os feridos. Machado segurava uma vara com uma pequena bandeira italiana: naquela confusão seria fácil levar um “tiro amigo” – podiam ser confundidos com alemães. Em Montecchio, Rubem descobriu que não tinha nenhuma costela partida – a dor era resultado do choque –, mas quebrara um dedo. Não havia o que fazer: o hospital estava sem luz e o aparelho de gesso não tinha gesso. Teriam que encontrar tratamento em outro local. Três horas depois, estavam novamente na estrada, em busca dos médicos da 893a Clearing Company americana, baseada momentaneamente em Modena. Mais tarde, Rubem foi transferido para o estádio de Bolonha e, depois, para um grande hospital no alto de uma colina. Braga permaneceu pouco tempo internado no hospital. Fugiu dois dias depois, na manhã de 30 de abril: o peito já não doía e ele sabia que, na frente de combate, a guerra estava para terminar e que a qualquer momento as tropas alemãs iriam se render – mas ainda ocorriam rápidos combates. Os médicos não lhe davam alta, o que o obrigou a fugir. De carona em carona, foi de Bolonha a Vignola, e depois seguiu de caminhão até a frente.

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Desde as onze horas da noite de 28 de abril de 1945 começaram a surgir vultos com bandeiras brancas na estrada: era o chefe do Estado-Maior da 148a Divisão Alemã que vinha de Fornovo, região próxima a Parma, com dois outros oficiais negociar a rendição. No dia seguinte, os chefes militares brasileiros estipularam dia e hora de apresentação da derrotada tropa alemã. Durante mais de 24 horas, milhares de soldados alemães saíram de suas trincheiras, desceram a pé as colinas e depositaram, em silêncio, suas armas no local definido pelo comando brasileiro. Antes, abandonaram carros e motocicletas pelo caminho. Somente às seis da tarde do dia 30, depois que seu último soldado se entregou, é que o general Fretter-Pico, comandante alemão, se apresentou. A foto que lembra o final daquela que foi a mais espetacular ação da Força Expedicionária Brasileira reúne o coronel Nelson de Mello recebendo um vencido, mas ainda orgulhoso general nazista – e, atrás dele, atento, bigodinho aparado, o correspondente de guerra Rubem Braga, único repórter brasileiro presente. Por mais altivos que estivessem os oficiais alemães e orgulhosos os brasileiros, o ambiente não podia ser solene. Havia muita poeira na estrada e ouviam-se os relinchos de equinos em cio – a primavera transformava o campo onde se reuniam as viaturas a cavalo em uma rude e cômica tragédia, com os conscienciosos nazistas querendo deter o fogo daquelas centenas de animais roubados aos campônios italianos. Um oficial de cabelo raspado atrás e monóculo à von Stroheim puxou conversa com o repórter. Parecia um terrível oficial prussiano – mas confessou que era intérprete, filou um cigarro Liberty Ovais do correspondente e disse que teria prazer se fosse levado preso para o Brasil, onde talvez mais tarde pudesse começar vida nova. E Rubem ainda teve que explicar o pouco que sabia sobre a situação da Áustria, a partir da pergunta de um outro oficial.

Rubem Braga só foi correspondente de guerra na Europa por conta da pressão feita por Horácio Carvalho Júnior, dono do Diário Carioca. A ditadura Vargas não queria que jornalistas independentes – aqueles que não eram

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contratados pela Agência Nacional – fossem à Itália. O general e ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, considerava que jornalista atrapalha e Amílcar Menezes, que substituíra Lourival Fontes na direção do Departamento de Imprensa e Propaganda de Vargas, concordava, como costumava fazer. Além do mais, afirmavam, havia jornalistas o bastante na an. Mas Dutra fazia, havia tempos, uma guerra particular contra o dip, o Departamento de Imprensa e Propaganda da ditadura Vargas. O resultado é que ele afinal apoiou a ida de repórteres até a Itália, ainda que a saída do primeiro escalão da feb somente ocorresse em 2 de julho de 1944, e a ele se juntassem apenas jornalistas e cinegrafistas oficiais. No Rio, os jornais continuaram insistindo e, durante dois meses, a situação não se modificou. Os jornalistas independentes somente viajaram no segundo e terceiro escalões, em 22 de setembro, e eram apenas cinco: Egydio Squeff, de O Globo; Raul Brandão, do Correio da Manhã, e Rubem Braga, do Diário Carioca – no lugar de Otávio Tirso de Andrade, que se casara recentemente e foi docemente constrangido pela mulher a não enfrentar outra guerra além da conjugal. Semanas mais tarde, seguiram Joel Silveira, dos Diários Associados, e Thassilo Mitke, da Agência Nacional. Carlos Lacerda, do Correio da Manhã, apesar de insistir no credenciamento, teve seu nome vetado, oficialmente porque era arrimo de família. E Rubem diria que só chegou à Itália porque era teimoso e porque o diretor do Diário Carioca superou todas as dificuldades para enviar seu correspondente. (Há, no entanto, uma carta de Fernando Sabino para Otto Lara Resende, datada de 13 de outubro daquele ano, em que o mineiro fala de uma reunião de amigos no Alcazar, em Copacabana, na noite anterior. Entre eles, conta o aniversariante Sabino, estava Rubem Braga. Ou Fernando bebeu demais ou se confundiu com as datas.) Rubem pensava em contar, dia a dia, a vida e a luta dos pracinhas, numa linguagem simples e clara, sem apelos a heroísmos e grandiloquência. Mas desistiu: os jornalistas brasileiros não tinham as mesmas facilidades de informação e de transportes que havia em outras unidades aliadas. E, por fim, era o único jornalista que dependia inteiramente da via aérea para enviar seus trabalhos, o que o limitava bastante, já que não tinha como fazer reportagens sobre temas importantes com a devida rapidez.

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O fato é que, entre a criação da feb, em março de 1943 – após a visita-relâmpago do presidente Roosevelt a Vargas, em Natal –, e a partida do primeiro escalão para a Itália, mais de um ano se passou entre futricas, disse que disse, rasteiras, declarações e piadinhas. Sequer a seleção dos soldados brasileiros, os pracinhas, atendeu a regras mínimas de exigência. Não foram feitos rigorosos exames médicos ou físicos e, apesar de todos os esforços, analfabetos foram levados – não que estes atirassem pior do que aqueles que sabiam ler. A incúria, a má vontade, a negligência, o despreparo eram tais que, apesar de o general-chefe da feb, Mascarenhas de Morais, chamar a atenção para a necessidade de agasalhar os soldados contra o rigoroso inverno alpino, o material empregado na confecção das roupas era de qualidade inferior. O problema era tão visível que, na Itália, o próprio Mascarenhas foi advertido por oficiais americanos: aquilo não era fardamento que se apresentasse numa guerra de tal quilate. O general teve que engolir o sabão: era o primeiro a saber do desinteresse do governo e do próprio exército naquela missão. Isso para não falar da carência de material colocado à disposição dos soldados: o treinamento foi em grande parte teórico, não havia fuzis e balas o bastante. Os pracinhas, na verdade, somente teriam um treinamento digno desse nome na própria Itália, pouco antes de entrar em batalha. O correspondente de guerra Rubem Braga embarcou para a Itália no navio americano General Mann, com outros 5.074 brasileiros fardados, no segundo escalão da Força Expedicionária Brasileira, a feb, no dia 18 de setembro de 1944. Mas ficaram todos embarcados e à espera durante quatro dias: a partida só se deu em 22 de setembro. E, até chegar a Nápoles, foram dias de mar e tensão: havia constantemente a ameaça do ataque de submarinos alemães. Não foi uma viagem confortável: o beliche do correspondente, em um camarote superlotado, ficava sobre o de um tenente bancário e debaixo de outro, ocupado pelo volumoso promotor militar Amador Cisneiros, o que fez com que o repórter notasse que estava, mais uma vez, sob a terrível ameaça da Justiça Militar. O único conforto era o fato de que, naquele mesmo

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compartimento, estavam sete religiosos, cinco padres e dois pastores protestantes. “Se eu morrer aqui, se um torpedo me estraçalhar, se Amador Cisneiros me esmagar, morrerei em grande odor de santidade.” Assim que os enormes barcos saíram da baía da Guanabara, os homens correram para a amurada, sabendo, mas evitando dizê-lo, que aquela poderia ser a última vez que muitos deles poriam os olhos na cidade do Rio de Janeiro. Um padre conclama todos a erguer os olhos para o céu; mas, constata Rubem, todos se voltam para a cidade e a olham, silenciosos e comovidos. “Pois que cidade dos homens é mais humana que vós, Rio de Janeiro?”, ele se pergunta. Como despedida, silenciosa e humilde, num pequenino barco de pesca, um pescador solitário põe-se de pé, a camisa esfarrapada, e acena sem parar, lentamente, como que cumprindo um dever, até que seu barco desaparece, ao longe, entre as ondas. É a última imagem que aqueles homens guardam da cidade. Antes da partida, o repórter Rubem Braga tomou algumas providências: visitou o filho em Cachoeiro de Itapemirim, ainda vivendo com a avó e a tia, e conseguiu arranjar, com Rivadávia de Souza, amigo dos tempos de Porto Alegre, um jeito de receber mais um dinheirinho. Diretor de imprensa do Banco do Brasil, Rivadávia passava para Rubem a comissão pela publicação de anúncios e balanços do banco. O cronista precisava daquilo: deixou bem claro que estava indo para uma guerra e que não sabia quando e se voltaria. Sem dramas, abraça os amigos com um ar de despedida. Inquieto, inadaptado, impaciente, é “o pior conversador do mundo”, na visão daqueles que o conhecem. Publicara, afinal, Morro do Isolamento, seu segundo livro, no qual faz uma longa dedicatória a Hitler, “o grande cão escandaloso” e àqueles que “trabalham mesquinhamente contra o amanhã, aos carniceiros prudentes e às velhas aves de rapina barrigudas e aos vendedores de água podre, aos que separam os homens pela raça e pelos privilégios; aos que aborrecem e temem a voz do homem simples e o vento do mar; e aos urubus, aos urubus!”. A rotina a bordo era monótona, desconfortável, cansativa. Começava às 5h30 da manhã, com o toque da alvorada: o som estridente da corneta ecoava

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através dos alto-falantes por todo o navio. Às seis horas a primeira turma entrava no refeitório e era servida uma papa saudável, mas sem gosto, sem sal. A primeira batalha seria contra a censura, que tanto abria cartas íntimas quanto cortava informações banais. Essas cartas deviam todas sair com o cuidadoso “De alguma parte da Itália”, para evitar que o inimigo os localizasse. Mas também as cartas que chegavam do Brasil eram abertas e, nesse caso, a tesoura da censura era ainda mais rigorosa. Os oficiais temiam críticas à situação política interna do país e que indiscrições familiares sobre o, digamos, comportamento das esposas, noivas ou namoradas, levasse à derrocada moral da tropa. “Em tempo de guerra é muito não se mentir; dizer qualquer verdade é impensável”, concordaria Rubem quatro décadas mais tarde, ao apresentar o livro A luta dos pracinhas, de Joel Silveira e Thassilo Mitke. Mitke, o mais jovem dos correspondentes brasileiros, contaria a visão que teve ao chegar à Itália e encontrar os veteranos: “Squeff batendo vagarosamente numa portátil, Brandão sumido sob uma tonelada de cobertores e Braga, na cama, debruçado sobre um mapa enorme, do tamanho de um lençol”. Entre os correspondentes, no entanto, é o sergipano Joel Silveira aquele que se tornaria um dos seus maiores amigos. A passagem pelos campos de guerra na Itália seria motivo de troças mútuas durante anos, a começar pelo fato de Braga fumar desbragadamente e quase não comer – um pecado mortal para o glutão Silveira. Somente mais de um mês após chegar a uma Nápoles arrasada é que Rubem e Egydio Squeff, correspondente de O Globo, conheceram a frente de combate. O jipe dos correspondentes, guiado pelo gaúcho Aristides, transpôs o portão da antiga cidade murada de Barga. Nos dedos do inveterado fumante Rubem, um cigarro Yolanda, cujo maço trazia o desenho de uma loura, batizada de Bionda Cativa (“loura ruim”, diziam os soldados, que preferiam tragar cigarros americanos). Na boca de Squeff, comentários dignos de Marx, o Groucho, que deixavam os ouvintes perplexos e sem saber se deviam ou não rir. Ao escutar explosões de granadas, por exemplo, Squeff repetia: “O que vale é que meu relógio é antimagnético”. Ou, ao final de uma grave exposição de um ofi-

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cial sobre o funcionamento de uma nova peça de artilharia: “Sim, senhor, o que é a natureza!”. A ruazinha medieval e estreitíssima de Barga comportava exatamente a passagem de um jipe e quem os apresentou àquela paisagem entre os Apeninos e os Alpes foi o general Zenóbio da Costa, que ali estava havia meses, comandando o esquadrão brasileiro. Zenóbio adiantou aos repórteres que estava em preparo um ataque às forças alemãs concentradas em Castelnouvo di Garfagnana, mais ao longe. Em seu papel de questionador, Rubem duvidou: o destacamento brasileiro era pequeno, o objetivo ficava distante, os alemães estavam ali havia tempos. Zenóbio notou o ar de dúvida do repórter e bateu em seu ombro: “Meninos, vocês vão almoçar comigo amanhã em Castelnuovo di Garfagnana!”. Era uma bravata: o exército alemão não só repeliu o ataque dos brasileiros – não apenas aquele, mas até o fim da guerra – como, mais tarde, retomaria a pequena Barga. Isso não impediu que o repórter mantivesse uma imensa simpatia pelo general Zenóbio e seu jeitão, “rude e generoso”. Rudeza que incluiu a tentativa de impedir a presença de soldados negros no desfile dos pracinhas, no centro do Rio de Janeiro, antes do embarque: “Ir para a Itália e lá morrer, bem; desfilar na avenida, não”, ironizou o correspondente. Naquela manhã, Rubem havia visitado uma bateria de artilheiros ingleses que apoiava a tropa brasileira e, pela primeira vez, teve que correr em zigue-zague, num terreno cheio de lama e pedras, para chegar aos soldados. No alto do morro, o inimigo espreitava. O dia se encerrou com sinais de euforia: a tropa conquistou espaço, aprisionou uns tantos italianos – mas, no dia seguinte, os alemães contra--atacaram, e a vitória do dia 30 transformou-se rapidamente no desastre do dia 31 de outubro. O repórter tentou voltar à frente de combate e foi proibido: a tropa seria remanejada. Essa tropa era formada por soldados que não pertenciam de forma alguma a uma elite: eram homens do povo, com exclusão dos oficiais. Era o denominado “zé-povinho” que ali estava representado, muitos oriundos do meio rural e do pequeno comércio. Foi a esses homens que Rubem prefe-

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riu acompanhar e ouvir: grande parte das suas reportagens, publicadas no Diário Carioca e, mais tarde, lançadas no livro Com a feb na Itália – que dedicaria aos “dois pracinhas do povo”, um chofer e um pedreiro, os cachoeirenses Quitito e Orestes, mortos em 1935 –, são conversas com soldados, homens simples do interior do país. Pois estudantes de classe média, exatamente aqueles que lideraram campanhas e passeatas a favor da entrada do Brasil na guerra, não foram convocados para se expor às bombas, aos tiros e à morte na Itália. Solitário, silencioso, sonso, o correspondente preferia caminhar entre aqueles homens simples a ouvir discursos oficiais. A ele os soldados pediam que publicasse o nome da amada no jornal, perguntavam o resultado de um Fla × Flu (houve um 6 a 1 para o rubro-negro bicampeão carioca naquele ano), falavam um italiano estropiado (“io non gostare ma fumare porque me dare”, diria um soldado ao agradecer o cigarro que um italiano insistia em ceder) e costumavam responder a um agradecimento (prego!) berrando um “martelo!”. Mas a opção por ouvir os soldados não impediu o correspondente de entrevistar os líderes da campanha brasileira durante a guerra, escrevendo suas reportagens à luz de velas. Nenhum correspondente de guerra aproximou-se tanto das batalhas quanto Rubem. Com isso, confirmou que o despreparado soldado brasileiro reagia da mesma forma que o americano, canadense, inglês e indiano, com os quais também conviveu durante seu tempo de Itália. A guerra se aproximava do fim, mas ainda era uma guerra e havia medo, dor e morte. O pior era aquilo que os alemães chamavam de “fogo de inquietação”: A gente ouvia um ruído surdo, um ruído distante, como se alguém tivesse feito “ran” com a garganta, e contava até nove; vinha então uma explosão tremenda, que abalava tudo, e logo depois um estraçalhar de árvores, que era a chuva dos estilhaços. Depois era apenas o murmúrio do rio nas pedras, às vezes um sussurro de vento, às vezes o motor de um caminhão e de repente, no meio da conversa, baixo, mas inconfundível, aquele “ran” abafado, longínquo, que nosso ouvido aprendia a distinguir de qualquer outro ruído. Se o cansaço vencia a

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tensão nervosa e a gente dormia, ainda dormindo ouvia confusamente aquele “ran” e logo o corpo saltava ou se contraía com o deslocamento da explosão.

Ainda havia tempo para as pequenas tragédias e singelos heroísmos comuns a todo conflito. A menina Silvana, de dez anos, é um desses casos: ferida por estilhaços de uma granada, fora levada até a enfermaria onde o repórter ouvia médicos e enfermeiros. Quase nua, o vestido rasgado, em silêncio, a menina tremia enquanto médicos e enfermeiros inclinavam-se sobre seu corpo magro e alvo para extrair os pequenos pedaços de aço que haviam dilacerado sua pele branca e delicada – agora manchada de sangue. A cabeça de Silvana descansava de lado, entre cobertores. A explosão estúpida poupara aquela pequena cabeça castanha, aquele perfil suave e firme que Da Vinci amaria desenhar. Lábios cerrados, sem uma palavra ou gemido, ela apenas tremia um pouco – quando lhe tocavam um ferimento contraía quase imperceptivelmente os músculos da face. Ajeitei-lhe a manta sob a cabeça, protegendo-a da luz, e ela voltou a me olhar daquele jeito quieto e firme de menina correta. É preciso acabar com isso, e acabar com os homens que começaram isso e com tudo o que causa isso – o sistema idiota e bárbaro de vida social onde um grupo de privilegiados começa a matar quando não tem outro meio de roubar. Pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana (sem importância nenhuma no oceano de crueldades e injustiças), pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana (mas oh hienas, oh porcos, de voracidade monstruosa, e vós também, águias pançudas e urubus, os altos poderosos de conversa fria ou voz frenética, que coisa mais sagrada sois ou conheceis que essa quieta menina camponesa?), pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana (oh negociantes que roubais carne, quanto valem esses pedaços estraçalhados?) – por esse pequeno ser simples, essa pequena coisa chamada uma pessoa humana, é preciso acabar com isso, é preciso acabar para sempre, de uma vez por todas.

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Em Roma, numa visita a Clarice Lispector, cujo marido diplomata fora transferido da Suíça para a Itália, Rubem passaria enfim por um momento de conforto físico e animal – mergulhar numa vasta banheira de água quente no Hotel Excelsior, um momento de paz em meio à carnificina Mas era Florença o sonho de todo combatente, correspondentes inclusive. “Que cidade!”, diria um Rubem extasiado. “No dia em que o Brasil foi descoberto, isto aqui já era alguma coisa séria: Botticelli tinha 54 anos, Da Vinci tinha 48, Machiavelli estava nos seus 31, Michelangelo era um rapaz de 25, Andrea del Sarto tinha 52 anos, Américo Vespucci estava com 46 – e Celini ia nascer exatamente naquele ano.” Ali os soldados descansavam, por dois ou três dias, no máximo, com pingue-pongue, leitura, rádio. Os que estavam de folga se reuniam e, em torno de violão, cavaquinho ou acordeão, entoavam um “Jura”, um “Rancho Fundo”, um “Teu cabelo não nega” e homenageavam a bela cidade com “Firenze sogna” (“Firenze sta notte sei bella, in un manto di stelle”) ou a sentimental “Mamma”, que levava os saudosos pracinhas às lágrimas. Em Florença, no Albergo Nazionale, o hotel dos pracinhas, no início de 1945, o jovem funcionário Pietro Galassi provou pela primeira vez o guaraná brasileiro, cercado por vários soldados da feb. A cada copo os bravos o saudavam e foi de tudo que se lembrou, quando acordou, zonzo, no dia seguinte: o guaraná tinha cachaça. E foi em Florença que, num almoço oferecido aos correspondentes pelo general Cordeiro de Farias, este iniciou um discurso sobre a importância da democracia em luta contra as ditaduras de Hitler e Mussolini. Foi quando Rubem o interrompeu, lembrando de um fato ocorrido anos antes: “General, muito me admira o senhor falar em democracia, quando mandou me prender e me deportar”. Cordeiro de Farias ainda tentou argumentar: “Meu bom Braga, os tempos eram outros”. “Democracia é democracia em qualquer circunstância, general”, respondeu Rubem de forma que todo o grupo ouvisse. No final de novembro de 1944, sob frio, neve e chuva e pisando em muita lama, os brasileiros tinham como objetivo tomar o Monte Castelo,

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onde os alemães se entrincheiraram. Lá em cima, os nazistas tinham a visão do entorno e qualquer inimigo que se aproximasse se tornava alvo fácil. As tentativas de conquistar o Monte resultaram em mortos, feridos e humilhação. Até que, numa certa tarde, os correspondentes de guerra foram chamados ao Quartel General Avançado, em Porretta. Seriam introduzidos na sala do Estado-Maior, mas antes lhes avisaram que os oficiais confiavam na mais absoluta discrição da parte de cada um. No interior da sala, o coronel Amaury Kruel, diante de um grande mapa, mostrava as posições ocupadas pelos alemães e onde forças brasileiras e americanas estavam postadas. Depois, o coronel Humberto Castello Branco expôs quais unidades atacariam e de que forma. Era esse o segredo: na manhã seguinte, a feb investiria sobre o Monte Castelo – dessa vez para conquistá-lo. A dúvida era se algum correspondente queria assistir – e se expor – ao ataque. Somente Rubem aceitou. Não por vanglória: o Diário Carioca não tinha franquia telegráfica e suas notícias chegariam atrasadas ao Rio de Janeiro, de qualquer forma. Ao anoitecer, Rubem seguiu em um jipe, subindo a estrada cheia de lama e buracos, na escuridão. Pelos dois lados do caminho, avançavam penosamente, a pé, os homens que atacariam os alemães no dia seguinte. A certa altura, foi obrigado a deixar o jipe e caminhar, até chegar a uma casa que servia de posto de comando. Lá dentro, diante de mapas, oficiais se consultavam e discutiam. Chegavam informações pelo telefone, partiam ordens. O clima era de apreensão. Até alta madrugada, continuaram a passar, lá fora, na lama, na escuridão, os homens cansados, silenciosos, tensos, que ocupariam posições para o ataque. Dormi um pouco no assoalho, entre alguns soldados, mas me levantei cedo e fui para um Posto de Observação próximo – uma simples trincheira cavada na encosta, afastada da casa, onde estavam os generais Mascarenhas de Moraes e Zenóbio da Costa com outros oficiais. Apoiado ao barranco, o general Mascarenhas acompanhava com o binóculo a progressão de nossos homens; o general Zenóbio, sempre valente e

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gostando de mostrar que o era, ficou em pé lá fora, também a olhar pelo binóculo, o que podia não ser bom para ele, mas também não era para nenhum de nós: os alemães certamente notaram seu vulto, à distância, porque uma chuva de obuses não tardou a cair junto de nosso observatório. O general Mascarenhas ouvia as informações, olhava pelo binóculo, às vezes consultava o mapa – e a certa altura me bateu no ombro, fazendo o gesto de quem fuma. Expliquei-lhe que meu cigarro era muito forte, Liberty Ovais, ele certamente fumava cigarro americano, como quase todo mundo. Pegou o cigarro assim mesmo, e pouco depois pedia outro, que acendeu nervosamente. Filou-me, no total, seis ou sete cigarros: era o primeiro ataque sob a sua responsabilidade, confiara na vitória e lá estavam nossos homens agarrados ao terreno ou regredindo, continuavam a chover as granadas alemãs por toda parte, as metralhadoras matraqueavam na distância, passavam para a retaguarda em macas os homens feridos, banhados em sangue, que as ambulâncias levavam. Por volta do meio-dia, a cara feia da derrota era bem nítida: voltei as costas àquele maldito Castelo ponteado de fumaça de obuses, misterioso e inacessível, e peguei uma carona numa viatura qualquer para a retaguarda. No dia seguinte me disseram que tivemos 185 baixas.

Rubem escreveu uma longa e minuciosa reportagem de 21 páginas, em cinco vias, à luz de vela, sobre esse ataque, minuto a minuto. A censura militar, na Itália, não encontrou problemas; a censura do dip, no Rio, proibiu a publicação. E o Monte Castelo só foi conquistado meses depois, em fevereiro, sem a presença do repórter – que estava em Nápoles, enjoado daquela guerra paralisada pelo inverno. Foi nesse hiato, tempo em que não houve batalhas, que o Stars and Stripes, jornal editado pelos militares americanos, expôs em manchete aquilo que os jornalistas brasileiros bem sabiam: “O Brasil mandou soldados para acabar com a ditadura de Hitler e não quer acabar com a ditadura que está instalada em sua casa”. Verdade: nas ruas do Rio, pouco antes, os mais conscientes saudavam a imensa batalha que ocorria na Rússia, entre nazistas e soviéticos, com uma frase que se repetia: “É contra Vargas e sua corja que estamos lutando

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em Stalingrado!”. A cidade russa, os desenhos de Picasso, os poemas de Drummond e a Resistência Francesa eram os únicos alentos para aqueles que viam a democracia e a liberdade sofrerem derrotas seguidas, no Brasil ou na Europa. Vargas, Dutra e Góes Monteiro, porém, continuavam tirando cartas da manga: aventava-se a possibilidade – quem sabe, não é mesmo? – de ocorrer um rodízio, em plena guerra, dos generais comandantes das tropas brasileiras na Itália. Seria uma forma de dar chances a todos, que cada representante dessa gente bronzeada mostrasse seu valor. Estava claro que Mascarenhas de Morais não tinha grandes simpatias por Getúlio e seus generais. Com o tal rodízio, pensavam os homens do governo, se evitaria que Mascarenhas concentrasse poder e simpatia por parte de soldados e população. Mascarenhas ponderou com os oficiais americanos, e estes não apenas não aceitaram a estranha proposta surgida no Rio, como deixaram claro que iriam se dirigir apenas ao general comandante brasileiro presente ali, na Itália. Muito depois do fim da guerra, Mascarenhas de Morais lembraria que em momento nenhum se sentiu apoiado pelo Catete. Mesmo após a vitória, a chegada das condecorações brasileiras à Itália foi adiada de tal forma que, conta ele, “impediu-me de premiar os valorosos combatentes no próprio campo de batalha. Contra esse lamentável descaso, não cesso de lançar o meu brado, tanto mais que em contraste os chefes americanos vinham às nossas linhas distinguir, com sua condecoração, os brasileiros que se destacavam pela coragem e valor”. Em Florença, em uma das tantas folgas, Rubem conheceu uma jovem de 29 anos, mãe da menina Grazia Maria, mulher de tranças negras, sorriso de dentes muito brancos, cujo marido saíra para lutar e não dava notícias havia quatro anos. O correspondente de guerra fez aquilo que qualquer mãe mais ama: tratou bem a menina. Dispensou o jipe, alugou uma charrete, atravessou a ponte, subiram em uma pequena colina, passearam pela semidestruída cidade, ele e Grazia Maria. A menina era só alegria. A mãe agradeceu como pôde e quis ao bondoso brasiliano, apesar de considerá-lo piuttosto brutto.­ Feioso.

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Mas, em 1970, 25 anos após o fim da guerra, quando a revista Realidade enviou o repórter Rubem Braga e o fotógrafo Luigi Mamprin de volta à região onde a feb lutou, o cronista evitou procurar a mãe de Grazia Maria. Na vida de cada um deles, ocorrera algo pior do que a guerra e as recentes inundações que haviam devastado Florença: o humilhante e implacável tempo.

A rendição da tropa comandada pelo alemão Fretter-Pico encerrou-se às dezoito horas do dia 30 de abril de 1945, com a apresentação do general e seu estado-maior, naquela que foi a mais espetacular façanha da feb: 14.777 homens entregaram suas armas às tropas brasileiras. Rubem só retornaria ao Rio de Janeiro pouco mais de um mês depois, em um avião da recém-criada Panair. Tinha, agora, e mais uma vez, a reputação de repórter, além da de respeitado cronista. Foi recebido no aeroporto por Horácio de Carvalho Júnior e pelo amigo Carlos Lacerda que, quanto mais se aproximava da vida política cotidiana e partidária, mais se afastaria dos antigos parceiros. Naquele momento, no entanto, Rubem e Carlos ainda tinham algo em comum: o desprezo pela adesão dos comunistas a Vargas. O líder comunista Luiz Carlos Prestes, dizia Lacerda a Rubem, se transformara em um beato, um padre Cícero de esquerda. Não havia mais espaço para a boêmia e a literatura na vida de Carlos, que perdera o interesse por aquelas dispersivas noites nos bares e na conversa amena e leviana entre copos de chope. Ainda estariam juntos, em almoços familiares ou numa ou outra esporádica visita do cronista ao amigo que construía uma casa em Petrópolis, casa de que Rubem não gostou, com vidro demais, devassada, sem intimidade. Lacerda tornava-se a cada dia mais sério – e, aos poucos, ao chegar ao poder, como governador do estado da Guanabara, em dezembro de 1960, se tornaria moralista e censor a ponto de perseguir antigos companheiros de copo e utopias. Nunca, porém, Rubem e Carlos se tornaram desafetos. De volta da Itália, Braga acreditava que, enfim, poderia viver com um pouco mais de tranquilidade: Getúlio Vargas estava prestes a perder o poder, depois de quinze anos de dribles em toda e qualquer oposição. Difí-

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cil, porém, e bem mais do que entender a guerra recém-finda, seria captar a lógica de Prestes e dos comunistas: depois de anos de prisão e da morte da própria mulher, depois da tortura e do assassinato de companheiros de partido, o líder comunista afirmaria que, naquele momento, o melhor para a esquerda seria apoiar o próprio Vargas nas eleições presidenciais que estavam marcadas para o final do ano. Os comunistas eram adeptos do queremismo, o movimento que tentava fazer com que Getúlio permanecesse no poder. Nem que para isso fosse necessário adiar as eleições, como Prestes propôs ao ditador. “Se Getúlio Vargas deseja marchar com o povo, o partido marchará com ele”, anunciaria a Tribuna Popular, jornal porta-voz dos comunistas. Assim, repentinamente, os trabalhadores de Vargas e os de Prestes (dois gêneros opostos, até aquele momento) se fundiriam, sabe-se lá como. Rubem e o pessoal da Esquerda Democrática denunciam o oportunismo dos comunistas e apoiam o brigadeiro Eduardo Gomes. Mas Getúlio é enfim derrubado (para os comunistas, um golpe perpetrado pelos simpatizantes do capitalismo americano) e Dutra eleito, nas eleições de dezembro de 1945 – e, imediatamente, passa a ser chamado de ditador pelos comunistas, na linguagem dolorosamente denunciada por George Orwell em A revolução dos bichos, escrito naquele mesmo ano. Rubem Braga estava de volta à realidade brasileira – para enfrentar, agora, os seguidores de Marx e Luiz Carlos Prestes, depois de combater desde a adolescência os fiéis de Deus e Alceu Amoroso Lima.

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