SUR 19

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ISSN 1806-6445

revista internacional de direitos humanos

v. 10 • n. 19 • dez. 2 0 13 Semestral

Edição em Português

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POLÍTICA EXTERNA E DIREITOS HUMANOS

David Petrasek

Novas potências, novas estratégias? Diplomacia em direitos humanos no século XXI

Adriana Erthal Abdenur e Danilo Marcondes de Souza Neto Cooperação brasileira para o desenvolvimento na África: Qual o papel da democracia e dos direitos humanos?

Carlos Cerda Dueñas

Limites e avanços na incorporação de normas internacionais de direitos humanos no México a partir da reforma constitucional de 2011

Elisa Mara Coimbra

Sistema Interamericano de Direitos Humanos: Desafios à implementação das decisões da Corte no Brasil

Conor Foley

A evolução da legitimidade das intervenções humanitárias

Deisy Ventura

Saúde pública e política externa brasileira

Camila Lissa Asano

Política externa e direitos humanos em países emergentes: Reflexões a partir do trabalho de uma organização do Sul Global

Entrevista com Maja Daruwala (CHRI) e Susan Wilding (CIVICUS)

A política externa das democracias emergentes: Qual o lugar dos direitos humanos? Um olhar sobre a Índia e a África do Sul

David Kinley

Encontrando liberdade na China: Direitos humanos na economia política

Laura Betancur Restrepo

A promoção e a proteção dos direitos humanos por meio de clínicas jurídicas e sua relação com os movimentos sociais: Conquistas e desafios no caso da objeção de consciência ao serviço militar obrigatório na Colômbia

Alexandra Lopes da Costa

Inquisição contemporânea: Uma história de perseguição criminal, exposição da intimidade e violação de direitos no Brasil

Ana Cristina González Vélez e Viviana Bohórquez Monsalve Estudo de caso da Colômbia: Normas sobre aborto para fazer avançar a agenda do Programa de Ação do Cairo


CONSELHO EDITORIAL Christof Heyns Universidade de Pretória (África do Sul) Emílio García Méndez Universidade de Buenos Aires (Argentina) Fifi Benaboud Centro Norte-Sul do Conselho da União Européia (Portugal) Fiona Macaulay Universidade de Bradford (Reino Unido) Flávia Piovesan Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil) J. Paul Martin Universidade de Columbia (Estados Unidos) Kwame Karikari Universidade de Gana (Gana) Mustapha Kamel Al-Sayyed Universidade do Cairo (Egito) Roberto Garretón Ex-Funcionário do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (Chile) Upendra Baxi Universidade de Warwick (Reino Unido) EDITORES Pedro Paulo Poppovic Oscar Vilhena Vieira CONSELHO EXECUTIVO Maria Brant - Editora Executiva Albertina de Oliveira Costa Conrado Hubner Mendes Glenda Mezarobba Hélio Batista Barboza Juana Kweitel Laura Waisbich Lucia Nader EDIÇÃO Luz González Francisca Evrard REVISÃO DE TRADUÇÕES Carolina Fairstein (Espanhol) Ana Godoy (Português) The Bernard and Audre Rapoport Center for Human Rights and Justice, University of Texas, Austin (Inglês) Pedro Paulo Poppovic (Português e Inglês) PROJETO GRÁFICO Oz Design EDIÇÃO DE ARTE Alex Furini CIRCULAÇÃO Luz González IMPRESSÃO Prol Editora Gráfica Ltda.

COMISSÃO EDITORIAL Alejandro M. Garro Universidade de Columbia (Estados Unidos) Bernardo Sorj Universidade Federal do Rio de Janeiro / Centro Edelstein (Brasil) Bertrand Badie Sciences-Po (França) Cosmas Gitta PNUD (Estados Unidos) Daniel Mato CONICET/ Universidade Nacional Tres de Febrero (Argentina) Daniela Ikawa Rede Internacional para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais/ Universidade de Culumbia (Estados Unidos) Ellen Chapnick Universidade de Columbia (Estados Unidos) Ernesto Garzon Valdés Universidade de Mainz (Alemanha) Fateh Azzam Arab Human Right Funds (Líbano) Guy Haarscher Universidade Livre de Bruxelas (Bélgica) Jeremy Sarkin Universidade de Western Cape (África do Sul) João Batista Costa Saraiva Juizado Regional da Infância e da Juventude de Santo Ângelo/RS (Brasil) José Reinaldo de Lima Lopes Universidade de São Paulo (Brasil) Juan Amaya Castro Universidade para a Paz (Costa Rica)/ VU Univertisiyy Amsterdam (Países Baixos) Lucia Dammert Consorcio Global para a Transformação da Segurança (Chile) Luigi Ferrajoli Universidade de Roma (Itália) Luiz Eduardo Wanderley Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil) Malak El-Chichini Poppovic Conectas Direitos Humanos (Brasil) Maria Filomena Gregori Universidade de Campinas (Brasil) Maria Hermínia Tavares de Almeida Universidade de São Paulo (Brasil) Miguel Cillero Universidade Diego Portales (Chile) Mudar Kassis Universidade Birzeit (Palestina) Paul Chevigny Universidade de Nova York (Estados Unidos) Philip Alston Universidade de Nova York (Estados Unidos) Roberto Cuéllar M. Instituto Interamericano de Direitos Humanos (Costa Rica) Roger Raupp Rios Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil) Shepard Forman Universidade de Nova York (Estados Unidos) Victor Abramovich Universidade de Buenos Aires (UBA) Victor Topanou Universidade Nacional de Benin (Benin) Vinodh Jaichand Centro Irlandês de Direitos Humanos, Universidade Nacional da Irlanda (Irlanda)

SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos é uma revista semestral, publicada em inglês, português e espanhol pela Conectas Direitos Humanos. Está disponível na internet em <www.revistasur.org>. SUR está indexada nas seguintes bases de dados: IBSS (International Bibliography of the Social Sciences); ISN Zurich (International Relations and Security Network); DOAJ (Directory of Open Access Journals) e SSRN (Social Science Research Network). Além disso, Revista Sur está disponível nas seguintes bases comerciais: EBSCO e HEINonline, ProQuest e Scopus. SUR foi qualificada como A1 (Colômbia) e A2 (Qualis, Brasil).

SUR. Revista Internacional de Direitos Humanos / Sur – Rede Universitária de Direitos Humanos – v.1, n.1, jan.2004 – São Paulo, 2004 - . Semestral ISSN 1806-6445 Edições em Inglês, Português e Espanhol. 1. Direitos Humanos 2. ONU I. Rede Universitária de Direitos Humanos


SUMÁRIO

POLÍTICA EXTERNA E DIREITOS HUMANOS DAVID PETRASEK

7

Novas potências, novas estratégias? Diplomacia em direitos humanos no século XXI

ADRIANA ERTHAL ABDENUR E DANILO MARCONDES DE SOUZA NETO

17

Cooperação brasileira para o desenvolvimento na África: Qual o papel da democracia e dos direitos humanos?

CARLOS CERDA DUEÑAS

39

Limites e avanços na incorporação de normas internacionais de direitos humanos no México a partir da reforma constitucional de 2011

ELISA MARA COIMBRA

59

Sistema Interamericano de Direitos Humanos: Desafios à implementação das decisões da Corte no Brasil

CONOR FOLEY

77

A evolução da legitimidade das intervenções humanitárias

DEISY VENTURA

99

Saúde pública e política externa brasileira

CAMILA LISSA ASANO

119

Política externa e direitos humanos em países emergentes: Reflexões a partir do trabalho de uma organização do Sul Global

CAMILA LISSA ASANO E LAURA TRAJBER WAISBICH

139

Entrevista com Maja Daruwal (CHRI) e Susan Wilding (CIVICUS) A política externa das democracias emergentes: Qual o lugar dos direitos humanos? Um olhar sobre a Índia e a África do Sul

DAVID KINLEY

149

Encontrando a liberdade na China: Direitos humanos na economia política

LAURA BETANCUR RESTREPO

163

A promoção e a proteção dos direitos humanos por meio de clínicas jurídicas e sua relação com os movimentos sociais: Conquistas e desafios no caso da objeção de consciência ao serviço militar obrigatório na Colômbia

ALEXANDRA LOPES DA COSTA

181

Inquisição contemporânea: Uma história de perseguição criminal, exposição da intimidade e violação de direitos no Brasil

ANA CRISTINA GONZÁLEZ VÉLEZ E VIVIANA BOHÓRQUEZ MONSALVE

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Estudo de caso da Colômbia: Normas sobre aborto para fazer avançar a agenda do Programa de Ação do Cairo

(CONECTAS DIREITOS HUMANOS)


APRESENTAÇÃO ■ ■ ■

Política externa e direitos humanos Os campos dos direitos humanos e da política externa têm dialogado com cada vez mais frequência nos últimos anos. A convergência desses temas, contudo, tem sido pouco explorada nos círculos acadêmicos do Sul Global, e é muitas vezes considerada secundária para ativistas atuando em âmbito nacional. Esta edição da SUR, elaborada em parceria com Asian Forum for Human Rights and Development, CIVICUS: Worldwide Alliance for Citizen Participation e Commonwealth Human Rights Initiative, busca, por um lado, sensibilizar os leitores acerca das distintas interfaces e interações entre a atuação internacional de seus países e a proteção nacional dos direitos humanos e, por outro, explorar algumas das dinâmicas internacionais contemporâneas, sobretudo a emergência de um mundo multipolar e seu impacto na proteção global dos direitos humanos. Um primeiro bloco temático aborda as mudanças no sistema internacional – principalmente o crescente do papel de destaque que as chamadas potências emergentes (tais como Brasil, África do Sul, Índia e China, entre outras) têm desempenhado - e seu impacto sobre a proteção global dos direitos humanos. A revisão da política externa praticada por esses países e de seu impacto sobre os direitos humanos inclui, por exemplo, o exame da extensão do compromisso e do envolvimento desses países com os mecanismos regionais e internacionais de proteção dos direitos humanos. Nesse sentido, o potencial de atuação dos emergentes em matéria de direitos humanos é examinado por David Petrasek em seu artigo Novas potências, novas abordagens? Diplomacia de direitos humanos no século XXI. No texto, Petrasek defende que, apesar da relutância das novas potências em adotar táticas “tradicionais” tais como o naming and shaming e a imposição de condicionalidades em suas relações bilaterais, esses países tem papel importante na proteção internacional dos direitos humanos em sua atuação pela normatização (standard-setting) em questões específicas de direitos humanos em fóruns multilaterais. Em seu Política externa e direitos humanos em países emergentes: Reflexões a partir do trabalho de uma organização do Sul Global, Camila Lissa Asano, coordenadora do programa de Política Externa e Direitos Humanos da Conectas, examina precisamente a atuação dos países emergentes, com foco no Brasil, junto a órgãos internacionais e mul-

tilaterais. Partindo da experiência da Conectas, o artigo fornece subsídios a outras organizações da sociedade civil que desejem atuar junto aos formuladores e implementadores de política externa para promover políticas mais respeitosas de direitos. Dialogando com esse artigo, a SUR 19 traz uma entrevista dupla com Maja Daruwala, da Commonwealth Human Rights Initiative (Índia), e Susan Wilding, do CIVICUS World Alliance for Citizen Participation (África do Sul), outras duas organizações fiscalizando a atuação externa de seus países em direitos humanos. Tanto para Asano quanto para Daruwala e Wilding, o desempenho externo de seus países no que diz respeito a direitos humanos deixa a desejar em termos de coerência. Um subgrupo de artigos analisa mais especificamente dois assuntos de política externa brasileira: saúde e cooperação internacional para o desenvolvimento. Em Saúde pública e política externa brasileira, Deisy Ventura propõe uma reflexão sobre a diplomacia brasileira na área da saúde – em âmbito regional e internacional - e analisa de que forma a temática dos direitos humanos tem sido incluída nesta agenda de ação externa. Nele, Ventura demonstra o ideário solidário que funda a diplomacia brasileira de saúde, mas alerta para a multiplicação de contradições transversais – de natureza interna e externa – que fragilizam, no atual contexto, a prevalência dos direitos humanos e a própria eficácia da cooperação brasileira em saúde. Já Cooperação brasileira para o desenvolvimento na África: Qual o papel da democracia e dos direitos humanos? de Adriana Erthal Abdenur e Danilo Marcondes de Souza Neto revisita a atuação e presença do Brasil no continente africano, analisando de que forma e em que medida o “modelo brasileiro” de cooperação impacta, direta ou indiretamente, as dimensões de democracia e direitos humanos no continente africano. Os autores apontam, a despeito da retórica não–intervencionista da política externa brasileira, um papel positivo - ainda que cauteloso - do país em seu relacionamento com países africanos. Salientam, no entanto, que há espaço para que o Brasil seja mais um parceiro mais contundente e ativo no apoio à democracia e direitos humanos no continente. O dossiê inclui ainda dois artigos acerca da implementação nacional de normas, decisões e recomendações internacionais. A inclusão desses artigos visa a superar a análise normativa que costuma


pautar análises sobre o tema, incluindo a dimensão política que permeia a incorporação doméstica de instrumentos globais, já que, em um mesmo país, encontramos casos de engajamento ativo, de respeito limitado e de até mesmo de insubordinação em relação às normas internacionais. Essas dinâmicas nos interessam por exercerem impacto considerável sobre o alcance que terão os sistemas na proteção de vítimas em cada contexto específico. Neste contexto, em Limites e avanços na incorporação de normas internacionais de direitos humanos no México a partir da reforma constitucional de 2011, Carlos Cerda Dueñas, examina como a reforma constitucional de 2011 no México incluiu o respeito aos direitos humanos como preceito balizador da política exterior do país e qual foi o impacto deste processo na incorporação de normas internacionais no país. Já Elisa Mara Coimbra discute a relação entre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e o Brasil. Em Sistema Interamericano de Direitos Humanos: Desafios à implementação das decisões da Corte no Brasil, a autora comenta o status de implementação das decisões dos cinco casos em que o Brasil foi condenado pelo sistema regional. Apesar da variedade aqui exposta, não se pode deixar de retomar, ainda que brevemente, às grandes questões e agendas de pesquisa surgidas ao longo do processo de concepção e realização deste número da SUR e que, por uma questão prática, não estão inteiramente contempladas nesta edição. Entre elas salienta-se, por exemplo, os trabalhos que exploram as dinâmicas de transparência, accountability e participação cidadã em política externa, aqueles que analisam o impacto da diplomacia de atores nãoestatais nos direitos humanos em esfera nacional ou global, ou então trabalhos de política externa comparada que analisam conjuntamente duas ou mais políticas de direitos humanos de países do Sul Global. Como era de se esperar, e felizmente, este debate não se encerrará nesta edição e a SUR permanece de portas abertas para continuar este diálogo.

Artigos gerais Como de costume, além dos artigos temáticos, este número da SUR inclui quatro outros artigos. O primeiro deles Encontrando a liberdade na China: Direitos humanos na economia política, escrito por David Kinley, aborda a questão dos direitos humanos na China a partir de uma perspectiva de economia

política. Fugindo dos reducionismos, o autor propõe formas de pensar a relação entre o modelo econômico chinês e a realização das liberdades fundamentais no país. Laura Betancur Restrepo, em A promoção e proteção dos direitos humanos por meio de clínicas jurídicas e sua relação com os movimentos sociais: conquistas e desafios no caso da objeção de consciência ao serviço militar obrigatório na Colômbia, traz uma análise dos trabalhos da Corte Constitucional da Colômbia acerca da questão dos objetores de consciência no caso específico do serviço militar obrigatório. A partir de uma análise de discurso, a autora busca entender a tradução jurídica de demandas sociais e seus impactos diretos e indiretos para os movimentos sociais. Por fim, temos dois artigos que tratam da questão dos direitos sexuais e reprodutivos. O primeiro deles Inquisição Contemporânea: Uma história de perseguição criminal, exposição da intimidade e violação de direitos no Brasil, escrito por Alexandra Lopes da Costa, discute as implicações da proibição do aborto no Brasil, por meio de um relato quase jornalístico acerca de um caso ocorrido no estado do Mato Grosso do Sul. O segundo, Estudo de caso da Colômbia: Normas sobre aborto para fazer avanças a agenda do Programa de Ação do Cairo, de Ana Cristina González Vélez e Viviana Bohórquez Monsalve, explora como a Colômbia e, mais amplamente, a América Latina, têm avançado na implementação do Programa de Ação do Cairo, que discorre sobre acesso a aborto e proteção de outros direitos reprodutivos. Por fim, gostaríamos de salientar que este número da Revista Sur foi feito com o apoio da Fundação Carlos Chagas (FCC). A Conectas Direitos Humanos agradece a colaboração das organizações parceiras no curso da elaboração do dossiê temático desta edição. Agradecemos igualmente a Amado Luiz Cervo, Bridget Conley-Zilkic, Celia Almeida, Daniela Riva Knauth, Deisy Ventura, Eduardo Pannunzio, Eloisa Machado de Almeida, Fernando Sciré, Gabriela Costa Chaves, Gilberto Marcos Antonio Rodrigues, Gonzalo Berrón, Guilherme Stolle Paixão e Casarões, Katia Taela, Jefferson Nascimento, Louis N. Brickford, Márcia Nina Bernardes, Renan Honório Quinalha, Renata Avelar Giannini, Salvador Tinajero Esquivel e Thomas Kellogg pelos pareceres feitos aos artigos publicados nesta edição.


DAVID PETRASEK David Petrasek é professor-adjunto da Faculdade de Assuntos Públicos e Internacionais da Universidade de Ottawa. Ex-assessor especial do Secretário-Geral da Anistia Internacional, possui longa experiência em direitos humanos, questões humanitárias e resolução de conflito, tendo trabalhado para a Anistia Internacional, para o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, para o International Council on Human Rights Policy e como diretor de políticas públicas no HD Centre. O autor lecionou em cursos de direito internacional de direitos humanos e de direito humanitário nas seguintes instituições: Osgoode Hall Law School, Instituto Raoul Wallenberg na Universidade de Lund, Suécia, e na Universidade de Oxford. O autor também trabalhou como consultor e conselheiro para várias ONGs e agências da ONU. Email: David.Petrasek@uottawa.ca

RESUMO Determinar em que medida potências emergentes incorporarão questões de direitos humanos à sua política externa é mais complexo do que geralmente se supõe. Embora estas potências possam estar menos dispostas a adotar estratégias tais como criticar publicamente outros países ou condicionar a sua relação com outras nações ao seu grau de proteção aos direitos humanos, elas podem usar outras táticas, como a promoção do diálogo e a elaboração de normas internacionais ligadas a determinados temas. Como o impacto de estratégias de nomear certos países e constrangê-los publicamente por sua situação de direitos humanos tem sido contestado, esta mudança traz consigo riscos e oportunidades para a manutenção e melhoria de um regime internacional eficaz para a proteção de direitos humanos. Original em inglês. Traduzido por Thiago Amparo. Recebido em outubro de 2013. Aprovado em novembro de 2013. PALAVRAS-CHAVE Nações Unidas – Política externa – Parâmetros internacionais de direitos humanos – Conselho de Direitos Humanos – BRICS – Condicionalidades Este artigo é publicado sob a licença de creative commons. Este artigo está disponível online em <www.revistasur.org>. 6 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


NOVAS POTÊNCIAS, NOVAS ESTRATÉGIAS? DIPLOMACIA EM DIREITOS HUMANOS NO SÉCULO XXI* David Petrasek

Como as potências emergentes tratarão dos direitos humanos em sua política externa? Esta questão surge por uma razão óbvia: o mundo está mudando. O poder econômico e político está se transferindo do Norte e do Ocidente para o Sul e o Oriente; democracias liberais irão compartilhar ou ceder cada vez mais poder a regimes autoritários ou potências emergentes que parecem priorizar a soberania e a não-interferência mais do que o respeito a direitos humanos em outros países. Até o momento, a estratégia de defensores internacionais de direitos humanos consiste simplesmente em insistir que, na medida em que novas potências mundiais surjam, elas devem – não menos do que as atuais – fazer uso de sua crescente influência para pressionar países recalcitrantes a respeitar os direitos humanos.1 Um fórum online dedicado a questões relacionadas a potências emergentes e direitos humanos, entretanto, indica que há, na verdade, diversas opiniões quanto à validade dessa estratégia.2 Alguns dos autores a defendem, sustentando que novas potências devem, sim, tratar de violações de direitos humanos cometidas em outros países.3 Uma série de outros participantes, contudo, explica por que é pouco provável que novas potências o façam.4 Alguns sugerem ainda que, mesmo que potências emergentes estejam dispostas e aptas a priorizar os direitos humanos em sua política externa, pode ser imprudente fazê-lo.5 Embora pareça contraditório, todos esses três pontos de vista são de certo modo válidos. Por quê? Porque existem diversas formas de promover direitos humanos por meio da política externa de um Estado. A tática mais óbvia e visível é dar centralidade a questões de direitos humanos em diálogos bilaterais, atrelando avanços em direitos humanos à melhoria de relações comerciais e outras, e, caso seja necessário, votar em fóruns multilaterais para expressar desaprovação a determinadas questões de direitos humanos em outros países. Essa tática – de crítica pública e imposição de *Uma versão anterior deste artigo foi publicada sob o título “New powers won’t play by old rules”. Disponível em: <http://www.opendemocracy.net/openglobalrights/david-petrasek/new-powers-won’t-play-by-old-rules>. Último acesso em: novembro de 2013.

Ver as notas deste texto a partir da página 14. 19 SUR 7-15 (2013) ■

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NOVAS POTÊNCIAS, NOVAS ESTRATÉGIAS? DIPLOMACIA EM DIREITOS HUMANOS NO SÉCULO XXI

condicionalidades – pode ser usada no caso de alguns Estados, ao passo que outras questões de direitos humanos podem ser tratadas discretamente, por meio de um diálogo contínuo. Além de lidar desta forma com direitos humanos em países específicos, no entanto, os Estados também podem promover os direitos humanos no âmbito global, canalizando a atenção internacional para temas específicos de direitos humanos, por exemplo, em relação a certas categorias de sujeitos de direitos (por exemplo, mulheres, imigrantes, sem-terra), ou certos tipos de direitos (por exemplo, liberdade de associação, e auto-determinação). Isso pode resultar em uma diplomacia voltada a fortalecer as normas de direito internacional ou direcionada ao reconhecimento de novos tipos de direitos humanos (por exemplo, o direito à paz). Ademais, a perspectiva adotada para ambas as táticas, tanto no caso de países específicos, quanto no que se refere a temas específicos nas Nações Unidas, pode ser diferente daquela considerada adequada no âmbito das organizações inter-governamentais regionais. Potências emergentes deverão adotar algumas destas táticas e evitar outras às vezes, por bons motivos. Decisões sobre o que fazer deverão ser baseadas tanto na natureza da tática proposta, quanto no relacionamento existente com o país cujo histórico de direitos humanos está em questão. A este respeito, embora seja provável que menos atenção seja dada a táticas que tratem de países específicos, a abordagem das novas potências em relação a direitos humanos em sua política externa, ao menos em alguns aspectos, será semelhante àquela já adotada pelas antigas potências. Conforme tive a oportunidade de defender em outro trabalho,6 mesmo que seja sensato exigir que novas potências priorizem direitos humanos em suas relações bilaterais (e, mesmo a este respeito, restam dúvidas, conforme veremos abaixo), há várias razões pelas quais tais potências podem se recusar a fazê-lo. A razão mais óbvia é que muitas potências emergentes, por exemplo, a China e a Rússia, são elas próprias alvos de acusações de violações sistemáticas de direitos humanos, e, portanto, é difícil esperar que critiquem outros de boa fé. Mesmo entre as democracias emergentes, sendo os casos mais exemplares Brasil, Índia e África do Sul, há graves problemas de direitos humanos, e isso pode comprometer a capacidade destes países de promover internacionalmente os valores com os quais alegam estar comprometidos internamente. Por isso, muitos comentaristas afirmam que, a não ser que estes países melhorem significativamente a situação interna de direitos humanos, é improvável (e, de qualquer forma, pouco eficaz) que as novas potências se tornem defensores de direitos humanos no âmbito externo.7 No entanto, a aparente contradição entre uma situação interna conturbada de direitos humanos e a promoção de direitos humanos no exterior não é algo novo. Democracias ocidentais, como os Estados Unidos, a França e o Reino Unido, têm criticado abertamente abusos de direitos humanos em outros países, apesar de seu histórico nacional ser longe de perfeito. Além disso, países como a Índia, o Brasil e a África do Sul já se dispuseram a levantar questões de direitos humanos, pelo menos, em relação a alguns países. A Índia, por exemplo, tem feito críticas ao Sri Lanka e votou duas vezes no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas para insistir que esse país investigue propriamente os abusos de direitos humanos 8 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


DAVID PETRASEK

no contexto da guerra contra os Tigres de Libertação do Tamil Eealam (LTTE, na sigla original),8 ainda que a própria Índia seja acusada de cometer abusos em suas guerras contra separatistas da Caxemira e insurgentes maoístas.9 É improvável que a acusação de hipocrisia previna novas potências de criticar outros países nos casos em que, por alguma razão, considerem ser importante fazêlo (de forma muito semelhante às antigas potências). Se estas potências emergentes tomam essa decisão por razões políticas ou em função de uma preocupação genuína com aqueles cujos direitos estão sendo violados, ou alguma combinação dos dois é outra questão (mas, de novo, trata-se de uma questão familiar às antigas potências). Dito isso, é certo que as novas potências buscarão cada vez mais influenciar a pauta de investigações de países específicos, ao menos no âmbito das Nações Unidas, de forma a dar primazia a uma perspectiva não de confronto, mas alicerçada no diálogo. Isso já pode ser verificado no âmbito do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, onde é cada vez mais difícil reunir uma maioria favorável a resoluções referentes a países específicos, e onde muitos governos se opõem, em princípio, ao uso de resoluções voltadas a nomear países específicos para constrangêlos publicamente por sua situação de direitos humanos. Da mesma forma, o sistema de “procedimentos especiais” (os relatores e os grupos de trabalho) continua a ser pressionado a adotar táticas menos agressivas, como relatórios críticos, e a priorizar o diálogo com os Estados. O problema mais básico, no entanto, com a suposição de que as novas potências devem (ou podem) levar questões de direitos humanos para o âmbito internacional é que pressupõe que a condenação e a pressão por parte de qualquer governo estrangeiro, atuando por meio da ONU ou de maneira bilateral, são ou continuarão sendo, um meio eficaz de aumentar o respeito aos direitos humanos. Na verdade, as evidências a esse respeito são inconclusivas (HAFNER-BURTON, 2008). Parece que essa pressão só funciona realmente quando o país sendo investigado tem algo a ganhar (ou a perder) do país ou dos países que o pressionam (FRANKLIN, 2008). Este cálculo pode provocar resultados muito diferentes de em um mundo cada vez mais multipolar. Considere o histórico. A estratégia de usar a política externa e fóruns multilaterais para pressionar regimes violadores de direitos humanos ganhou força real pela primeira vez em meados dos anos 1970 e se intensificou na década de 1980, justamente num momento em que o poder dos países ocidentais estava em ascensão, e o poder soviético em declínio. Os países que enfrentaram esta nova pressão do exterior – ditaduras da América do Sul e Central, África do Sul durante o apartheid, e os regimes comunistas da Europa do Leste – resistiram a essa pressão, ou mudaram suas políticas, conforme o caso, em grande parte conforme o grau em que dependiam das relações comerciais, militares ou de ajuda externa das potências ocidentais que estavam exercendo tal pressão. Na década de 1990, com poucos desafios ao poder dos Estados Unidos (e do Ocidente) e portanto mais países dependentes das relações com eles, havia mais e maior abertura para promover direitos humanos por meio da política externa e da ONU. Assim, houve de fato um aumento dramático do número de países que passaram por uma ou outra forma de investigação pela ONU e dos mecanismos para fazê-lo. 19 SUR 7-15 (2013) ■

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NOVAS POTÊNCIAS, NOVAS ESTRATÉGIAS? DIPLOMACIA EM DIREITOS HUMANOS NO SÉCULO XXI

Além disso, consideremos os casos em que a pressão de governos estrangeiros teve o impacto mais concreto e, inversamente, os casos em que esse impacto foi insignificante. No período pós-Guerra Fria, o desejo de aderir à União Européia e/ ou à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), sem dúvida, motivou os países da Europa do Leste, Central e Sudeste a atentar para questões de direitos humanos levantadas pelos membros daqueles alianças. Da mesma forma, os países de pequeno e médio porte, fortemente dependentes de ajuda ou de comércio e investimentos externos, em alguns casos passaram a respeitar mais os direitos humanos sob pressão externa. Contudo, a crítica ocidental de violações de direitos humanos teve um impacto insignificante sobre grandes potências como a China ou a Rússia, ou médias e pequenas potências não dependentes do Ocidente, como o Irã e o Sudão, ou Sri Lanka e Zimbábue. Muitos outros exemplos poderiam ser mencionados. O opróbio moral decorrente da crítica raramente, por si só, provoca alguma mudança. É o medo de que a crítica, seja bilateral ou por meio de resoluções da ONU, possa produzir repercussões em outras áreas que lhe dá peso. Sobre esta questão, potências emergentes provavelmente diferem das potências antigas. Os países em desenvolvimento têm sido profundamente hostis a tais condicionalidades, e em vários casos os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) têm lutado contra tentativas de vincular as relações comerciais ou de ajuda ao respeito aos direitos humanos.10 Qualquer que seja o fundamento para essa resistência, provavelmente veremos uma maior relutância em aplicar direitos humanos como condicionalidade nas políticas de instituições globais – ONU, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI) – conforme o peso dos votos e a influência das potências emergentes aumentam nessas organizações. Novamente, não estamos sugerindo que as novas potências não se disporão a adotar posições críticas públicas a respeito da situação de direitos humanos em outros países e, em alguns casos, a usar instrumentos políticos, econômicos e de ajuda externa para reforçar esta postura. Embora haja pouca evidência disso no âmbito das Nações Unidas, as novas potências podem agir de maneira diferente em órgãos intergovernamentais regionais e sub-regionais. Por exemplo, regimes repressivos podem ter sua filiação a organizações regionais negada. A União Africana, por exemplo, tem procurado excluir a participação de governos que chegaram ao poder por meio de golpes de Estado ou por outras vias inconstitucionais. Não obstante, o histórico a esse respeito é variado. Na Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN, na sigla original), alguns países como a Indonésia têm, pelo menos em certas ocasiões, defendido critérios mais exigentes de direitos humanos, ao passo que outros países não têm feito o mesmo. Por exemplo, na Organização dos Estados Americanos (OEA), alguns países da América do Sul têm procurado enfraquecer o papel da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).11 A relutância generalizada das novas potências para tratar de direitos humanos em países específicos, cujo sucesso depende em geral de formas de imposição de condicionalidades, não pode, no entanto, ser vista como um indicativo de ausência da promoção de direitos humanos em suas políticas externas. Embora a tática de nomear países específicos e constrangê-los publicamente devido à sua situação 10 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


DAVID PETRASEK

de direitos humanos possa ser a mais visível, essa estratégia está longe de ser a única maneira de promover direitos humanos em outros países. Grande parte do trabalho diplomático em direitos humanos, tanto no âmbito regional quanto nas Nações Unidas, não se concentra em países específicos, mas em temas específicos. Esse esforço pode ter como objetivo identificar políticas e práticas para aprimorar a proteção de direitos humanos específicos, ou fortalecer normas internacionais para tratar de um problema de direitos humanos. Claro, parte deste trabalho é burocrático, e tendo em vista os muitos problemas da ONU, nem sempre é muito eficaz, oportuno ou pertinente. No entanto, uma das maiores conquistas da ONU em direitos humanos tem sido o desenvolvimento de normas internacionais, sejam elas vinculantes ou não, e esse processo está longe de terminar. Mesmo considerando que os principais tratados já foram adotados, o processo para consolidar um acordo internacional, sua interpretação e os detalhes de sua implementação continuarão. Assim como a reforma da legislação interna em relação a direitos é um processo contínuo, o mesmo ocorre no âmbito internacional. Novas potências muitas vezes participaram plenamente e com posições progressistas dos processos de elaboração de normas internacionais. Estados latinoamericanos, por exemplo, ocuparam posição de vanguarda nos esforços para adotar uma nova convenção da ONU contra desaparecimentos forçados, com muitas de suas posições mais radicais do que a postura de alguns dos países ocidentais. Nações africanas desempenharam um papel fundamental na garantia da aprovação do Estatuto de Roma que cria o Tribunal Penal Internacional (embora alguns deles sejam hoje críticos ferrenhos do Tribunal). A convenção referente a direitos de migrantes é defendida por países como o México e as Filipinas, enquanto países ocidentais se recusam a assinar ou ratificar este documento. A África do Sul teve um papel de destaque em garantir uma maior atenção e proteção dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros. Muitos outros exemplos poderiam ser citados. Esse trabalho para desenvolver normas internacionais pode parecer menos virtuoso, e certamente atrai menos atenção, mas, a longo prazo, não é menos efetivo do que o lobby referente a países específicos. Na verdade, pode até ser mais efetivo. Estudos têm demonstrado a importante influência de normas internacionais para alterar o comportamento de Estados, especialmente em países em democratização, onde as normas internacionais podem ser usadas pela sociedade civil local para pressionar por reformas na legislação e na política interna (SIMMONS, 2009). Isto pode ser muito mais efetivo do que resoluções condenatórias em órgãos das Nações Unidas, ou críticas por parte de governos estrangeiros. Visto desta forma, um quadro mais complexo desponta em relação aos direitos humanos na política externa de potências emergentes, o qual sugere que, embora possa haver menos das “antigas” táticas de críticas públicas e de imposição de condicionalidades, outras táticas, incluindo abordagens focadas em diálogo e no estabelecimento de normas temáticas, se destaquem no cenário atual. Se isso for verdade, este quadro apresenta tanto riscos quanto oportunidades para manter e aprimorar um regime internacional eficaz de proteção dos direitos humanos. Um declínio na atenção a países específicos pode apresentar riscos em situações em que ocorram violação de direitos humanos em grande escala e, portanto, em que se faz 19 SUR 7-15 (2013) ■

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NOVAS POTÊNCIAS, NOVAS ESTRATÉGIAS? DIPLOMACIA EM DIREITOS HUMANOS NO SÉCULO XXI

necessária uma medida urgente, inclusive por meio do Conselho de Segurança. Por outro lado, oportunidades de promover reformas de direitos humanos por meio do diálogo Sul-Sul, ou por meio de um processo mais eficiente de Revisão Periódica Universal (RPU) mal foram exploradas. O desafio pode bem ser o de concentrar esforços em garantir o apoio das novas potências, apenas em casos extremos para adotar medidas envolvendo países específicos, e, no mais aceitar que, diante das novas dinâmicas mundiais, a crítica pública e a imposição de condicionalidades não têm futuro. Finalmente, deve-se salientar que, embora seja importante, o trabalho diplomático em uma nova ordem mundial dificilmente será determinante para o futuro dos direitos humanos. A ascensão de novas potências é apenas uma das muitas mudanças globais enormes em andamento. Ganhos dramáticos na educação, inclusive nos níveis secundário e pós-secundário, juntamente com o crescimento exponencial da população urbana e da difusão do acesso à internet móvel (para 5 bilhões de pessoas até 2020) apontam para uma classe média recentemente fortalecida e em crescimento em dezenas de países. As potências emergentes ocupam lugar de destaque neste grupo: China e Índia, é claro, mas também Brasil, Indonésia, México, Nigéria, África do Sul, Turquia e outros. Essa classe média recentemente fortalecida será um motor fundamental de mudança, para o bem ou para o mal. A abordagem adotada por esse grupo em relação aos direitos humanos é provavelmente muito mais importante para as lutas globais em sua defesa do que a política externa de seus governos.

REFERÊNCIAS Bibliografia e outras fontes ASANO, Camila. 2013. Can Brazil promote change without changing itself? Open Democracy. Open Global Rights. 21 de junho. Disponível em: <http://www. opendemocracy.net/openglobalrights/camila-asano/can-brazil-promote-changewithout-changing-itself>. Último acesso em: Nov. 2013. CASON, Jeffrey. 2013. Brazil too ‘traditional’ to be a global human rights leader. Open Democracy. Open Global Rights. 12 de julho. Disponível em: <http://www. opendemocracy.net/openglobalrights/jeffrey-cason/brazil-too-‘traditional’-to-beglobal-human-rights-leader>. Último acesso em: Nov. 2013. FRANKLIN, James C. 2008. Shame on you: The impact of human rights criticism on political repression Latin America. International Studies Quarterly, v. 52, n. 1, p. 187-211, março. GANGULY, Meenakshi. 2013. Can India be an international human rights leader? Open Democracy. Open Global Rights. 21 de junho. Disponível em: <http:// www.opendemocracy.net/openglobalrights/meenakshi-ganguly/can-india-beinternational-human-rights-leader>. Último acesso em: Nov. 2013. 12 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


DAVID PETRASEK

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NOVAS POTÊNCIAS, NOVAS ESTRATÉGIAS? DIPLOMACIA EM DIREITOS HUMANOS NO SÉCULO XXI

________. 2013. Human Rights Council. 2013. Promoting reconciliation and accountability in Sri Lanka, Un Doc A/HRC/RES/22/1. 9 abril. Disponível em: <http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G13/127/55/PDF/G1312755. pdf?OpenElement>. Último acesso em: Nov. 2013. VALJI, Nahla; TLADI, Dire. 2013. South Africa’s foreign policy: between idealism and the realpolitik of being an emerging power. Open Democracy. Open Global Rights. 19 de junho. Disponível em: <http://www.opendemocracy.net/openglobalrights/ nahla-valji-dire-tladi/south-africa’s-foreign-policy-between-idealism-and-realpolit>. Último acesso em: Nov. 2013.

NOTAS 1. Ver, por exemplo, Ken Roth e Peggy Hicks (2013), e Salil Shetty (2013). 2. O fórum ocorreu na página da Internet openGLobalRights. Disponível em: <http://www. opendemocracy.net/openglobalrights>. Último acesso em: Nov. 2013. 3. Ver, por exemplo, Meenakshi Ganguly (2013) e Nahla Valji e Dire Tladi (2013). 4. Ver, por exemplo, Jeffrey Cason (2013). 5. Ver, por exemplo, Ram Mashru (2013) e Aseem Prakash (2013). 6. Ver David Petrasek (2013). 7. Ver Camila Asano (2013) e Nukhet A. Sandal (2013). 8. As resoluções mais importantes são “Promoting reconciliation and accountability in Sri Lanka” (UNITED NATIONS, 2013; e “Promoting reconciliation and accountability in Sri Lanka” (UNITED NATIONS, 2012). 9. Ver, por exemplo, Human Rights Watch, “Everyone Lives in Fear: Patterns of Impunity in Jammu and Kashmir”, setembro de 2006; e Human Rights Watch, “Between Two Sets of Guns: Attacks on Civil Society Activists in India’s Maoist

Conflict”, julho de 2012. 10. Por exemplo, em negociações internacionais de comércio sob os auspícios da Organização Mundial do Comércio (OMC), onde os países BRICS e muitos outros países em desenvolvimento se opuseram ao estabelecimento de qualquer elo entre comércio e direitos trabalhistas, e muitos países em desenvolvimento têm sido hostis à adoção de parâmetros contundentes de direitos humanos por parte do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). 11. Em um processo de reforma iniciado em 2011, Equador, Venezuela, Bolívia e Nicarágua propuseram medidas que levariam ao enfraquecimento da independência e do papel fiscalizador da CIDH. Embora estas medidas não tenham sido adotadas, uma resolução adotada pela OEA consolidou uma solução intermediária em março de 2013 mantendo aberta a possibilidade de reabertura do debate a respeito. Para mais informações veja: <http://www.ijrcenter. org/2013/03/24/oas-concludes-formal-interamerican-human-rights-strengthening-processbut-dialogue-continues-on-contentious-reforms/>. Último acesso em: Nov. 2013.

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DAVID PETRASEK

ABSTRACT The extent to which emerging powers will pursue human rights issues in their foreign policy is more complex than commonly assumed. Although they may be less willing to pursue tactics such as public criticism and conditionality, they may embrace other tactics, including dialogue-driven approaches and thematic-specific standard-setting. As the impact of naming and shaming approaches is in any case contested, such a shift presents both risks and opportunities for the goal of maintaining and improving an effective international regime for the protection of human rights. KEYWORDS United Nations – Foreign policy – International human rights standards – Human Rights Council – BRICS – Conditionality

RESUMEN La forma en que las potencias emergentes tratarán las cuestiones de derechos humanos en su política exterior no resulta tan simple como se cree. Aunque tengan menos tendencia a emplear tácticas tales como la crítica pública y la condicionalidad, pueden servirse de otras tácticas, como los enfoques basados en el diálogo y la creación de normas específicas en la materia. Ante la puesta en entredicho del impacto de los enfoques de denuncia pública y descrédito naming and shaming, ese cambio de estrategia presenta tanto riesgos como oportunidades para el objetivo de mantener y mejorar un régimen internacional eficaz para la protección de los derechos humanos. PALABRAS CLAVE Naciones Unidas – Política exterior – Normas internacionales de derechos humanos – Consejo de Derechos Humanos – BRICS – Condicionalidad

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ADRIANA ERTHAL ABDENUR Adriana Erthal Abdenur, doutora pela Universidade de Princeton e bacharel pela Universidade de Harvard, é professora de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e Coordenadora Geral do BRICS Policy Center. E-mail: abdenur@puc-rio.br

DANILO MARCONDES DE SOUZA NETO Danilo Marcondes de Souza Neto é doutorando no departamento de Política e Estudos Internacionais (POLIS) na Universidade de Cambridge, Reino Unido. Ele lecionou anteriormente na PUC-RIO e trabalhou como conselheiro educacional no escritório do Programa Fulbright no Rio de Janeiro. E-mail: dm595@cam.ac.uk

RESUMO Nos últimos dez anos, as elites responsáveis pela política externa brasileira puseram a cooperação econômica, política e militar com a África entre as prioridades máximas do país, como parte da política de estreitar suas relações com o Sul Global. Embora uma crescente literatura especializada tenha tentado analisar as normas e práticas que esta cooperação implica, apenas uma pequena parcela da literatura atual tem examinado a relevância desta cooperação para a política africana. Neste artigo, consideramos os efeitos da cooperação brasileira para a democracia e os direitos humanos na África sob três aspectos: o alcance e o conteúdo dos programas brasileiros para promoção da democracia; as consequências desta cooperação (oficial e não-oficial) para a democracia e para os direitos humanos; e as respostas do Brasil a crises políticas na África. Original em inglês. Traduzido por Thiago Amparo. Recebido em maio de 2013. Aprovado em outubro de 2013. PALAVRAS-CHAVE Brasil – África – Cooperação – Política externa – Democracia – Direitos humanos Este artigo é publicado sob a licença de creative commons. Este artigo está disponível online em <www.revistasur.org>. 16 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


COOPERAÇÃO BRASILEIRA PARA O DESENVOLVIMENTO NA ÁFRICA: QUAL O PAPEL DA DEMOCRACIA E DOS DIREITOS HUMANOS?

Adriana Erthal Abdenur e Danilo Marcondes de Souza Neto

1 Introdução Na última década, as elites responsáveis pela política externa brasileira puseram a cooperação econômica, política e militar com a África entre as prioridades máximas do país no exterior, como parte da política de estreitar suas relações com o Sul Global. O governo brasileiro não somente vê o continente africano como um mercado promissor para investimentos e exportações brasileiras, mas também considera os estados africanos como aliados políticos cruciais nos esforços do Brasil para se tornar um protagonista no cenário global. Entre as medidas empreendidas para fortalecer parcerias econômicas, políticas e de defesa com a África, podem ser citadas a rápida ascensão de programas de cooperação Sul-Sul, inseridos num discurso de solidariedade e horizontalidade, bem como a transferência de experiências brasileiras em políticas públicas em áreas como agricultura, educação, e saúde. Embora uma crescente literatura especializada tenha tentado analisar as normas e práticas envolvidas nessa cooperação, apenas uma pequena parcela da literatura atual tem estudado a relevância desta cooperação para a política africana. Neste artigo, consideramos os efeitos políticos da cooperação brasileira para a democracia e para os direitos humanos na África em três aspectos: o alcance e o conteúdo dos programas brasileiros para promoção da democracia; as consequências desta cooperação (oficial e não-oficial) para a democracia e para os direitos humanos; e as respostas do Brasil a crises políticas na África que desafiam a democracia e os direitos humanos. Este artigo é exploratório, uma vez que mapeia alguns dos principais padrões da cooperação brasileira de forma a direcionar uma agenda

Ver as notas deste texto a partir da página 36. 19 SUR 17-37 (2013) ■

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de pesquisa a longo prazo que reflita a relevância da cooperação brasileira para a democracia e para os direitos humanos na África. Analisar a cooperação brasileira à luz da política africana é importante não apenas porque o papel do Brasil na África tem crescido substancialmente ao longo da última década, mas também porque este engajamento tem trazido à tona novos questionamentos sobre as normas e princípios subjacentes à cooperação brasileira. Por exemplo, alguns analistas questionam por que um país democrático comprometido formalmente com os direitos humanos como parte de sua política externa tem buscado estreitar laços com regimes fortemente criticados por estados do Norte e organizações da sociedade civil por violar direitos humanos. Ademais, analistas ressaltam o contraste entre esta postura em política externa e as medidas de defesa dos direitos humanos recentemente adotadas pelo governo brasileiro internamente, entre elas a Comissão da Verdade (aprovada em setembro de 2011), com o mandato de relatar as violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar (1946-1988). Outros adotam uma perspectiva pragmática, de acordo com a qual, apesar da conformação democrática do Brasil, em política externa “negócio é negócio,” o que sugere uma predisposição a preferir a expansão de laços econômicos do país a princípios não-econômicos como democracia e direitos humanos. De acordo com esta última perspectiva, apesar de sua retórica robusta a favor de democracia e direitos humanos, democracias liberais têm apoiado regimes autoritários sempre que for política e economicamente conveniente (inclusive o antigo governo militar no Brasil). Outros defensores da orientação atual da política externa brasileira ressaltam que o Brasil lida com estes países promovendo diálogo ao invés de criticar publicamente seu histórico de direitos humanos, como muitas vezes fazem ONGs norte-americanas e europeias, ao mesmo tempo em que defendem que o engajamento, e não o isolamento, pode ser mais efetivo em levá-los a respeitar a democracia e os direitos humanos.1 Alguns doadores do Norte também abordam esta questão de maneira similar, e o governo brasileiro tem enfatizado a necessidade da resolução diplomática de conflitos antes de recorrer à intervenção multilateral (FR AYSINET, F. 2011), ressaltando ainda que tais intervenções levam muitas vezes a mudanças de regime com resultados incertos, ou a soluções que beneficiam primordialmente países membros da OTAN, como verificado nos casos do Iraque e do Afeganistão. Este debate, impulsionado em parte pela diplomacia ativa do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) na África, ressurgiu durante o governo da Presidente Dilma Rousseff (2011-até o momento) uma vez que, neste governo, o Brasil continua a fomentar laços com países cujos governos são identificados como responsáveis por violações de direitos humanos, ao mesmo tempo em que o Brasil passa a questionar mais abertamente a intervenção militar, inclusive em votos no Conselho de Segurança da ONU (CS-ONU) nas crises na Líbia e na Síria. Nossa análise sugere que as iniciativas de promoção da democracia e dos direitos humanos promovidas pelo Brasil no exterior, conduzidas por um discurso de política externa fundado na não-intervenção, limitam-se a regimes em transição que requisitaram de maneira clara assistência em assuntos relativos à governança, 18 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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e a outros membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), uma organização fundada em parte no compromisso de seus membros com democracia e cooperação em governança. De maneira mais ampla, nossa análise indica que a cooperação do Brasil com a África afeta sistemas políticos locais, seja pelo fortalecimento de instituições democráticas, seja, ao contrário, pelo apoio a regimes autoritários. Ademais, a cooperação brasileira com a África tem atraído a atenção de muitas organizações da sociedade civil brasileira, inclusive aquelas que trabalham em parceria com outras entidades na África, o que tem levado a um maior questionamento de algumas políticas de cooperação adotadas pelo Brasil no exterior. Este artigo é estruturado da seguinte forma. Depois de contextualizar o tema com a intersecção entre cooperação para o desenvolvimento e promoção da democracia, incluindo aqui o papel desempenhado pelo Brasil, analisamos o discurso oficial do Brasil sobre democracia e direitos humanos no que tange à política externa brasileira, inclusive para a África. Em segundo lugar, analisamos alguns casos de cooperação do Brasil com a África, verificando em que medida estas práticas aderem a estes princípios. Por fim, consideramos as posições tomadas pelo governo brasileiro em crises políticas importantes na África, e como elas se relacionam com as práticas brasileiras de cooperação e o enfoque do país com questões de democracia e direitos humanos. Por fim, consideramos alguns dos efeitos da cooperação do Brasil no cenário político africano.

2 Cooperação brasileira com a África, democracia e direitos humanos 2.1 Cooperação para o desenvolvimento na África e democracia Embora haja conceitos distintos de “promoção da democracia,” utilizamos aqui a definição proposta por Carothers (2009), segundo a qual consiste em programas de cooperação que busquem também dar apoio à expansão da democracia em um dado país, região, ou outro contexto regional. Embora processos de transição para a democracia sejam em grande medida endógenos, as relações internacionais podem influenciar este processo – seja para impulsioná-lo em direção à democracia, seja para longe dela (BROWN, 2005). Na África, o escopo e a diversidade de programas de ajuda e cooperação (por parte de doadores da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OECD e outros parceiros) indicam que certos aspectos internacionais complexos influenciam diferentes tipos de regimes. A Primavera Árabe também trouxe à tona a importância de elementos internacionais na promoção da democracia em vários níveis, inclusive no âmbito do estado, sociedade civil, e redes sociais transnacionais, produzindo diversos resultados. Embora estudos sobre promoção da democracia tenham como foco a ajuda fornecida por países do Norte, faz-se cada vez mais necessário estudar o papel desempenhado por potências emergentes. Apesar de muitos destes países enfatizaram o respeito à soberania nacional e o princípio de não-intervenção em suas políticas externas, potências democráticas emergentes muitas vezes incluem 19 SUR 17-37 (2013) ■

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reformas do estado entre suas medidas de cooperação. Muito embora estas iniciativas não sejam necessariamente definidas como dirigidas especificamente à promoção da democracia, elas disseminam normas, tecnologias, e práticas que são politicamente relevantes. Durante a Guerra Fria, a ajuda externa dos Estados Unidos tinha um cunho mais anticomunista e anti-revolucionário, do que pró-democrático (LOWENTHAL, 1991). No período pós-Guerra Fria, os doadores dos EUA e da Europa passaram a incluir mais condicionantes políticas à ajuda externa, e investiram de maneira significativa em programas voltados a promover a democracia – com resultados consideravelmente variados (BROWN, 2005 and BR ATTON; VAN DE WALLE, 1997). A partir do momento em que a África passou por uma onda parcial de democratização nos anos 1990, houve avanços e também retrocessos na promoção da democracia; Lynch e Crawford (2011) concluem que, “em geral, muito embora não de maneira universal, países da África Subsaariana são mais democráticos hoje do que ao final dos anos 80.” No entanto, a África continua a enfrentar obstáculos econômicos, sociais e políticos consideráveis para a democratização, inclusive no que diz respeito a legados do colonialismo, políticas clientelistas, e dinâmicas étnico-políticas complexas. Desde 2001, os EUA e a Europa começaram a dar mais peso a seus interesses de segurança na formulação e alocação de programas de ajuda externa, tendo reservado um apoio maior aos países que concordam em cooperar na “guerra contra o terror”, independentemente de seu tipo de regime político. Ao longo da última década, o papel cada vez maior de potências emergentes, em especial a China, na África, tem tornado o cenário de ajuda e cooperação ainda mais complexo. Embora estudos acadêmicos sobre cooperação Sul-Sul já tenham analisado alguns dos efeitos da cooperação chinesa em democracias africanas (ESTEBAN, 2009), pouco foi escrito até o momento sobre os efeitos políticos da cooperação crescente do Brasil com a África. Esta análise se faz necessária não somente em decorrência do crescente papel do Brasil na África, mas também porque o atual Ministro do Exterior do Brasil, Luiz Alberto Figueiredo, tem se mostrado receptivo a que direitos humanos desempenhem um papel maior na política externa brasileira. 2

2.2 Política externa brasileira e direitos humanos Para entender a importância da cooperação brasileira para a democracia e os direitos humanos na África, faz-se necessário considerar suas próprias experiências com a democracia. Primeiro, o Brasil em sua história já recebeu ajuda tanto sob regimes autocráticos, quanto sob regimes democráticos – os EUA contribuíram em ambos os casos. Isso talvez ajude a explicar o tom cauteloso das elites da política externa brasileira quando tratam de democracia e direitos humanos em outros países.3 Em segundo lugar, as próprias experiências políticas do Brasil, entre elas a transição gradual do governo militar (1964-1985) para a democracia, geraram um impacto profundo e duradouro na formulação da política externa brasileira (SANTORO, 2012). Por exemplo, o papel da sociedade civil (local e internacional) no retorno do Brasil à democracia ajuda a explicar a ênfase dada 20 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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pelo Brasil a conselhos de políticas públicas nos vários níveis de governo, do federal ao municipal, bem como recorrentes demandas por maior participação da sociedade civil. Ademais, a sociedade civil brasileira tem desempenhado um papel relevante na cooperação Brasil-África, tanto por meio de parceria em programas oficiais de cooperação, quanto por meio de questionamentos a iniciativas oficiais de cooperação. O governo brasileiro tem reconhecido a importância do vínculo de atores não-estatais com a África; por exemplo, o ex- ministro de Relações Exteriores, Antonio Patriota, afirmou que a África de fato ocupa papel central de interesse não somente para o governo brasileiro, mas também de empresas privadas e organizações da sociedade civil (BR ASIL, 2011a). Muito embora entidades da sociedade civil como ONGs, sindicatos e associações comerciais tenham muitas vezes lutado para expandir o seu espaço no âmbito da política externa brasileira, estas organizações tem desempenhado um papel crescente na cooperação internacional, tanto por meio da participação em programas de cooperação, quanto no seu questionamento. A transição do regime militar ao poder civil também levou a um compromisso formal com a democracia e com os direitos humanos, dentro e fora das fronteiras do Brasil. A Constituição Brasileira de 1988 prevê os princípios que devem reger a política externa do país: independência nacional; prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos povos; não-intervenção; igualdade entre os Estados; defesa da paz; solução pacífica dos conflitos; repúdio ao terrorismo e ao racismo; cooperação; concessão de asilo político. No campo da política externa, o compromisso do Brasil com os direitos humanos tem sido mais evidente em iniciativas regionais como a Organização dos Estados Americanos, a qual impõe sanções a Estados Membros em caso de ameaça à democracia (por exemplo, por meio de um golpe de estado) (SANTISO, 2002 and CAROTHERS; YOUNGS, 2011). No âmbito de suas relações bilaterais, o Brasil tem em geral apoiado princípios democráticos. Por exemplo, diplomatas brasileiros desempenharam um papel crucial na crise do Paraguai em abril de 1996, contribuindo para manter a democracia naquele país (SANTISO, 2002). Por outro lado, após a renúncia do Presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide em 2004, o Brasil conferiu certa legitimidade a uma intervenção que “tinha mais a ver com a conveniência política do que com a proteção da democracia” (BURGES; DAUDELIN, 2007). Tais ambiguidades e inconsistências têm por vezes produzido dúvidas sobre o comprometimento da política externa brasileira com a democracia e com os direitos humanos. Em 2003, quando o presidente Lula deu início ao seu primeiro mandato, o governo introduziu um outro conceito que viria a orientar a política externa brasileira: a ideia de não-indiferença. Não-indiferença tinha como objetivo contrabalançar a ideia de não-intervenção, no sentido de que o Brasil interviria em assuntos externos quando fosse convidado pelas partes envolvidas e acreditasse que poderia desempenhar um papel positivo. Desde então, este princípio tem sido invocado para justificar a cooperação com países africanos em matéria de desenvolvimento, bem como para fundamentar o envolvimento das tropas brasileiras na Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH) em 2004.4 19 SUR 17-37 (2013) ■

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A posse da presidente Dilma Rousseff em janeiro de 2010 aumentou as expectativas de que direitos humanos viriam a desempenhar um papel mais proeminente na política externa brasileira, em especial devido à sua biografia de militância contra o regime militar, inclusive sua experiência de prisão e tortura durante este regime. Em 2011, o então ministro de Relações Exteriores Antonio Patriota qualificou a redução da pobreza como um sucesso da política doméstica brasileira de direitos humanos, ao mesmo tempo em que reconheceu áreas ainda deficitárias, entre as quais violência urbana, direitos das mulheres, educação, e população encarcerada.5 Em outros momentos, o governo brasileiro rejeitou o que considera a estigmatização de nações pobres como as únicas violadoras de direitos humanos, ressaltando que países desenvolvidos por vezes também cometem graves violações de direitos humanos. Isso levou o Brasil a evitar condenar países específicos por violações de direitos humanos, muito embora tenha apoiado, no âmbito do Conselho de Direitos Humanos da ONU, resoluções que condenaram certos Estados que sistematicamente cometiam abusos de direitos humanos. Em janeiro de 2011, Patriota afirmou que o governo denunciaria todas as violações de direitos humanos, não importa onde elas ocorressem,6 e o Assessor Especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, afirmou que o governo Rousseff daria ênfase a direitos humanos tanto no âmbito local, quanto internacional, em parte devido à própria história pessoal da presidente.7 Em fevereiro de 2011, o Brasil, atuando como facilitador no Conselho de Direitos Humanos da ONU, propôs que violações de direitos humanos fossem investigadas sem tratamento diferenciado e considerações de caráter ideológico. Organizações da sociedade civil consideram esta proposta a primeira medida concreta por parte do governo Rousseff para pôr os direitos humanos no cerne da política externa brasileira.8 No entanto, ao avaliar sua política de direitos humanos, alguns analistas9 sustentam que o potencial do Brasil em contribuir para sua efetivação continuou pouco explorado no primeiro ano de Rousseff na Presidência da República, e que sua política externa prioriza as esferas econômicas e comerciais das relações internacionais, em detrimento do compromisso do Brasil com democracia e direitos humanos.10 O processo de redemocratização no Brasil também afetou sua política externa na medida em que deu maior destaque a questões sociais como parte do conceito de democracia vigente no país, bem como no que diz respeito à sua agenda de cooperação internacional. Por exemplo, além de consolidar os princípios destinados a guiar a política externa do Brasil, a Constituição de 1988 consagrou saúde, educação, e seguridade social como direitos de cidadania, consolidando a educação pública e levando à criação de instituições como o sistema brasileiro de saúde financiado com recursos públicos, o Sistema Único de Saúde (SUS). Em meados dos anos 1990, a criação de um sistema de votação eletrônica (com base em inovações tecnológicas desenvolvidas por empresas brasileiras e estrangeiras) elevou o grau de participação política de cidadãos analfabetos e com deficiências durante as eleições – outro marco da preocupação do país com a acessibilidade como um aspecto central de sua democracia. 22 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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Apesar de sua implementação aquém do desejado, os direitos consagrados no ordenamento jurídico brasileiro representaram avanços significativos ao reconhecer formalmente os direitos de indivíduos no que tange ao acesso a áreas como saúde e educação (CARDOSO JR., 2009). A expansão de mecanismos de redistribuição de renda (como o programa de transferência condicionada de renda, Bolsa Família, iniciado no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso e ampliado no governo do Presidente Lula) e as medidas tomadas em matéria de segurança alimentar e saúde pública tornaram-se referenciais do desenvolvimento social do Brasil, e depois de sua cooperação internacional (SANTORO, 2012 and ABDENUR; SOUZA NETO, 2013). Portanto, ao longo dos últimos dez anos, redução da pobreza e desigualdade social, impulsionadas por maiores índices de crescimento econômico e por políticas de redistribuição também contribuíram para uma maior ênfase em aspectos sociais e econômicos da democracia brasileira. Ademais, a criação (em 2011) da Comissão da Verdade e os julgamentos de casos de corrupção por agentes públicos de alto escalão integram as medidas voltadas a consolidar a democracia brasileira. A capacidade do Brasil de produzir ganhos econômicos consideráveis para sua população é uma fonte importante de legitimidade para o governo brasileiro, o que ajuda a explicar por que sua política externa tende a mencionar democracia em associação com direitos sociais e econômicos. Analisar a promoção da democracia pelo Brasil em países da África é pertinente por diversos motivos. Em primeiro lugar, este tipo de análise esclarece em que medida potências emergentes divergem dos princípios predominantes subjacentes à ajuda de desenvolvimento fornecida por países do Norte. Governos dos EUA e da Europa têm insistido para que democracias emergentes desempenhem um papel mais ativo na promoção de direitos humanos e da democracia; o mesmo vale para organizações da sociedade civil dentro e fora dos Estados onde a cooperação Sul-Sul tem ocorrido. Em segundo lugar, dado o recente histórico de votos do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, temsido questionados cada vez mais os efeitos das ações do Brasil no cenário político africano. Na condição de membro não-permanente do Conselho de Segurança da ONU, o Brasil aliou-se com a maioria dos outros países pertencentes ao grupo BRICS (a África do Sul apoiou a resolução 1973 sobre a Líbia, mas depois deixou claro o seu arrependimento), ao abster-se em uma resolução em 2011 a favor da ação militar na Líbia, muito embora o Brasil tenha apoiado a expulsão da Líbia do Conselho de Direitos Humanos. Explicar o comportamento do Brasil em questões de democracia e direitos humanos em diferentes fóruns requer uma análise concreta sobre as relações de cooperação que o país mantém. Por fim, faz-se necessária uma análise mais aprofundada da diversidade de agentes brasileiros no debate sobre cooperação para o desenvolvimento da África, incluindo as circunstâncias em que esta cooperação afeta a política local desses países. Além de organizações da sociedade civil, empresas brasileiras multinacionais por vezes estão presentes em diversos países africanos, em especial na área de mineração e infra-estrutura, recebendo apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Muitas dessas empresas 19 SUR 17-37 (2013) ■

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reforçaram seus princípios de responsabilidade social, embora em alguns casos suas atividades têm gerado tensões locais.11 Ademais, as medidas tomadas pelo governo brasileiro para expandir a indústria militar do país, inclusive no continente africano, pode levar ao apoio a regimes não democráticos. Entre os países do hemisfério ocidental, o Brasil se tornou o segundo maior exportador de armas de pequeno porte,12 cujo uso e transferência, tanto dentro e fora das fronteiras nacionais, são difíceis de serem monitorados (armas não-letais de fabricação brasileira como bombas de gás lacrimogêneo foram usadas contra manifestantes na Primavera Árabe no Bahrein).

2.3 A democracia brasileira e iniciativas de direitos humanos Projetos que buscam abertamente promover democracia e direitos humanos nem sempre recebem grande visibilidade entre as medidas oficiais do Brasil em matéria de cooperação. Entre os projetos listados na base de dados da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), nenhum deles menciona democracia em seus títulos, e apenas um se refere de maneira explícita a direitos humanos: uma parceria da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) e a da ABC para colaborar na luta contra a exploração infanto-juvenil no Togo. Não obstante, democracia e direitos humanos por vezes aparecem como partes de programas mais amplos de cooperação, frequentemente por meio da participação de instituições de direitos humanos no Brasil, em especial a SDH. Por exemplo, a SDH e o Ministério de Justiça uniram esforços para fortalecer instituições relevantes para a promoção de direitos humanos como cartórios de registro civil na Guiné-Bissau. Há ademais programas mais amplos de consolidação da democracia e dos direitos humanos que incluem acordos com países em áreas distintas do mundo por meio de acordos multilaterais de cooperação Sul-Sul. Muitos destes programas lidam com órgãos públicos sub-nacionais, em especial municipais. Este enfoque revela o aspecto descentralizado da própria experiência brasileira com o processo de democratização, no qual governos municipais e comunidades locais desempenharam um papel pioneiro. Ademais, cidades têm sido também palco de experimentos democráticos importantes, como o modelo de Orçamento Participativo executado em Porto Alegre, e adaptado de certa maneira em outros 1500 municípios ao redor do mundo (GANUZA; BAIOCCHI, 2012 and AVRITZER, 2002). As várias edições do Fórum Social Mundial, que teve início em Porto Alegre, têm desempenhado um papel catalisador crucial, permitindo que organizações da sociedade civil e ativistas ao redor do mundo saibam mais sobre as experiências brasileiras com orçamento participativo. Além disso, organizações internacionais como o Banco Mundial, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e a ONU Habitat promovem modelos de orçamento participativo de maneira a incentivar formas socialmente mais equânimes de gastos públicos.13 A ABC tem coordenado diversos projetos com o objetivo de promover orçamentos participativos em outros países, inclusive por meio de uma parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ABC, 2013). Diversas cidades 24 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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da África do Sul adotaram partes deste modelo, inspiradas pela experiência de Porto Alegre. Além do papel das cidades, a cooperação promovida pelo Brasil em democracia e direitos humanos muitas vezes inclui organizações da sociedade civil como ONGs, sindicatos e associações profissionais. Estas entidades têm participado de projetos relativos a negociações da dívida externa brasileira, a respeito da criação do Mercosul, e de acordos de livre comercio. Além disso, conferências da ONU sobre questões sociais também geraram novos incentivos para o envolvimento de feministas, ambientalistas, e movimentos de povos indígenas ( ALVES, 2002). Mais recentemente, organizações da sociedade civil no Brasil começaram a questionar o papel do Brasil em grupos como o G-20 e BRICS, inclusive os planos deste último de financiar grandes projetos de infra-estrutura na África por meio de um Banco de Desenvolvimento do grupo BRICS. A base de dados dos projetos mantidos pela ABC demonstra que a maioria dos programas oficiais de cooperação do Brasil na África referentes à democracia ou aos direitos humanos trata especificamente de cooperação nas áreas eleitoral ou judicial. O Brasil tem auxiliado vários países africanos em seus processos eleitorais, com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) promovendo de maneira ativa o sistema brasileiro de votação eletrônica em outros países. Na África, especialistas brasileiros visitaram Angola, Moçambique, África do Sul, Tunísia, e Guiné-Bissau, além de ter sido realizada recentemente uma oficina de trabalho na Cidade do Cabo na qual o sistema brasileiro de votação foi apresentado a representantes da África do Sul, Namíbia, Moçambique, Botsuana, Zâmbia, Zimbábue, Tanzânia, e Madagascar.14 O impacto real desta cooperação é difícil de ser mensurado, uma vez que a tecnologia divulgada nem sempre é adotada pelos países parceiros, por vezes devido à falta de recursos, outras vezes por baixa confiança na integridade do sistema eletrônico. Não obstante, por meio destes intercâmbios, o Brasil tem ajudado a fomentar debates na África sobre aspectos e procedimentos de seus sistemas eleitorais democráticos. Tais intercâmbios também ocorrem no Brasil. Por exemplo, desde 2010, a cooperação com o Sudão tem sido intensa. Entre as atividades realizadas, houve visitas de oficiais do Parlamento sudanês ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no Brasil, bem como um acordo entre a Ordem de Advogados do Brasil e sua equivalente no Sudão15 para promover a proteção de direitos humanos; a promoção de direitos dos advogados; e intercâmbios profissionais entre advogados de ambos os países, incluindo qualificação profissional e uma colaboração mútua para garantir respeito à legislação de direitos humanos tanto no âmbito local, quanto internacional.16 A promoção do sistema de votação brasileiro é também levada a cabo por meio de fóruns multilaterais. Em 3 de outubro de 2011, autoridades de tribunais eleitorais do Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Ilhas São Tomé e Príncipe, Timor-Leste, e Portugal assinaram a “Carta de Brasília”, na qual reforçaram entre os Estados “seu compromisso com a democracia e a sua confiança no processo democrático livre e justo com base nas normas vigentes 19 SUR 17-37 (2013) ■

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em seus sistemas jurídicos e nas normas de direitos humanos, universalmente aceitas.” Por meio deste acordo, estes países também expressaram sua intenção de melhorar a gestão e administração de seus sistemas eleitorais por meio de programas de cooperação envolvendo educação cívica, capacitação de magistrados e funcionários eleitorais, capacitação da imprensa para cobertura de eleições, legislação eleitoral, aprimoramento do sistema de prestação de contas dos partidos políticos, e processo eleitoral eletrônico.

2.4 Cooperação brasileira para o desenvolvimento Embora a democracia e os direitos humanos continuem a ser nichos temáticos relevantes na cooperação do Brasil com a África, talvez outros programas de cooperação que não fazem referência alguma a estes princípios tenham permitido que o Brasil influencie ainda mais o cenário político no continente africano. Como parte destes programas oficiais de cooperação, o governo brasileiro defende que tem contribuído ativamente para a melhoria das condições de vida de populações em países africanos, em especial por meio do intercâmbio de modelos de programas sociais considerados essenciais para a estabilização da própria democracia no Brasil. A lista de projetos promovidos pela ABC na África inclui dezenas de projetos sob o tema “Desenvolvimento Social,” muitos dos quais são formulados com vistas a melhorar a governança e consolidar instituições nos países beneficiados. Alguns destes projetos são conduzidos em parceria com atores não-estatais que desempenham um papel essencial em promover direitos humanos e direitos sociais no Brasil, como a Pastoral da Criança, um organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil dedicado aos direitos e bem-estar da criança. Além da cooperação oficial, há tentativas de aprender com a própria experiência brasileira com a democratização, incluindo o surgimento de uma sociedade civil forte e bem-articulada, com vistas a cooperar em temas políticos e sociais. ONGs brasileiras têm estudado o impacto de projetos de cooperação técnica e os efeitos da presença de empresas brasileiras de mineração e construção civil na África. Por exemplo, a FASE em parceria com organizações de Moçambique, inclusive a União Nacional de Camponeses de Moçambique (UNAC), têm criticado a implementação do Programa de Cooperação Triangular para o Desenvolvimento Agrícola das Savanas Tropicais (Pro-Savana), por meio do qual o Brasil tem promovido, juntamente com o Japão, produtividade agrícola no corredor de Nacala em Moçambique (MELLO, 2013). Também em Moçambique, sindicatos brasileiros têm colaborado com seus pares locais para monitorar denúncias de violações de direitos humanos por empresas multinacionais brasileiras, e a Conectas, uma ONG de direitos humanos com sede em São Paulo, tem colaborado com outras ONGs da África do Sul e Nigéria para fortalecer seus posicionamentos em debates sobre política externa e direitos humanos. Além disso, há um monitoramento cada vez maior no âmbito doméstico de programas de cooperação promovidos pelo Brasil em prol do desenvolvimento por importantes ONGs de direitos humanos, entre elas a Human Rights Watch e a Anistia Internacional. 26 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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2.5 Posicionamentos do Brasil em assuntos políticos na África Por fim, Brasil gera um impacto indireto sobre democracia e direitos humanos na África por meio de posicionamentos oficiais que o governo brasileiro adota com relação a questões fundamentais e crises políticas na África, e por meio do uso da cooperação para o desenvolvimento (sua continuação ou suspensão) como maneira de influenciar autoridades locais. Em 2007, o Brasil revelou estar preocupado com o desrespeito do governo do Zimbábue com as liberdades fundamentais, afirmando a importância do diálogo entre as partes envolvidas com o objetivo de assegurar o respeito ao Estado de Direito e ao desenvolvimento harmônico da sociedade zimbabuense (SITUAÇÃO…, 2007, p. 284). Em 2008, o então Ministro de Relações Exteriores, Amorim, foi uma das primeiras autoridades estrangeiras a visitar o Zimbábue na época da crise política naquele país (VISITA…, 2008, p. 247), encontrando-se com o Presidente Mugabe e representantes de partidos políticos, inclusive a oposição (Brasil havia participado em uma missão de observação eleitoral durante o primeiro turno das eleições, em março de 2008 e também em julho de 2013, a convite do governo do Zimbábue). Por meio desta visita, o governo brasileiro se mostrou disposto a dialogar com Mugabe ao mesmo tempo em que este estava sendo cada vez mais isolado pela comunidade internacional. A postura brasileira divergiu de maneira clara dos posicionamentos adotados pelos EUA e pela União Europeia, os quais impuseram sanções que previam o cancelamento de todas as doações e empréstimos ao governo do Zimbábue por meio de canais bilaterais e multilaterais.17 O governo brasileiro também se posicionou oficialmente sobre eventos ocorridos no contexto da Primavera Árabe na Tunísia, Egito, e Líbia. Em fevereiro de 2011, com relação ao Egito, a presidente Rousseff afirmou que o Brasil não pode ter posição a respeito dos assuntos internos de outro país.18 O governo brasileiro indicou que espera que se dê um fim à crise por meio de uma solução democrática com maior inclusão social e prosperidade, e o então Ministro de Relações Exteriores Patriota destacou que o Egito era um parceiro comercial importante e que, aos olhos do governo brasileiro, os protestos no Egito decorrem de uma frustração com a situação econômica e da dificuldade em alcançar uma prosperidade socialmente inclusiva (GODOY, 2011). Pouco tempo depois, durante a 16 a sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, a Ministra de Direitos Humanos do Brasil Maria do Rosário criticou abertamente regimes do Oriente Médio e do Norte da África por suas práticas autoritárias, destacando o uso da força contra populações civis (O GLOBO, 2011). Em 2011, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD (2012) apoiou uma visita de políticos e empresários egípcios ao Brasil e ao Chile, qualificando estes dois países como exemplos de transições democráticas e reformas constitucionais, que poderiam inspirar o Egito. Durante uma visita ao Brasil em maio de 2013 pelo então Presidente Morsi, Brasil e Egito acordaram em cooperar para o desenvolvimento econômico em um ambiente democrático e socialmente justo (BR ASIL, 2013a). O Brasil mostrou-se preocupado com a destituição de Morsi no início de julho de 2013 e os projetos de cooperação 19 SUR 17-37 (2013) ■

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negociados quando de sua visita ao Brasil ainda aguardam implementação.19 Além disso, autoridades brasileiras têm feito de maneira reiterada alusão à democracia em declarações sobre o continente africano. Em 2009, o presidente Lula condenou o assassinato do presidente da Guiné-Bissau, João Bernardo “Nino” Vieira, e do chefe das Forças Armadas, General Tagme Na Waié, afirmando que no Brasil não podemos “nos calar diante de mais um atentado a uma democracia incipiente que estava se construindo” (LUSA, 2009). Durante a visita de estado de 2011 a Angola, a presidente Rousseff discursou na Assembleia Geral, destacando um futuro de progresso econômico, justiça social, paz, e democracia naquele país, e mencionou a nova constituição como um passo chave para a consolidação da democracia. A presidente Rousseff (BR ASIL, 2011b) também fez referência a medidas conjuntas de Angola e Brasil para o processo de estabilização na GuinéBissau, elogiando Angola por ser um exemplo de reconstrução nacional com liberdades democráticas — uma avaliação bastante positiva se comparada àquela formulada pela União Europeia (EUROPEAN UNION, 2010). Outras autoridades do governo brasileiro têm apoiado abertamente a democracia e os direitos humanos na África. Durante o 50 a aniversário da União Africana, em 2013, diplomatas brasileiros elogiaram o apoio da União Africana à democracia no continente, em especial sua política de tolerância zero a golpes de Estado.20 Por outro lado, em suas relações bilaterais, o Brasil muitas vezes tem se mostrado relutante em condenar diretamente ou nomear violadores de direitos humanos, expandindo programas de cooperação e relações comerciais com estes regimes. Sob os governos dos presidentes Lula e Rousseff, o Brasil consolidou laços com a Guiné Equatorial, vendendo equipamentos militares, importando petróleo, e facilitando a participação de empresas brasileiras na construção da nova capital do país. Além disso, o Brasil também apoiou a candidatura do país a membro pleno da CPLP – uma decisão que tem recebido críticas ferozes de movimentos da sociedade civil em razão do histórico pouco democrático e violador de direitos humanos da Guiné Equatorial. Ao se negar a confrontar certos países por violações de direitos humanos, o governo brasileiro tem sustentado que todos os países cometem violações de direitos humanos, sejam eles desenvolvidos, ou em desenvolvimento. Por conseguinte, o governo brasileiro tem se negado a aceitar relatórios sobre direitos humanos produzidos por países específicos, inclusive pelos que avaliam o histórico de direitos humanos no Brasil, afirmando que a ONU é a única instituição legítima para monitorar e relatar sobre direitos humanos. 21 O Brasil também tem sido fortemente favorável a que respostas a crises sejam dadas por agentes locais e regionais, inclusive durante as crises na Costa do Marfim, Sudão, e Mali - desde que essas ações sejam complementares, e não contraditórias ao sistema de segurança da ONU. Por exemplo, o Brasil defendeu que a União Africana é o órgão legítimo para tratar de crises no continente, e que a comunidade internacional deve atuar em conjunto com a União Africana. No que diz respeito a missões de paz na África, os apoios mais recentes de tropas brasileiras foram em Moçambique e Angola, em meados da década de 1990, mas o Brasil mantém observadores em quase todas as missões da ONU no continente, 28 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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e em 2013 o brasileiro General Santos Cruz, ex-Comandante da Força da Missão da ONU no Haiti, foi nomeado comandante da missão da ONU na República Democrática do Congo - MONUC. No início de 2003, o Brasil participou no grupo de Brazzaville, uma iniciativa organizada por nações africanas e pela CPLP sobre a instabilidade política em São Tomé e Príncipe. Esta iniciativa gerou um memorando de entendimento, assinado em julho de 2003 entre o presidente de São Tomé e Príncipe e o líder do grupo das Forças Armadas que havia se rebelado para que o país pudesse retornar ao governo democrático.22 Em novembro de 2003, durante uma parada em São Tomé e Príncipe, como parte de sua primeira visita à África, o presidente Lula ofereceu o apoio brasileiro a medidas de consolidação da democracia naquele país.23 O caso de Guiné-Bissau exemplifica de que maneira estes posicionamentos e a atuação de fato do Brasil no continente africano estão relacionados. Por muito tempo, o Brasil chamou atenção para a instabilidade política recorrente da Guiné-Bissau, e em 2007, se tornou Presidente da Configuração da Comissão de Construção da Paz para a Guiné-Bissau das Nações Unidas. Por meio deste posto e por integrar a CPLP, o Brasil tem levado a cabo uma série de iniciativas de cooperação com o intuito de fortalecer instituições democráticas no país, por exemplo por meio da capacitação da polícia, fortalecimento do sistema judiciário, e apoio ao parlamento de Guiné-Bissau ( ABDENUR; SOUZA NETO, 2013). Em 2008, o Brasil condenou uma tentativa por parte de membros das Forças Armadas de desestabilizar o governo na Guiné-Bissau, reafirmando o seu apoio ao governo eleito.24 Um golpe de Estado em abril de 2012 levou à interrupção dos programas brasileiros de cooperação no país, e o Brasil determinou que o retorno das atividades de cooperação somente ocorreria mediante a volta à normalidade democrática no país. Em junho de 2013, o Brasil se juntou a outros Estados membros da CPLP para reivindicar eleições livres e justas para restaurar a democracia na Guiné-Bissau (BR ASIL, 2013c). Muito embora nem todos os posicionamentos oficiais do Brasil em crises políticas no continente africano estejam diretamente relacionados a seus programas de cooperação, como é o caso de Guiné-Bissau, este exemplo demonstra a disposição do Brasil em atuar na promoção da democracia e dos direitos humanos na África unindo apoio/ condenação de discursos a medidas concretas.

3 Conclusão À medida que os laços do Brasil com a África se intensificam, a sua cooperação para o desenvolvimento é cada vez mais pertinente em termos de seu impacto na política local, tanto quando se trata de uma democracia, quanto no caso de regimes autoritários com histórico de violações de direitos humanos. Neste artigo, analisamos três vias em ascensão pelas quais este impacto é gerado: programas de promoção de democracia e direitos humanos, cooperação para o desenvolvimento em geral, e posicionamentos oficiais sobre questões políticas importantes na África. Esta análise indica que, apesar de utilizar uma forte retórica de não 19 SUR 17-37 (2013) ■

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interferência em sua política externa, o governo brasileiro tem de maneira ativa atuado em questões afetas à democracia e direitos humanos na África, diretamente ou não. O governo brasileiro aborda democracia e direitos humanos diretamente apenas quando há uma demanda clara para tanto por parte do governo africano em questão, ou quando um golpe de estado ocorre em um país pertencente à CPLP que enfatiza a importância da democracia, como é o caso de Guiné-Bissau. Ao mesmo tempo, mesmo quando democracia e direitos humanos não são temas explícitos de determinada cooperação, o crescente papel do Brasil no continente africano – impulsionado não somente pelo governo brasileiro, mas também por entidades da sociedade civil e do setor privado – gera consequências políticas, seja por contribuir para a democracia por meio de fortalecimento institucional, seja (no caso da Guiné-Equatorial) por apoiar regimes autoritários por meio de ampla cooperação econômica. A maior visibilidade do Brasil no cenário internacional tem instigado reivindicações para uma atuação mais intensa pelo Brasil na promoção da democracia e direitos humanos em outros países – seja por doadores do Norte, seja por entidades do Sul Global (PATRICK, 2010). Isto é especialmente importante no caso das relações do Brasil com a África, porque no continente africano o Brasil se apresenta como um modelo de justiça econômica e social. Não obstante, a via predileta do governo brasileiro para a promoção de direitos humanos e democracia na África – baseada primordialmente em uma diplomacia discreta, de bastidores — é ainda marcada por uma cautela que pode ser considerada desproporcional à luz da própria experiência democrática brasileira. Ao buscar ponderar o seu compromisso com direitos humanos com o princípio de não-intervenção, o Brasil tem levantado dúvidas não somente sobre a coerência desta abordagem, mas também sobre posicionamentos futuros referentes a democracias e direitos humanos em outros países. Alguns analistas têm defendido que os crescentes laços do Brasil com potências emergentes não democráticas, em especial por meio do grupo BRICS, pode conduzir a política externa brasileira a vir a defender a soberania incondicional (CASTAÑEDA, 2010). Embora esta opinião possa exagerar a relevância atribuída ao grupo BRICS pela política externa brasileira, esta crítica, no entanto, aponta para a necessidade do Brasil traçar um caminho mais consistente para a sua política externa. Embora seja pouco provável que uma perspectiva brasileira sobre direitos humanos e desenvolvimento implique uma aceitação acrítica dos posicionamentos dos EUA e da Europa sobre democracia e direitos humanos, isso não deveria tampouco levar a um alinhamento com regimes que desconsideram completamente estes princípios. No caso da África, há razões pragmáticas pelas quais o Brasil pode justificar uma maior disposição em apoiar a democracia e os direitos humanos, incluindo, por exemplo, o fato de que a ruptura da ordem democrática em estados africanos poderia gerar instabilidade prejudicial a interesses econômicos e programas de cooperação brasileiros. O Brasil pode ainda apoiar de maneira mais enfática a democracia e os direitos humanos na África por meio da cooperação com terceiros: a África do Sul tem fornecido um modelo para tanto ao sediar o primeiro fórum de diálogo 30 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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União Européia-África do Sul sobre democracia e direitos humanos.25 Cúpulas entre diferentes regiões como as iniciativas África-América do Sul e ÁrabeAmérica do Sul podem também representar espaços relevantes para que o Brasil exerça uma influência positiva em nações africanas no que tange à democracia e aos direitos humanos. No âmbito multilateral, o Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul (IBSA), diferentemente do grupo BRICS, é fundado sob a premissa de uma identidade comum destes países como grandes democracias com alto grau de diversidade interna. O Brasil tem se mostrado disposto a utilizar esta plataforma para debater questões relativas à democracia, como por exemplo o fórum ocorrido em abril de 2013 “Aprofundando Democracia através de Governança Local” ocorrido em Nova Déli.26 Neste fórum, as três nações do IBSA reconheceram seu papel comum em representar uma “aliança democrática única do Sul Global.” Dentro do grupo BRICS, embora discussões sobre direitos humanos e democracias estejam prejudicadas pela inclusão de regimes autoritários como a Rússia e a China, o Brasil poderia pressionar por normas e práticas que priorizem a redução da pobreza e da desigualdade ao invés de concentrar-se simplesmente, por exemplo, em infra-estrutura e política industrial, por meio da ação do eventual Banco de Desenvolvimento do grupo BRICS. Por fim, o potencial do Brasil para aprender com países africanos sobre democracia e direitos humanos não deveria ser subestimado, inclusive sobre iniciativas de reconciliação como aquelas implementadas em países como Ruanda e África do Sul. A Comissão Nacional da Verdade no Brasil pode aprender a partir da experiência da África do Sul em como tratar a participação do Estado e de agentes não-estatais em violações de direitos humanos e construção da memória. Ao possibilitar o aprendizado sobre democracia e direitos humanos a partir das próprias experiências de países africanos – positivas ou negativas – Brasil pode refinar a sua abordagem sobre democracia e direitos humanos, tanto no âmbito interno, quanto na África.

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NOTAS 1. Este foi o argumento usado para fundamentar o apoio do Brasil para que a Guiné Equatorial se tornasse membro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, apesar de críticas por parte de organizações da sociedade civil do Brasil e de Portugal de que o governo da Guiné Equatorial não seria democrático e violaria direitos humanos. No momento, Guiné Equatorial ainda continua como um Estado observador da CPLP e não obteve a condição de membro pleno. 2. Ver O Globo (2013, p. 8). 3. Embora a democracia e os direitos humanos não sejam termos equivalentes, a posição do Brasil em relação a direitos humanos coincide significativamente com suas posições e discurso sobre a democracia no exterior.

Coordenação Geral de Contenciosos do Ministério das Relações Exteriores, bem como a criação de oportunidades de formação profissional na Missão do Brasil perante a OMC e seminários e estudos sobre disputa econômica e comercial. Ver: “Onde o Itamaraty acerta”, O Estado de São Paulo (2011). 11. A empresa de mineração brasileira Vale e o governo de Moçambique tem sido criticados pela ONG Human Rights Watch e atores locais por suas atividades na província Tete em Moçambique, em especial no que diz respeito a políticas de reassentamento (HUMAN RIGHTS WATCH, 2013). 12. Ver Relatório Especial de autoria de Dreyfus et al. (2010). 13. Ver International Budget Partnership (n.d.).

4. O envolvimento do Brasil no Haiti foi também justificado pelas autoridades brasileiras, como parte de uma herança africana comum. Autoridades brasileiras argumentam que, uma vez que o Brasil já não era indiferente a países africanos, o Brasil não poderia deixar de fazer o mesmo com o Haiti.

14. Sobre o sistema eleitoral brasileiro, ver Brasil (2013d).

5. Ver entrevista com Antonio Patriota publicada no jornal O Estado de São Paulo (NOGUEIRA; PARAGUASSU, 2011).

18. Sobre este assunto ver Figueiredo e Fabrini (2011)no artigo intitulado “Dilma: Brasil não pode ter opinião sobre tudo” publicado no jornal O Globo.

6. Ver entrevista com Antonio Patriota publicada na revista Veja (PEREIRA, 2011). 7. Sobre este tema, ver Entrevista com Professor Marco Aurélio Garcia intitulada “O que muda e o que não muda na política externa com Dilma” (2011) publicada em Revista de Ciências Sociais Aplicadas do CCJE/UFRJ. 8. Sobre este tema, ver artigo de autoria de Eliane Oliveira (2011) publicado no jornal O Globo. 9. Ver entrevista com Matias Spektor por Cristian Klein (2012), intitulada “O Brasil precisa aprender a manipular a China”, publicada no jornal Valor Econômico. 10. Como exemplo das intenções de Dilma Rousseff de se concentrar nos aspectos econômicos e comerciais da agenda de política externa do Brasil, pode ser citado o anúncio pelo então Ministro de Relações Exteriores Patriota que mais diplomatas e recursos do Ministério seriam destinados a áreas como disputas comerciais e a criação de novos mercados para os produtos brasileiros. Patriota anunciou que o Brasil dobraria o número de diplomatas alocados à

15. Para ter acesso ao texto integral do acordo, ver Ordem dos Advogados do Brasil – OAB (2010). 16. Ibid. 17. Sobre este assunto ver Foley (2011).

19. Nota de 3 de julho de 2013 do Ministério de Relações Exteriores (2013b) pode ser encontrada em <http://www.itamaraty.gov.br/sala-deimprensa/notas-a-imprensa/situacao-no-egito-2>. Último acesso em: Nov. 2013. 20. On this subject see article by Adriana Giraldi (2013). 21. See “Relatório da chancelaria da Suécia...” (2007). 22. See “Comunicado à imprensa sobre o fim da sublevação militar em São Tomé e Príncipe...” (2003). 23. Ver “Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, por ocasião do almoço oferecido pelo Presidente da República Democrática de São Tomé e Príncipe, em 2 de novembro de 2003” (2003). 24. Ver “Situação na Guiné-Bissau 11/08/2008” (2008). 25. Ver Sapa (2013). 26. Ver India (2013).

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ADRIANA ERTHAL ABDENUR E DANILO MARCONDES DE SOUZA NETO

ABSTRACT Over the past ten years, Brazil’s foreign policy elites have made economic, political, and military cooperation with Africa one of the country’s top priorities, as part of Brazil’s emphasis on expanding relations within the Global South. While a growing research literature has sought to analyze the norms and practices this cooperation entails, little of the current scholarship has examined its relevance for African politics. In this article, we consider the implications of Brazilian cooperation for democracy and human rights in Africa along three lines: the scope and content of Brazil’s democracy promotion programs; the implications of its cooperation (official and non-official) for democracy and human rights; and its responses to political crises in Africa. KEYWORDS Brazil – Africa – Cooperation – Foreign policy – Democracy – Human right

RESUMEN En los últimos diez años, las élites de la política exterior de Brasil le dieron un lugar prioritario a la cooperación económica, política y militar con África, como parte del énfasis puesto por Brasil en la expansión de las relaciones dentro del Sur Global. Si bien hay cada vez más estudios que analizan las normas y prácticas que implica esta cooperación, es poca la investigación que actualmente se centra en examinar su relevancia para la política africana. En el presente artículo, consideramos las implicancias que tiene la cooperación de Brasil para la democracia y los derechos humanos en África haciendo eje en tres aspectos: el alcance y contenido de los programas brasileños de promoción de la democracia; las implicancias de la cooperación (oficial y no oficial) de Brasil para la democracia y los derechos humanos; y sus respuestas a las crisis políticas de África. PALABRAS CLAVE Brasil – África – Cooperación – Política exterior – Democracia – Derechos humanos

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CARLOS CERDA DUEÑAS Carlos Cerda Dueñas é advogado pela Universidade de Guadalajara, mestre em Estudos Diplomáticos pelo Instituto Matías Romero de Estudos Diplomáticos da Secretaria de Relações Exteriores do México e Doutor em Direito pela Universidade de Buenos Aires. Atualmente é professor e pesquisador no Centro Tecnológico de Monterrey, Campus Guadalajara e professor-visitante no programa de doutorado em Ciências Penais da Universidade San Carlos de Guatemala. Email: carlos.cerda@itesm.mx

RESUMO A Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos foi objeto de uma reforma integral no que se refere aos direitos humanos e se encontra vigente desde junho de 2011. Com essa emenda, estabeleceu-se de forma mais nítida como as normas internacionais de direitos humanos se posicionam na pirâmide hierárquica das normas do sistema jurídico mexicano. Este artigo pretende analisar e comentar as implicações que essa reforma acarreta, com especial ênfase no devir histórico para o reconhecimento dessas normas, bem como a reforma constitucional e suas pendências, abordando também sua dimensão tanto no cenário doméstico como no internacional. Original em espanhol. Traduzido por Pedro Maia. Recebido em junho de 2013. Aprovado em outubro de 2013. PALAVRAS CHAVE Incorporação de normas – Direitos humanos – Reforma constitucional – Política exterior – México Este artigo é publicado sob a licença de creative commons. Este artigo está disponível online em <www.revistasur.org>. 38 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


LIMITES E AVANÇOS NA INCORPORAÇÃO DE NORMAS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO MÉXICO A PARTIR DA REFORMA CONSTITUCIONAL DE 2011 Carlos Cerda Dueña

1 Introdução Em 10 de junho de 2011, o Diário Oficial da Federação publicou uma série de reformas na Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos de 1917 no que diz respeito aos direitos humanos. Trata-se de uma reforma ampla, que introduziu finalmente a referência explícita a esses direitos, mudou a denominação do primeiro capítulo, estabeleceu a supremacia dos tratados pertinentes e incorporou outros aspectos importantes em relação a eles.1 Foi somente na reforma de 1992 da Constituição mexicana, vigente desde 1917, que foi feita referência explícita aos direitos humanos, criando-se a Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CDH) e estabelecendo-se a faculdade correlativa das entidades federativas de criar suas próprias comissões. Não queremos dizer com isso que os direitos fundamentais não estivessem contemplados no instrumento constitucional máximo; eles o estavam desde a Ata de Reformas de 1847, quando se criou um capítulo de garantias individuais e, neste, um catálogo de direitos fundamentais. Segundo alguns estudiosos, a falta de clareza a respeito das normas específicas de direitos humanos e sua posição hierárquica mantinha o México em um sistema de direitos humanos incompleto e impreciso, que mostrava debilidade normativa pela ausência do conceito de direitos humanos e do sistema de recepção do Direito Internacional relacionado a ele (GUERRERO, 2008, p. 43). A reforma de junho de 2011 resolveu algumas dessas questões. Não obstante, restam muitas pendências para consolidar essas mudanças constitucionais, pois como bem observa Alejandro Anaya (2013, p. 786), esses avanços “não coincidiram com uma mudança favorável nos níveis de vigência dos direitos humanos no país”.

Ver as notas deste texto a partir da página 56. 19 SUR 39-57 (2013) ■

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Os atrasos e os indicadores ainda mantêm as luzes acesas no vermelho, mas, de nenhuma maneira, deixamos de lado o que até agora foi realizado e, em particular, a reforma que aqui comentamos.

2 A emergência dos direitos humanos na agenda social e governamental mexicana Os direitos humanos eram considerados assunto doméstico pelo governo mexicano, observando-se, às vezes, que qualquer escrutínio proveniente do exterior sobre sua observância seria considerado um ato intervencionista. A posição nacionalista e defensiva que antepunha a proteção da soberania ao regime internacional de direitos humanos foi dando lugar lenta e progressivamente à postura internacionalista e colaborativa que caracteriza a política exterior de México atualmente (SALTALAMACCHIA ZUCCARDI; COVARRUBIAS VELASCO, 2011, p. 3).

Desse modo, independente de qual tenha sido a verdadeira situação dos direitos humanos no México durante os anos da Guerra Fria, é certo que ela não foi motivo de preocupação internacional pela falta de uma fonte confiável de informação sobre o tema que não fosse o próprio governo mexicano”( COVARRUBIAS, 1999, p. 437 ).

Embora importantes tratados em matéria de direitos humanos2 tenham sido assinados e ratificados na administração do presidente José López Portillo (19761982), foi somente depois da posse de Carlos Salinas de Gortari, em 1988, que ocorreu uma mudança na política governamental dos direitos humanos, e talvez não de moto próprio, mas em consequência da preocupação quanto ao impacto que poderia ter uma imagem externa negativa do México, em termos de direitos humanos, para a aprovação do Tratado de Livre Comércio da América do Norte, ou para o ingresso que estava em negociação tanto no Foro de Cooperação ÁsiaPacífico (APEC) como na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Foi assim que, entre outras medidas, foram criadas a Comissão Nacional de Direitos Humanos e comissões locais em cada entidade federativa. Os estudiosos apontaram que: [a]té princípios dos anos noventa, os direitos humanos figuraram na agenda da política exterior do México fundamentalmente mediante a participação do país nos organismos internacionais especializados na matéria. Em muito poucas ocasiões o Estado mexicano introduziu este tema como parte de suas relações bilaterais com outros países, e interagiu pouco com atores internacionais não estatais interessados nos direitos humanos. (SALTALAMACCHIA ZUCCARDI; COVARRUBIAS VELASCO, 2011, p. 4). 40 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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O governo de Ernesto Zedillo Ponce de León (1994-2000) representa uma virada no que tange aos direitos humanos, particularmente na segunda parte de seu mandato. Essa mudança talvez tenha sido causada pela crise econômica de dezembro de 1994, que obrigou o governo a concentrar-se nela e a relegar ao segundo plano alguns temas que vinham assumindo importância, como o dos direitos humanos. Rosario Green, Secretária de Relações Exteriores nessa segunda metade da administração de Zedillo, faz a seguinte observação em suas memórias: quando cheguei à Chancelaria, encontrei um déficit tanto de assinaturas como de ratificações de instrumentos internacionais que me pareciam básicos para sustentar a imagem do México no exterior, assim me propus efetuar uma atualização. Para tanto, me decidi por uma estratégia progressiva, levando primeiro ao senhor Presidente aqueles tratados que, como a Convenção das Nações Unidas sobre a Proteção dos Direitos Humanos de Todos os Trabalhadores Migrantes e suas Famílias, haviam obedecido a uma proposta do México, estavam assinados e faltava somente sua ratificação por parte do Senado da República. (GREEN, 2013, p. 266).

Argumentou-se também que a questão emerge no contexto do conflito armado em Chiapas, quando organizações não governamentais internacionais de direitos humanos, organismos especializados em direitos humanos no âmbito do Sistema das Nações Unidas e do Sistema Interamericano, da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA), bem como governos de alguns países, começaram a monitorar a situação de forma mais sistemática e a exercer pressão sobre o governo mexicano. Susana Núñez (2001) considera que certamente muito tiveram a ver e foram determinantes, entre outros, os informes divulgados em 1996 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, principalmente em relação ao incidente da matança de Aguas Blancas, em Guerrero, onde forças policiais do governo do estado atacaram membros da Organização Camponesa da Sierra del Sur, com saldo de dezessete mortos. A autora também se refere ao caso do general Gallardo, militar hostilizado por altos comandos do Exército, submetido a procedimentos judiciais e privado de sua liberdade sem que tenham sido provados os fatos pelos quais era acusado. Finalmente, Alejandro Anaya argumenta que a: tendência a uma crescente pressão transnacional sobre o governo do México se intensificou de modo considerável depois de dezembro de 1997, quando um grupo de civis armados supostamente vinculados ao PRI, então no poder tanto em Chiapas como no governo federal, perpetrou o mais brutal ato de violência do conflito no Sudeste do México: o massacre de 45 indígenas tzotziles (a maioria mulheres e crianças) na comunidade de Acteal, município de Chenalhó, Chiapas. Certamente, o massacre de Acteal atraiu ainda mais a atenção da comunidade internacional para a situação dos direitos humanos no país, propiciando um repúdio unânime e explícito em todo o mundo. (ANAYA, 2012, p. 52).

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Pelas diversas razões expostas, o certo é que na administração de Zedillo se tomou a decisão de convidar organizações internacionais para observar a situação dos direitos humanos no país, destacando-se as visitas da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Alta Comissária das Nações Unidas de Direitos Humanos, Mary Robinson, e também do Relator Especial sobre a questão da tortura. Contudo, a medida de maior transcendência e destaque desse governo foi reconhecer a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sobre essa questão, Rosario Green (2013, p. 266-267) observa que “com a autorização do presidente, e após cuidadosas conversações com os secretários de Governação e da Defesa Nacional, aceitou-se a competência contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ou Corte de San José”.3 A chegada ao poder de um partido diferente (PAN, Partido de Ação Nacional) daquele que havia governado o país por 69 anos consecutivos (o PRI, Partido Revolucionário Institucional) implicou uma mudança mais marcante na política de direitos humanos, reconhecendo-se: de maneira aberta que o país tinha problemas em matéria de direitos humanos e aceitando-se sem maiores limites nem condições o monitoramento, o escrutínio e a cooperação de atores internacionais, entre eles as organizações não governamentais tanto nacionais como estrangeiras. (ANAYA, 2012, p. 61).

Em 2003, O Escritório do Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, através de seu representante, Anders Kompass, apresentou um documento intitulado Diagnóstico sobre a situação dos Direitos Humanos no México (o Diagnóstico) de cuja elaboração participaram acadêmicos, especialistas e representantes da sociedade civil envolvidos na questão. Nesse documento, elaboraram-se diversas propostas, a primeira das quais apontava a necessidade de reformar a Constituição para incorporar o conceito de direitos humanos como seu eixo fundamental, e atribuir aos tratados de direitos humanos uma hierarquia superior à ordem normativa federal e às ordens normativas locais, com a determinação expressa de que todos os poderes públicos se submeteriam a essa ordem internacional quando ela conferisse às pessoas uma proteção maior do que a Constituição ou os ordenamentos derivados desta. Além disso, propunha-se estabelecer um programa para a retirada das reservas e declarações interpretativas e ratificar os tratados internacionais pendentes em matéria de direitos humanos. A segunda recomendação, em sua primeira parte, exorta a promulgar leis gerais regulamentadoras de todos os direitos humanos constitucionalmente reconhecidos e a garantir sua proteção com o mesmo padrão para todos os habitantes do país diante do governo federal e dos governos locais (NACIONES UNIDAS, 2003, p. VII). O Diagnóstico também recomendava continuar com a política de abertura da administração atual [refere-se ao governo de Vicente Fox] em matéria de direitos humanos. Nesse sentido, 42 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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promover a visita de relatores e grupos de trabalho especializados em questões de direitos humanos locais. (NACIONES UNIDAS, 2003, p. 3).

No governo de Felipe Calderón (também do PAN), de 2006 a 2012, acontece o processo de reforma constitucional em matéria de direitos humanos, mas também ocorrem retrocessos significativos com a criação, sob o pretexto da denominada “guerra contra o narcotráfico”, de figuras como o arraigo,4 com o aumento considerável do número de pessoas desaparecidas e a maior recorrência de violações de direitos humanos por parte das forças armadas. Não obstante, a política de abertura em matéria de direitos humanos continuou. Voltar “à política soberanista, ao contrário, teria causado custos demasiados ao governo de Calderón, facilitando o desenvolvimento de um contexto muito mais propício a provocar mais pressão” (ANAYA, 2013, p.784). O mesmo valeria para o governo de Enrique Peña Nieto, iniciado em dezembro de 2012, assinalando a volta do PRI ao poder federal, que teria de assumir um altíssimo custo político que, ademais, prejudicaria a imagem internacional do México. O fato é que a questão dos direitos humanos adquiriu menos destaque no novo governo, concentrado em reformas de caráter educacional, financeiro e energético. Todavia, como deve estar a par da irreversibilidade da questão no âmbito interno e de sua projeção no exterior, ao receber os juízes membros da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que se reuniram no México de 7 a 11 de outubro de 2013, o presidente mexicano destacou seu compromisso de colaboração plena com a CIDH em virtude do papel fundamental que este tribunal desempenha no México e na região, e referendou o compromisso do país com a plena instrumentação da reforma constitucional nessa matéria (PEÑA NIETO, 2013b).

3 A reforma constitucional de 2011 em matéria de direitos humanos Em sua redação original, a Constituição mexicana de 1917 continha um capítulo relativo às garantias individuais e outro aos direitos agrários e trabalhistas. Essa lista continuou sendo ampliada por meio de diversas reformas. Incorporaram-se, entre outros, o Direito à Saúde e o Direito à Moradia Digna e Decorosa (1983); Direitos Indígenas (28 de janeiro de 1992, ampliados significativamente em 2001); Direito ao Meio Ambiente Adequado (1999); Direito de Acesso à Cultura, “bem como ao exercício dos direitos culturais” (2009); Direito à Cultura Física e à Prática do Esporte e o Direito à Alimentação (2011) e o Direito à Água (2012). Entretanto, é a reforma de 2011 que amplia, de forma mais exaustiva, o catálogo de direitos humanos ao considerar todos aqueles contidos nos tratados dos quais o Estado mexicano seja parte. Do mesmo modo, essa reforma modifica a denominação do Capítulo Primero do Título Primero para incorporar a expressão Direitos Humanos; obriga o Estado a prevenir, investigar, punir e reparar as violações dos direitos humanos nos termos de uma lei que deverá ser aprovada para tal efeito; estabelece que a educação proporcionada pelo Estado deverá fomentar 19 SUR 39-57 (2013) ■

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os direitos humanos; estabelece o direito de solicitar refúgio ou asilo político; obriga o sistema penitenciário a se organizar com base no respeito aos direitos humanos; proíbe a restrição de certos direitos em caso de suspensão de direitos decretada pela autoridade competente e obriga que se legisle sobre a matéria; concede aos estrangeiros a possibilidade de impugnar sua expulsão; introduz no princípio normativo de política exterior o respeito, a proteção e promoção dos direitos humanos; estabelece também a obrigatoriedade dos funcionários públicos de justificar sua negativa a recomendações formuladas pela Comissão Nacional de Direitos Humanos e a dotação a este órgão da faculdade de investigar violações graves de direitos humanos e interpor ações de inconstitucionalidade. A reforma implicou a atribuição ao Estado das obrigações de prevenir, investigar e punir as violações de direitos humanos, adotando medidas necessárias de caráter jurídico, em particular, elaborar uma série de leis secundárias exigidas pela emenda, bem como de caráter político e administrativo, requerendo não descuidar do aspecto do tratamento devido às vítimas. Por sua vez, essa reforma foi muito bem recibida pela opinião pública mexicana, exceto por pequenos grupos que chegaram a argumentar que o México cedia soberania com essas reformas e que sua interpretação ficava sujeita aos critérios impostos por entes supranacionais como a ONU (SCALA, 2011, p. 1), bem como por alguns setores do Poder Judiciário Federal, o que ficaria claro com a jurisprudência de 3 de setembro de 2013, que será comentada mais adiante.

4 A Suprema Corte de Justiça e sua posição sobre as normas de direitos humanos A reforma constitucional em matéria de direitos humanos esclarece a posição hierárquica dos tratados pertinentes dentro do sistema jurídico mexicano. O artigo 133 da Constituição estabelecia, já em sua redação original, que todos os tratados que estejam em conformidade com ela, assinados ou que venham a ser assinados pelo presidente da República, com aprovação do Senado, fazem parte da lei suprema de toda a União, ou seja, são levados em consideração, mas, ao não definir sua hierarquia, eles podiam entrar em colisão com uma lei sem se saber qual disposição prevaleceria. Foi precisamente em um caso assim que, em 11 de maio de 1999, o plenário da Suprema Corte de Justiça da Nação (SCJN) resolveu o amparo5 em revisão 1475/98 promovido pelo Sindicato Nacional de Controladores do Trânsito Aéreo (MÉXICO, 1999a) em um conflito de livre sindicalização, um direito social, pela contradição existente entre uma lei federal e um tratado assinado sob os auspícios da Organização Internacional do Trabalho. Dessa resolução deriva a tese 192,867 que estabelece que: “os tratados internacionais se encontram em um segundo plano imediatamente abaixo da lei fundamental e acima do Direito federal e local” (MÉXICO, 1999b). Isso foi ratificado no Amparo 815/2006 (MÉXICO, 2007) e em outros treze, nos quais a SCJN ratificou, em 13 de fevereiro de 2007, que os tratados internacionais estão hierarquicamente abaixo da Constituição, mas acima das leis federais, estaduais e do Distrito Federal. 44 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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Por outro lado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em novembro de 2009, emitiu a sentença condenatória do México no caso Rosendo Radilla (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2009). Essa sentença foi objeto de análise do plenário da Suprema Corte pela suposta falta de disposição expressa sobre o valor que teriam as sentenças da Corte Interamericana no sistema jurídico mexicano. O órgão judicial máximo mexicano, em sessão de 14 de julho de 2011, por unanimidade, resolveu que é possível, em uma ação de inconstitucionalidade, que a Corte recorra à análise de tratados internacionais, mesmo quando o demandante não os tenha invocado. Essa sentença foi expedida já levando em conta a reforma constitucional em matéria de direitos humanos, que, na ocasião, tinha somente treze dias de vigência. No parecer da sentença do Caso Rosendo Radilla (MÉXICO, 2011b), o Plenário da Suprema Corte estabeleceu: a) as sentenças da Corte Interamericana são obrigatórias para todos os órgãos e poderes do Estado; b) todos os juízes do país estão obrigados a exercer um controle de convencionalidade; e c) os critérios interpretativos contidos na jurisprudência da CIDH são “orientadores” para o Poder Judiciário da Federação.6 Resta uma dúvida: se a Corte tivesse decidido em sentido oposto, o México poderia simplesmente dizer que não cumpriria a sentença porque a Corte havia estabelecido sua não obrigatoriedade? Devemos lembrar que se trata de um assunto que envolve o Estado mexicano e, consequentemente, todos os órgãos, e não somente a autoridade administrativa, o que implica que cabe a todos cumprir sua parte no que tange à observância e efetividade dos direitos humanos. A partir de então, não se duvidava que as normas internacionais de direitos humanos contidas em tratados dos quais o México fizesse parte pertenciam a seu sistema jurídico com uma hierarquia similar à das normas estabelecidas na Constituição. No entanto, em 3 de setembro de 2013, o Tribunal Pleno da SCJN resolveu a contradição de tese 293/2011 (MÉXICO, 2013), pela qual definiu o critério que deve prevalecer em relação ao lugar constitucional dos tratados de direitos humanos de fonte internacional, dando assim certeza aos juízes sobre o modo de executar a reforma constitucional em matéria de direitos humanos. O Tribunal Pleno resolveu, por maioria de dez votos, que do artigo 1º da Constituição se depreende um conjunto de normas de direitos humanos, de fonte tanto constitucional como convencional, que se regem por princípios interpretativos, entre os quais não se distingue a fonte da qual derivam esses direitos. A maioria determinou que, a partir da reforma do artigo 1º, os direitos humanos de fonte internacional constitucional têm a mesma eficácia normativa que os previstos na Constituição, isto é, lhes é atribuído o mesmo nível constitucional. Dessa maneira, interpretou-se que a reforma em matéria de direitos humanos amplia o catálogo constitucional desses direitos, pois permite harmonizar, através do princípio pro persona, as normas nacionais e internacionais, garantindo assim a proteção mais ampla à pessoa. Não obstante, determinou também que, quando houver uma restrição expressa na Constituição ao exercício dos direitos humanos, se deverá seguir o que indica a norma constitucional, ou seja, reconhece restrições ao exercício dos direitos humanos e volta a dar supremacia às normas constitucionais, quando se depreendia da reforma que estavam no mesmo plano. Essa disposição, em particular, não foi bem recebida por organizações da sociedade civil, que a qualificaram de regressiva. Felizmente, na 19 SUR 39-57 (2013) ■

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mesma resolução, o Tribunal Pleno estabeleceu que toda a jurisprudência da Corte Interamericana, inclusive aquela nos casos de litígios em que o México não faça parte, é obrigatória para os juízes mexicanos, sempre que seja mais favorável à pessoa.

5 Os aspectos pendentes da reforma É indubitável que a reforma em si mesma representa um avanço em matéria de direitos humanos no México. No entanto, devemos levar em conta certos aspectos e resolver questões pendentes, cuja falta de consecução dificilmente permitirá projetar para o interior e para o exterior uma política idônea de direitos humanos. A seguir, discutimos alguns desses aspectos que devem ser considerados. A reforma de 2011 estabeleceu a obrigação para o Estado de elaborar uma série de leis regulamentadoras que poderiam tornar mais efetiva a aplicação das novas normas contidas na Constituição, e, para isso, fixou prazos que não foram cumpridos, pois a data limite era 10 de junho de 2012. A legislação pendente é a seguinte: a) Reparações por violações dos direitos humanos O artigo 1°, em seu terceiro parágrafo, estipula agora que todas as autoridades, no âmbito de suas competências, têm a obrigação de promover, respeitar, proteger e garantir os direitos humanos em conformidade com os princípios de universalidade, interdependência, indivisibilidade e progressividade. Em consequência, o Estado deverá prevenir, investigar, punir e reparar as violações dos direitos humanos nos termos que a lei estabeleça. Esta lei não foi elaborada. b) Lei de Asilo Neste caso particular, trabalhou-se, de fato, a partir da Lei de Refugiados e Proteção Complementar.7 Com o compromisso de cumprir o terceiro artigo transitório do Decreto da reforma constitucional em matéria de direitos humanos, o presidente Felipe Calderón enviou uma iniciativa ao Senado em 9 de outubro de 2012 a fim de incorporar nesta lei as questões relativas ao Asilo, de modo que a nova legislação se intitularia “Lei de Refúgio, Proteção Complementar e Asilo”. As comissões do Senado a aprovaram em abril de 2013, incluindo as recomendações formuladas pelo Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Porém, a nova legislação continua pendente de conclusão do procedimento legislativo. c) Suspensão ou restrição do exercício de direitos e garantias O artigo 29 da Constituição, relativo à suspensão ou restrição de garantias, também será objeto de uma lei regulamentadora, a qual também se encontra pendente de elaboração. Cabe aclarar que nem todos os direitos e garantias são susceptíveis de restrição ou suspensão, estando expressamente delimitados os que não o são. Além disso, qualquer limitação ao exercício dos direitos e 46 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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garantias deve estar fundamentada e motivada nos termos estabelecidos pela Constituição e ser proporcional ao perigo enfrentado, observando-se sempre os princípios de legalidade, racionalidade, proclamação, publicidade e não discriminação. Finalmente, como parte da reforma em matéria de direitos humanos, o oitavo artigo transitório indica que o Congresso da União adequaria a Lei da Comissão Nacional dos Direitos Humanos em um prazo máximo de um ano, contado a partir do início da vigência do decreto de reforma constitucional, publicado em 10 de junho de 2011. Neste caso, em 15 de junho de 2012, foram publicadas as reformas dessa lei. Com essa adequação, outorgou-se à CNDH a faculdade de investigar fatos que constituam violações graves aos direitos humanos quando assim o julgue conveniente, ou a pedido do Executivo Federal, de alguma das Câmaras do Congresso da União, do governador de um Estado, do chefe de governo do Distrito Federal, ou das legislaturas das entidades federativas.8 Do mesmo modo, dispôs-se que quando as recomendações emitidas pela CNDH não forem aceitas ou cumpridas, a autoridade ou servidor público envolvido deverá fundamentar, motivar e tornar pública sua negativa, e atender aos chamados que lhe faça o Legislativo para comparecer e explicar o motivo de sua negativa. Se a negativa persistir, a CNDH poderá denunciar ao Ministério Público, ou à autoridade administrativa apropriada, os servidores públicos apontados na recomendação como responsáveis. Esta é a legislação que foi de fato cumprida, de todas as definidas pelo Decreto de reforma, em matéria de direitos humanos. Durante sua intervenção, na cerimônia do 96o Aniversário da Promulgação da Constituição, em 5 de fevereiro de 2013, o presidente Enrique Peña destacou que: [f ]inalmente, a vertente mais importante desta Comemoração: Cumprir a Constituição. A melhor homenagem que podemos e devemos fazer para nossa Lei Suprema é, precisamente, como aqui já expressaram os que me antecederam no uso da palavra, é precisamente cumpri-la. Guardar e fazer guardar seus preceitos. (PEÑA NIETO, 2013a).

E acrescentou que, no marco daquela cerimônia, era: necessário reconhecer que há leis regulamentadoras de artigos constitucionais que ainda não foram apresentadas, aprovadas e publicadas. Matérias fundamentais, como direitos humanos, segurança e justiça penal, amparo, delitos contra jornalistas, educação, água, ou o interesse superior da infância, ainda aguardam sua regulamentação na lei secundária. É obrigatório que os Poderes trabalhem para materializar os ordenamentos pendentes. (PEÑA NIETO, 2013a).

Por outro lado, Javier Hernández Valencia, representante no México do Escritório do Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, no segundo aniversário da promulgação da reforma, exortou os legisladores mexicanos a elaborar 19 SUR 39-57 (2013) ■

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sua legislação regulamentadora, recordando que já estava vencido o prazo de um ano indicado nas medidas transitórias para que se contasse com a nova normatividade. Disse que é preciso entender que a reforma de direitos humanos: não se acabou somente com sua publicação no Diário Oficial, há artigos transitórios e prazos que supunham a elaboração de leis secundárias que não cumprimos e já estamos fora de prazo e, portanto, se exige que todos, desde a cidadania, participem e manifestem que estão comprometidos com a finalização e consolidação da reforma. (OTERO, 10 de junho de 2013).

No processo legislativo mexicano, possuem faculdade de iniciativa de lei o Executivo, os legisladores federais e as legislaturas estaduais e, portanto, não se deve considerar que a obrigação cabe exclusivamente ao Executivo toda vez que os artigos transitórios não lhe outorgaram a responsabilidade de forma expressa. Sendo assim, qualquer dos quinhentos deputados, 128 senadores, ou das 31 legislaturas locais poderiam também apresentar uma iniciativa para atenuar esse atraso legislativo que, por sua vez, tampouco prevê sanções pelo seu não cumprimento. Outra matéria pendente no âmbito das questões jurídicas é a assinatura e/ou as ratificações de tratados referentes aos direitos humanos dos quais o Estado mexicano ainda não faça parte, e a retirada de reservas, formuladas aos já ratificados, que contradigam ou criem obstáculos ao pleno cumprimento dos direitos humanos. No primeiro caso, temos, por exemplo, o Protocolo Facultativo do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais adotado pela Resolução A/RES/63/117 de 10 de dezembro de 2008 (NACIONES UNIDAS, 2008), o qual não foi ratificado pelo México, não obstante sua participação ativa no processo de negociação e adoção. Quanto à retirada de reservas, um exemplo muito significativo diz respeito à expulsão de estrangeiros, comentada anteriormente, que, apesar da reforma constitucional, ainda não foi retirada. Devemos lembrar que, devido a uma reforma de 2007, a retirada de qualquer reserva deve ser agora consentida pelo Senado da República. Finalmente, devemos notar que: [o] sistema de recepção de normas e padrões internacionais em matéria de direitos humanos é especialmente deficiente porque somente os tratados são reconhecidos como fonte deles, deixando-se de fora outras fontes do Direito Internacional, como o costume, os princípios gerais do Direito ou as decisões dos órgãos judiciários internacionais. (GUERRERO, 2008, p. 43).

Para não deixar de fora outras fontes do Direito, teria sido muito conveniente que, ao se realizar a reforma, se tivesse optado por referir-se a “instrumentos internacionais”, em lugar de fazê-lo de forma exclusiva aos tratados, seguindo, por exemplo, o sistema adotado pela Constituição da Bolívia.9 Entre as possíveis consequências negativas, advindas dessa opção restritiva aos tratados adotada pela Reforma, podemos apontar, por exemplo, que a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (NACIONES UNIDAS, 2007a) assume a forma 48 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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jurídica de Resolução e, portanto, no caso de uma interpretação constitucional, não seria considerada Lei Suprema da União em termos do artigo 133 da Constituição, por não ser um tratado internacional. É também o caso da Corte Penal Internacional (CPI), da qual o México é Estado parte, depois de um longo caminho que vai desde as negociações prévias à Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações Unidas sobre o Estabelecimento de uma Corte Penal Internacional (Roma, junho e julho de 1998) (NACIONES UNIDAS, 1998) até o depósito de seu instrumento de ratificação (outubro de 2005). Não obstante, por disposição constitucional, o reconhecimento de sua jurisdição ficou sujeito à potestade do poder Executivo, que deve se manifestar caso a caso, bem como à ratificação por parte do Senado da decisão executiva em sentido afirmativo. O enunciado é muito breve: “O Executivo Federal poderá, com a aprovação do Senado em cada caso, reconhecer a jurisdição da Corte Penal Internacional”. Essa disposição é infeliz, pois vai contra o espírito do Estatuto de Roma (Estatuto) que afirma que “o Estado que passe a ser Parte no presente Estatuto aceita por ele a competência da Corte no que diz respeito aos crimes a que se refere o artigo 5”.10 Além disso, complica o procedimento para que um indivíduo seja entregue à CPI, e menospreza o fato de que um tribunal penal permanente (e não ad hoc, como era no passado) inibe as condutas que serão por ele penalizadas. No caso mexicano, a jurisdição da CPI foi politizada ao dar participação a um órgão que, além do mais, dependerá da correlação de forças existentes no momento da discussão do caso que esteja em pauta. O argumento de que se adotou esta fórmula para salvaguardar a situação jurídica dos cidadãos mexicanos não é válido e, além disso, denota estreiteza de visão ou desconhecimento do que é a CPI, pois o México deveria entregar supostos delinquentes internacionais independentemente de sua nacionalidade. Se o objetivo era examinar o caso para aprovar sua procedência, e assegurar as garantias dos supostos indivíduos responsáveis pelo cometimento deste tipo de delitos, fossem mexicanos ou não mexicanos, cabe preguntar por que se estabeleceu um órgão político e não um órgão judicial. O texto constitucional, no que se refere à CPI, como observa Manuel Becerra Ramírez, é uma espécie de “reserva encoberta”, esclarecendo que o Estatuto não admite reservas e que, ao admiti-las, a que nos ocupa vai contra o objeto e o objetivo do tratado (BECERRA, 2006, p. 951-954). Enquanto a situação permanece assim, se surgir um caso, espera-se ver um Executivo e um Senado mexicanos à altura do que exige o combate à impunidade e a punição dos delitos de competência da CPI.

6 A Corte Interamericana de Direitos Humanos Devemos entender a jurisdição da Corte Interamericana como um ato voltado para o exterior, mas com consequências internas inegáveis, e não necessariamente favoráveis, quando se trata do reconhecimento da culpabilidade do Estado em violações de direitos humanos (COVARRUBIAS, 1999, p. 451). Desde que o México reconheceu a jurisdição da Corte, em 2012, o governo 19 SUR 39-57 (2013) ■

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mexicano foi condenado em cinco casos. Esclarecemos que a exceção preliminar ratione temporis que o país apresentou no primeiro dos casos, Martín do Campo Dodd vs. Estados Unidos Mexicanos (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2004), lhe foi favorável e, no caso de Jorge Castañeda Gutman, foi absolvido de algumas das acusações relacionadas com os direitos políticos e não com os de acesso à justiça. O governo mexicano, em nenhum caso, assumiu a postura de ceder à demanda, reconhecendo os erros de funcionários que violaram os direitos humanos, sempre pretendendo obter uma sentença favorável para manter intocados o prestígio e a imagem do país, sem considerar que o reconhecimento simples dos fatos poderia ser, por um lado, bem recebido e, em consequência, o México ser considerado um país comprometido com os direitos humanos. Além disso, a experiência perante este Tribunal mostra que é um exercício muito longo e complexo defender funcionários mexicanos que violaram os direitos humanos de cidadãos mexicanos, com o fato adicional de que o México perdeu a maioria das causas e, por conseguinte, teve de pagar indenizações às vítimas ou a seus familiares. O dinheiro que se economizaria poderia ser destinado a programas de promoção e defesa dos direitos humanos. Existem alguns antecedentes em que se decidiu negociar com as vítimas antes de começar o julgamento, mas foi por solicitação do governo do estado de Oaxaca e não por iniciativa do Governo Federal. Em outubro de 2012, a titular da Procuradoria Geral da República (PGR), ofereceu uma desculpa pública, em nome do Estado mexicano, aos familiares de Jesús Ángel Gutiérrez Olvera, vítima de desaparecimento forçado em março de 2002, em atos atribuídos aos membros da extinta Agência Federal de Investigações (AFI) e da Procuradoria da capital. A admissão de responsabilidade pelo governo do México no desaparecimento de Gutiérrez Olvera fez parte de um Acordo de Solução Amistosa costurado no interior da Comissão Interamericana de Direitos Humanos por representantes do Estado e familiares do desaparecido, os quais, com o apoio da Comissão de Direitos Humanos do Distrito Federal (CDHDF), apelaram a esse órgão para denunciar a impunidade em que se encontra o caso. Com exceção desses dois casos, a postura do México foi de desconfiança em face das ações e recomendações da CIDH, bem como da Corte, a qual, em duas ocasiões, pretendeu desacreditar, acusando-a de parcial.

7 Revisão Periódica Universal O Grupo de Trabalho sobre a Revisão Periódica Universal (RPU), estabelecido em conformidade com a resolução 5/1 do Conselho de Direitos Humanos de 18 de junho de 2007 (NACIONES UNIDAS, 2007b), examinou o México em seu quarto período de sessões, de 2 a 13 de fevereiro de 2009. Na terceira sessão, realizada em 10 de fevereiro de 2009, o Secretário de Governo do México, Fernando Gómez Montt, apresentou o informe nacional e explicou que o México participa do mecanismo do RPU porque está convencido de que a promoção e a proteção dos direitos humanos é uma obrigação irrenunciável e um imperativo ético universal, e que a cooperação com os mecanismos internacionais de direitos humanos é um instrumento valioso para favorecer as mudanças estruturais internas (NACIONES UNIDAS, 2009, p. 3). 50 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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Algumas das recomendações formuladas pelo Grupo de Trabalho após a revisão e que têm relação direta com a modificação da legislação geral em matéria de direitos humanos são: 1. Considerar a possibilidade de retirar gradualmente suas reservas em relação aos instrumentos internacionais de direitos humanos (Brasil); 2. Prosseguir as reformas empreendidas, para que todos os seus cidadãos desfrutem plenamente dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, em particular a harmonização da legislação interna com seus compromissos internacionais (Marrocos); 3. Completar seus esforços institucionais para que as normas internacionais de direitos humanos adotadas pelo México tenham nível constitucional e se apliquem como lei suprema nos processos judiciais (Espanha); 4. Incorporar efetivamente à legislação nacional as disposições dos instrumentos internacionais de direitos humanos (Azerbaijão); 5. Harmonizar a legislação federal e estatal com os instrumentos internacionais de direitos humanos (Bolívia, Espanha, Guatemala, Turquia, Uruguai), a fim de garantir a aplicação efetiva desses instrumentos (Turquia) (NACIONES UNIDAS, 2009, p. 21-22). Por fim, cabe destacar que a guerra contra o narcotráfico empreendida pelo governo de Calderón, mas cujos efeitos se prolongam até hoje, gerou um número incerto de pessoas desaparecidas (incerto pela discordância entre as estatísticas apresentadas pelas autoridades), e o México é considerado um dos países mais perigosos para se exercer o jornalismo. Recentemente, criaram-se promotorias especiais, a Unidade para a Busca de Pessoas Desaparecidas e outra para investigar os delitos contra a liberdade de expressão, mas ainda é cedo para ver seus resultados.

8 Conclusões É inegável o fato de que a reforma constitucional de junho de 2011 deu uma dimensão diferente às normas de direitos humanos no México. Sua explicitação na Constituição é um grande avanço e seu posicionamento na pirâmide hierárquica do sistema jurídico mexicano esclarece em muito as obrigações às quais o Estado mexicano deve estar sujeito na matéria. Embora existam vozes reticentes e detratoras que não o assimilam, é um passo na construção de uma imagem melhor como país observador dos direitos fundamentais, ainda que para sê-lo de forma precisa e abrangente existam tarefas pendentes e urgentes a realizar. Levar a termo o que aqui mostramos como estando pendente contribuiria de forma congruente para o fortalecimento da política e da imagem mexicana em termos de direitos humanos, bem como, de modo indubitável, para o respeito, promoção e defesa desses direitos. De maneira complementar, a transversalização da agenda de direitos humanos, nos espaços de diálogo multilateral e bilateral, 19 SUR 39-57 (2013) ■

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permitiria estender este enfoque para diversas temáticas, ao mesmo tempo em que ofereceria a oportunidade de aproveitar esses espaços para criar alianças e difundir a posição e a imagem do México (PADILLA RODRÍGUEZ; FERNÁNDEZ LUDLOW, 2012, p. 91-92). Os desafios passam pelo fato de que se deve ser congruente com a observância dos direitos humanos no âmbito doméstico e com a atuação no cenário internacional no que diz respeito a essa questão. Uma política idônea de direitos humanos exige compromissos internos e externos. O reconhecimento pelo presidente da República, em sua alocução do 96º aniversário da Constituição, de que “há direitos que para uma grande parte dos mexicanos existem somente no papel” (PEÑA NIETO, 2013a), poderia ser estendido não apenas aos direitos, mas a todas as disposições normativas contidas na Constituição, como os princípios que regem a política exterior. O recentemente incorporado princípio do respeito, da proteção e da promoção dos direitos humanos será letra morta se o México não adotar uma política firme para cumprir as três tarefas contidas na reforma, em suas duas dimensões: a doméstica e a internacional.

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NOTAS 1. As reformas constitucionais em matéria de direitos humanos e de amparo levaram a Suprema Corte de Justiça da Nação a considerar que constituem um paradigma para nosso país toda vez que geram mudanças normativas que estabelecem novas obrigações em relação ao respeito e à proteção dos direitos. Desse modo, por sua transcendência, a SCJN decidiu dar início, em 4 de outubro de 2011, à Décima Época do Semanario Judicial de la Federación, publicação da jurisprudência do Plenário e das Salas da Suprema Corte de Justiça da Nação, bem como dos Tribunais Colegiados de Circuito. 2. No final de 1980, o Senado mexicano ratificou os seguintes documentos: Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais; Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher; Convenção Americana sobre Direitos Humanos; Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher; Convenção sobre Asilo Territorial e Convenção Americana sobre a Concessão dos Direitos Políticos à Mulher. 3. É preciso assinalar também que, em alguns informes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, se recomendava o reconhecimento da jurisdição obrigatória da Corte Interamericana. 4. Arraigo: medida preventiva para impedir que uma pessoa abandone um lugar específico ou se subtraia à ação da justiça (uma espécie de detenção domiciliar). (N. do T.) 5. Amparo: recurso judicial semelhante ao mandado

de segurança brasileiro cujo objetivo é proteger contra leis ou atos de autoridades públicas que violem os direitos constitucionais. (N. do T.) 6. No parecer da sentença do Caso Rosendo Radilla, o Plenário da Suprema Corte (2011b) também estabeleceu que quando as forças armadas violam os direitos humanos de um civil, a jurisdição será a do foro comum e não a jurisdição militar. 7. Em 27 de janeiro de 2011 foi publicada no Diário Oficial da Federação a Lei de Refugiados e Proteção Complementar que entrou em vigência no dia seguinte e cujo Regulamento foi expedido em 21 de fevereiro de 2011. 8. Esta faculdade era antes da Suprema Corte de Justiça da Nação, mas não tinha consequências, já que a Corte considerava que estava limitada a emitir uma declaração e não abarcava a execução de atos concretos que deram resposta direta aos fatos que haviam originado a violação grave de garantias. 9. A Constituição da Bolívia, no primeiro parágrafo de seu artigo 256, estabelece que “os tratados e outros ‘instrumentos internacionais’ em matéria de direitos humanos que tenham sido assinados, ratificados ou aos quais o Estado tenha aderido, que contenham normas mais favoráveis à Constituição, serão aplicados de maneira preferencial à disposição constitucional correspondente” (BOLÍVIA, 2009). 10. Primeiro parágrafo do artigo 12 do Estatuto de Roma da Corte Penal Internacional (REVISTA JURÍDICA DE BUENOS AIRES, 1998, p. 176).

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CARLOS CERDA DUEÑA

ABSTRACT A major overhaul of the human rights provisions of the Mexican Constitution led to the incorporation in the revised Constitution of a series of key amendments that have been in force since June 2011. As a result, it is now clearer to see how international human rights standards dovetail with the Mexican legal system’s hierarchy of norms. This article aims to analyze and discuss the implications of the constitutional reform, highlighting its significance on the domestic and international fronts while drawing attention to a number of pending issues, and reviewing the prospects for the future application of these new human rights standards in Mexico. KEYWORDS Incorporation of standards – Human rights – Constitutional reform – Foreign policy – Mexico

RESUMEN La Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos fue objeto de una reforma integral en materia de derechos humanos que se encuentra vigente desde junio de 2011. Con dicha enmienda, se estableció de forma más nítida cómo las normas internacionales de derechos humanos quedan posicionadas en la pirámide jerárquica de las normas dentro del sistema jurídico mexicano. Este artículo pretende analizar y comentar las implicancias que conlleva la reforma señalada, haciendo especial énfasis en el devenir histórico para el reconocimiento de dichas normas; la reforma constitucional y sus pendientes, visualizando también su dimensión tanto en lo doméstico como en el escenario internacional. PALABRAS CLAVE Incorporación de normas – Derechos humanos – Reforma constitucional – Política exterior – México

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ELISA MARA COIMBRA Elisa Mara Coimbra é advogada da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) e mestranda em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio, ex-bolsista CNPq. Email: elisacoimbra775@yahoo.com.br

RESUMO O objetivo do estudo é analisar o processo de cumprimento das decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), particularmente as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) no Brasil. Diante da constatação prévia da existência de deficits generalizados nas execuções das sentenças da Corte IDH, tomam-se os casos sentenciados por ela em desfavor do Estado brasileiro e, a partir de análise comparativa, avalia-se o processo institucional interno de cumprimento das sentenças. Nessa empreitada, problematizam-se as dificuldades do Direito clássico em atender às expectativas de eficácia jurídica em um contexto de produção e implementação plurais da norma. Original em português. PALAVRAS-CHAVES Cumprimento – Sentenças – Corte IDH – Brasil Este artigo é publicado sob a licença de creative commons. Este artigo está disponível online em <www.revistasur.org>. 58 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS: DESAFIOS À IMPLEMENTAÇÃO DAS DECISÕES DA CORTE NO BRASIL* Elisa Mara Coimbra**

1 Introdução As recíprocas interações entre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) e o Sistema Jurídico Nacional, mais do que uma promessa, constituem atualmente uma realidade, que precisa, porém, ser aperfeiçoada. Diante da crescente profusão de normas jurídicas e da modificação das estruturas clássicas do Direito, os direitos humanos representam um esforço por um “direito comum” (DELMASMARTY, 2004), cujo propósito não é comprometer a identidade cultural e jurídica de cada Estado, tampouco esvaziar-lhes completamente a soberania, uma vez que se trata de importantes atores globais. Ao contrário, o “direito comum” responde à necessidade de coordenar a regulação imposta pela globalização, resguardando o pluralismo e levando ao primeiro plano o caráter protetivo dos direitos humanos, ao tornar visíveis grupos marginalizados pelas estruturas nacionais. Assim, “o SIDH proporciona bases institucionais para a construção de uma esfera pública transnacional1 que pode contribuir para a ampliação da democracia brasileira” (BERNARDES, 2011, p. 137). Dessa forma, o aperfeiçoamento dos mecanismos de implementação das decisões do SIDH corresponde a um movimento no seio das estruturas formais do Estado, ao viabilizar políticas públicas para grupos mais vulneráveis, por vezes invisibilizados no plano interno, sejam eles quais forem. “Assuntos que não encontram espaços na agenda *Este artigo foi produzido com o apoio da segunda edição do Programa de Incentivo à Produção Acadêmica em Direitos Humanos, no primeiro semestre de 2013, numa parceria entre a Conectas Direitos Humanos e a Fundação Carlos Chagas. Mais informações disponíveis em: http://www.conectas.org/pt/ acoes/sur/noticia/conectas-e-fundacao-carlos-chagas-divulgam-selecionados-para-o-programa-de-incentivo-a-producao-academica-em-direitos-humanos. Último acesso em: Ago. 2013. **Agradeço à professora Márcia Nina Bernardes, por ter despertado meu interesse pelo tema, à professora Deisy Ventura, pelas sugestões e ainda ao Programa Conectas / Fundação Carlos Chagas e ao CNPq pelo incentivo.

Ver as notas deste texto a partir da página 74. 19 SUR 59-75 (2013) ■

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política nacional podem ser tematizados nesses espaços transnacionais e, depois, serem incluídos de volta na pauta política doméstica em uma nova configuração de poder” (BERNARDES, 2011, p. 137). Trata-se do padrão bumerangue de influência, segundo o qual, para que uma política com alvo nacional seja efetivada, pode ser necessária, em caso de bloqueios na esfera nacional, uma mobilização em esferas internacionais que pressionem os Estados nacionais (KECK et al., 1998, p. 12). No entanto, o cumprimento das decisões do SIDH representa um desafio. Podem-se apontar dois estudos quantitativos importantes sobre a efetividade do SIDH (BASH et al., 2010; GONZÁLEZ-SALZBERG, 2010). O primeiro inclui em sua análise o cumprimento de decisões tanto da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) como da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), enquanto o segundo focaliza apenas o cumprimento das decisões da Corte IDH. Todavia, ambos concluem ser necessário elevar o grau de cumprimento das decisões, sobretudo aprimorando (ou melhorando) os mecanismos nacionais de implemento das decisões, principalmente no atual contexto em que se discute a reforma do SIDH.2 Posto isso, o objetivo desse trabalho é investigar eventuais entraves à execução ou cumprimento das decisões, por meio de uma análise comparativa entre os cinco casos referentes ao Brasil que foram julgados pela Corte IDH, identificando, posteriormente, potenciais articulações institucionais capazes de efetivamente implementá-las. Para isso, efetuou-se uma análise documental das sentenças de mérito da Corte IDH e das eventuais supervisões de sentenças correspondentes aos casos mencionados. Para uma compreensão adequada do problema, estrutura-se o trabalho em dois momentos. No primeiro, apresenta-se uma discussão inicial sobre necessidades e tendências de um direito moderno globalizado – as quais, se não observadas, dificultarão ainda mais o processo de interação entre o direito interno e o SIDH. Baseado nos artigos 68.1 e 68.2 do Pacto de São José da Costa Rica, pressupõese que em algumas situações ou circunstâncias, determinados agentes estariam melhores situados que outros para tomarem decisões. Nessa discussão, os Estados nacionais estariam melhores situados que um juiz internacional para determinar mecanismos de cumprimento de uma decisão, no caso, a decisão da Corte IDH. Num segundo momento, a pergunta que se coloca é: como aplicar esse critério de modo que ele potencialize a implementação das decisões do SIDH, considerando as novas tendências do direito? Para isso, descrevem-se comparativamente os casos, buscando identificar eventuais dificuldades no cumprimento e, por fim, tendo em vista este quadro, avalia-se o projeto de lei n° 4.667-C de 2004 que tramitou na Câmara dos Deputados e atualmente tramita no Senado sob o número 170 de 2011.

2 Ordens jurídicas internacional e nacional Em sua obra Por um direito comum, Mireille Delmas-Marty (2004) defende a necessidade de superação do Direito clássico, o direito estatal e não globalizado, assentado na premissa de unidade e de organização hierárquica. A tese decorreria das alterações na conjuntura mundial, decorrentes da globalização que, através de um encurtamento temporal e espacial, introduziu uma realidade incompatível 60 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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com uma noção ortodoxa de Estado-Nação, modo de organização chave do Direito clássico. Nesse sentido, o Estado-Nação deixou de ser autossuficiente na solução de problemas originalmente estatais, a exemplo das questões ambientais e econômicas, surgindo, então, segundo a autora, um “espaço desestatizado”, onde atuam organismos supraestatais e a sociedade civil, e um “tempo desestabilizado”, em que fontes permanentes e temporárias convivem simultaneamente (diferente das antigas codificações, cuja pretensão era de estabilidade). Esses dois fatores inviabilizariam a clássica organização jurídica piramidal kelseniana. Assim sendo, discussões a respeito da prevalência ora do direito internacional sobre o direito interno (teorias monistas), ora do direito interno sobre o direito internacional (teorias dualistas) tornaram-se ultrapassadas. Como se estruturaria, então, uma nova organização jurídica? Pergunta posteriormente aprofundada por Delmas-Marty (2012) na obra Résister, responsabiliser, anteciper. Segundo a autora, a fragmentação jurídica decorrente do processo de globalização exigiria um esforço interativo, seja vertical (sistema nacional e internacional) ou horizontal (Direito Penal, Direito Constitucional, entre outros), cada vez mais acentuado e complexo, a fim de garantir minimamente a coerência normativa. A proposta é considerar os direitos humanos como ferramentas políticodemocráticas no processo de globalização, capazes de reequilibrar as forças entre Estados, a partir da identificação de contradições, em termos desses direitos, na performance dos Estados (direitos econômicos e direitos sociais, direito ambiental e direito ao desenvolvimento, entre outros), ocasionando atribuição de responsabilidade e antecipação dos riscos inerentes ao processo. Aqui se coloca o desafio da convivência entre sistemas jurídicos distintos e relativamente autônomos, isto é, não assentados na clássica estrutura piramidal hierarquizada, qual seja, empreender um convívio nem sempre harmonioso, mas necessário ao fortalecimento de garantias democráticas, há pouco inexistentes e sem efetividade na história da América Latina. É o caso da relação observada entre o SIDH e a ordem jurídica interna. O SIDH é composto pela CIDH e pela Corte IDH, órgãos especializados e, de alguma forma, vinculados à Organização dos Estados Americanos (OEA). Tratase de um sistema regional que obedece à lógica interestatal. A CIDH originou-se de uma resolução, não de um tratado: a resolução VIII da V Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, aprovada em Santiago, em 1959, apesar de posteriormente adquirir status convencional. A Corte IDH, por sua vez, surgiu com a assinatura de um tratado internacional, em 1969 – Convenção Americana dos Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica –, que entrou em vigor em 1978, quando o 11° instrumento de ratificação foi depositado. Apesar de suas distintas trajetórias de constituição, os dois órgãos gozam de autonomia em relação aos sistemas jurídicos nacionais. E apesar de terem sido os Estados os responsáveis pela sua criação, são eles, na maioria dos casos, os promotores e os violadores de direitos humanos condenados por esses órgãos. De um lado, são promotores porque ratificam os tratados de proteção aos direitos humanos e a eles incumbem o cumprimento das decisões do SIDH. Por outro lado, são violadores porque as condenações por violação de direitos humanos pelo SIDH recaem sobre eles. Não se trata, portanto, 19 SUR 59-75 (2013) ■

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de uma discussão sobre a prevalência de um sistema em relação ao outro, e sim de uma complementação de estruturas que, sozinhas, não tornaram efetivos os direitos básicos para uma sociedade democrática. A época de criação do SIDH coincide com um período autoritário na história da América Latina, configurando-se como iniciativa contraditória diante da reiterada violação de direitos humanos em âmbito nacional. À medida que essas contradições, além de identificadas, tornaram-se bandeiras de movimentos sociais, o fechamento das esferas nacionais e regionais passou a ser problematizado, pondo em jogo a noção de margem, baseado no artigo 68.1 do Pacto de São José da Costa Rica. Isto é, o critério por meio do qual se atribui um espaço exclusivo de atuação dos indivíduos integrantes do Estado, fomentando um processo de codeterminação. Por codeterminação entende-se o processo de densificar o conteúdo normativo da sentença, através da participação dos indivíduos, colaborando tanto na identificação dos mecanismos institucionais necessários a propiciar uma reparação integral, quanto na valoração dos resultados alcançados pelos mecanismos de reparação, ou seja, se a violação de Direitos Humanos foi reparada integralmente. Dessa forma, o Estado e a sociedade civil, no Sistema Regional Americano, teriam um lugar privilegiado no fenômeno, o que significa dizer que o Estado deve buscar uma estrutura institucional adequada, sem, contudo, abster-se ou ignorar a interpretação internacional. Com isso em mente e com o objetivo de identificar os entraves institucionais existentes, cabe analisar os casos levados à Corte IDH em desfavor do Estado Brasileiro.

3 Anamnese dos cinco casos A primeira condenação do Brasil proferida pela Corte IDH ficou conhecida como Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Em outubro de 2004, a CIDH submeteu à Corte IDH uma demanda contra a República Federativa do Brasil, em virtude dos alegados ataques de funcionários da Casa de Repouso Guararapes, clínica de tratamento psiquiátrico, credenciada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), em Sobral, Ceará, em prejuízo de Damião Ximenes Lopes, deficiente mental, levando-o à morte. Em quatro de julho de 2006, foi proferida a sentença, condenando o Brasil pelas violações dos artigos 1.1 (Obrigação de respeitar os direitos) em relação ao artigo 4 (Direito à vida), 5 (Direito à integridade pessoal), 8 (garantias judiciais) e 25 (Proteção judicial) da Convenção Americana de Direitos Humanos. Entre outras medidas, o Estado deveria: a) garantir, em um prazo razoável, que o processo interno destinado a investigar e sancionar os responsáveis pelos fatos deste caso surta seus devidos efeitos; b) publicar trechos da sentença no Diário Oficial ou outro jornal de ampla circulação; c) desenvolver um programa de formação e capacitação para o pessoal médico, de psiquiatria e psicologia, de enfermagem, entre outros, em especial sobre os princípios que devem reger o trato das pessoas portadoras de deficiência mental, conforme os padrões internacionais sobre a matéria e aqueles dispostos na sentença; d) pagar indenização às partes lesadas. Em 2 de maio de 2008, em procedimento de supervisão de sentença, a Corte IDH emitiu uma sentença, declarando cumpridas as medidas de publicação e de indenização e declarando não cumpridas as demais medidas. 62 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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Em 21 de setembro, também em procedimento de supervisão de sentença, mas numa outra resolução, as medidas remanescentes continuaram declaradas como não cumpridas. Por fim, na última resolução, de 17 de maio de 2010, da mesma forma, a Corte IDH decidiu manter o procedimento de supervisão com relação aos dois aspectos ainda considerados não cumpridos. O segundo caso, conhecido como Nogueira de Carvalho e outros vs. Brasil, decorreu da submissão, em janeiro de 2005, de uma demanda em prejuízo de Jaurídice Nogueira de Carvalho e Geraldo Cruz de Carvalho pela suposta falta de diligência no processo de investigação e sanção dos responsáveis pela morte de Francisco Nogueira de Carvalho, advogado, defensor de Direitos Humanos que se dedicou a denunciar crimes de um suposto grupo de extermínio composto inclusive por polícias civis, atuante no Rio Grande do Norte, conhecido como “meninos de ouro”. Em 28 de novembro de 2006, foi proferida a sentença de arquivamento do feito, em razão de insuficiente suporte fático para demonstrar as alegadas violações aos direitos, às Garantias Judiciais e à Proteção Judicial. Por este motivo, o caso não será objeto de comparação com os demais. O terceiro caso, Escher e outros vs. Brasil, submetido pela CIDH à Corte IDH, em 20 de dezembro de 2007, contra a República Federativa do Brasil, em prejuízo de membros das organizações COANA (Cooperativa Agrícola de Conciliação Avante Ltda.) e ADECON (Associação Comunitária de Trabalhadores Rurais), entre eles, Arlei José Escher e Dalton Luciano de Vargas, Luciano Vargas e outras 32 pessoas, pelas supostas interceptações telefônicas ilegais dos membros dessas organizações que, em tese, violariam aos artigos 1.1 (Obrigação de respeitas os direitos) em relação ao artigo 11 (direito à vida privada e o direito à honra e à reputação), 16 (direito à liberdade de associação), 8 (garantias judiciais) e ao 25 (proteção judicial), além de violação do artigo 28 (cláusula federal, sendo essa violação não reconhecida pela sentença) da Convenção Americana de Direitos Humanos. Em 20 de novembro de 2009, foi proferida a sentença. Entre as medidas condenatórias, o Estado deveria: a) investigar os fatos que geraram as violações do presente caso; b) publicar trechos da sentença no Diário Oficial ou outro jornal de ampla circulação e em jornal de ampla circulação no Estado do Paraná; c) pagar indenização às partes lesadas. Quanto ao primeiro item, houve um procedimento de interpretação de sentença, a pedido do Brasil, a fim de esclarecer a extensão da investigação dos fatos. Além disso, em 17 de maio de 2010, em procedimento de supervisão de sentença, foi declarada a inexistência de erro da descrição na sentença de como o Estado deve publicar da sentença, devendo o Estado cumprir esse dever nos moldes previstos na ordem judicial. Assim, a publicação da sentença ocorreu no jornal O Globo do dia 23 de julho de 2010, ano LXXXV, n°28.109. Em 24 de dezembro de 2007, a CIDH submeteu à Corte uma demanda (caso Garibaldi vs. Brasil) contra a República Federativa do Brasil, em prejuízo de Iracema Cioato Garibaldi, viúva de Sétimo Garibaldi, e seus seis filhos, pelo descumprimento da obrigação de investigar e sancionar os responsáveis pela morte de Sétimo Garibaldi, ocorrida em 27 de novembro de 1998, durante uma operação extrajudicial de desalojamento das famílias de trabalhadores sem terra que ocupavam uma fazenda localizada no município de Querência, norte do Paraná, violando, 19 SUR 59-75 (2013) ■

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portanto, os artigos 8 (garantias judiciais) e 25 (Proteção judicial) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Nesse quarto caso, em 23 de setembro de 2009, foi proferida a sentença, prevendo, dentre as medidas condenatórias, que o Estado brasileiro deveria: a) publicar trechos da sentença no Diário Oficial da União e em um jornal de ampla circulação no Estado Federativo do Paraná; b) conduzir de modo eficaz e dentro de um prazo razoável o Inquérito e qualquer processo que chegasse a abrir em consequência deste, para identificar, julgar e, eventualmente, sancionar os autores da morte do senhor Garibaldi; c) indenizar as partes lesionadas. Em 22 de fevereiro de 2011, por meio do procedimento de supervisão de sentença, foi declarada cumprida a obrigação de reparação, e declarados não cumpridos tanto o dever de investigação quanto o pagamento de indenizações. Na resolução de 20 de fevereiro de 2012, por outro lado, foi declarado cumprido o dever de indenização e não cumprido o dever de investigação, apesar dos progressos realizados em seu andamento. Em relação ao último caso de condenação do Brasil, conhecido como Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil, a submissão da demanda da CIDH à Corte IDH, contra a República Federativa do Brasil, em prejuízo dos familiares de pessoas desaparecidas durante a Guerrilha do Araguaia, nos anos da ditadura militar brasileira, pelas supostas detenções arbitrárias, torturas e pelo desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista e camponeses da região, ocorreu em 26 de março de 2009, sob a alegação de violação dos artigos 1.1 (obrigação de respeitar os direitos), 2 (dever de adotar disposições de direito interno), 4 (Direito à vida), 7 (Direito à liberdade pessoal), 8 (Garantias judiciais), 13 (Liberdade de pensamento e de expressão) e 25 (Proteção judicial) da Convenção Americana de Direitos Humanos. Em 24 de novembro de 2010, foi proferida a sentença, condenando o Brasil a: a) investigar os fatos, julgar e, se for o caso, punir os responsáveis e de determinar o paradeiro das vítimas; b) tomar medidas de reabilitação (atenção médica e psicológica aos familiares das vítimas desaparecidas ou executadas), satisfação (publicação da sentença, ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional, instituição do dia dos desaparecidos políticos no Brasil e memorial) e garantias de não repetição (educação em direitos humanos para as Forças Armadas; tipificação do delito de desaparecimento forçado; acesso, sistematização e publicação de documentos em poder do Estado; criação de uma comissão da Verdade); c) pagar indenizações, custas e gastos. Por se tratar do caso mais recente, ainda não houve a supervisão de sentença sobre o seu cumprimento.

4 Possibilidades comparativas Consoante o estudo de González-Salzberg (2011), mencionado anteriormente, a dificuldade de articulação institucional interna para garantir o cumprimento das medidas condenatórias não é um problema apenas brasileiro, mas generalizado, uma vez que incumbe aos Estados nacionais escolher a forma de execução das decisões do SIDH. De fato, nota-se, pela análise comparativa dos casos, que em nenhum deles houve o cumprimento integral das decisões da Corte IDH, embora algumas medidas sejam mais comumente cumpridas que outras. A hipótese desse trabalho 64 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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é que a articulação institucional interna atual não viabiliza a execução integral das sentenças, ao desconsiderar a codeterminação no processo de implementação da decisão na ordem jurídica interna. Começa-se, então, pelas medidas menos problemáticas: as medidas de indenização e as de publicação, já que são as mais cumpridas. Ambas estão previstas em todos os casos, exceto no caso Nogueira de Carvalho e outros vs. Brasil que, por ter sido objeto de arquivamento, não resultou em condenação para o Estado do Brasil. No caso Ximenes Lopes vs. Brasil, a Corte IDH declarou cumpridas as medidas de indenização e de publicação na primeira supervisão de sentença (Resolução de 2 de maio de 2008). No caso Garibaldi vs. Brasil, também houve declaração expressa do cumprimento. No caso Escher e outros vs. Brasil, apesar de a Corte IDH não ter se pronunciado expressamente sobre o pagamento das indenizações, ele foi efetuado, vide decreto 7.158/10. Por fim, no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, que igualmente não foi alvo de uma declaração expressa de cumprimento, houve o pagamento de indenizações, inclusive em fase anterior à sentença, materializado na Lei 9.140/95, medida valorizada pela Corte IDH ao impor apenas algumas complementações a essas indenizações. Quanto ao dever de publicar trechos da sentença, também há predominância do cumprimento das medidas. Esses dois deveres comumente atribuídos aos Estados condenados, publicação e indenização, são de execução direta da União, sendo este o aspecto comum entre eles. Nesses casos, uma articulação institucional interna mais hierárquica é condição suficiente para garantir o cumprimento dessas medidas, pois elas estão em uma escala de grau mais densas normativamente, não sendo necessária, portanto, uma articulação mais complexa que envolva a participação tanto de órgãos de natureza jurídica distinta, quanto da sociedade civil, para definição do conteúdo e alcance da obrigação prevista na sentença. No entanto, isso não significa que o Estado tem a possibilidade de escolha entre um modelo clássico e um modelo de sistemas relativamente autônomos, uma vez que este último adéqua-se melhor às condições de possibilidade da contemporaneidade. As medidas de indenização e publicação são mais frequentemente cumpridas porque não dependem de uma estrutura institucional mais complexa. Apesar de o dever de publicar não ser dificultoso em relação à capacidade institucional de gerir seu cumprimento, ainda sim o procedimento pode ser alvo de ruídos. Imagine quando o cumprimento da medida é mais complexo e depende de um esforço conjunto, a necessidade de gestão da execução se avoluma, a fim de se garantir a reparação integral da violação. As medidas de não repetição, para além da publicação, são as de mais complexo cumprimento, tanto aquelas de investigação quanto as que exigem políticas públicas. E a razão para isso é a ausência de um mecanismo institucional interno capaz de densificar o conteúdo normativo do que seja reparação integral da violação de Direitos Humanos em cada obrigação imposta na sentença da Corte IDH. A consequência imediata é a necessidade de relativização das estruturas rigidamente hierárquicas, uma vez que elas não conseguem ser flexíveis a ponto de propiciarem a codeterminação. As medidas que exigem a formulação de políticas públicas, em especial, dependem, para serem efetivas, da articulação entre órgãos diferentes, 19 SUR 59-75 (2013) ■

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tanto em suas competências quanto em sua organização e estrutura, e que variam de acordo com a política a ser implementada. O caso Ximenes Lopes é ilustrativo a este respeito, pois envolve direito à saúde, previsto no artigo 23, inciso II da Constituição Federal, como competência comum dos entes federativos. Esses deveres demandam a articulação de uma gama de instituições que muitas vezes nunca trabalharam conjuntamente e quando se associam o fazem através de convênios ou acordos de cooperação, vínculos frágeis que dificultam o processo de determinação do conteúdo da medida reparatória imposta na condenação. A articulação por convênios ou acordos de cooperação, apesar da vantagem de permitir uma interação institucional sem a necessidade de reformas legislativas e/ ou administrativas complexas, é baseada na vontade política do órgão de participar ou não, bem como de assumir ou não compromissos, que podem ser insuficientes para cumprir as determinações do SIDH. Para que uma decisão da Corte IDH seja cumprida, a associação de órgãos pode ser necessária, e não discricionária como é na atualidade da organização jurídica brasileira. Dessa forma, garantir tal associação é um desafio interno que dificulta inclusive a atribuição de responsabilidade de cada órgão, em caso de descumprimento das medidas previstas na sentença. Apesar de se referir a uma medida relacionada ao dever de investigar, no âmbito da sentença do caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, a Portaria Interministerial n° 1 MD/MJ/ SDH-PR, de 5/5/2011, criada com a finalidade de coordenar e executar as atividades necessárias a localização e sistematização de informações e identificação de corpos de pessoas mortas na Guerrilha do Araguaia, exemplifica a ausência de mecanismos institucionalizados capazes de investigar os fatos de maneira cooperativa, uma vez que demandou uma ação política e discricionária. Quanto ao dever de investigação, outra medida de não repetição, observase que, em todos os casos, o Brasil violou as garantias judiciais e os direitos de proteção judicial previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos e, em todos, não cumpriu integralmente o dever correspondente de investigar, o que revela falhas estruturais na interação entre órgãos que, tradicionalmente, no direito clássico, trabalham em conjunto: Polícias, Ministério Público e Poder Judiciário. Nesse caso, ao lado dos problemas relativos à ausência de caminhos institucionais responsáveis pela codeterminação da norma, emanada da Corte IDH, emergem problemas teorizados em tempos bem mais remotos, como a separação de poderes, a imparcialidade da persecução penal, entre outros. No caso Ximenes Lopes, a ação penal, iniciada em fevereiro de 2000, resta inconclusiva até o presente momento.3 Na verdade, esse processo traz uma peculiaridade em relação aos outros casos levados à Corte IDH. Ele foi encaminhado ao SIDH antes que fossem esgotados todos os recursos da jurisdição interna, em contrariedade com o disposto no artigo 46.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos. No entanto, como esse requisito de admissibilidade não foi arguido pelo Brasil em momento processual oportuno, contrariando a situação alegada, o procedimento seguiu seu curso até o pronunciamento da sentença condenatória, o que denota o despreparo técnico e administrativo em lidar com as questões do SIDH. A despeito dessa peculiaridade, o fato é que o Brasil foi condenado a investigar e sancionar os responsáveis pelas ocorrências, mas ainda não conseguiu 66 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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cumprir essa determinação. Por meio dos relatos de Irene Ximenes, irmã de Damião Ximenes Lopes e responsável por levar o caso à CIDH, extraídos da obra de Nadine Borges (2009), é possível identificar uma série de procedimentos irregulares nas investigações, que desrespeitaram a regra de imparcialidade no que concerne ao processo, em favor do poder político local:4 A ordem cronológica dos fatos narrados por Irene era impressionante e, por isso, quando falava das artimanhas do dono da clínica para protelar as decisões judiciais, a irmã de Damião tinha plena convicção do que afirmava. “Em 2002 ele começou a vender tudo o que tinha, incluindo um parque aquático, metade de uma mansão e outras coisas”. A repulsa de Irene era tamanha ao descrever esses fatos. Conforme seu advogado, a juíza de Sobral autorizou a venda, com a expedição de nove alvarás, mesmo com os processos que tramitavam contra o Sr. Sérgio. Nesse momento da conversa, Irene explicou que se passaram sete meses até conseguir o primeiro advogado para o caso Damião. (BORGES, 2009, p. 36-37).

Nos casos Escher e outros vs. Brasil e Garibaldi vs. Brasil, dificuldades semelhantes podem ser identificadas. No primeiro, a investigação sobre como os dados obtidos com as interceptações telefônicas ilegais foram divulgados em telejornal nunca foi conclusiva. Além disso, não responderam por suas ações os agentes estatais responsáveis pelas interceptações, apesar de sua solicitação ter partido de um policial militar sem vínculos na comarca de Loanda e que, portanto, não presidia as investigações criminais sobre a suposta prática de crime dos trabalhadores do Movimento dos Sem Terra (MST). No caso Garibaldi vs. Brasil, a sentença da Corte IDH apontou uma série de falhas e omissões em relação ao Inquérito nº 179/98, que prejudicou a apuração dos fatos e averiguação dos responsáveis pelos mesmos: falta de recebimento de testemunhos prima facie indispensáveis, ausência de esclarecimento de contradições nos testemunhos, inutilização e omissões com relação à prova, prova perdida, não cumprimento de diligências ordenadas, erro na petição de arquivamento do Inquérito. Mesmo com o desarquivamento do Inquérito, ocorrido em 2009, na tentativa de atender as recomendações da CIDH, a averiguação das responsabilidades não foi conclusiva. Por fim, o caso Gomes Lund e outros vs. Brasil também aponta para a dificuldade institucional do Estado em investigar fatos relacionados com supostas infrações de agentes estatais. Em todos esses casos, a Corte IDH, em atenção ao processo de codeterminação, não especifica mecanismos institucionais específicos para o cumprimento das decisões para o Estado brasileiro. Logo, é preciso refletir sobre quais seriam os mecanismos mais eficientes, bem como quem seriam os receptores da decisão, a fim de construir uma estrutura institucional capaz de honrar os compromissos internacionais, através de uma atuação conjunta e coordenada de variados órgãos e poderes. Acrescenta-se ainda mais uma dificuldade, relacionada, especialmente, a um dos potenciais receptores da decisão da Corte IDH, o Poder Judiciário brasileiro, que ignora seu papel no cumprimento das decisões da Corte IDH, ao negligenciar as interpretações internacionais dos Tratados. Essa atuação reforça a estrutura jurídica clássica hierarquizada, fechada às atuais tendências, principalmente, ao deixar de 19 SUR 59-75 (2013) ■

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efetuar sistematicamente o controle de convencionalidade em todos seus julgados, isto é, a verificação da conformidade das normas internas com os tratados internacionais que foram ratificados pelo governo e vigoram no país. Conhecendo essa realidade, a Corte IDH dedicou numerosas páginas da sentença do caso Gomes Lund a discutir a incongruência da Lei de Anistia em relação à Convenção Americana, a despeito da declaração de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Nessa direção, pensar em uma estrutura burocrática interna capaz de atender essas novas necessidades é algo complexo. Por isso, mais adiante, estuda-se o arcabouço jurídico atual e as tentativas de obter maior eficiência no cumprimento da sentença prometida pelo projeto de lei 4.667 de 2004.

5 Procedimento interno Segundo o artigo 21 da Constituição Federal, compete à União manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais. Nesse sentido, os órgãos competentes para a representação do Estado brasileiro no SIDH, a elaboração de documentos em resposta às solicitações da CIDH ou da Corte IDH e pelo início do cumprimento das decisões do SIDH, mais especificamente da Corte IDH, integram a União, em particular, o Ministério das Relações Exteriores (MRE), a AdvocaciaGeral da União (AGU) e a Secretaria de Direitos Humanos (SDH), vinculada à Presidência da República (SDH), desde 1999, com status de Ministério, nos termos da lei e dos respectivos decretos n° 7.304/10, 7.392/10 e 7.256/10. A despeito de a SDH ser o órgão competente para a promoção da articulação institucional interna no Brasil – conforme o decreto 7.256/10, que estabelece a competência para tomar iniciativas e apoiar projetos voltados para a promoção dos direitos humanos em âmbito nacional –, ela conta com ferramentas pouco eficientes em articular institucionalmente todas as esferas envolvidas. Em primeiro lugar, a SDH não pode atribuir responsabilidade a instâncias governamentais (tanto aos estados federados como aos órgãos do judiciário e legislativo) que talvez sejam os únicos competentes para atender as determinações previstas nas sentenças da Corte IDH. Além disso, a diversidade de eventuais obrigações de fazer impostas em uma decisão da Corte IDH dificulta a elaboração de um rol de procedimentos prévio, exigindo o constante debate caso a caso, o mais amplamente possível, a fim de que se cumpram as medidas condenatórias previstas na sentença. A estrutura descrita acima, altamente hierarquizada, funciona bem para o cumprimento de medidas que não dependem de uma gama de receptores, colaboradores do processo de codeterminação, para serem eficazmente implementadas. No entanto, quando o cumprimento integral de determinada decisão do SIDH extrapola o âmbito de competência desses órgãos, o que ocorre na maioria dos casos, principalmente no que diz respeito às obrigações de fazer, sucessivos impasses são criados. Neste contexto, torna-se necessário olharmos mais detidamente para o Projeto de Lei 4.667-C de 2004, principal iniciativa cujo intuito é atender a antiga necessidade do Estado do Brasil de cumprir as sentenças da Corte IDH e honrar os compromissos internacionais. 68 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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5.1 Projeto de lei 4.667-C, de 2004 De autoria do Deputado Federal José Eduardo Martins Cardozo, a proposta normativa objetivou dispor sobre os efeitos jurídicos das decisões dos Organismos Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos, e representou, na verdade, uma tentativa de resgate do projeto de lei 3.214 de 2000 do então Deputado Federal Marcos Rolim, arquivado antes de ser colocado em votação. O projeto de Marcos Rolim visava a regulamentar basicamente a natureza de títulos executivos judiciais contra a Fazenda Pública Federal, relativos às indenizações previstas nas decisões do SIDH. José Eduardo Cardozo, por sua vez, repetiu o teor do projeto original, acrescentando a possibilidade de interposição de ações regressivas pela União contra eventuais pessoas físicas ou jurídicas responsáveis pelos ilícitos que ensejassem a condenação pela Corte IDH. Nota-se que os projetos não mencionaram outras modalidades de obrigações decorrentes de condenações contra o Brasil, em especial, as obrigações de não repetição, que predominantemente são obrigações de fazer e não fazer. Em decorrência dessa lacuna, o deputado Orlando Fantazzini, relator da comissão de Direitos Humanos e Minorias, propôs uma emenda substitutiva global, resultante de debates com a comunidade jurídica ligada aos direitos humanos. A principal inovação da emenda diz respeito à criação de um órgão para acompanhar a implementação das decisões e recomendações dos organismos internacionais de proteção dos direitos humanos (alargando desta forma o âmbito de aplicação da eventual lei para além daquele das decisões do SIDH), composto por uma representação interministerial e uma representação da sociedade civil. Entre as atribuições previstas estavam a de acompanhar a negociação entre os entes federados envolvidos e os peticionários; a de fazer gestão junto aos órgãos do Poder Judiciário, Ministério Público e Polícias, com o fim de dar maior agilidade às investigações e apurações dos casos em exame pelos organismos internacionais de proteção aos direitos humanos; e de fiscalizar o trâmite das ações judiciais. Contudo, a novidade da medida não é meramente a criação de um órgão para gerenciar a implementação das decisões, pois muitas das atribuições previstas no projeto já são desempenhadas pela SDH. A inovação se faz presente no artigo 5° da emenda substitutiva, ao instituir a necessidade de notificação ao órgão competente para a execução da obrigação de fazer, prevista na decisão condenatória, a fim de que seja elaborado um plano de cumprimento com previsão de ações e identificação das autoridades responsáveis pela sua execução. Isso porque a identificação dos órgãos competentes pela execução poderia facilitar uma posterior identificação dos responsáveis pelo descumprimento da decisão internacional, inclusive com atribuição de penalidades aos culpados em ações regressivas. No entanto, há dúvidas sobre a constitucionalidade da proposta, uma vez que a iniciativa de criação de uma nova estrutura administrativa seria do Poder Executivo. Outra inovação do projeto concerne à participação da sociedade civil no processo de implementação das decisões e de especificação das medidas necessárias ao cumprimento da sentença, democratizando o espaço de codeterminação deixado pela margem prevista no artigo 68.1 do Pacto de São José da Costa Rica, 19 SUR 59-75 (2013) ■

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uma vez que o cumprimento das sentenças da Corte IDH e, por conseguinte, o cumprimento dos tratados de Direitos Humanos, está associado a uma atividade intensa das Organizações não Governamentais (ONG). São raros os casos em que uma pessoa individualmente conseguiu a tutela do SIDH sem a assistência jurídica dessas organizações. Até o caso Ximenes Lopes vs. Brasil, em que houve uma atuação individual mais expressiva, já que Irene Ximenes enviou sem assistência uma petição à CIDH, posteriormente recebeu apoio da ONG Justiça Global. Todavia, à medida que o caso Ximenes Lopes avançou, a ONG Justiça Global solicitou a entrada no processo como copeticionária, o que foi importante para o sucesso da demanda e para que um caso individual ganhasse contornos coletivos, principalmente com relação à condenação a medidas de não repetição. Em todos os outros casos, as ONG participaram desde o envio de petições à CIDH, criando a prática do litígio estratégico, que busca, por meio do “uso do judiciário e de casos paradigmáticos, alcançar mudanças sociais”, tal como teorizada por Cardoso (2008, p. 366), uma vez que o terceiro setor conta com um posição epistêmica privilegiada em relação à burocracia sobre os obstáculos à proteção dos direitos humanos. No entanto, apesar de o projeto ter sido aprovado unanimemente pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias, essa emenda foi rejeitada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, mesmo com aprovação imediatamente anterior pela comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, o que impediu o seguimento da redação. A justificativa para a rejeição da emenda substitutiva foi a de que ela feriria a soberania do país em contrariedade com a Constituição, considerando a inexistência de previsão a respeito da necessidade de reconhecimento, pelo Estado brasileiro, da competência dos organismos internacionais, o que ocorria no projeto original proposto pelo deputado Eduardo Cardozo. Houve ainda pequenas propostas de alteração apresentadas pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, aprovadas e introduzidas no projeto de lei. Assim sendo, a redação que seguiu em tramitação para o Senado Federal foi praticamente igual à proposta inicial, ignorando as propostas do então deputado Orlando Fantazzini, a saber: O CONGRESSO NACIONAL decreta: Art. 1º As decisões dos Organismos Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos cuja competência for reconhecida pelo Estado brasileiro produzirão efeitos jurídicos imediatos no âmbito do respectivo ordenamento interno. Art. 2º Caberá ao ente federado responsável pela violação dos direitos humanos o cumprimento da obrigação de reparação às vítimas dela. Parágrafo único. Para evitar o descumprimento da obrigação de caráter pecuniário, caberá á União proceder à reparação devida, permanecendo a obrigação originária do ente violador. Art. 3º A União ajuizará ação regressiva contra as pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, responsáveis direta ou indiretamente pelos atos que ensejaram a decisão de caráter pecuniário. Art. 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. (BRASIL,2004). 70 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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Assim, se o projeto obtiver aprovação nesses termos, as providências legislativas centrais para tornar exequível o cumprimento integral das decisões do SIDH não seriam implementadas, quais sejam, as relacionadas a viabilizar o cumprimento das obrigações de fazer.

6 Conclusão Ao estudar os casos sentenciados pela Corte IDH, em desfavor do Estado brasileiro, foi possível, por meio de análise comparativa, avaliar o processo institucional interno de cumprimento dessas decisões. Nessa direção, razões que justificassem o cumprimento, em maior ou menor grau, de medidas previstas na sentença condenatória da Corte IDH foram buscadas, permitindo a identificação de deficiências na organização administrativa interna. Em primeiro lugar, identif icou-se a inexistência de um caminho institucional interno para densificar o conteúdo das obrigações impostas na sentença condenatória da Corte IDH que, na atualidade, é imprescindível para acompanhar a relativização das estruturas rigidamente hierárquicas, uma vez que essas já não conseguem ser flexíveis a ponto de alcançarem a codeterminação da norma emanada da Corte IDH. A efetividade das medidas que exigem a formulação de políticas públicas depende da articulação entre órgãos que diferem tanto no que diz respeito a suas competências quanto em sua organização e estrutura, variando conforme a política a ser implementada – ora um ente da federação, ora um tribunal, ora o Poder Legislativo, ora uma estatal, entre outros. Ademais, dificuldades institucionais clássicas ainda não foram bem resolvidas. Os reiterados descumprimentos das obrigações de investigar, previstas em todas as sentenças analisadas, indicam um aparato policial e investigativo pouco eficientes, bem como um Judiciário moroso e uma formação deficitária dos agentes estatais em direitos humanos. Destaca-se, também, a reiterada omissão do Judiciário em reconhecer o caráter vinculante das decisões do SIDH, o que dificulta ainda mais a formação de uma rede institucional capaz de cumprir adequadamente as medidas condenatórias previstas nas sentenças. O caso Gomes Lund é a evidência final dessa conclusão. Nesse sentido, nota-se que as mesmas articulações institucionais que deixaram de impedir as violações de Direitos Humanos, agora dificultam o cumprimento das decisões da Corte IDH, principalmente as medidas de não repetição, o que denota a necessidade de reformas institucionais, em especial com a participação da sociedade civil, detentor de uma posição epistêmica privilegiada, facilitando a escolha de políticas públicas eficientes no cumprimento das decisões da Corte IDH. Lamentavelmente, o Projeto de Lei da Câmara dos Deputados n°4.667-D de 2004, caso seja aprovado com a redação enviada ao Senado, perde a oportunidade de tomar providências legislativas centrais, no sentido de viabilizar o cumprimento integral das decisões do SIDH, particularmente as relacionadas a viabilizar o cumprimento das obrigações de fazer.

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SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS: DESAFIOS À IMPLEMENTAÇÃO DAS DECISÕES DA CORTE NO BRASIL

Corte Interamericana de Direitos Humanos. SUR, São Paulo, ano 8, n. 11, p. 93-113, Dez. Disponível em: <http://www.surjournal.org/conteudos/getArtigo15. php?artigo=15,artigo_05.htm>. Último acesso em: 23 Mar. 2013.

Jurisprudência CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. 2005. Sentença de 30 de novembro, Ximenes Lopes v. Brasil. ______. 2006a. Sentença de 4 de julho, Ximenes Lopes vs. Brasil. ______. 2006b. Sentença de 28 de novembro, Nogueira de Carvalho e outro vs. Brasil. ______. 2008. Resolução de 2 de maio. Ximenes Lopes vs. Brasil. ______. 2009a. Sentença de 6 de julho, Escher e outros vs. Brasil. ______. 2009b. Resolução de 21 de setembro. Ximenes Lopes vs. Brasil. ______ 2009c. Sentença de 23 de setembro, Garibaldi vs. Brasil. ______. 2009d. Sentença de 20 de novembro, Escher e outros vs. Brasil. ______. 2010a. Resolução de 17 de maio. Escher e outros vs. Brasil. ______. 2010b. Resolução de 17 de maio. Ximenes Lopes vs. Brasil. ______. 2010c. Sentença de 24 de novembro, Gomes Lund e outros vs. Brasil ______. 2011. Resolução de 22 de fevereiro, Garibaldi vs. Brasil. ______. 2012. Resolução de 20 de fevereiro, Garibaldi vs. Brasil.

NOTAS 1. Entenda-se esfera pública como o “loci nãoestatais de deliberação, onde são possíveis a formação coletiva de vontade, a justificação de decisões previamente acertadas, e o forjamento de novas identidades” (BERNARDES, 2011, p. 137). 2. O início desse processo está associado com a criação de um Grupo de Trabalho Especial para estudo da CIDH, durante a Assembleia Geral de San

Salvador, em 29 de junho de 2011. 3. A ação penal (processo n° 2000.0172.9186-1/0) iniciou-se em março de 2000. 4. A única clínica credenciada pelo SUS para tratamento de pessoas com deficiência mental era de um primo do prefeito da cidade de Sobral (BORGES, 2009, p. 25).

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ELISA MARA COIMBRA

ABSTRACT The study analyzes compliance with legal decisions made by the Inter-American Human Rights System (IAHRS), particularly those of the Inter-American Court of Human Rights (Court) in Brazil. In light of prior findings of generalized shortcomings in the execution of Court sentences, sentences against the Brazilian State are considered and, through comparative analysis, the internal institutional process of sentence implementation is evaluated. In this undertaking, the difficulties of classic Law are problematic in attending to expectations of legal efficacy in the context of plural norm implementation and production. KEYWORDS Compliance – Sentences – Inter-American Court of Human Rights – Brazil

RESUMEN El objetivo del presente estudio es analizar el proceso de cumplimiento de las decisiones del Sistema Interamericano de Derechos Humanos (SIDH), particularmente las decisiones de la Corte Interamericana de Derechos Humanos (Corte IDH), en Brasil. Ante la previa constatación de la existencia de déficits generalizados en las ejecuciones de las sentencias de la Corte IDH, se abordan los casos en los que fuera emitida sentencia contra el Estado brasileño y, a partir del análisis comparativo de los mismos, se evalúa el proceso institucional interno para su cumplimiento. En este contexto, se problematizan las dificultades del derecho clásico para responder a las expectativas de eficacia jurídica, en un contexto de producción e implementación plurales de la norma. PALABRAS CLAVE Cumplimiento – Sentencias – Corte IDH – Brasil

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CONOR FOLEY Conor Foley é consultor em direitos humanos e direito humanitário. Trabalhou em questões envolvendo reforma legislativa, direitos humanos e proteção de civis em mais de vinte zonas de conflito, pós-conflito ou frágeis. É pesquisador do Centro de Direitos Humanos da Universidade de Nottingham e professor visitante na Universidade de Essex. Escreve eventualmente no “Guardian”, e é autor de livros sobre questões humanitárias e direitos humanos. Seu último livro, Outro Sistema é Possível: A Reforma do Judiciário no Brasil, foi publicado conjuntamente pela International Bar Association (IBA) e pelo Ministério da Justiça em 2012. Entre seus livros anteriores, podem ser citados: The Thin Blue Line: how humanitarianism went to war (Verso 2010) e Protegendo os brasileiros contra a tortura (IBA, 2011). E-mail: conorfoley30@hotmail.com

RESUMO Debates sobre ação humanitária em emergências complexas levantam questões fundamentais sobre a proteção de direitos humanos no âmbito do direito internacional. Como as missões de paz da ONU têm se tornado cada vez mais complexas e multifacetadas, por exemplo, elas enfrentam déficits no que diz respeito à prestação de contas. Muitas das maiores missões da ONU têm autoridade, nos termos do Capítulo VII da Carta da ONU, para fazer uso da força para proteger civis de ameaça iminente de violência física. Isto levanta uma série de questões relacionadas a obrigações negativas e positivas da ONU perante o direito internacional. A Carta das Nações Unidas não prevê expressamente operações de manutenção da paz, que se desenvolveram de forma ad hoc como reação a diferentes crises. Alguns Estados também têm agido fora do escopo da Carta das Nações Unidas, justificando ação militar em nome da “intervenção humanitária”. Este artigo explora alguns dos dilemas em termos de princípios e práticas relativos à proteção extraterritorial de civis, tanto por meio de ação unilateral, quanto multilateral no âmbito do direito internacional. Original em inglês. Traduzido por Thiago Amparo. Recebido em maio de 2013. Aceito em outubro de 2013 PALAVRAS-CHAVE Proteção – Intervenção Humanitária – R2P – Carta da ONU – Emergências complexas Este artigo é publicado sob a licença de creative commons. Este artigo está disponível online em <www.revistasur.org>. 76 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


A EVOLUÇÃO DA LEGITIMIDADE DAS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS Conor Foley

Quando é que soldados armados de um país podem entrar legalmente no território de outro país, a fim de proteger os cidadãos desse Estado de graves violações de direitos humanos ou do Direito Internacional Humanitário (DIH)? O artigo 2º da Carta das Nações Unidas proíbe o uso da força e a ingerência nos assuntos internos dos Estados, até mesmo pela própria ONU. Segundo a Carta, há apenas duas justificativas para o uso da força: o direito inerente de legítima defesa ou a autorização do Conselho de Segurança da ONU, atuando de acordo com seus poderes atribuídos pelo Capítulo VII, em resposta a alguma ameaça à paz e à segurança internacionais. Alguns especialistas sustentam que uma terceira justificativa pode estar ganhando espaço no direito internacional consuetudinário, a saber: o direito à “intervenção humanitária”, embora não haja ainda prática estatal suficiente para justificar tal alegação. Após a intervenção da OTAN no Kosovo, realizada sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, uma Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal (ICISS, na sigla original) foi estabelecida, culminando na publicação do relatório, “A Responsabilidade de Proteger”, em 2001. Inicialmente anunciada como “uma norma internacional emergente”, a Responsabilidade de Proteger (R2P, na sigla original em inglês) foi incluída na linguagem do documento final da Cúpula Mundial das Nações Unidas, mas as tentativas de alcançar um consenso sobre este documento esvaziaram grande parte de seu conteúdo normativo. Após a invasão do Iraque, poucos estavam dispostos a permitir que Estados poderosos agindo isoladamente pudessem tomar para si o papel de juiz, júri e executor no que diz respeito à decisão sobre quando tais intervenções poderiam ocorrer. Nos últimos anos, no entanto, pode-se notar o envio de um número crescente de soldados a missões de paz da ONU, autorizadas nos termos do mandato estabelecido pelo Capítulo VII de usar a força para proteger civis sob ameaça

Ver as notas deste texto a partir da página 96. 19 SUR 77-97 (2013) ■

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iminente de violência física. Há atualmente mais de 100.000 tropas em missões em várias partes do mundo. Dado que o Capítulo VII não contém referência alguma a direitos humanos, direito internacional humanitário ou proteção de civis, e que a própria Carta das Nações Unidas não fornece fundamento algum para a manutenção da paz, esse é um desenvolvimento significativo para o direito e as relações internacionais. Parece haver três possíveis argumentos que poderiam ser usados para justificar essa prática. O primeiro deles é que há um nexo causal necessário entre graves violações de direitos humanos e do direito internacional humanitário e ameaças à paz e segurança internacionais – decorrente, por exemplo, dos efeitos derivados de um conflito ou de fluxos transnacionais de refugiados. O segundo argumento é que os poderes do Conselho de Segurança são tão amplos que não há nada que o impeça de declarar qualquer situação uma “ameaça à paz e à segurança internacionais”, permitindo-lhe invocar o Capítulo VII, a fim de contornar o artigo 2º da Carta das Nações Unidas. O terceiro argumento, com o qual este autor concorda, é que tem se consolidado um consenso internacional no sentido de que as Nações Unidas, em virtude de sua personalidade jurídica específica, está cada vez mais sujeita a obrigações positivas e negativas decorrentes do direito internacional. No entanto, aceitar este argumento por completo requer uma análise rigorosa da hierarquia das normas jurídicas internacionais em relação às decisões do Conselho de Segurança e às imunidades usadas até hoje pela ONU para defender as suas missões de paz.

1 Uma experiência no Sri Lanka Na primavera de 2009, enquanto eu realizava uma avaliação para uma agência humanitária no Sri Lanka, as forças do governo invadiram o último reduto dos Tigres de Libertação do Tamil Eelam (LTTE ou Tamil Tigers), no norte do país.1 As forças do LTTE obrigaram civis a acompanhá-las enquanto se recolhiam a áreas menores, muitas vezes atirando naqueles que tentaram escapar (UNITED NATIONS, 2011). Entre janeiro e maio do mesmo ano, cerca de 300.000 civis, juntamente com o que restou das forças do LTTE, foram cercados em uma área aproximadamente do tamanho do Central Park em Nova York, onde acredita-se que até 40.000 deles tenham sido mortos (INTERNATIONAL CRISIS GROUP, 2010). Forças do governo bombardearam incessantemente a chamada “zona de trégua”, e os hospitais e pontos de distribuição de alimentos parecem ter sido intencionalmente atacados (STEIN, 2010). Muito mais pessoas morreram de fome e em decorrência de certas doenças, porque o governo bloqueou o acesso humanitário e constantemente subestimou o número de civis na área. Outros foram sumariamente executados durante o ataque final ou depois de terem sido identificados como membros do LTTE durante o processo de triagem (THE TIMES, 2009). Desde então, surgiram vídeos de prisioneiros atados sendo baleados na cabeça e de cadáveres de mulheres nuas que parecem ter sido violentadas sexualmente.2 As organizações que tentaram socorrer a população afetada foram sistematicamente perseguidas e intimidadas (FOLEY, 2009a). Integrantes locais de suas equipes foram presos sob falsas acusações. Os meios de comunicação 78 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


CONOR FOLEY

pró-governo repetidamente acusaram essas organizações de apoiar o LTTE (DAILY MIRROR, 2009), e alegações semelhantes foram feitas contra a missão das Nações Unidas no país (ECONOMIST, 2010). A maioria das agências humanitárias internacionais não se pronunciou publicamente sobre os massacres testemunhados por seus funcionários. Algumas delas até ajudaram na construção do que eram, de fato, campos de internamento, em que sobreviventes do massacre eram levados para triagem e detenção. Funcionários de organizações internacionais de ajuda humanitária que decidiram se pronunciar foram expulsos quando seus vistos expiraram, e as agências que permaneceram no local sustentaram que era melhor manter uma presença no país do que abandoná-lo. Um argumento semelhante foi usado para justificar sua participação na construção dos campos (FOLEY, 2009c). Após o fim do conflito, o governo rejeitou os pedidos de uma investigação independente e levou a cabo uma campanha de intimidação física ostensiva contra a missão das Nações Unidas (ONU) no país (ECONOMIST, 2010). No entanto, embora haja provas de que o governo do Sri Lanka tenha sido responsável por um crime muito maior do que o massacre de Srebrenica, em 1995, o Sri Lanka tem recebido opróbio muito menor do que as críticas internacionais ferrenhas contra os sérvios da Bósnia na década de 1990 (FOLEY, 2009b). Em maio de 2009, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas aprovou uma resolução elogiando sua vitória e seus esforços de assistência humanitária. O Brasil se juntou à China, Cuba, Egito e Paquistão para bloquear uma investigação internacional sobre possíveis crimes de guerra. Treze anos antes deste massacre, em 1996, o correspondente estrangeiro da BBC, Fergal Keane, gravou uma carta ao seu filho recém-nascido, Daniel, que se tornou a transmissão mais requisitada na história da BBC. Disse-lhe que: Estou aflito, talvez assombrado seja uma palavra melhor, pela memória, de repente tão vívida, de cada criança sofrendo que vi em minhas viagens. Para dizer a verdade, chega a ser quase insuportável neste momento pensar em crianças feridas, sofrendo abusos e sendo mortas. E, no entanto, olhando para você, a imagem vem à tona [...] Há uma última memória de Ruanda e do jardim da igreja na paróquia de Nyarabuye onde, em uma sala de aula saqueada, encontrei uma mãe e seus três filhos pequenos amontoados onde tinham sido espancados até a morte. As crianças tinham morrido agarrando sua mãe, um instinto que todos nós temos desde o nascimento e ao qual, de uma forma ou de outra, nos apegamos até morrer. (BRITISH BROADCASTING CORPORATION, 1996).

Lembro-me de ouvir a transmissão naquele momento e lembrar de quando estava no Sri Lanka, porque minha mulher estava grávida na ocasião, e, posteriormente, demos o nome de Daniel ao nosso filho. Os genocídios de Ruanda e Srebrenica tinham moldado as atitudes da minha geração. Civis foram massacrados sob os olhos das forças de paz da ONU, enquanto trabalhadores humanitários se mostraram incapazes de ajudar, pois, como um anúncio da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) expressa sucintamente, “não se pode deter o genocídio com médicos” (CROSSLINES GLOBAL REPORT.1994). 19 SUR 77-97 (2013) ■

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2 O nascimento da Responsabilidade de Proteger No final da década de 1990, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) iniciou uma ação militar direta contra as forças sérvias no Kosovo, uma força liderada pela Austrália interveio em Timor Leste e paraquedistas britânicos ajudaram a derrotar um avanço de rebeldes em Serra Leoa. Enquanto as duas últimas intervenções receberam a aprovação da ONU, a do Kosovo, não. Um relatório posterior elaborado pela Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal (ICISS, na sigla original) defendeu que o direito internacional de direitos humanos e o direito humanitário impõem obrigações positivas aos Estados de intervir quando os direitos que estes protegem forem violados em larga escala ou de modo sistemático (INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY, 2001). Segundo os autores do relatório, atribuem-se à própria ONU algumas dessas obrigações, e em caso de falha do Conselho de Segurança em sua “Responsabilidade de Proteger” (R2P), essas obrigações poderiam ser transferidas a outros. O conceito de R2P foi incorporado a importantes relatórios da ONU (UNITED NATIONS, 2004 and 2005b) e uma referência a este conceito foi incluída no documento final da reunião de alto nível da Assembléia Geral da ONU em setembro de 2005 (UNITED NATIONS, 2005a). No entanto, um olhar mais atento à redação desse documento mostra que as reivindicações daqueles que argumentam que a R2P é uma norma jurídica internacional em ascensão, às vezes descrita como um “recaracterização da soberania”, são um pouco exageradas.3 O texto adotado diz pouco mais do que os Estados têm a responsabilidade de proteger seus próprios cidadãos e que o Conselho de Segurança da ONU deve apoiá-los nestes esforços. O mais longe que este documento alcança no que diz respeito a intervenções diretas em outros países é um compromisso bastante complexo de se engajar em “uma ação coletiva, de maneira oportuna e decisiva, por meio do Conselho de Segurança, em conformidade com a Carta” (UNITED NATIONS, 1945), incluindo o Capítulo VII, caso –a -caso e em cooperação com as organizações regionais, quando convier, nos casos em que meios pacíficos se tiverem se mostrado inadequados, e as autoridades nacionais claramente tenham fracassado em sua obrigação de proteger suas populações contra o genocídio, os crimes de guerra, a limpeza étnica e os crimes contra a humanidade (UNITED NATIONS, 2005a, para. 139). Como um analista ressaltou, isso não vai além de que dizer que o Conselho de Segurança deve continuar autorizando, de forma ad hoc, o tipo de intervenções que têm autorizado há muitos anos (CHESTERMAN, 2011). Bellamy descreveu a redação final como “R2P light”, sustentando que diverge das propostas apresentadas pela ICISS “por (entre outras coisas), ressaltar a assistência internacional aos Estados (segundo pilar), minimizar o papel da intervenção armada, e rejeitar critérios para orientar o processo decisório sobre o uso da força e a perspectiva de intervenção não autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU” (BELLAMY, 2006b). Esse argumento tem sido rejeitado por outros, como Evans, co-presidente da ICISS, segundo o qual o texto “difere pouco de todas as formulações anteriores da ICISS, Painel de Alto Nível e os relatórios do Secretário-Geral” (EVANS, 2008a, p. 47).4 Weiss, que atuou como Diretor de 80 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


CONOR FOLEY

Pesquisa da ICISS, também rejeita a descrição de Bellamy, embora seja reveladora sua visão sobre o que de fato foi aprovado: o novo patamar mínimo é claro: quando um Estado é incapaz ou não está disposto a proteger seus próprios cidadãos e os meios pacíficos fracassam, o recurso a uma intervenção externa, incluindo a força militar (de preferência, com a aprovação do Conselho de Segurança) continua a ser uma possibilidade distinta. (WEISS, 2008, p. 142).

Em um trabalho altamente crítico sobre a importância do conceito de R2P, Orford argumenta que “o conceito de responsabilidade de proteger pode ser melhor entendido como o oferecimento de um fundamento normativo para as práticas de ação executiva internacional, que foram iniciadas na época da descolonização e que têm se expandido de maneira gradativa desde então” (ORFORD, 2011, p. 10). Claramente, dois anos após a invasão do Iraque, no entanto, a maioria dos membros da ONU não está preparada para permitir que Estados poderosos eliminem os limites atualmente impostos pelo direito internacional. Não obstante, essa controvérsia decorreu também de um conflito mais profundo sobre a história recente do que tem sido chamado de intervenções humanitárias.

3 Do acesso humanitário às intervenções humanitárias Parafraseando um ditado dos Balcãs sobre Kosovo, tudo começou no Iraque e talvez tenha terminado no Iraque também. No final da primeira Guerra do Golfo, em 1991, mais de dois milhões de curdos fugiram de suas casas após o fracasso de sua rebelião contra Saddam Hussein, quando o apoio do Ocidente que eles estavam esperando não veio. Temendo um novo ataque de armas químicas, como em Halabja em 1988, eles se dirigiram à fronteira com a Turquia, mas a encontrara fechada pelo governo turco.5 Em abril de 1991, até 1.000 pessoas morriam de fome ou congelavam até a morte por dia (FREEDMAN; BOREN, 1992, p. 48). O mundo tinha acabado de ver o poder aéreo dos Estados Unidos (EUA) aniquilar as forças armadas iraquianas, e a opinião pública no Ocidente se recusava a aceitar que nada poderia ser feito para salvar os curdos de outro genocídio. Quando o Conselho de Segurança da ONU adotou a Resolução 688 (1991), na qual solicitava “acesso humanitário”, Grã-Bretanha, França e os EUA enviaram tropas por via terrestre para fazer com que o exército iraquiano recuasse e convenceram os refugiados de que era seguro descer das montanhas.6 Milhares de tropas terrestres foram mobilizadas e uma “zona de exclusão aérea” foi depois decretada no norte do Iraque, no que ficou conhecido como "Operation Provide Comfort" (ou operação proporcionar conforto) Além das forças militares empregadas, outros 30 países contribuíram com suprimentos de emergência e cerca de 50 organizações humanitárias não governamentais (ONGs) ofereceram assistência ou participaram dessa operação (TESON, 1996). Agentes humanitários participavam regularmente de reuniões com militares e tinham acesso a meios militares de telecomunicação e transporte, enquanto tropas com 19 SUR 77-97 (2013) ■

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armamento pesado acompanhavam os caminhões em que as pessoas deslocadas eram transportadas (COOK, 1995, p. 42), gerando precedentes controversos para cooperações futuras entre agentes humanitários e forças militares.7 A história do que aconteceu em seguida depende em grande medida de quem a conta. A grosso modo, surgiram duas narrativas que, embora tratem dos mesmos eventos, fazem-no a partir de perspectivas diametralmente opostas. O que não é objeto de controvérsia é que a “Operation Provide Comfort”foi a primeira de uma série de intervenções em que soldados armados internacionais e funcionários civis de agências humanitárias foram arregimentados para agir em chamadas “emergências complexas” com o objetivo de “proteger” populações ameaçadas.8 As mais conhecidas são as que ocorrem em Somália, Haiti, Bósnia-Herzegovina, Ruanda, Serra Leoa, Kosovo, Timor Leste, Libéria, República Democrática do Congo, Costa do Marfim, Dafur e o Sudão do Sul. O único ponto sobre o qual todos podem concordar é que os resultados destas operações podem ser melhor descritos como “mistos”. Para alguns, essas “intervenções humanitárias” ocorreram em um período de falta de bom senso, que testemunhou o enfraquecimento tanto da soberania nacional, quanto do direito internacional. As intervenções foram muito além dos “princípios tradicionais” de manutenção da paz das Nações Unidas: o envio de tropas com o consentimento das partes, com base na estrita imparcialidade e no uso limitado da força e o modelo neutro de envio de ajuda humanitária originalmente desenvolvido pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). Ao enfraquecer esses princípios, muitos defendem, as intervenções têm politizado o trabalho humanitário desnecessariamente e contribuído para invasões cujos objetivos são promover mudança de regime e viabilizar estratégias de contra-insurgência.9 Para outros, essas intervenções simplesmente demonstram que o próprio modelo tradicional está debilitado há muito tempo, por se basear em uma deferência “Westfaliana” ultrapassada à inviolabilidade da soberania nacional. Estes sustentam, portanto, que as crises humanitárias da década de 1990 revelaram que o sistema de segurança coletiva da ONU tornou-se uma desculpa para a indiferença e a inércia diante do sofrimento global em massa e dos crimes contra a humanidade.10 O princípio de “não-interferência” em assuntos internos de um Estado, consagrado no artigo 2º da Carta da ONU, assim como o da “neutralidade humanitária”, previsto no estatuto do CICV, precisam ser redefinidos à luz do desenvolvimento do direito internacional de direitos humanos, que propicia um referencial concreto contra o qual a conduta do Estado pode ser avaliada (INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY, 2001, para. 2.15). Preservar a neutralidade em face de atrocidades em massa equivaleria a uma “cumplicidade com o mal”.11 Durante a década de 1990, esses argumentos eram restritos principalmente a discussões entre defensores de direitos humanos e agentes humanitários, mas passaram a ocupar um lugar de destaque no debate sobre a invasão do Iraque em 2003. O então primeiro-ministro da Grã-Bretanha, Tony Blair, explicitamente qualificou suas ações como R2P ao argumentar que a culpa era do direito internacional por não permitir tais invasões, porque: 82 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


CONOR FOLEY

um regime pode sistematicamente brutalizar e oprimir seu povo e não há nada que possa ser feito quando o diálogo, a diplomacia e até mesmo as sanções fracassam, a menos que se transforme em uma catástrofe humanitária (embora os 300.000 restos mortais encontrados em valas comuns no Iraque possam ser qualificados como uma espécie de catástrofe). Esta pode ser a norma, mas será justa?. (BLAIR, 2004).

Ao expandir o “direito” de intervenção militar durante uma emergência humanitária a contextos não-emergenciais, Blair fez uso de uma espécie de duplo ilusionismo. Embora certos Estados algumas vezes tenham utilizado argumentos jurídicos para agir desta forma - incluindo a Grã-Bretanha em relação à Opertation Provide Comfort no norte do Iraque e intervenções da OTAN durante a crise do Kosovo – o histórico de prática estatal é insuficiente para justificar que se trate do surgimento de uma norma internacional de direito consuetudinário (GRAY, 2008; DUFFY, 2006). Conforme orientação de um documento do Foreign Office (Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido) “a melhor maneira de defender a intervenção humanitária é dizer que não se trata de uma prática e totalmente ilegal [...] No entanto, a esmagadora maioria da doutrina jurídica contemporânea se coloca contrária [a ela]” (UK Foreign Office Policy Document, No. 148, quoted in HARRIS, 1998, p. 918). A Carta da ONU (1945) não prevê exceção “humanitária” para a sua proibição explícita do uso da força, salvo em caso de legítima defesa ou com a autorização do Conselho de Segurança, nos termos do Capítulo VII. O procurador-geral durante o governo Blair havia advertido o primeiro-ministro explicitamente de que não havia fundamento para o uso do direito de intervenção humanitária como justificativa para a invasão e que o melhor argumento que poderia ser utilizado dizia respeito ao “ressurgimento” de denúncias de que o Iraque ainda estava descumprindo suas obrigações de cessar-fogo da primeira Guerra do Golfo.12 A adesão à ONU é aberta a todos os “Estados amantes da paz”, independentemente da natureza de seu governo, desde que eles aceitem as obrigações decorrentes da Carta. O principal objetivo da ONU é “manter a paz e a segurança internacionais”.13 Seus outros fins incluem: o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e ao da autodeterminação dos povos; promover a cooperação econômica, social, cultural e humanitária; e respeito a direitos humanos.14 O peso relativo de cada um destes objetivos tem sido objeto de boa parte da jurisprudência internacional e do debate jurídico, e, hoje, é amplamente aceito que, em virtude de sua adesão à ONU, os Estados estão submetidos a certas restrições a suas ações, em especial no que diz respeito à forma como tratam os seus próprios povos. Alguns crimes, como o genocídio, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade são atualmente reconhecidos como sendo de tal gravidade que podem ser objeto de processos, independentemente de quem os cometeu ou do local onde ocorreram, e tribunais penais internacionais foram criados para levar os criminosos à justiça. Ex-chefes de Estado já foram detidos e acusados, não obstante terem alegado imunidade estatal ou diplomática. Também hoje reconhece-se amplamente 19 SUR 77-97 (2013) ■

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que alguns dos direitos humanos mais elementares foram elevados ao status de jus cogens, isto é, de “norma peremptória” (UNITED NATIONS, 1969, art. 53) do direito internacional geral, que só pode ser revogada por outra norma de mesmo grau (HUMAN RIGHTS COMMITTEE, 1994, para. 10).15 No entanto, até que ponto esses direitos impõem obrigações extraterritoriais positivas e negativas continua a ser uma questão controversa, e não há um consenso geral de que os Estados possam recorrer à força unilateral para resguardar estes direitos em outros Estados. Na verdade, tal ação também seria uma clara violação das normas mais fundamentais do direito internacional e pode constituir um crime de agressão. Os defensores da “intervenção humanitária” criticam há muito tempo a associação de sua causa a operações como a invasão do Iraque. Durante debates sobre Darfur, em 2007, o International Crisis Group (ICG, na sigla original em inglês) apelidou Blair de “falso amigo” da doutrina de R2P (EVANS, 2007) por suas tentativas de renomear a invasão do Iraque como uma intervenção humanitária (BLAIR, 2003a, 2003b, 2004). No entanto, esta é a lógica de conceder a Estados poderosos a discricionariedade de decidir unilateralmente quando e onde lançar uma ação militar em defesa dos direitos humanos. Pouco depois da “adoção” da R2P pela Assembleia Geral das Nações Unidas, o ministro de Relações Exteriores da Rússia mencionou este conceito para justificar a ação militar na Ossétia do Sul,16 A França fez o mesmo em relação a uma proposta de intervenção à força para entregar ajuda alimentar em Myanmar (FRANCE, 2008). O Ministro da Defesa da Grã-Bretanha fez uso do conceito até mesmo ao defender um enfraquecimento das garantias previstas nas Convenções de Genebra para os presos em Guantánamo (REID, 2006a).17 Tendo em vista que a Grã-Bretanha, a França e a Rússia são membros permanentes do Conselho de Segurança, tais afirmações podem ser rejeitadas como oportunistas, mas não podem ser descartadas como irrelevantes. Algumas organizações não governamentais internacionais (ONGIs) já pediram intervenção militar em determinadas circunstâncias. Como discutido acima, os Médicos Sem Fronteiras fizeram justamente isso durante o conflito em Ruanda em 1994. A CARE pediu intervenção militar na Somália em 1991. A Oxfam apoiou essas reinvindicações e também pediu intervenção militar no Leste do Zaire, em 1996, e em Serra Leoa, em 2000. Em 1998, essa organização pediu ao governo britânico que fizesse uma “ameaça de força plausível” contra os sérvios no Kosovo, muito embora, depois que a intervenção de fato teve início, decidiu não tomar uma posição a respeito e resistiu aos pedidos de seu escritório em Belgrado para condenar os ataques contra alvos civis pela OTAN, sustentando que, como uma organização internacional cuja sede estava em um dos países responsáveis pelo bombardeio, esta seria uma posição muito controversa (VAUX, 2001, p. 21). No momento em que cheguei ao Sri Lanka, em 2009, no entanto, a maioria já havia se afastado desta postura liberal muscular. A narrativa humanitária, simbolizada pela imagem poderosa na carta de Keane a Daniel, tinha sido em grande medida ofuscada por um outro conjunto de imagens associadas com a presença militar dos EUA no Afeganistão e no Iraque: os ataques com bombas de fósforo em Fallujah, tortura em Abu Ghraib e o número crescente de crianças mortas 84 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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por ataques aéreos. As minhas próprias opiniões a respeito do assunto mudaram consideravelmente, e os massacres no Sri Lanka fizeram com que a minha posição a respeito se revertesse quase por completo.

4 Proteção de civis A primeira vez que estive no norte do Iraque como jornalista foi em 1994. Logo depois, comecei a trabalhar na Anistia Internacional, no Reino Unido, onde trabalhei na área responsável pelo caso Pinochet. Realizei alguns treinamentos para os refugiados em Kosovo durante a guerra, em 1999, e posteriormente fui alocado naquele país como oficial de proteção do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Passei um ano e meio no Afeganistão, coordenando um projeto de assistência jurídica para ajudar refugiados afegãos. Depois do Afeganistão, trabalhei por curto período de tempo em uma série de outras missões de campo até que minha esposa descobriu que estava grávida. O Sri Lanka foi, portanto, a minha última missão de campo, e cheguei em casa exausto, estressado e pronto para colocar tanto a ajuda humanitária quanto os debates a respeito para trás por algum tempo. Durante os dois anos seguintes, trabalhei como consultor em casa, realizando pesquisas, avaliações e treinamentos, ao mesmo tempo em que aprendia as habilidades muito mais difíceis exigidas para o exercício da paternidade. No fim de 2010, fui contratado pelo Departamento de Operações de Manutenção da Paz (DPKO, na sigla original) para escrever um curso de treinamento com base em estudos de caso sobre a proteção de civis (POC, na sigla original). Embora tivesse trabalhado por muitos anos com debates sobre “proteção”, o conceito era ainda novo para mim, o que possivelmente decorre de seu status ainda emergente no direito internacional. Em fevereiro de 1999, o Conselho de Segurança da ONU pediu que o Secretário-Geral apresentasse “um relatório com recomendações sobre como ele poderia agir para melhorar tanto a proteção física, quanto jurídica de civis em situações de conflito armado” (UNITED NATIONS, 1999d). O relatório foi publicado em setembro de 1999 e continha uma série de recomendações sobre como o Conselho de Segurança poderia “compelir as partes envolvidas em um conflito a respeitar os direitos garantidos aos civis pelo direito e pela convenção internacionais” (UNITED NATIONS, 1999c). No mês seguinte, o Conselho de Segurança autorizou uma operação de manutenção da paz em Serra Leoa, a Missão das Nações Unidas em Serra Leoa - UNAMSIL, que declarou especificamente que: Atuando em conformidade com o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, decide que no exercício do seu mandato, a UNAMSIL pode tomar as medidas necessárias para garantir a segurança e a liberdade de movimento de seu pessoal e, dentro das suas capacidades e áreas de atuação, proteger civis sob ameaça iminente de violência física, tendo em vista as responsabilidades do Governo de Serra Leoa. (UNITED NATIONS, 1999e, para. 14).

O texto é um modelo de cautela jurídica, mas vai muito além do previsto no 19 SUR 77-97 (2013) ■

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documento final da Cúpula sobre R2P. É relevante ressaltar ainda que esse dispositivo dá um mandato subordinado ao Capítulo VII às missões para que possam usar a força para conduzir tarefas de “proteção”. No ano seguinte, a ONU publicou o Relatório do Painel de Operações de Paz das Nações Unidas (Relatório Brahimi), que declarou explicitamente que as forças de paz da ONU: devem ser capazes de exercer o seu mandato de maneira profissional e com êxito. Isto significa que as unidades militares das Nações Unidas devem ser capazes de defender a si mesmas, outros integrantes da missão e o mandato da missão. Regras de procedimento não devem limitar contingentes a respostas pontuais, mas devem prever formas de proteção capazes de neutralizar uma fonte de ataques mortais contra as tropas das Nações Unidas ou a pessoas encarregadas de protegê-las. (UNITED NATIONS, 2000, para. 49).

Desde então, uma linguagem semelhante à da resolução referente à UNAMSIL apareceu na descrição do mandato de outras missões de paz da ONU, e, hoje, há mais de 100 mil soldados em campo em missões para proteger civis. Ademais, hoje a proteção de civis é também tema de debate de uma sessão pública bianual do Conselho de Segurança, o que tem resultado em um fluxo constante de declarações, resoluções e relatórios (HOLT; TAYLOR, 2009; DEPARTMENT OF PEACEKEEPING OPER ATIONS/DEPARTMENT OF FIELD SUPPORT, 2010a, 2010b; 2010c; 2010d, 2010e). Quando o Conselho de Segurança revisou o mandato da missão da ONU

na República Democrática do Congo (RDC), em 2007, afirmou que “deve ser dada prioridade à proteção de civis nas decisões sobre o uso da capacidade e dos recursos disponíveis” (UNITED NATIONS, 2007, para. 5). Mandatos do Conselho de Segurança têm se tornado cada vez mais ricos em detalhes ao descrever as tarefas de missões de paz da ONU, embora a maioria ainda contenha uma linguagem e formulação semelhantes às tarefas associadas com a proteção de civis. Apresentamos a primeira versão do material de treinamento para todas as missões de campo da África em um seminário na sede da ONU em Entebbe em março de 2011. Isso coincidiu com a decisão do Conselho de Segurança de invocar a proteção de civis como uma justificativa para autorizar uma intervenção militar na Líbia, e foi um pouco antes da missão da ONU na Costa do Marfim ter utilizado ação militar para proteger civis contra as forças do presidente em exercício. No ano seguinte, fui recontratado pelo DPKO para trabalhar em um treinamento específico para missões com base em um modelo semelhante. Uma viagem pinga-pinga me levou a Goma, na República Democrática do Congo, pouco antes de rebeldes do movimento M23 invadiram a cidade, para a fronteira entre a Libéria e a Costa do Marfim algumas semanas depois de um grupo de soldados da manutenção de paz da ONU ter sido morto em uma emboscada por grupos rebeldes e, em seguida, para o recém-independente Sudão do Sul. A proteção de civis é bastante diferente da doutrina de R2P. Conforme observado pelo relatório elaborado pelo Secretário-Geral da ONU “Responsabilidade de proteger: resposta oportuna e decisiva”, de julho de 2012: “Embora o trabalho das forças de paz possa contribuir para alcançar os objetivos da R2P, os dois conceitos, 86 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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responsabilidade de proteger e a proteção de civis, possuem pré-requisitos e objetivos distintos e independentes” (INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY, 2001, para. 16). Uma reunião do Global Centre for the Responsibility to Protect, em 2009, também explicou: Debates abertos sobre proteção de civis foram realmente as únicas ocasiões dentro da agenda formal do Conselho [de Segurança] onde se refletiu sobre o desenvolvimento da norma e prática de R2P. No entanto, a sensibilidade em torno da inclusão de R2P dentro da agenda de proteção de civis tem aumentado nos últimos meses. Há preocupações de que a agenda de proteção de civis esteja sendo desnecessariamente politizada pela introdução da R2P no trabalho do Conselho e suas resoluções sobre a proteção de civis, como se aqueles que buscam reverter o aval à R2P em 2005 questionassem a proteção de civis na tentativa de desafiar um consenso duramente conquistado em ambas as questões. (GLOBAL CENTRE FOR THE RESPONSIBILITY TO PROTECT, 2009).

As principais diferenças textuais entre POC e R2P são que a última parece ter apenas a intenção de proteger as pessoas contra certos “crimes em massa” e em casos em que o Estado em que estes crimes estão ocorrendo tenham “claramente fracassado” (GLOBAL CENTRE FOR THE RESPONSIBILITY TO PROTECT, 2009). Isto torna consideravelmente mais restrito o mandato da R2P em comparação ao da POC, que fornece proteção a todos os “civis sob ameaça iminente de violência física”, dependendo das condições acima referidas. No entanto, para muitos, a R2P continua associada com a ação militar sem a aprovação do Conselho de Segurança da ONU conduzida pela OTAN durante a crise do Kosovo, e com debates anteriores em torno da legalidade de “intervenções humanitárias”.18 A POC transformou sob muitos aspectos o debate sobre as responsabilidades da ONU de proteger pessoas em emergências complexas. De maneira óbvia, a implementação do mandato de proteção de civis exigirá que missões reavaliem as regras de procedimento que dão a seus soldados e os poderes de prisão e detenção dos contingentes militares e policiais internacionais.

5 Conclusão Soldados de manutenção da paz têm sido muitas vezes criticados por sua relutância em usar a força quando civis ao seu redor estão sendo ameaçados, mas claramente tais decisões de vida e morte não podem ser tomadas sem maiores considerações ou na ausência de um regime jurídico claro. O que exatamente constitui uma “ameaça iminente” e devem elas ser previstas nas normas internacionais de direitos humanos ou nas normas de conflito armado, mais permissivas? A maioria dos mandatos de missões claramente estabelece que cabe ao governo local a principal responsabilidade de proteger seu próprio povo, mas o que acontece quando são justamente estas forças que constituem a maior ameaça a eles? Qual é o status das próprias forças de paz? Como comandantes da ONU podem exercer controle efetivo sobre as suas próprias forças, uma vez que as questões disciplinares são de competência exclusiva 19 SUR 77-97 (2013) ■

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dos países aos quais estas tropas pertencem e estes países muitas vezes também impõem restrições no âmbito nacional acerca de onde, quando e como seus soldados podem ser utilizados? Como devem os soldados da ONU lidar com as pessoas que foram indiciadas pelo Tribunal Penal Internacional? As respostas a estas perguntas não são claras, e confrontá-las leva missões da ONU a áreas novas e incertas. Ao contrário da R2P, esse debate não parte da premissa de que a ONU é “obrigada” a intervir em crises humanitárias. Na verdade, o Relatório Brahimi afirma muito explicitamente que: “Há muitas tarefas que as forças de manutenção de paz das Nações Unidas não devem ser solicitadas a executar e muitos lugares aos quais elas não deveriam ir” UNITED NATIONS. 2000, para. 1). No entanto, a noção de que a ONU possa utilizar os mandatos previstos no Capítulo VII para proteger indivíduos em conflitos puramente internos requer uma reavaliação significativa de suas competências no âmbito do direito internacional. Além de proibir o uso unilateral da força, o artigo 2o da Carta também proíbe expressamente a intervenção pela ONU em “assuntos que recaiam essencialmente sob a jurisdição de qualquer Estado” (UNITED NATIONS, 1945, art. 2), mas “este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capitulo VII” (UNITED NATIONS, 1945, principle 7). Este artigo não faz referência nenhuma a direitos humanos ou ao direito humanitário, nem mesmo à proteção de civis, e diz respeito especificamente à preservação da paz e da segurança internacionais. Embora a ONU tenha, em certas ocasiões, utilizado a sua competência prevista no Capítulo VII para autorizar intervenções em conflitos internos que envolvam amplas violações de direitos humanos e do direito humanitário, todos os mandatos anteriores foram fundamentados sob o argumento de ameaças à paz e à segurança internacionais, nem que apenas pelo impacto potencialmente desestabilizador de uma crise de refugiados em determinada região. Pode-se argumentar que nada na Carta das Nações Unidas impede que o Conselho de Segurança declare qualquer situação uma ameaça à paz e à segurança internacionais, o que, portanto, ativa os seus poderes sob o Capítulo VII. Isso já aconteceu em relação ao terrorismo internacional, permitindo que o Conselho de Segurança exigisse extradições, impusesse restrições de viagens e confiscasse os bens de determinados indivíduos. No entanto, dada a primazia da Carta das Nações Unidas sobre outros tratados internacionais, incluindo tratados de direitos humanos, isso possui implicações preocupantes. A imunidade jurídica geral da qual missões da ONU se revestem também impede tribunais de permitir que os beneficiários da operação possam responsabilizar estas missões por desrespeito aos direitos humanos. A Corte Europeia de Direitos Humanos declarou inadmissíveis alegações de violações do direito à vida e à liberdade de detenção arbitrária pela missão da ONU no Kosovo, enquanto a missão da ONU no Haiti declarou inadmissível um pedido de indenização apresentado em nome das vítimas de um surto de cólera no Haiti (UNITED NATIONS, 2013), apesar do fato de que seu próprio Enviado Especial para o Haiti havia admitido publicamente que as forças de paz foram a causa provável da doença, que até agora matou mais de 7.000 pessoas (DOYLE, 2012). Entre todos os malefícios associados a permitir que cada Estado atue como 88 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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juiz, júri e executor ao conduzir “intervenções humanitárias”, a maioria dos problemas expostos acima pelo menos trazem consigo diretrizes claras sobre a responsabilidade jurídica e política pelas quais tais ações podem ser questionadas. Por outro lado, missões da ONU muitas vezes respondem a problemas que encontram no campo por meio de métodos improvisados, recursos limitados e em áreas do direito internacional pouco claras e ainda amplamente inexploradas. O truísmo muitas vezes repetido, mas sem base empírica, de que a principal razão para o fracasso do combate a atrocidades em massa seria a “falta de vontade política” é, por vezes, empregado por defensores da “intervenção humanitária” para sustentar que o Conselho de Segurança da ONU não deveria ter a última palavra sobre a autorização de tais ações. Seus críticos ressaltam que este organismo não é nem democrático nem representativo, e argumentam que seus vetos - e potenciais vetos - podem ter impedido intervenções que poderiam ter salvo vidas. Muito embora a primeira afirmação reforce os argumentos antigos a favor da reforma das Nações Unidas, este último argumento pertence à corrente histórica “e se?”. Membros poderosos da ONU, ou seus amigos poderosos, continuarão a abusar de sua força, porque essa é a realidade do equilíbrio mundial de poder. Isso não deve impedir organizações de direitos humanos de documentar e denunciar violações onde quer que elas ocorram ou organizações humanitárias de tentar obter acesso a áreas onde elas podem aliviar o sofrimento de muitos. A discussão que carece de novas ideias não é a de se o direito internacional deve ser “reformado” para que Estados possam invadir outros com mais facilidade, mas a de como podemos aplicar os princípios existentes num mundo em que os Estados exercem cada vez mais atividades extraterritoriais e por meio de atores transnacionais. Ninguém que tenha visto um massacre de perto discordará da afirmação de que uma intervenção internacional pode, sim, salvar vidas. Mas ainda precisamos discutir como podemos domar o Leviatã que queremos criar.

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A EVOLUÇÃO DA LEGITIMIDADE DAS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS

NOTAS 1. Os parágrafos seguintes estão baseados em artigos na mídia, entrevistas e impressões de primeira mão. 2. BBC News, UK presses Sri Lanka over Channel 4’s ‘war crimes’ film, 15 de junho de 2011. 3. Sobre estudos das negociações que levaram à linguagem adotada na Cúpula ver: Bellamy, 2009, p. 66-97; Evans, 2008b, p. 288; e Bellamy, 2006. 4. Para opiniões similares, ver também: Thakur, 2011 e 2006; Weiss e Thakur, 2010; Evans, 2006/07 e 2008. 5. A Turquia ratificou aConvenção das Nações Unidas Relativa ao Estatuto dos Refugiadosde 1951, mas não o Protocolo de 1967 que estende o escopo da Convenção além da Europa. 6. Para mais detalhes, ver Cooke, 1995. 7. Weiss e Collins,2000, p. 79 ressaltam que defensores da intervenção humanitária ‘veem a intervenção militar como um aliado de seus esforços de ajudar um grupo minoritário perseguido’. Ver também Randel, 1994, p. 336; Barry e Jefferys, 2002; Stoddard, Harmer e Di Domenico, 2008. 8. Emergências humanitárias complexas são em geral definidas pela: deterioração ou colapso da autoridade do governo central; conflitos e amplos abusos de direitos humanos; insegurança alimentar; colapso macroeconômico; e deslocamento forçado em massa de pessoas. Ver Natsios, 1996, p. 67. 9. Ver Hehir, 1998, p. 29-53; ver também Abiew, 1999; Chandler, 2002; Orford, 2011. 10. Evans e Sahnoun (Co-Chairs), 2001, p. 11-18 para uma visão geral deste debate. Ver também: Simma, 1999; Lillich, 1969, p. 210; Lillich, 1974, p. 240; Lillich, 1973 e Fonteyne, 1974, p. 203. 11. Ver Nações Unidas,1999a; 1999b. 12. Opinião do Procurador Geral, “Iraq”, 7 de março de 2003. 13. Carta das Nações Unidas, 1945, Artigo 1(1):

‘Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz’. 14. Carta das Nações Unidas, 1945, Artigo 1(2): ‘Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal’ 15. O Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial, em seu Statement on racial discrimination and measures to combat terrorism, has confirmed that the prohibition of racial discrimination is a norm of jus cogens (UNITED NATIONS, 2002, chap. XI, sect. C, para. 4). Ver também, International Criminal Tribunal for the Former Yusolavia, Prosecutor v. Delalic and Others, 1998a, paras 452, 454; Prosecutor v. Furundzija, 1998b, paras. 139 e 143; Prosecutor v. Kunarac and Others, 1988c para. 466. 16. Entrevista com Ministro de Relações Exteriores da Federação Russa, Sergey Lavrov para BBC, Moscow, 9 de agosto de 2008. 17. Ver também Reid, 2006b. 18. Ver Beyerlin, 1995, p. 926, Tsagourias, 2000, p. 5-41, Murphy, 1996, p. 7-20. O significado tradicional do termo ‘intervenção humanitária’ foca no uso ou ameaça de uso de força militar por um estado ou grupo de estados contra um outro estado para fins humanitários, um ‘direito à assistência humanitária’ implica que há um fundamento jurídica para prover ajuda emergencial transnacional, mesmo quando isso é realizado sem a autoridade, ou contra a vontade, do governo central do Estado em questão.

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CONOR FOLEY

ABSTRACT Debates about humanitarian action in complex emergencies raise fundamental problems about the protection of human rights under international law. As UN peacekeeping missions become increasingly more complex and multifaceted, for example, they face accountability deficits. Many of the largest UN missions have authority under Chapter VII of the UN Charter to use force to protect civilians under imminent threat of physical violence. This raises a number of issues related to the UN’s negative and positive obligations under international law. The UN Charter itself contains no express basis for peacekeeping, which has developed in an ad hoc manner in response to different crises. Some States have also acted outside the framework of the UN Charter justifying military action in the name of ‘humanitarian intervention’. This paper explores some of the principled and practical dilemmas related to the extraterritorial protection of civilians through both unilateral and multilateral action within the framework of international law. KEYWORDS Protection – Humanitarian intervention - R2P – UN Charter – Complex emergencies

RESUMEN Los debates sobre la acción humanitaria en situaciones de emergencia complejas plantean problemas fundamentales acerca de la protección de los derechos humanos con arreglo al derecho internacional. Así, por ejemplo, a medida que las misiones de mantenimiento de la paz de la ONU se vuelven más complejas y heterogéneas, se enfrentan a déficits en materia de rendición de cuentas. Esto plantea una serie de cuestiones relacionadas con las obligaciones positivas y negativas de las Naciones Unidas en virtud del derecho internacional. La Carta de las Naciones Unidas no contiene ningún fundamento expreso para el mantenimiento de la paz, que se ha desarrollado de manera ad hoc en respuesta a las diferentes crisis. Algunos Estados también han actuado fuera del marco de la Carta de las Naciones Unidas para justificar una acción militar en nombre de una “intervención humanitaria”. Este artículo explora algunos de los dilemas prácticos y de principios correspondientes a la protección extraterritorial de la población civil tanto a través de la acción unilateral como multilateral en el marco del derecho internacional. PALABRAS CLAVE Protección – Intervención humanitaria – RdP – Carta de las Naciones Unidas – Situaciones complejas de emergencias.

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DEISY VENTURA

Foto: Renato Parada

Deisy Ventura é professora de direito internacional do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI/USP) e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2. É mestre em direito comunitário e europeu, e doutora em direito internacional pela Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne). Email: deisy.ventura@usp.br

RESUMO O artigo esboça uma visão de conjunto, não exaustiva, das ações internacionais do Brasil no campo da saúde pública, a fim de aferir a existência de uma política externa brasileira de saúde propriamente dita. A primeira parte do texto procura distinguir a cooperação brasileira da praticada pelo mundo desenvolvido, graças a um breve panorama da cooperação em saúde Sul-Sul, com especial destaque à Comunidade dos Países da Língua Portuguesa – CPLP, e à União das Nações Sul-americanas - UNASUL. A segunda parte do texto é dedicada à atuação brasileira em foros multilaterais, nos quais o Brasil propõe uma “nova governança” da saúde global. Conclui-se que existe uma política externa brasileira no campo da saúde pública, e que as tensões nela encontradas são de natureza transversal, perpassando as esferas interna e externa. Seu futuro depende da arbitragem de inúmeras contradições, tendo como baliza os princípios do Sistema Único de Saúde – SUS. Original em português. Recebido em agosto de 2013. Aprovado em outubro de 2013. PALAVRAS-CHAVE Saúde pública – Política externa – Saúde global – Brasil Este artigo é publicado sob a licença de creative commons. Este artigo está disponível online em <www.revistasur.org>. 98 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


SAÚDE PÚBLICA E POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA* Deisy Ventura

1 Introdução: a saúde como tema das relações internacionais A saúde tornou-se um desafio para a diplomacia a partir da primeira conferência sanitária internacional, realizada em 1851, em Paris. A conferência não visava, porém, a saúde das populações: o verdadeiro objeto da reunião era a necessidade de reduzir a duração das medidas de quarentena, consideradas desmedidas e nocivas para o comércio (KEROUEDAN, 2013a, p. 28). Por conseguinte, a tensão entre saúde e comércio, entre interesses humanos e econômicos, entre a ciência e o lucro, é “constitutiva do paradoxo da saúde internacional” (KEROUEDAN, 2013b, p. 1). Desde então, a saúde internacional conheceu uma extraordinária evolução cujo ápice foi a criação da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1946, como a “autoridade diretora e coordenadora dos trabalhos internacionais no domínio da saúde” (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 1946). Entretanto, criticada por seu caráter eminentemente científico e técnico (GOSTIN, 2007, p. 226), a OMS foi obnubilada, nas últimas décadas, pelo protagonismo de poderosas instituições no financiamento de projetos internacionais, especialmente do Banco Mundial e de outras agências, privadas ou filantrópicas. Além disso, a pandemia de gripe A (H1N1), ocorrida entre 2009 e 2010, pôs em questão a independência da OMS em relação à indústria farmacêutica (VENTURA, 2013). Ponto crucial da evolução da saúde internacional foi o advento da epidemia de HIV/Aids, que ensejou não somente um novo tipo de ativismo transnacional em prol do acesso ao tratamento, mas também influenciou a pesquisa e a ciência, as práticas clínicas, as políticas públicas e o comportamento social (BRANDT, 2013). Paralelamente, o temor ao bioterrorismo catapultou a saúde pública à condição de tema relevante da segurança internacional, sob a batuta dos Estados Unidos, para quem a noção de segurança nacional abrange a de saúde pública (ZYLBERMAN, 2013, p. 126). Assim, a saúde ganhou espaço na agenda de numerosos foros, tais como o *O presente artigo é uma versão inédita – traduzida, modificada e ampliada – do trabalho Le Brésil et la diplomatie de la santé: les enjeux de la solidarité, apresentado em 17 de junho de 2013 no Colóquio Politique étrangère et diplomatie de la santé mondiale, organizado pela Cátedra Géopolitique de la santé mondiale no Collège de France, em Paris. 19 SUR 99-117 (2013) ■

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SAÚDE PÚBLICA E POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA

Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e as alianças entre países desenvolvidos, como o Grupo dos Oito – G8, ou entre países emergentes, como Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – o BRICS. A expressão “saúde internacional” vem sendo paulatinamente substituída pela controversa e polissêmica expressão “saúde global”. Enquanto a primeira é geralmente utilizada para referir os acordos e projetos de cooperação entre os Estados, a segunda abarcaria novos atores e pautas inovadoras. Cresce igualmente o uso da expressão “diplomacia da saúde global”, que compreenderia a negociação sobre a saúde pública nas fronteiras, em foros da saúde e de outras áreas afins, a governança da saúde global, política externa e saúde, e o desenvolvimento de estratégias de saúde nacionais e globais (KICKBUSH; BERGER, 2010, p. 20). Muitas dúvidas cercam estes novos conceitos. Três bilhões de seres humanos – quase a metade da população do planeta – ainda vivem em condições sanitárias precárias, amiúde agravadas por uma situação de pobreza extrema (KOURISLSKY, 2011, p. 15). Logo, tratar-se-ia de lemas ingenuamente descritivos, que almejam ressaltar a similitude de problemas e soluções que transcendem fronteiras, ou de um universalismo hegemônico norte-americano, ou eurocêntrico, que promove a difusão de bens, tecnologia e produtos financeiros, para além da própria segurança interna? (BIRN, 2012, p. 101). Dominique Kerouedan alerta para o risco de que nossa cultura de saúde pública e de cooperação para o desenvolvimento seja confiscada pelo pensamento dominante da global health, ou o global South, que ela considera pouco atento às verdadeiras preocupações locais dos países mais pobres (KEROUEDAN, 2013a, p. 22). Mas o que diz o Brasil a respeito da saúde global? O presente artigo tem por objetivo esboçar uma visão de conjunto (e, por isto, não exaustiva) das ações internacionais do Brasil no campo da saúde pública. Existiria uma política externa brasileira de saúde? É certo que a posição do Brasil em relação à governança global da propriedade intelectual está diretamente relacionada a sua resposta à epidemia de HIV/Aids (SOUZA, 2012, p. 204). Também é certo que, desde 2003, com a ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva ao poder, o Brasil deu um novo élan à cooperação dita Sul-Sul – entre países em desenvolvimento – explorando, entre outros, o potencial da saúde como tema social no seio da política externa (PEREZ, 2012, p. 79). Expressões como “diplomacia de prestígio” ou “imperialismo soft” foram utilizadas para identificar este período da política externa brasileira (VISENTINI, 2010). Grande parte das críticas a ela endereçadas deve-se ao fato de que nossa diplomacia buscou conciliar duas identidades dificilmente compatíveis (LIMA, 2005): a de um país insatisfeito com a ordem global, hábil articulador dos interesses dos países do Sul nos âmbitos multilaterais e regionais; e a de um grande mercado emergente, ávido de investimentos internacionais e de eventos planetários. Paralelamente, o Brasil tornou-se uma referência internacional em matéria de combate à pobreza. Segundo o discurso oficial, a cooperação técnica brasileira seria regida pelos princípios de diplomacia solidária, pela atuação em resposta a demandas de países em desenvolvimento (demand-driven), pelo reconhecimento da experiência local, pela não-imposição de condicionalidades, não-vinculação a interesses comerciais ou 100 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


DEISY VENTURA

fins lucrativos e não-ingerência em assuntos internos dos países parceiros (LEITE et al, 2013). A expressão diplomacia solidária forjou-se especialmente quando o Brasil assumiu responsabilidades inéditas em relação ao Haiti (SEITENFUS, 2006). A primeira parte deste artigo procura justamente distinguir a cooperação brasileira em saúde daquela praticada pelo mundo desenvolvido. Um breve panorama da cooperação Sul-Sul será traçado, com especial destaque à Comunidade dos Países da Língua Portuguesa (CPLP), e à União das Nações Sul-Americanas (UNASUL). A segunda parte do texto é dedicada à atuação brasileira em foros multilaterais, nos quais o Brasil propõe uma “nova governança” da saúde global. A conclusão sustentará que o Brasil possui uma política externa solidária no campo da saúde pública, cujo futuro depende da superação de limites e contradições que resultam de tensões transversais, com interfaces interna e externa. No âmbito deste trabalho, a política externa é concebida simplesmente como a ação do Estado, por meio do governo, no plano internacional (PINHEIRO; MILANI, 2012, p. 334). A opção por este conceito justifica-se pela necessária ênfase na politização da política externa, isto é, na percepção de que as escolhas feitas pelo governo, amiúde desprovidas de coerência sistêmica, refletem coalizões, alianças, disputas e barganhas entre diferentes setores do próprio governo, dos partidos, grupos e atores. Por fim, quando se faz referência à solidariedade – uma noção enigmática, complexa e ambígua (SUPIOT, 2013) –, adota-se uma acepção elementar do direito internacional público, para quem a solidariedade pode expressar-se tanto por instrumentos de compensação, a exemplo dos sistemas de preferências tarifárias ou de redistribuição, como por instrumentos de proteção de interesses coletivos, entre eles os direitos humanos e o desenvolvimento sustentável (BOURICHE, 2012).

2 A cooperação estruturante em saúde O governo Lula rapidamente deu-se conta do papel que a saúde pública poderia desempenhar em sua diplomacia. Somada à formação profissional e à agricultura, ela representa dois terços da cooperação brasileira com os países em desenvolvimento (VAZ; INOUE, 2007). O investimento federal em cooperação sanitária passou de 2,78 milhões de reais em 2005 para 13,8 milhões em 2009; assim, 9% do total dos investimentos brasileiros em cooperação, do período 2005-2009, foram atribuídos à saúde (BRASIL, 2010, p. 38). No ano de 2012, dos 107 projetos de cooperação sanitária em curso, 66 visavam a América Latina e o Caribe, 38 a África, e 9 o Oriente Médio e a Ásia; 24 destes programas concernem aos bancos de leite materno, 17 ao VIH/Aids, 10 à vigilância sanitária e 10 ao sangue e hemoderivados (BRASIL, 2012a). Os atores da cooperação brasileira em saúde são numerosos, cada um deles aportando seus valores e sua cultura institucional, e igualmente as suas demandas. Considerada por analistas estrangeiros como “um elemento essencial da diplomacia solidária do Brasil” (VENTURA, 2010), a cooperação sanitária engendrou uma aproximação inédita entre o Ministério da Saúde e o Ministério das Relações Exteriores (BRASIL, 2012b, p. 26). Entre os órgãos vinculados ao Ministério da Saúde, destacam-se a Assessoria Internacional do Ministério (Aisa/MS), o Programa Nacional 19 SUR 99-117 (2013) ■

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de Doenças Sexualmente Transmitidas e Aidas (PN-DST/Aids), o Instituto Nacional do Câncer (Inca), a Fundação Nacional da Saúde (Funasa), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) (CEPIK; SOUSA, 2011). Do lado das relações exteriores, destacam-se, evidentemente, a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), que responde pela negociação, pela coordenação e pelo seguimento do conjunto dos projetos de cooperação técnica. No entanto, esta lista não é exaustiva. No âmbito de um artigo, seria impossível identificar e classificar as diferentes modalidades de ação internacional dos órgãos públicos brasileiros que repercute sobre a saúde pública. Mas a complexidade desta tarefa não é monopólio da área da saúde: “o fato de cerca de 50% dos órgãos da Presidência e dos ministérios poderem se relacionar com a política externa evidencia uma internacionalização importante da estrutura do poder executivo federal” (SANCHEZ-BADIN; FRANÇA, 2010). Após a identificação da origem do conceito de cooperação “estruturante” em saúde, serão abordadas a CPLP e a UNASUL, considerando que a cooperação Sul-Sul dá-se, sobretudo, por meio de agendas estabelecidas no âmbito das alianças regionais e de planos estratégicos (BUSS; FERREIRA; HOIRISCH, 2011).

2.1 A origem do conceito A solidariedade constitui um dos princípios fundamentais da política exterior brasileira (AMORIM, 2010). Mas ela é igualmente a alma mater do Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela Constituição Federal de 1988, que consagra o acesso universal e gratuito à saúde, reconhecida como direito de todos e dever do Estado. Considerado o sistema público de saúde de maior alcance no mundo (FORTES; ZOBOLI, 2005, p. 22), com um público potencial de cerca de 200 milhões de cidadãos, o SUS funda-se em cinco princípios fundamentais: universalidade, integralidade, equidade, descentralização e participação popular. Os conselhos de saúde que atuam nos planos federal, estadual e municipal são compostos por usuários, profissionais da saúde e gestores, encarregados de aprovar programas de saúde, acompanhar sua execução e controlar seu orçamento, paralelamente à realização das conferências de saúde que ocorrem periodicamente (FERREIRA NETO; ARAÚJO, 2012). Apesar do subfinanciamento do SUS, da ascensão dos “planos de saúde” privados, do protagonismo crescente de entes privados no seio do sistema público e das graves disfunções que decorrem de tais fatores, o Brasil ostenta progressos em seus indicadores de saúde. Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) das Nações Unidas foram alcançados três anos antes de seu prazo máximo (2015) no que se refere à redução da mortalidade infantil e materna, assim como à luta contra a malária e outras doenças (BRASIL, 2013). Mas é sobretudo a doutrina do SUS, que preconiza a cobertura universal, equitativa e integral dos serviços de saúde, a inspiradora do conceito de “cooperação estruturante de saúde” desenvolvido pelo Brasil durante a última década. Trata-se de uma dupla inovação em relação ao paradigma da cooperação internacional. Primeiramente, ela pretende romper com a tradição da transferência passiva de saberes e tecnologias. Em segundo lugar, o seu objetivo fundamental é a criação ou o fortalecimento das 102 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


DEISY VENTURA

principais instituições fundamentais dos sistemas de saúde dos países beneficiários, explorando ao máximo as capacidades locais (ALMEIDA, 2010, p. 25). Enquanto a cooperação internacional oferecida pelo mundo desenvolvido é, em geral, orientada ao enfrentamento de doenças ou de vulnerabilidades específicas, a cooperação dita estruturante volta-se ao apoio às autoridades, ao fomento às escolas de formação de profissionais e ao enfrentamento das debilidades dos sistemas nacionais de saúde. Deste modo, os elementos estruturais prevalecem sobre a ajuda conjuntural, pontual e temporária. Daí resulta o primado dos interesses nacionais permanentes dos parceiros, rompendo a “hegemonia da oferta” – ou seja, a construção de uma pauta de cooperação voltada precipuamente aos interesses do doador, que nem sempre correspondem às principais necessidades do receptor – que caracteriza a cooperação para o desenvolvimento tradicional (FONSECA et al., 2013). Paulo Buss, coordenador do Centro de Relações Internacionais da poderosa Fiocruz, explica a vocação brasileira para a cooperação com o Sul: “há vinte anos, nós estávamos na mesma situação que estes países vivem hoje. Nós somos capazes de compreendê-la” (PINCOCK, 2011, p.1738).

2.2 A CPLP Criada em 1996, a CPLP compõe-se atualmente de oito Estados: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São-Tomé e Príncipe, e Timor Oriental. A CPLP tem por objetivos a cooperação em todos os campos, inclusive a saúde; a promoção e a difusão da língua portuguesa; e a concertação diplomática entre os seus membros, visando particularmente o fortalecimento de sua presença nos âmbitos internacionais (COMUNIDADE DOS PAÍSES DA LÍNGUA PORTUGUESA, 2007). Trata-se de um “espaço fônico”, institucionalizado à imagem da francofonia ou da hispanofonia, que até o momento suscitou não mais do que uma “polida indiferença” por parte das instâncias multilaterais e da mídia internacional (FERRA, 2007, p. 98). Não obstante, a cooperação em saúde com a CPLP foi uma “escolha natural” do Brasil, eis que a maior parte dos profissionais dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop), todos eles membros da CPLP, falam apenas o português além das línguas locais. Operam a favor desta cooperação, ainda, as “identidades políticas, ideológicas e culturais” (BUSS; FERREIRA, 2010a, p. 109) entre o Brasil e os Palop. Foi preciso esperar 12 anos, desde a criação da CPLP, para que ocorresse a I Reunião de Ministros da Saúde, em Praia, Cabo Verde. Até então, a cooperação em saúde no âmbito da CPLP concentrava-se, sobretudo, no combate ao HIV/Aids, à malária e à tuberculose. A seguir, ela passou a ser enquadrada pelo Plano Estratégico de Cooperação em Saúde 2009-2012 da CPLP (Pecs). Adotado em Estoril, em 2009, pela II Reunião de Ministros da Saúde, o Pecs mereceu o modesto orçamento de 14 milhões de euros. Ele estabelece sete eixos estratégicos: a formação e o desenvolvimento da “força de trabalho em saúde”, que recebe 67% do orçamento total do Pecs, a comunicação, a pesquisa, o desenvolvimento de cadeias de produção, a vigilância epidemiológica, as catástrofes naturais e a promoção da saúde. Um grupo técnico está encarregado da coordenação e da aplicação do Pecs. 19 SUR 99-117 (2013) ■

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A prioridade outorgada ao eixo de formação do pessoal de saúde permite melhor compreender a noção de cooperação “estruturante”. Trata-se de apoiar as autoridades sanitárias nacionais, a fim de que elas sejam capazes de gerir seus respectivos sistemas de saúde de maneira eficaz, efetiva e durável; de oferecer uma formação aos profissionais da saúde; de produzir ou de gerar dados úteis ao processo de tomada de decisão política; e de promover a pesquisa e o desenvolvimento (BUSS; FERREIRA, 2010a, p. 117). Fica evidente a substituição dos programas específicos para combate de doenças pelo investimento nos elementos de potencial mudança estrutural nos países parceiros. Na ausência de um balanço oficial dos resultados do Pecs, vale referir estudo que se debruçou sobre 167 atos jurídicos bilaterais relativos à cooperação em saúde entre o Brasil e os Palop, em vigor no Brasil no ano de 2009, incluindo memorandos e planos de trabalho (TORRONTEGUY, 2010). O autor conclui que ela de fato exclui tanto as condicionalidades como a lógica de endividamento características da cooperação Norte-Sul. No entanto, as atividades previstas nestes instrumentos seriam de “mão única”, no sentido de que o Estado beneficiário mantém uma posição passiva: a de um receptor de ajuda. O estudo revela, ainda, que estes instrumentos, em geral, não preveem mecanismos de accountability. Mas a cooperação em saúde brasileira não se limita aos Palop. Segundo a ABC, há projetos atualmente em curso na Argélia, no Benim, em Botswana, Burkina-Faso, na República do Congo, em Gana, no Quênia, no Senegal e na Tanzânia. Em seu conjunto, a “política africana” brasileira é alvo de numerosas críticas. Como nova prioridade da política externa, ela reflete uma estratégia concertada entre o setor público e o empresariado brasileiro para expansão do capitalismo brasileiro, eis que, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), o Brasil encorajou largamente a internacionalização das empresas brasileiras na África (SARAIVA, 2012, p. 98 e 129). Embora a aproximação com a África apareça sob a forma de diplomacia solidária, a estratégia brasileira comunga de lógicas econômicas comuns às potências ditas emergentes, como a busca de matérias primas estratégicas e de mercado para sua produção industrial (VENTURA, 2010). A expansão internacional de empresas brasileiras produz, em alguns casos, impactos negativos nos territórios e nas relações com trabalhadores e governos locais; alguns projetos financiados pelo BNDES, que aumentam a vulnerabilidade social e ambiental, têm gerado conflitos nos países receptores (GARCIA, 2012, p. 240). Neste sentido, iniciativas no campo da saúde, capitaneadas por instituições públicas, soam como uma espécie de contraponto à vertente da cooperação Sul-Sul que se inspira em interesses do mercado.

2.3 A UNASUL-Saúde No âmbito da UNASUL, a cooperação em saúde é herdeira da experiência do Organismo Andino de Salud - Convenio Hipolito Unanue (ORAS-CONHU), em atividade desde 1971; do Mercado Comum do Sul - Saúde (MERCOSUL-Saúde), dedicado especialmente às questões sanitárias vinculadas à circulação de bens e mercadorias; e a Coordenação de Saúde da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), que desde 1978 promove a cooperação sanitária na região 104 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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amazônica. Diferentemente destas iniciativas, porém, a UNASUL pretende cobrir todo o subcontinente. Criada pelo Tratado de Brasília, em maio de 2008, a UNASUL mantém-se fiel à antiga vontade brasileira de desenvolver uma integração regional que englobe toda a América do Sul e não seja focada apenas em sua dimensão comercial (DABENE, 2010). Entre os objetivos específicos da organização, encontra-se o acesso universal à seguridade social e aos serviços de saúde. A prática dos Estados-membros fez da saúde um dos mais dinâmicos domínios da integração regional. O tratado da UNASUL, embora reflita a orientação progressista da América Latina dos anos 2000, revela uma modéstia institucional que trai a timidez da esquerda em matéria de integração regional (DABENE, 2012, p. 392). Puramente intergovernamental, seu quadro orgânico é composto de três conselhos superiores – de Chefes de Estado, de Ministros das Relações Exteriores e de Delegados Nacionais; de um Secretariado Geral, com sede em Quito, no Equador; de uma presidência pro tempore anual; e por doze conselhos dedicados a setores específicos de cooperação. Entre os conselhos setoriais, destaca-se o Conselho Sul-Americano de Saúde, também conhecido como UNASUL-Saúde, que foi instituído poucos meses depois da criação do próprio bloco, em dezembro de 2008. O único conselho setorial que dispõe de uma sede permanente é o destinado à energia, localizado na Venezuela. Há ainda dois órgãos secundários de caráter permanente: o Centro de Estudos Estratégicos da Defesa (CEED), situado em Buenos Aires; e o Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (ISAGS). A estrutura da UNASUL-Saúde é representada pela figura a seguir. Institutos Nacionais de Saúde (RINS)

Vigilância e Resposta em Saúde Desenvolvimento de Sistemas Universais Acesso Universal a Medicamentos Promoção da Saúde e Determinantes Sociais Desenvolvimento e Gestão de Recursos Humanos

Conselho de Ministros Presidência Pro tempore

Escolas de Saúde Pública (RESP) Escola Técnica de Saúde (RESTS) Relações Internacionais de Saúde ((ORIS)

Comitê Coordenador Secretaria Técnica

Instituições Nacionais de Câncer (RINC)) Gestão de Riscos e Mitigação de Desastres

Grupos e Redes

ISAGS Fonte: ISAGS, 2013

A UNASUL-Saúde orienta-se por um Plano Quinquenal (2010-2015) (UNASUL, 2010), que elenca 28 metas da cooperação, organizadas em cinco eixos que aparecem à esquerda da figura. De um orçamento total de 14,4 milhões de dólares americanos, 10,5 (cerca de 70%) são destinados ao primeiro eixo, relativo à política sul-americana de vigilância em saúde, que pressupõe, entre outros aspectos, a cooperação entre os Estados-membros para implementação do Regulamento Sanitário Internacional (RSI). 19 SUR 99-117 (2013) ■

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Na UNASUL-Saúde, políticas públicas são concebidas regionalmente, a fim de construir respostas conjuntas para problemas comuns. Paulo Buss e José Roberto Ferreira, em trabalho de referência sobre o assunto, referem-se aos medicamentos, vacinas e reagentes diagnósticos como “bens públicos regionais” (BUSS; FERREIR A, 2011, p. 2705). Ademais, no coração de uma estrutura institucional francamente minimalista, como é a UNASUL, destaca-se o ISAGS, criado pela Resolução CSS 05/2009, em novembro de 2009, e instalado no Rio de Janeiro, em 25 de julho de 2011. Muito dinâmico, apesar de jovem, o ISAGS tornou-se uma espécie de porta-voz da UNASUL-Saúde e liderou numerosas iniciativas. Inovação institucional que não encontra paralelo em outros processos de integração regional (TEMPOR ÃO, 2013), ele nasceu do consenso entre os Ministros da Saúde da região de que os mais graves problemas dos sistemas nacionais da saúde estão ligados à governança (BUSS, 2012). Segundo o artigo 2 de seu estatuto, o ISAGS tem por objetivo tornar-se um centro de altos estudos e debate de políticas para o desenvolvimento de líderes e de recursos humanos estratégicos em saúde (CONSELHO SUL-AMERICANO DE SAÚDE, 2011), devendo fomentar e oferecer insumos para a governança da saúde nos países da América do Sul e sua articulação regional na saúde global. Mais do que a formação de uma “nova geração” de gestores, o instituto deve contribuir para a adoção de medidas concertadas em matéria de organização de serviços de saúde (PADILHA, 2011). A UNASUL-Saúde também é um meio de coordenação das posições entre os Estados, nos fóruns multilaterais, e junto aos atores transnacionais. Por outro lado, não foram encontrados nos documentos da UNASULSaúde mecanismos de controle e participação social. Esta ausência surpreende não apenas diante dos princípios do SUS, mas também diante das características da própria UNASUL: é pouco provável que outro tratado constitutivo de uma organização internacional mencione tantas vezes a participação social, chegando a erigi-la como objetivo específico do bloco (VENTUR A; BAR ALDI, 2008, p. 15). Além da UNASUL, o Brasil conduz projetos de cooperação em saúde com outros países da América Latina. No Haiti, por exemplo, está à frente da reconstrução do sistema de saúde, destinando 85 milhões de dólares americanos à construção de hospitais, aos cuidados primários de saúde e à formação de pessoal (TEMPOR ÃO, 2012). Não obstante, cresce a convicção de que “se existe uma prova do fracasso da ajuda internacional, ela é o Haiti” (SEITENFUS, 2010). Em geral, porém, o balanço desta cooperação dita “estruturante de saúde” Sul-Sul é considerado positivo, apesar de uma certa distância entre a grandiloquência da intenção e a materialização do gesto (BUSS; FERREIRA, 2010b, p. 102). Os próprios atores da cooperação em saúde consideram que é preciso melhor coordenar as agências e organismos que dela participam. Atores de relevo defendem a adoção de uma lei brasileira sobre a cooperação internacional (BUSS; FERREIR A, 2012, p. 262), a fim de trazer maior clareza sobre o papel de cada órgão do Estado brasileiro, garantir sua submissão aos princípios previstos pela Constituição Federal (e, no caso da saúde, do SUS), além de instituir mecanismos de accountability, hoje inexistentes. 106 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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3 Por uma nova governança da saúde mundial Entre os numerosos temas e âmbitos de atuação brasileira relativos à saúde, este artigo refere o programa de HIV/Aids e a política de acesso a medicamentos, a concertação do BRICS no domínio da saúde e as posições do Brasil – e da UNASUL – em relação ao processo de reforma da OMS. Por limitações de espaço, o artigo deixa de fazer referência a temas importantes como, por exemplo, o protagonismo brasileiro no processo de elaboração da Convenção-quadro para a luta antitabaco da OMS, entre muitos outros.

3.1 O modelo brasileiro de resposta à epidemia de HIV/Aids Epicentro da epidemia de HIV/Aids na América Latina (BIEHL, 2009, p. 17), o Brasil foi o primeiro país em desenvolvimento a oferecer, a partir de 1996, o tratamento gratuito a pessoas infectadas. Assim, a oferta universal de acesso aos antirretrovirais constitui um elemento determinante da posição brasileira sobre a governança global da saúde, em particular nos aspectos relativos à propriedade intelectual. No quadro da OMC, o Brasil e a Índia estiveram à frente dos países em desenvolvimento quando da adoção da Declaração relativa ao Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relativos ao Comércio (ADPIC ou, em inglês, TRIPS) e a Saúde Pública, conhecida como Declaração de Doha, de 14 de novembro de 2001. Todavia, um longo caminho ainda resta a percorrer para que a saúde pública prime sobre os interesses econômicos da indústria de medicamentos. Entre 2008 e 2009, as autoridades aduaneiras europeias realizaram diversas apreensões de medicamentos genéricos autênticos que se encontravam em trânsito em seus portos, especialmente uma expedição do genérico Losartan Potassium, utilizado contra a hipertensão, produzido na Índia com destinação ao Brasil. A Índia e o Brasil recorreram à OMC, considerando que o comportamento das autoridades europeias violava, entre outros pactos, a Declaração de Doha, criando obstáculos ao comércio legítimo de medicamentos genéricos (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO, 2009). O Brasil tem defendido a produção de medicamentos genéricos também em outras instâncias, em particular na OMS e na Assembleia Geral da ONU. Um importante estudo de André de Mello e Souza (2012) sobre a política exterior do Brasil diante da epidemia de Aids revela que o êxito brasileiro construiuse num contexto de forte oposição por parte dos Estados desenvolvidos e de certas grandes empresas e, igualmente, em contradição com o que preconizavam, à época, a OMS, a United Nations Programme on HIV/Aids (UNAIDS), a Organização PanAmericana da Saúde (OPS), o Banco Mundial, a Fundação Gates, entre outros. Souza considera que uma possível explicação para a posição brasileira é a convergência entre os governos (nacional e locais) e as organizações da sociedade civil, todos fortemente influenciados pelo ideário do já citado movimento pela reforma sanitária. Considerado como um modelo de resposta à epidemia de HIV/Aids, o programa brasileiro conjuga estreitamente a política de distribuição gratuita de medicamentos e, diante do elevado preço dos antirretrovirais de marca, a política de incentivo à produção farmacêutica local, seja ela pública ou privada (CASSIER; CORRÊA, 2009). Este modelo traduz-se na cooperação internacional brasileira. Um Grupo de 19 SUR 99-117 (2013) ■

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Cooperação Técnica Horizontal (GCTH) sobre o HIV/Aids foi criado por 21 dos países da América Latina e do Caribe. Mas é a criação da fábrica de medicamentos em Moçambique o florão da exportação do modelo brasileiro. Primeiro laboratório 100% público da África, este projeto se desenvolveu sobretudo após 2008, quando passou a ser conduzido pela Fiocruz – especialmente por seu instituto de tecnologia em produtos farmacêuticos, FARMANGUINHOS. Moçambique é um dos países mais atingidos pela AIDS no mundo, com 1,7 milhões de pessoas contaminadas em uma população de 21,4 milhões (OLIVEIRA, 2012). Em novembro de 2012, o laboratório apresentou os primeiros medicamentos antirretrovirais ao governo moçambicano (MATOS, 2012). Por ter investido cerca de 40 milhões de reais neste projeto, entre 2008 e 2014, além dos custos de transferência de tecnologia relativos a 21 medicamentos, o Brasil foi descrito como mais um ativista do que um doador, eis que não obteve ganho econômico algum por meio desta cooperação (FOLLER, 2013) – o que o diferencia não apenas do mundo desenvolvido, mas também de outros países emergentes, como a China. No entanto, o modelo brasileiro não escapa a críticas. A combinação do ativismo de pacientes, dos interesses da indústria farmacêutica e das políticas de reforma do Estado brasileiro conduziram a uma mudança progressiva do conceito de saúde pública, hoje compreendido menos como um mecanismo de prevenção e de atenção médica, e mais como uma política de acesso a medicamentos e serviços de saúde; ou seja, uma concepção cada vez mais privatizada e farmacêutica de saúde pública que, em particular no caso da política de resposta à Aids, reproduz preconceitos relativos à cor e à pobreza (BIEHL, 2009, p. 16). Não obstante, graças à sua resposta à epidemia de HIV/Aids, o Brasil tornou-se um “agenda setter” no domínio da saúde (BLISS et al., 2012).

3.2 A saúde no BRICS O Brasil enquadra sua ação igualmente no âmbito do agrupamento de países designado como BRICS, que reúne países emergentes em cúpulas anuais de chefes de Estado e de Governo desde 2009. Na cúpula de Sanya, de abril de 2011, os chefes de Estado e de Governo decidiram fortalecer o diálogo no campo da saúde pública, sobretudo no que atine à luta contra o HIV/Aids. Em seguida, em julho do mesmo ano, os ministros da saúde reuniram-se, pela primeira vez, em Pequim, e adotaram uma declaração que arrola os desafios similares enfrentados pelos países, especialmente em matéria de acesso aos serviços de saúde e medicamentos. A Declaração de Pequim define as seguintes prioridades de ação: o fortalecimento dos sistemas de saúde, a fim de superar os obstáculos ao acesso às vacinas e medicamentos na luta contra o HIV/Aids, a tuberculose, a hepatite viral e o paludismo; e a transferência de tecnologias em favor da saúde pública (BRICS, 2011). A questão dos medicamentos reveste-se de especial importância no âmbito do BRICS, pois hoje a China e a Índia são os maiores provedores de princípios ativos da indústria brasileira. Logo, o Brasil pretende “aumentar a cooperação horizontal efetiva e desenvolver harmoniosamente as capacidades entre os setores farmacêuticos dos países do BRICS”, podendo “também assumir papel preeminente na implementação 108 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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da Estratégia Global sobre Saúde Pública, Inovação e Propriedade, aprovada pela Assembleia Mundial da Saúde em 2008” (PADILHA, 2011a). A segunda reunião dos ministros da saúde do BRICS ocorreu em Nova Delhi, em janeiro de 2013, resultando num comunicado que ressalta, entre outros aspectos, a necessidade de proteção da circulação de medicamentos genéricos entre os países em desenvolvimento (AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DA AIDS, 2013). Estudos recentes chamam a atenção para a necessidade de intensificar as pesquisas sobre as reais possibilidades de incidência do BRICS sobre a saúde mundial (HARMER et al., 2013).

3.3 A reforma da OMS Os últimos anos foram marcados por um crescente engajamento do Brasil em relação à OMS. Em 2013, na última Assembleia Mundial da Saúde (– AMS), órgão supremo da OMS que se reúne anualmente em Genebra, o Brasil tornou-se o décimo maior contribuinte do orçamento da instituição; seu aporte passou de 1,6% a 2,9% do total das contribuições dos Estados, o que representará cerca de 26 milhões de dólares americanos nos próximos dois anos (CHADE, 2013). Ademais, o Brasil elegeu-se membro do Conselho Executivo da OMS para o período de 2013 a 2016. Tal engajamento fez-se acompanhar de uma vigorosa crítica em relação ao papel da OMS na governança mundial da saúde. A posição brasileira sobre a reforma da organização bem o ilustra, ao repreender a Direção da OMS pela pressa com que tem conduzido o processo de reforma, cedendo à pressão dos grandes financiadores da OMS, que são os maiores interessados na aceleração da reforma por já terem posições definidas a respeito (ISAGS/UNASUL, 2013b, p.4). A concertação das posições dos Estados-membros da UNASUL no seio da OMS faz-se notar nos últimos dois anos. A UNASUL-Saúde tem se reunido paralelamente à AMS, a fim de adotar posições comuns, e procurando falar com uma só voz, inclusive no conselho executivo da organização (INSTITUTO SUL-AMERICANO DE GOVERNO EM SAÚDE, 2013a). A posição crítica do Brasil em relação à OMS estende-se igualmente ao debate em torno da Agenda de Desenvolvimento pós-2015, no âmbito da consulta temática referente à saúde. A OMS, juntamente com outros atores, defende a cobertura universal de saúde, enquanto o Brasil propugna uma cobertura, mais do que universal, equitativa e integral. Para Paulo Buss, a Constituição Federal e a concepção de saúde que ela consagra são os únicos parâmetros possíveis da ação internacional brasileira (ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA, 2013).

4 Conclusões: a superação de contradições transversais Um dos riscos do uso atual da expressão “solidariedade”, pelos Estados, que ameaça reduzi-la a um slogan vazio, é sua desconexão de um quadro concreto de aplicação (BLAIS, 2007, p. 330). Ao evocar os direitos sociais, entre os quais se encontra o direito à saúde, Alain Supiot recomenda que se passe da “solidariedade negativa”, que hoje prevalece nas relações entre os Estados, à “solidariedade positiva”, que instituiria 19 SUR 99-117 (2013) ■

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objetivos comuns de trabalho decente e de justiça nas regras internacionais de comércio, criando, ainda, “meios para avaliar estas regras à luz de seus efeitos reais sobre a segurança econômica dos homens” (SUPIOT, 2010, p. 173). Demonstrou-se que o Brasil possui, evidentemente, uma política externa no campo da saúde. Ela é solidária quando defende, por exemplo, a submissão do comércio internacional aos direitos humanos, em matéria de propriedade intelectual; que os determinantes sociais da saúde tenham prioridade na agenda global; e que uma reforma da OMS a torne mais independente em relação aos grandes financiadores privados. Cabe refletir, porém, sobre outras facetas da atuação internacional brasileira, como a eventual exploração predatória do trabalho humano e de recursos naturais nos países onde atuam empresas brasileiras, grande parte delas beneficiadas por financiamento público, cujos empreendimentos podem produzir efeitos nefastos para a saúde das pessoas que se encontram nos territórios em questão. Por outro lado, diferentemente da gestão nacional da saúde pública, a ação internacional brasileira no campo da saúde ainda não se dotou de mecanismos de transparência e de participação social em seu processo de tomada de decisão, o mesmo aplicando-se ao controle de seus resultados. Mireille Delmas-Marty ensina que, diante dos efeitos contraditórios da globalização, não basta reafirmar os princípios humanistas para mudar práticas e promover o necessário reequilíbrio entre valores mercantis e valores não mercantis, entre os bens privados e o bem comum: é preciso responder concretamente às contradições que a acompanham (DELMAS-MARTY, 2013, p. 96). Assim, a diplomacia brasileira de saúde só poderá ser considerada efetivamente solidária nos casos em que ela produzir a melhora tangível da saúde das populações dos Estados com os quais o Brasil coopera. O conceito de cooperação estruturante em saúde é um valioso aporte brasileiro ao léxico internacional da ajuda ao desenvolvimento. Contudo, os recursos destinados a este novo tipo de cooperação ainda são modestos. A propósito, as estatísticas relativas à cooperação, além de pouco disponíveis, precisam ser analisadas com prudência. Em todo o mundo, as pesquisas empíricas qualitativas sobre os efeitos da cooperação devem ser incentivadas com urgência. O resultado das ações de cooperação internacional precisa ser estudado “de maneira mais científica”: a “protociência”, hoje empregada na avaliação da cooperação, não garante que os recursos, já escassos, sejam aproveitados da melhor maneira possível (KOURILSKY, 2011, p. 17). O futuro da diplomacia brasileira de saúde, que não pode ser dissociada dos efeitos da política externa em seu conjunto, depende da arbitragem interna de inúmeras contradições; de uma parte, entre a ação internacional do Brasil e os princípios do SUS, e, de outra parte, entre os princípios e a realidade do próprio SUS, dentro do território brasileiro. Segundo José Gomes Temporão (2013), uma árdua luta política está em curso para a preservação do sistema público e universal de saúde no Brasil, hoje sob a ameaça de “americanização” por meio da difusão da ideia de que a saúde privada é melhor do que a pública, e de que ter um plano de saúde faz parte da ascensão social do brasileiro (DOMINGUEZ, 2013, p. 19). Ademais, os interesses privados invadem o SUS, cuja coerência se vê ameaçada pela multiplicação de duvidosas parcerias público-privadas (OCKÉ-REIS, 2012). 110 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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Conclui-se que as tensões encontradas na política externa brasileira, em particular no que atine à saúde pública, são de natureza transversal, perpassando as esferas interna e externa, e que elas se multiplicam de maneira tão opaca quanto vertiginosa. A consolidação de uma diplomacia solidária de saúde depende tanto da prevalência da ótica dos direitos humanos sobre interesses outros de nossa política externa, como da vontade política dos governos de completar o movimento iniciado com a reforma sanitária, construindo um sistema de saúde gratuito e de qualidade, como dever do Estado, direito de todos e baliza da ação internacional do Brasil.

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DEISY VENTURA

ABSTRACT This article provides a non-exhaustive overview of Brazil’s international activities in the field of public health, in order to determine whether the country actually has a foreign policy in health per se. The first part of the text aims to distinguish Brazilian cooperation from what is practiced by the developed world, by giving a brief review of South-South cooperation in health, with a special emphasis on the Community of Portuguese-Speaking Countries (CPLP) and the Union of South American Nations (UNASUR). The second part of the text is devoted to Brazilian action in multilateral fora, where the country has proposed a “new governance” of global health. The article concludes that a Brazilian foreign policy does indeed exist in the field of public health and that the tensions found therein are cross-cutting, encompassing the internal and external spheres. Its future depends on the arbitration of numerous contradictions, using as a reference the principles of the Brazilian public health system, known as the Unified Health System (SUS). KEYWORDS Public health – Foreign policy – Global health – Brazil

RESUMEN El presente artículo esboza un panorama general, no exhaustivo, sobre las acciones internacionales de Brasil en el ámbito de la salud pública, con el fin de evaluar la existencia de una política exterior brasilera de salud, propiamente dicha. La primera parte del texto busca diferenciar a la cooperación brasilera de aquella practicada por el mundo desarrollado, a través de un resumido panorama de la cooperación en salud Sur-Sur, enfocándose especialmente en la Comunidad de los Países de Lengua Portuguesa – CPLP, y en la Unión de Naciones Sudamericanas – UNASUR. La segunda parte del texto, se centra en la actuación brasilera en foros multilaterales, en los que Brasil propone una “nueva gobernanza” para la salud global. Se concluye que existe una política exterior brasilera en el ámbito de la salud pública, y que las tensiones que se observan en la misma son de naturaleza transversal, atravesando las esferas interna y externa. Su futuro depende del balance entre numerosas contradicciones, teniendo como guía a los principios del Sistema Único de Salud – SUS. PALABRAS CLAVE Salud pública – Política exterior – Salud global – Brasil

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CAMILA LISSA ASANO Camila Lissa Asano concluiu seu mestrado em Ciência Política na Universidade de São Paulo (USP) em 2009 e possui bacharelado em Relações Internacionais pela mesma universidade. É coordenadora do Programa de Política Externa e Direitos Humanos da Conectas Direitos Humanos. Também é professora de Relações Internacionais na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), onde leciona a disciplina de Direitos Humanos. Email: camila.asano@conectas.org

RESUMO A partir da experiência da organização internacional brasileira Conectas Direitos Humanos em seu trabalho com política externa, este artigo analisa o papel dos países emergentes nas dimensões multilateral e bilateral da proteção internacional dos direitos humanos. As incoerências e desafios encontrados nestes âmbitos são utilizados como ponto de partida para refletir sobre a prática da Conectas e sistematizar estratégias de atuação que possam ser úteis para outras organizações da sociedade civil desejosas de atuar com temas de política externa. Original em português. Recebido em outubro 2013. Aprovado em novembro 2013. PALAVRAS-CHAVE Política externa – Direitos humanos – Países emergentes – Sociedade civil – Conectas Direitos Humanos Este artigo é publicado sob a licença de creative commons. Este artigo está disponível online em <www.revistasur.org>. 118 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


POLÍTICA EXTERNA E DIREITOS HUMANOS EM PAÍSES EMERGENTES: REFLEXÕES A PARTIR DO TRABALHO DE UMA ORGANIZAÇÃO DO SUL GLOBAL* Camila Lissa Asano

1 Introdução As chamadas potências emergentes, como África do Sul, Brasil, Índia, Indonésia, México, Nigéria e Turquia, têm conquistado reconhecimento internacional por seu crescimento econômico e desempenhado papel mais ativo na definição dos rumos da política internacional. Suas decisões impactam comunidades muito além de suas próprias fronteiras, e as alianças, parcerias e fóruns estabelecidos por elas ganham relevância e visibilidade.1 Muitos desses países têm trabalhado no sentido de reformar a governança global, para que os mecanismos e órgãos multilaterais reflitam seu novo papel, mas seu comprometimento com o aprimoramento do sistema internacional dos direitos humanos não é tão claro. Muitas vezes, essas potências agem de forma contraditória se comparamos seus compromissos assumidos em direitos humanos com seus atos de política externa. É com relativa frequência que essas nações se abstêm em foros multilaterais diante de resoluções relacionadas a situações de flagrantes violações. Outras vezes, permitem que verbas públicas sejam utilizadas para financiar empreendimentos em solo estrangeiro que contribuem para o desrespeito aos direitos dos cidadãos locais. É crucial, portanto, que a sociedade civil de cada uma dessas potências emergentes cobre transparência e prestação de contas de seus governos, além de coerência entre os compromissos assumidos em matéria de direitos humanos e as decisões e posições adotadas no plano internacional. Uma forma de fazer isso é a análise dos votos de determinado país nos foros internacionais tradicionais, assim como de suas ações de política externa nos âmbitos bilateral, regional e multilateral e posterior disseminação de informações sobre eventuais – ou iminentes – contradições. *A autora agradece a Fabiana Leibl, Fernando Sciré, Jefferson Nascimento, Laura Waisbich, Marina Luna e Raísa Cetra por auxílio em pesquisa e discussão de ideias ao longo da elaboração deste artigo.

Ver as notas deste texto a partir da página 135. 19 SUR 119-137 (2013) ■

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POLÍTICA EXTERNA E DIREITOS HUMANOS EM PAÍSES EMERGENTES: REFLEXÕES A PARTIR DO TRABALHO DE UMA ORGANIZAÇÃO DO SUL GLOBAL

Ao trabalharem ao lado das instituições nacionais e de outros grupos da sociedade civil, organizações não governamentais contribuem para o fortalecimento da democracia no nível nacional. A relevância deste tipo de atuação é fortalecida pelo fato de as potências emergentes terem reforçado sua atuação em âmbitos multilaterais e outros fóruns apenas recentemente, o que significa que o potencial de a ação da sociedade civil provocar mudanças de rumo efetivas seja, talvez, maior do que no caso de potências já estabelecidas, com políticas externas mais “institucionalizadas”. Neste texto, são compartilhadas estratégias de trabalho da Conectas Diretos Humanos2 na área de política externa e direitos humanos com o objetivo de disseminá-las a outras organizações da sociedade civil que desejem influenciar as práticas de seus governos e, quem sabe, convidar estudiosos a debruçar-se sobre o tema. Algumas das discussões e estratégias aqui apresentadas ecoam reflexões propostas em recente publicação da Conectas intitulada Política Externa e Direitos Humanos: Estrategias de ação para a sociedade civil. Um olhar a partir da experiência da Conectas no Brasil (CONECTAS DIREITOS HUMANOS, 2013) que traz, além das estratégias e dicas, um relato de experiências da organização ao longo dos anos trabalhando com advocacy em política externa.

2 Política externa e direitos humanos 2.1 Histórico da atuação da Conectas em política externa Conectas começou a trabalhar na área de política externa em 2005. À época, o tema não era alvo comum de atuação de organizações brasileiras. Sujeita a pouquíssimos mecanismos de escrutínio da sociedade civil, a pauta da política externa do país era definida em grande medida por funcionários do Poder Executivo, em particular do Ministério das Relações Exteriores (MRE, também conhecido por Itamaraty3). Não havia informações disponíveis sobre como era definida essa agenda, nem sobre o processo de decisão do Itamaraty ou de outras alas do governo sobre comportamentos internacionais – tais como os votos do Brasil em fóruns multilaterais, como o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (CDH) – e tampouco sobre o processo de nomeação de embaixadores. A falta de informações sobre o assunto refletia-se também nos meios de comunicação: o tema era pouquíssimo explorado pela mídia nacional. Nesse contexto, Conectas criou seu Programa de Política Externa e Direitos Humanos baseada na premissa de que, numa democracia, o governo tem a obrigação de prestar contas aos cidadãos sobre todas as suas atividades e fomentar canais de participação social. Sendo a política externa uma política pública, cabe à sociedade civil exigir transparência do governo na formulação e implementação de políticas nesse campo. Além disso, a Constituição Federal de 1988 determina, em seu artigo 4º, inciso II, que as relações internacionais do Brasil devem ser regidas pela “prevalência dos direitos humanos” (BRASIL, 1988). Neste sentido, cobrar o respeito aos direitos humanos em todas as decisões de política externa do país não se trata apenas de uma questão de princípio, e sim de cumprimento do compromisso constitucional que o Brasil assumiu em 1988.4 O Quadro a seguir apresenta as principais estratégias de atuação da Conectas em seu trabalho com política externa. 120 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


CAMILA LISSA ASANO

Quadro 1* Eixo de atuação 1 INFORMAÇAO e PESQUISA Exigir transparência: Pressionar o governo para publicar informações a respeito dos compromissos e prioridades da política externa, viagens de Estado, reuniões etc., e exigir que este material seja disponibilizado amplamente de maneira ativa, e não apenas como reação a pedidos de acesso à informação apresentados. Sistematizar votos e posições: Compilar, sistematizar e organizar as informações sobre o comportamento internacional do país, suas posições e seus votos nos mecanismos internacionais de direitos humanos e em outros foros multilaterais. Disseminar informações: Publicar e disseminar informações obtidas ou produzidas a respeito da política externa do país em relação aos direitos humanos.

Eixo de atuação 2 REDES e PARCERIAS Fomentar redes e oportunidades: Procurar formar parcerias estratégicas com outras organizações da sociedade civil e expandir redes para incluir uma gama diversificada de atores (acadêmicos, jornalistas, empresários, sindicados, lideranças religiosas, estudantes, comunidades de imigrantes e outros) nas questões de política externa. Em rede ou em parceria, defender a criação de mecanismos formais e informais de interação da sociedade civil com aqueles responsáveis pela elaboração da política externa - ou o seu fortalecimento, caso já existam. Realizar trabalho interregional de advocacy: Atuar ao lado de organizações parceiras de outras regiões ao monitorar a atuação e o posicionamento do país na ONU e em outras organizações multilaterais. Conduzir campanhas inter-regionais Sul-Sul sobre situações de direitos humanos em países em crise a fim de influenciar as posições das potências emergentes democráticas.

Eixo de atuação 3 FREIOS e CONTRAPESOS

Eixo de atuação 4 MÍDIA e ESCRUTÍNIO PÚBLICO

Eixo de atuação 5 FOROS e MECANISMOS INTERNACIONAIS

Legislativo: Fomentar o controle da política externa com impacto nos direitos humanos por parte do poder legislativo do governo ao recorrer a procedimentos democráticos já estabelecidos, como convocação de audiências públicas no Congresso, permitindo que os legisladores se envolvam num diálogo com o Executivo.

Informar a grande mídia: Trabalhar com a mídia nacional e internacional para aumentar a visibilidade das posições internacionais do país nas questões ligadas aos direitos humanos e fornecer informações sobre sua política externa. Oferecer informações, depoimentos e artigos opinativos para fortalecer os laços com a mídia nacional e internacional.

Participar de eventos relacionados aos direitos humanos: Participar das sessões dos sistemas regionais e internacionais de direitos humanos (como o CDH) para acompanhar as posições do país nos processos institucionais dentro dos sistemas regionais e internacionais de direitos humanos e realizar ações de defesa temáticas e relacionadas a cada país.

Judiciário: Fazer uso de mecanismos legais para questionar as ações e decisões da política externa recorrendo à Constituição e à legislação do país, podendo inclusive mobilizar os tribunais.

Usar a mídia para a defesa de causas: Utilizar a mídia para pressionar seu governo, aumentar a conscientização e contribuir para o debate público das agendas envolvendo as questões de direitos humanos.

Executivo: Mobilizar a estrutura interna de freios e contrapesos dentro do Poder Executivo.

Parcerias: Trabalhar com organizações sediadas nessas cidades. Empreender esforços para estabelecer uma presença permanente nas cidades em que as entidades regionais ou internacionais dos direitos humanos estão localizadas (por exemplo, Genebra) para fortalecer as relações e o potencial de defesa de causas. Participar dos demais foros multilaterais: Participar de foros multilaterais envolvendo questões diferentes daquelas ligadas aos direitos humanos, acompanhando os eventos e melhor prevendo os impactos potenciais das decisões.

Fonte: CONECTAS DIREITOS HUMANOS, 2013.

2.2 Formas de atuação dos Estados na proteção internacional de direitos humanos Para fins de análise, neste artigo, parte-se de que os Estados podem atuar em prol da proteção internacional dos direitos humanos pela via bilateral ou por meio de espaços coletivos. Por espaços coletivos, entende-se aqueles nos quais os países agem pautados não apenas por seus imperativos e interesses nacionais, mas sobretudo por meio de concertação com outros Estados. Eles incluem organismos multilaterais tradicionais de alto grau de institucionalidade e que contam com extenso rol normativo sobre direitos fundamentais – como as Nações Unidas - e outras arenas de concertação política existentes que não necessariamente tenham sido criadas exclusivamente para a proteção de tais direitos – como as novas coalizões BRICS e IBAS – e que por alguns têm sido chamadas de arranjos minilaterais (FONSECA, 2012). * A publicação apresenta, para cada uma das estratégias, exemplos de ação da Conectas, os principais desafios enfrentados pelas ONGs e sugestões e dicas de ação.

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POLÍTICA EXTERNA E DIREITOS HUMANOS EM PAÍSES EMERGENTES: REFLEXÕES A PARTIR DO TRABALHO DE UMA ORGANIZAÇÃO DO SUL GLOBAL

Formas de um País A atuar diante de uma crise grave de direitos humanos em um País B Via espaços tradicionais (Ex.: ONU, OEA)

Atuação Coletiva Via novas coalizões (Ex.: BRICS, IBAS)

PAÍS

PAÍS

B Onde ocorre grave e sistemática crise de direitos humanos

A Atuação Bilateral Por meio de cooperação, manifestações públicas em visitas de autoridades, etc.

Entre os espaços coletivos, tomemos como exemplo o Conselho de Direitos Humanos (CDH) da Organização das Nações Unidas (ONU), hoje o principal órgão internacional dedicado ao tema. Ele busca contribuir para o avanço dos padrões internacionais que ampliam o reconhecimento de direitos ao, entre outros, aprovar resoluções temáticas em suas sessões. O Conselho também monitora o respeito aos direitos humanos por meio de mecanismos como as resoluções sobre países vivendo graves ou persistentes violações; os procedimentos especiais (relatorias e grupos de trabalho independentes); e a Revisão Periódica Universal (RPU), mecanismo sob o qual todos os Estados-membros da ONU passam por uma espécie de sabatina a cada quatro anos e recebem recomendações de outros Estados. Outras instituições multilaterais consideradas parte do sistema oficial de proteção dos direitos humanos são aquelas criadas no âmbito de organizações regionais tais como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e suas Comissão Interamericana de Diretos Humanos (CIDH) e Corte Interamericana de Diretos Humanos. Quando se cobra mais comprometimento dos emergentes no campo multilateral, o que se busca é que esses países favoreçam a proteção internacional de direitos humanos mantendo uma postura responsável em foros internacionais e regionais – o que significa contribuir para o avanço da normativa, fortalecer as capacidades de monitoramento das instituições e cumprir com as recomendações e decisões delas emanadas. Cada vez mais, no entanto, as discussões e decisões com impacto sobre os direitos fundamentais ultrapassam os órgãos criados exclusivamente para a questão e 122 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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que são tradicionalmente entendidos como parte do sistema internacional de direitos humanos. Há também uma multiplicidade de instâncias cujo mandato principal não é tratar de direitos humanos, mas que ainda assim lidam com assuntos de impacto direto na proteção internacional desses direitos. Entram nessa categoria, por exemplo, coalizões como IBAS (Índia, Brasil e África do Sul) e BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Apesar das oscilações entre esperança e ceticismo com relação à capacidade destes agrupamentos de questionarem o status quo internacional, é inegável que ganharam destaque nos debates globais, incluindo aqueles sobre direitos humanos. A proliferação de instâncias nas quais os direitos humanos se inserem de forma transversal, contudo, impõe um duro desafio ao trabalho de fiscalização feito por organizações da sociedade civil sobre como seus Estados se comportam. Outra via de atuação dos Estados com impacto internacional sobre o avanço da proteção de direitos humanos é a bilateral. Decisões sobre estreitamento de relações políticas com outros governos nacionais, investimentos de ajuda ao desenvolvimento e promoção do comércio têm, naturalmente, grande impacto sobre a proteção dos direitos humanos em países estrangeiros. Nas relações bilaterais de cada Estado também se encontram oportunidades de se promover e proteger os direitos humanos no mundo. Nesse âmbito, além das relações diplomáticas clássicas, como os contatos mantidos por altas autoridades de dois países e as atividades das embaixadas ao redor do globo, outros aspectos das relações bilaterais, tais como o envio de assistência humanitária e a cooperação internacional oferecida, devem ser analisados, já que têm grande potencial de impacto sobre a proteção dos direitos humanos de populações locais. Outros aspectos com semelhante efeito são o controverso sistema de sanções bilaterais e a prática, cada vez mais utilizada por países emergentes, de financiamento público da promoção comercial de empresas nacionais em outros países. Conectas, por meio de seu Programa de Política Externa e Direitos Humanos, monitora a atuação do Brasil e de países emergentes tanto na via bilateral como por meio de espaços coletivos como ONU e novas coalizões com o objetivo de verificar se as posições adotadas por esses países são coerentes com princípios e compromissos assumidos em matéria de direitos humanos. Alguns exemplos da atuação a partir do monitoramento da Conectas serão apresentados na próxima seção.

2.3 Comportamento dos emergentes que merecem atenção da sociedade civil A seguir, serão identificados alguns comportamentos dos países emergentes no exercício de suas políticas externas que carecem de maior atenção e estudo por apresentarem traços de falta de consonância com a proteção internacional de direitos humanos. Sem ter a pretensão de generalizar tais comportamentos a todos os emergentes, busca-se aqui indicar algumas fragilidades da política externa desses países que têm sido observadas no trabalho de monitoramento feito pela Conectas. Exemplos são apresentados a fim de ilustrar formas pelas quais uma organização de direitos humanos do Sul Global pode trabalhar com política externa. 19 SUR 119-137 (2013) ■

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POLÍTICA EXTERNA E DIREITOS HUMANOS EM PAÍSES EMERGENTES: REFLEXÕES A PARTIR DO TRABALHO DE UMA ORGANIZAÇÃO DO SUL GLOBAL

2.3.1 Atuação dos emergentes por meio de espaços coletivos i Nações Unidas: histórico de votos e crítica à seletividade No âmbito multilateral, especialmente no trabalho do Conselho de Direitos Humanos (CDH) das Nações Unidas, um dos principais alvos de crítica dos países emergentes é a sua seletividade. O órgão tem sido criticado por sua falta de critérios coerentes e transparentes para decidir quais países são alvo de resoluções e quais temas são considerados prioritários. Sobre esse tema, o vice-ministro de Relações Exteriores da África do Sul, Ebrahim Ismail Ebrahim, alertou em seu discurso no órgão, em 2012, que: O Conselho deve ser um árbitro com credibilidade e deve tratar todas as questões globais de direitos humanos de forma balanceada. Não deve haver hierarquia. Direitos econômicos, sociais e culturais devem estar em pé de igualdade e ser tratados coma mesma ênfase que os direitos civis e políticos. (SOUTH AFRICA, 2013, tradução nossa).

Similarmente, o Conselho tem sido criticado por poupar ou negligenciar países que apresentam crises urgentes ou crônicas de direitos humanos ao mesmo tempo em que emite reiteradamente resoluções relativas a determinados Estados, tais como a Coreia do Norte. A questão é cara ao Brasil. Em 2012, a ministra de Direitos Humanos Maria do Rosário Nunes, afirmou que o CDH “deve se pronunciar diante de violações graves de direitos humanos, onde quer que aconteçam, respeitando os princípios da não-seletividade e não-politização” (BRASIL, 2012). No o ano seguinte, em 2012, o então ministro de Relações Exteriores, Antonio Patriota, defendeu que o Conselho deveria atuar para melhorar “a vida de seres humanos, por meio de uma abordagem balanceada e não-seletiva dos direitos humanos, livre de acusações fúteis e polarizações paralisantes” (BRASIL, 2013). A crítica sobre a seletividade do CDH, contudo, não é sempre acompanhada de atuação coerente no órgão por parte dos emergentes. Um dos principais exemplos dessa incoerência é o caso do Barein, país que, apesar de ser palco de graves violações e sujeito de firmes posicionamentos da Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Navi Pillay,5 recebeu pouca atenção do CDH. A situação de direitos humanos no Barein tem deteriorado desde fevereiro de 2011, quando começaram protestos pacíficos por reformas democráticas naquele país. Apesar da gravidade da situação, o CDH se manteve em silêncio por mais de um ano. Buscando reverter tal quadro, 26 organizações de direitos humanos pediram, em junho de 2012, a todas as delegações em Genebra o fim da negligência dos Estados ( JOINT..., 2012). Durante a 20ª sessão do Conselho naquele mês, 27 Estados6 emitiram uma declaração conjunta em que demonstravam preocupação com a situação do Barein. Dentre os emergentes que criticam a seletividade do CDH, como África do Sul, Brasil, Índia, Indonésia, Nigéria e Turquia, apenas o México assinou a declaração. Com a manutenção das graves violações, em fevereiro de 2013, outra carta ( JOINT..., 2013a) foi endereçada aos países solicitando que a questão fosse investigada pelo CDH. Assim, na 22ª sessão, 44 países7 aderiram a 124 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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uma segunda declaração conjunta. Mais uma vez, Brasil, África do Sul, Nigéria, Índia, Indonésia e Turquia não assinaram o apelo. Novamente, México foi uma exceção.8. O tema foi retomado na 24ª sessão, em setembro de 2013, após forte atuação da sociedade civil, que passou a solicitar a aprovação de uma resolução por país para o Barein e pressionou para que os países que ainda não haviam se somado às declarações anteriores fizessem parte dessa nova iniciativa. Novamente, contudo, os Estados optaram por adotar apenas uma declaração conjunta e a ideia de uma resolução específica foi deixada de lado nesse momento. Ainda assim, o resultado de certa forma foi positivo, e o Brasil, que havia optado anteriormente apenas por manifestação individual sobre a situação no Bahrein, se somou ao México como um dos emergentes a integrar a nova declaração ( JOINT..., 2013b). A Conectas fez parte das iniciativas coletivas em todas as ocasiões aqui reportadas. É com o propósito de apontar tais contradições entre o discurso e a prática que, desde 2006, Conectas publica o anuário Direitos Humanos: O Brasil na ONU. A publicação compila informações sobre como o Brasil votou, além de recomendações feitas e recebida s pelo país quanto a direitos humanos. Além de fornecer subsídios a estudiosos e/ou outras organizações envolvidas com o tema, o anuário também cumpre o papel de mostrar ao governo brasileiro que a sociedade civil acompanha de perto seu comportamento em foros multilaterais. Até 2009, o monitoramento de votos na ONU era realizado virtualmente ou por meio de participação pontual de representantes da Conectas em sessões em Genebra. Em 2010, a organização coordenou-se com duas outras organizações latino-americanas – o Centro para Estudos Legais e Sociais (CELS), da Argentina, e a Corporação Humanas, do Chile – para viabilizar a presença de um representante permanente em Genebra. Além de monitorar os votos na ONU, a contratação em parceria facilitou ações conjuntas das três organizações em diferentes frentes em Genebra. No caso específico dos votos, Conectas observou variações ano a ano no apoio de países emergentes como Brasil, México,9 Nigéria, África do Sul, Índia e Indonésia a resoluções que tratam de violações em países específicos. É claro que a política externa para direitos humanos de um país não pode ser reduzida à maneira como este vota em resoluções nas Nações Unidas tanto no CDH como na Assembleia Geral, mas ela fornece indícios importantes sobre a direção para a qual está seguindo. Tanto o Conselho como a Assembleia Geral, afinal, servem como balizador mínimo para estabelecer limites à aceitação internacional de violações. Assim, monitorar os votos permite à sociedade civil apontar incoerências e dirigir seu trabalho de advocacy a causas ou países que recebem menos atenção em fóruns multilaterais. A seguir, são apresentados alguns exemplos dessas oscilações e de estratégias da Conectas para influenciar os votos do Brasil na ONU:

Coreia do Norte Há anos, as violações dos direitos humanos na República Popular Democrática da Coreia (Coreia do Norte) são objeto de preocupação internacional. A antiga Comissão de Direitos Humanos10 da ONU e o atual CDH adotaram várias resoluções desde 2003 expressando a preocupação com a situação dos direitos humanos naquele país. 19 SUR 119-137 (2013) ■

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POLÍTICA EXTERNA E DIREITOS HUMANOS EM PAÍSES EMERGENTES: REFLEXÕES A PARTIR DO TRABALHO DE UMA ORGANIZAÇÃO DO SUL GLOBAL

Quadro 2 VOTOS NO CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS DA ONU RESOLUÇÃO SOBRE DIREITOS HUMANOS NA COREIA DO NORTE (2009 – 2012) País

10ª sessão (2009) Resolução A/ HRC/10/16

13ª sessão (2010) Resolução A/ HRC/13/14

16ª sessão (2011) Resolução A/ HRC/16/8

19ª sessão (2012) Resolução A/HRC/19/13

Brasil

Abstenção

A favor

A favor

(não era membro)

Índia

Abstenção

Abstenção

(não era membro)

Aderiu ao consenso

África do Sul

Abstenção

Abstenção

(não era membro)

(não era membro)

México

A favor

A favor

A favor

Aderiu ao consenso

Nigéria

Abstenção

Abstenção

Abstenção

Aderiu ao consenso

Indonésia

Abstenção

Contra

(não era membro)

Aderiu ao consenso

Fonte: Alto Comisssariado das Nações Unidas para Direitos Humanos. Dados compilados pela autora.

Até 2008, o Brasil votou favoravelmente a várias decisões sobre o país. Naquele ano, o país absteve-se na Assembleia Geral da ONU, posição que se repetiu no ano seguinte, tanto na Assembleia Geral da ONU quanto no CDH. Índia e África do Sul também se abstiveram, Indonésia e Nigéria votaram contra a resolução e, mais uma vez, o México votou a favor. Usando o argumento de que, ao se abster, o Brasil estava violando o princípio constitucional segundo o qual devem ser respeitados os direitos humanos na condução da política externa do país (Constituição Federal Brasileira, artigo 4, II), Conectas pediu a uma seção do Ministério Público Federal que exigisse do MRE uma explicação para a posição adotada. Em resposta a esse pedido, o Itamaraty afirmou que o país acreditava na criação de um ambiente políticodiplomático capaz de permitir que a Coreia do Norte expressasse voluntariamente seu compromisso com os direitos humanos e cooperar com a ONU. Mas a Coreia do Norte se recusou a aceitar todas as recomendações recebidas pelo mecanismo de RPU da ONU naquele ano, incluindo as feitas pelo Brasil. No ano seguinte, 2010, o Brasil mudou de posição, unindo-se ao México no voto favorável. A partir de 2012, as resoluções sobre a Coreia do Norte foram adotadas por consenso. Assim, a solicitação de informação feita por outra entidade do governo serviu não apenas para revelar uma informação desejada (explicações sobre a posição do Brasil), mas, ao confrontar o Itamaraty com a realidade do fracasso da estratégia que adotara, fez com que o Ministério mudasse de posição, assumindo uma postura mais favorável aos direitos humanos. Em 2013, foi criada, também por consenso, uma Comissão de Inquérito para este país.

Irã Nas votações sobre a situação de direitos humanos no Irã, no âmbito da Assembleia Geral das Nações Unidas, Índia, Brasil, África do Sul, Nigéria, Indonésia destacamse pelo padrão de votos questionável. A análise das votações a partir de 2009 mostra que, dentre os chamados países emergentes, somente o México vota favoravelmente 126 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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às resoluções. Com exceção de 2003, o Brasil se absteve desde 2001 em todas as votações de resoluções condenando violações no Irã. África do Sul também se absteve em todas as votações, conjuntamente com a Nigéria e Indonésia que, em anos anteriores, votaram contra o texto. Índia também oscila entre voto contra e abstenção, prevalecendo o primeiro posicionamento. Quadro 3 VOTOS NA ASSEMBLEIA GERAL DA ONU RESOLUÇÃO SOBRE DIREITOS HUMANOS NO IRÃ (2010 – 2012) País

64ª sessão (2009) Resolução A/ RES/64/176

65ª sessão (2010) Resolução A/ RES/65/226

66ª sessão (2011) Resolução A/ RES/66/175

67ª sessão (2012) Resolução A/RES/67/182

Brasil

Abstenção

Abstenção

Abstenção

Abstenção

Índia

Contra

Abstenção

Contra

Contra

África do Sul

Abstenção

Abstenção

Abstenção

Abstenção

México

A favor

A favor

A favor

A favor

Nigéria

Contra

Abstenção

Abstenção

Abstenção

Indonésia

Contra

Contra

Abstenção

Abstenção

Fonte: Alto Comisssariado das Nações Unidas para Direitos Humanos. Dados compilados pela autora.

Para sensibilizar o governo brasileiro para a questão, Conectas promoveu em 2011 reuniões entre ativistas iranianos e representantes do governo e da sociedade civil brasileira para exigir uma posição mais firme por parte do Brasil. No mês seguinte, o Brasil votou a favor de uma resolução criando o Relator Especial para o Irã, no CDH. A Conectas fiscaliza desde então a posição do Brasil em relação ao Irã, e utiliza-se da mídia para sensibilizar o governo e a sociedade civil para o tema, publicando artigos de opinião e fornecendo informações sobre o tema.

ii Coalizões internacionais: BRICS e IBAS As coalizões IBAS (Índia, Brasil e África do Sul) e BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) têm recebido atenção no plano internacional por reunirem as chamadas potências emergentes ou ascendentes. O que as une é a promessa de serem uma alternativa à distribuição de poder centrada na Europa e Estados Unidos, por meio de uma agenda de reforma da governança global e de reforço do eixo Sul-Sul. Os direitos humanos ocupam um papel distinto nessas duas coalizões, que merecem ser melhor analisadas pelos estudiosos. Como mencionado na Introdução a este texto, apesar de não terem sido criadas com o mandato expresso de promover e proteger os direitos humanos – tal como o Conselho de Direitos Humanos da ONU –, as decisões tomadas por IBAS e BRICS têm alto potencial de impacto sobre esses direitos. Esses agrupamentos também oferecem oportunidade de advocacy conjunta sobre temas que interessem a sociedade civil de países que deles fazem parte. 19 SUR 119-137 (2013) ■

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POLÍTICA EXTERNA E DIREITOS HUMANOS EM PAÍSES EMERGENTES: REFLEXÕES A PARTIR DO TRABALHO DE UMA ORGANIZAÇÃO DO SUL GLOBAL

Segundo o Itamaraty, IBAS é um mecanismo de coordenação entre três países emergentes, três democracias multiétnicas e multiculturais, que estão determinados a contribuir para a construção de uma nova arquitetura internacional, a unir voz em temas globais e a aprofundar seu relacionamento mútuo em diferentes áreas. (BRASIL, [200--a]).

Nele, o tema direitos humanos tem sido considerado central, sendo um tópico específico das Declarações Oficiais das Cúpulas e figurado no documento final de todas as cinco Cúpulas presidenciais realizadas até o momento.11 Além disso, o IBAS já mostrou vontade e capacidade de coordenação política no passado em áreas com impacto sobre os direitos humanos. Exemplos são o posicionamento do grupo diante das crises no Oriente Médio (entre outros, a Missão do IBAS à Síria em agosto de 2011 e Declaração do IBAS sobre o conflito em Gaza, de novembro de 2012), assim como em posicionamentos conjuntos no CDH (entre outros, a introdução de proposta de resolução sobre direito à saúde e acesso a medicamentos, na 12ª sessão do Conselho em 2009). Um exemplo de ação da Conectas ocorreu quando uma segunda missão do IBAS para Síria – que não se concretizou – começou a ser anunciada. Conectas questionou os resultados da primeira missão afirmando estar preocupada com o anúncio de uma eventual segunda missão à Síria, uma vez que a primeira se mostrou uma solução frágil e sem resultados efetivos para as vítimas de violações aos direitos humanos. Preocupa [à entidade] o fato do governo sírio utilizar o IBAS para legitimar suas ações, ao declarar que está dialogando e cooperando com países do sul, sem provar real comprometimento em cessar imediatamente a repressão. (CONECTAS, 2011, s/p).

Já no caso dos BRICS, a identidade do grupo e a importância acordada aos direitos humanos são menos facilmente identificáveis.12 De acordo com o Itamaraty, como agrupamento, o BRICS tem um caráter informal e abre para seus cinco membros espaço para (a) diálogo, identificação de convergências e concertação em relação a diversos temas; e (b) ampliação de contatos e cooperação em setores específicos (BRASIL, [20--b]).

Apesar de as quatro primeiras declarações terem tocado em questões como os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, a questão de direitos humanos foi abordada de forma apenas tangencial. A primeira menção expressa a esses direitos ocorreu na Declaração final da V Cúpula (Durban, 2013), mencionando os 20 anos da Conferência de Viena e aventando a possibilidade de cooperação setorial na área de direitos humanos.13 O texto também incluiu uma menção a necessidade de garantir amplo acesso humanitário no caso do conflito sírio, expandindo significativamente o alcance das declarações oficiais do grupo. Até então, os BRICS 128 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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haviam se limitado a reforçar a ideia de uma solução não-militar para o conflito, bem como a necessidade do respeito da soberania e integridade territorial da Síria, padrão de linguagem adotado anteriormente para referir-se a outras situações de conflito (como Afeganistão, Líbia, República Centro-Africana e Irã).14 Na questão específica do tratamento da crise síria pelo BRICS, Conectas desenvolveu uma ação de incidência que tinha como alvo incluir, na Declaração da V Cúpula, uma menção expressa de defesa do acesso humanitário irrestrito e seguro a todo território sírio. Antes da cúpula, Conectas se reuniu com representantes do MRE em Brasília para pôr-se a par de qual era a posição do Brasil sobre o tema. Além disso, a organização buscou informar o público sobre o impacto que as decisões tomadas em conjunto pelos países dos BRICS podem trazer para os direitos humanos no Brasil e no exterior. Conectas também se aliou a outras organizações humanitárias e de direitos humanos de diferentes países para o caso da Síria, que resultou em menção sobre o país na Declaração Final do grupo.15

2.3.2 Atuação dos emergentes via relações bilaterais i Visitas oficiais de autoridades: timidez diante de violações graves Se tomarmos o caso do Brasil, é possível observar que sua política externa tem sido marcada pela relutância em dar prioridade aos direitos humanos em suas relações bilaterais, sobretudo durante visita de altas autoridades a outros países. Uma hipótese para a timidez do país diante de graves violações em países com os quais mantém relações diplomáticas, tais como Zimbábue, é a de que, por ser palco de violações em seu próprio território, o Brasil não se sente possuidor de autoridade moral para criticar outras nações. O argumento de “telhado de vidro”, de fato, já foi invocado pela própria presidente Dilma Rousseff para justificar a ausência de crítica por parte do país a notórias violações em países aos quais realizou visitas oficiais, tais como Venezuela (PRESIDENTE..., 2011) e Cuba,16 que visitou em fevereiro de 2012. Ao ser indagada sobre seu silêncio frente à existência de presos políticos em território cubano, a presidente também alegou que, se fosse para falar de direitos humanos, era preciso tratar da questão de Guantánamo. Aproveitando a sugestão da presidente, dois meses depois, por ocasião da visita oficial de Rousseff aos EUA, Conectas solicitou que a presidente tratasse de questões de diretos com o seu homólogo, Barack Obama, incluindo as violações na base de Guantánamo. Segundoinformações oficiais, porém, a questão não foi singularizada na visita aos Estados Unidos.17 Para Conectas, visitas oficiais são oportunidades que deveriam ser utilizadas em favor dos direitos humanos, por se tratarem de canal privilegiado onde outros temas também difíceis, como divergências em torno de políticas cambiais ou protecionistas, não deixam de ser abordados. Quando questionado no caso de Cuba, o governo brasileiro afirmou – e tem reiterado – que dá preferência a tratar de questões de direitos humanos em âmbitos multilaterais.18 Contraditoriamente, porém, tem-se observado pouca proatividade do governo brasileiro em levantar nos espaços multilaterais suas preocupações diante de casos de abuso concretos ao redor do mundo.19 19 SUR 119-137 (2013) ■

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POLÍTICA EXTERNA E DIREITOS HUMANOS EM PAÍSES EMERGENTES: REFLEXÕES A PARTIR DO TRABALHO DE UMA ORGANIZAÇÃO DO SUL GLOBAL

ii Uso de recursos públicos: cooperação humanitária e investimentos no exterior A cooperação internacional inclui iniciativas de cooperação para o desenvolvimento (aportes financeiros para construção de infraestrutura, transferência de tecnologias por meio da cooperação técnica e científica etc.) e de ajuda humanitária (distribuição de alimentos, fornecimento de médicos e enfermeiros etc.). Ambos os tipos de cooperação têm impacto sobre os direitos de populações locais. Uma das conclusões de pesquisas da Conectas nessa área é a de que a cooperação internacional favorecida pelos países emergentes ainda é baixa em termos de montante investido. Outra questão preocupante detectada é a de que, mesmo no caso da ajuda humanitária, não parece haver critérios claros para definir os destinatários a partir da necessidade. O problema fica evidente ao analisarmos o caso da Síria, por exemplo. Com o contínuo agravamento da crise síria e a falta de perspectivas de melhora da situação, a ONU lançou em junho de 2013 o maior apelo humanitário da história da organização até então. No total, foram requisitados US$ 4,4 bilhões para programas de assistência humanitária dentro e ao redor do país, para atender a mais de 6,8 milhões de pessoas com necessidade urgente de ajuda humanitária, 4,25 milhões de deslocados internos e mais de 1,6 milhões de refugiados na época do apelo. Levando em consideração a crescente necessidade de recursos para a assistência humanitária na Síria, a crise econômica que vem atingindo diversos doadores tradicionais do Norte e o processo de alteração do eixo de poder do “Velho para o Novo Mundo”, como alguns governos se orgulham de dizer, era de se esperar que os países emergentes contribuíssem financeiramente à assistência de forma mais incisiva. No entanto, se analisarmos os dados da ONU, é possível observar que nenhum desses fatores provocou alteração significativa no fluxo de doações, que continua a vir majoritariamente dos países do Norte. De acordo com dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) (UNITED NATIONS, 2013c), dos cerca de US$ 800 milhões arrecadados para o Plano de Resposta Regional para a Síria (RRP) em 2013, 62,9% haviam sido doados por Estados Unidos, França, Japão, Alemanha, Reino Unido e União Europeia. As doações dos Estados Unidos, sozinhas, respondiam por 37,2% dos fundos recebidos. A Rússia, por sua vez, doara 1,2% do total recebido, e as doações da China correspondiam a 0,1%. Não foram verificadas doações no âmbito do RRP de países emergentes como África do Sul, Índia, México, Indonésia, Nigéria e Turquia. Outro tema que tem preocupado a Conectas no âmbito das relações bilaterais é o uso de recursos públicos, por meio de bancos nacionais de desenvolvimento, para financiar a atuação de empresas nacionais no exterior, cuja atuação – e seu potencial de violações aos direitos humanos - não é submetida a controles sociais suficientes. A situação se repete em âmbitos supranacionais. O anúncio da criação do Banco dos BRICS durante a V Cúpula do agrupamento, realizada em 2013 na África do Sul, acendeu um sinal de alerta para essa questão, pois não mencionou critérios de transparência e respeito aos direitos humanos em suas bases de fundação, principalmente tendo em vista que o banco financiará, sobretudo, grandes projetos de infraestrutura com alto potencial de violação, especialmente na África. Em diferentes ocasiões, afirmou-se que um dos modelos para o novo Banco dos 130 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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BRICS seria o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social do Brasil), que forneceu, só em 2013, cerca de 190 bilhões de reais para financiar projetos no Brasil e no exterior segundo relatório do próprio Banco. Cabe realçar que o banco tem sido duramente criticado por sua falta de transparência e precariedade com que considera questões de direitos humanos ao fornecer crédito para empresas brasileiras operarem no exterior. A preocupação é tamanha que sete entidades brasileiras da sociedade civil, incluindo a Conectas, enviaram uma submissão conjunta sobre o tema à ONU quando o Brasil passou pela segunda vez no Mecanismo de Revisão Universal do Conselho de Direitos Humanos em Genebra.20

3 Algumas conclusões Esse artigo não parte da premissa de que países emergentes não sejam compromissados ou capacitados o suficiente para contribuir positivamente para a proteção internacional de direitos humanos. Há aspectos de suas políticas externas, contudo, que podem e devem ser ajustados a fim de deixar mais evidente o local ocupado pelos direitos humanos em suas ações internacionais. Conforme os emergentes alcançam um novo nível de responsabilidade e visibilidade na cena mundial, torna-se ainda mais inaceitável a esses países ignorar ou desconsiderar os direitos humanos em suas decisões em política externa. Diversas causas têm sido sugeridas para a reticência dos países emergentes em abraçar a causa dos direitos humanos. Elas tocam em questões de fundo ideológico, segundo as quais os emergentes não querem ser reprodutores da lógica “imperialista” de imposição dos direitos humanos, ou extremamente práticas, como o fato desses países ainda conviverem com gravíssimas violações que os deixariam em uma situação incomoda de “incoerência” entre discurso externo e realidade interna – o famoso “telhado de vidro”. Perpassam, ainda, uma análise geopolítica sobre o fato de muitos dos emergentes conviverem com situações extremamente delicadas em suas regiões imediatas que os freariam de se lançar de forma mais contundente em discussões de direitos humanos em outras partes do mundo, como o caso da Índia e sua sensível relação com os vizinhos. Essas e outras causas que vêm sendo sugeridas exigem uma análise cautelosa e criteriosa. Seria uma boa área de pesquisa, sem dúvida, para os think tanks dedicados à política externa, que estão se consolidando cada vez mais nos países emergentes. No entanto, há uma causa que sobre a qual organizações de direitos humanos têm certo grau de governabilidade: o baixo custo de uma política externa que não promova direitos humanos. Essa causa é diretamente passível de intervenção da sociedade civil organizada. Quanto maior for a cobrança por transparência e responsabilidade nos posicionamentos internacionais dos países, maior será o custo político de uma política externa que trate os direitos humanos como algo negociável, sendo mais um elemento de barganha nas múltiplas negociações travadas entre os países. O aumento do custo político de posições adotadas internacionalmente que não necessariamente promovam e protejam os direitos humanos é algo que está ao alcance de movimentos sociais, sindicatos e organizações não-governamentais. 19 SUR 119-137 (2013) ■

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NOTAS 1. Trabalhos que compartilham dessa análise são: Trubek (2012), Cadernos Adenauer (2012); Alexandroff; Cooper (2010); Piccone; Alinikoff (2012). 2. Apesar das observações apresentadas no artigo serem inspiradas no trabalho realizado pela autora junto à Conectas Direitos Humanos, as posições aqui apresentadas não necessariamente refletem as posições institucionais da entidade. 3. O nome Itamaraty é uma referência à primeira localização do Ministério, no século 19, no Rio de Janeiro, na casa que pertencera ao Conde de Itamaraty. 4. A Constituição Federal de 1988 determina, em seu artigo 4º, inciso II, que as relações internacionais do Brasil devem ser regidas pela “prevalência dos direitos humanos”. 5. Segundo Pillay, centenas de defensores de direitos humanos e dezenas de profissionais da área da saúde foram detidos em protestos no país e, alguns deles, levados ao Tribunal Militar. Manifestantes foram sentenciados à morte e à prisão perpétua. Em junho de 2011, instalou-se uma Comissão Independente de Inquérito, que encontrou graves indícios de violações perpetradas pelo governo. Mesmo após a publicação do relatório e de recomendações desta comissão, contudo, os abusos continuaram (UNITED NATIONS, 2011). 6. Os 27 países que aderiram à primeira declaração conjunta sobre Barein, na 20ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos, foram Áustria, Bélgica, Bulgária, Chile, Costa Rica, Croácia, República Tcheca, Dinamarca, Estônia, Finlândia, França, Alemanha, Islândia, Itália, Irlanda, Liechtenstein, Luxemburgo, México, Montenegro, Noruega, Polônia, Portugal, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Espanha e Suíça. 7. Os 44 países que aderiram à segunda declaração conjunta sobre Barein, na 22ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos, foram Albânia, Andorra, Austrália, Áustria, Bélgica, Botsuana, Bulgária, Chile, Costa Rica, Croácia, Chipre, República Tcheca, Dinamarca, Estônia, Finlândia, France, Alemanha, Grécia, Hungria, Islândia, Itália, Irlanda, Letônia, Liechtenstein, Lituânia, Luxemburgo, Malta, México, Mônaco, Montenegro, Holanda, Noruega, Polônia, Portugal, República da Coréia, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Suécia, Suíça, Reino Unido, Estados Unidos e Uruguai. 8. A situação dos direitos humanos no Barein ainda é alvo de preocupações: o governo tem se valido de mecanismos legais para restringir manifestações e o direito de associação, utilizando leis específicas para controlar as atividades de organizações da sociedade civil. O governo tem reagido de forma violenta contra aqueles que se opõe a essas medidas e os relatos de tortura e detenções arbitrárias ainda são comuns, inclusive contra defensores de direitos humanos. Informações adicionais sobre a situação atual e passada no Barein estão disponíveis em: Nações Unidas (2013a e b); e Human Rights Watch (2013a e b); Amnesty International (2012, 2013)

e no site do Cairo Institute for Human Rights Studies em publicação intitulada “77 International and regional organizations urge the Human Rights Council to stop attempts to undermine UPR” (2013). 9. Se comparado com os outros chamados emergentes, o México se destaca por um padrão de votos mais consistente com o compromisso junto aos direitos humanos. Segundo Bruno Boti, “as mudanças na política externa mexicana de direitos humanos não foram resultado da pressão exercida pela rede transnacional de ativistas, como é descrito pelos modelos bumerangue e espiral. As mudanças foram iniciadas endogenamente no governo, que buscava ancorar a nova situação democrática do México no exterior por meio de compromissos internacionais de direitos humanos. Buscava-se, ademais, assegurar e convencer as audiências internacionais sobre a credibilidade dessa nova postura do Estado mexicano com relação às reformas democráticas e os direitos humanos” (BERNARDI, 2009, p. 5). 10. A Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas foi substituída pelo Conselho de Direitos Humanos em 2006. Para saber mais sobre a criação do CDH, ver artigo de Lucia Nader na edição n. 7 da Revista Sur. 11. Na primeira Cúpula de Brasília, em 2006, o texto oficial mencionava que: “Índia, Brasil e África do Sul, eleitos para o então recém-constituído Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, [...] compartilham uma visão comum para a reafirmação da universalidade, indivisibilidade, interdependência e inter-relacionamento de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, inclusive a realização e operacionalização do Direito ao Desenvolvimento e a especial proteção dos direitos de grupos vulneráveis” (parágrafo 16). O texto mencionava também que os países viam com bons olhos a adoção da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências (parágrafo 17). Na Cúpula seguinte, de 2007 em Pretória, a questão do direito ao desenvolvimento é novamente mencionada e os países afirmam igualmente seu comprometimento com o Conselho e com o mecanismo de Revisão Periódica Universal do órgão (parágrafo 14). Em 2008, em Déli, o grupo menciona novamente o Conselho de Direitos Humanos da ONU e afirma que o trabalho do órgão “deve desenvolver-se sem politização, parcialidade e seletividade, e deve fomentar a cooperação internacional na matéria” (parágrafo 22). Os líderes mencionam também a importância de um diálogo setorial em torno da temática, visando benefícios mútuos na proteção e promoção dos direitos humanos (parágrafo 23). Na quarta Cúpula, realizada em Brasília em 2010, os governos reafirmaram a alta prioridade acordada aos direitos humanos e a importância da cooperação neste âmbito (parágrafo 9). Mencionam especificamente a questão do racismo, da discriminação racial e xenofobia como uma área que merece atenção (parágrafo 10). Reconhecem

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igualmente a adoção pelo CDH de uma resolução proposta coletivamente pelos membros do grupo no âmbito do acesso a medicamentos (UNITED NATIONS, 2009). Finalmente, na última Cúpula realizada, em Pretória (2011), o grupo repete a “necessidade imperativa de a comunidade internacional reconhecer e reafirmar a centralidade do Conselho de Direitos Humanos” (parágrafo 39). O mesmo parágrafo reafirma ainda que os “líderes reconheceram que o desenvolvimento, a paz e a segurança e os direitos humanos estão interligados e se reforçam mutuamente”. Reafirmam ainda seu compromisso com a Declaração de Durban e seu Plano de Ação, no contexto da realização da Conferência Mundial Contra o Racismo, a Xenofobia e a Intolerância Relacionada (WCAR) + 10, realizada naquele ano. E, no parágrafo 41, salientam a necessidade de cooperarem mais em órgão internacionais de direitos humanos e de cooperarem no sentido de compartilhar boas práticas nacionais na matéria. 12. Na Cúpula de Déli (2012), o grupo afirmou ser uma “plataforma para o diálogo e a cooperação [...] para a promoção da paz, segurança e desenvolvimento em um mundo multipolar, interdependente e cada vez mais complexo e globalizado” (parágrafo 3, Declaração de Déli, 2012). 13. “Saudamos o vigésimo aniversário da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos e da Declaração de Viena e Plano de Ação e concordamos em examinar possibilidades de cooperação na área dos direitos humanos (parágrafo 23).” 14. “Em razão da deterioração da situação humanitária na Síria, instamos todas as partes a permitir e facilitar o acesso imediato, seguro, completo e sem restrições de organizações humanitárias a todos que necessitem de assistência. Instamos todas as partes a garantir a segurança dos trabalhadores humanitários” (parágrafo 26). 15. Saiba mais sobre ação da Conectas em <http:// www.conectas.org/pt/acoes/politica-externa/noticia/ cupula-dos-brics-termina-com-avanco-sobre-a-siriae-incertezas-sobre-novo-banco>. Último acesso em: Nov. 2013. 16. Alegação de que a existência de problemas em

direitos humanos no Brasil desqualificaria o País de qualquer crítica a graves crises de liberdades e abusos no mundo. Veja o exemplo do argumento na visita de Dilma a Cuba (LIMA, 2012). 17. Conectas fez uso do canal aberto pelo Itamaraty para dialogar com a sociedade via Twitter sobre visita da presidente aos EUA em 2012. Ver Brasil (2012b). 18. Exemplos de declarações de Dilma neste sentido são: “Considero que direitos humanos não podem ser objeto de luta política e não farei luta política com isso, porque não considero que existe só um país ou grupo de países que viola os direitos humanos. Por isso eu gostaria de discutir essa questão sempre multilateralmente, porque eu sei que se usa essa questão politicamente” (UOL, 2012), em Harvard, durante sua visita aos EUA. E “Quem atira a primeira pedra tem telhado de vidro. Nós no Brasil temos o nosso. Então eu concordo em falar de direitos humanos dentro de uma perspectiva multilateral” (FELLET, 2012), em coletiva de imprensa realizada durante visita a Cuba. 19. O monitoramento feito pela Conectas da atuação do Brasil no Conselho de Direitos Humanos (CDH) das Nações Unidas, principal órgão multilateral para o tema, mostra que o País continua priorizando o mecanismo de Revisão Periódica Universal (RPU) para tratar de questões em outros países. Embora seja um instrumento que deva ser reforçado, cabe lembrar que cada um dos Estados parte da ONU passam pela RPU a cada quatro anos e meio. Crises de direitos humanos precisam ser tratadas prontamente e o CDH possui o mandato para tal. O Brasil deveria fortalecer a capacidade do sistema internacional de reagir de forma veemente contra violações onde quer que ocorram a fim de conferir coerência à manifestada preferência em tratar de violações em espaços multilaterais e às suas duras críticas à seletividade do CDH. Maiores informações sobre o RPU ver (Conectas Direitos Humanos, 2012). 20. Submissão da Conectas Direitos Humanos sobre Empresas e Direitos Humanos para a segunda passagem do Brasil na Revisão Universal de Direitos Humanos, incluindo a questão do Banco Nacional de Desenvolvimento do Brasil. Ver Agere et al. (2011).

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ABSTRACT Based on the foreign policy work done by international organization based in Brazil Conectas Human Rights, this article examines the multilateral and bilateral roles of emerging countries in relation to their postures on international human rights protection. The inconsistencies and challenges revealed provide a starting point for reflecting on Conectas´ approach and for suggesting a series of strategies that may be useful to other civil society organizations seeking to address foreign policy issues. KEYWORDS Foreign policy – Human rights – Emerging countries – Civil society – Conectas Human Rights

RESUMEN Sobre la base de la experiencia de la organización internacional brasileña Conectas Direitos Humanos en su trabajo con política exterior, este artículo analiza el papel de los países emergentes en los ámbitos multilateral y bilateral de protección internacional de los derechos humanos. Las incoherencias y desafíos encontrados en estos ámbitos se toman como punto de partida para reflexionar sobre la práctica de Conectas y sistematizar estrategias de acción que puedan resultar útiles para otras organizaciones de la sociedad civil que deseen actuar en temas de política exterior. PALABRAS CLAVE Política exterior – Derechos humanos – Países emergentes – Sociedad civil – Conectas Direitos Humanos

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MAJA DARUWALA Maja Daruwala é defensora dos direitos humanos há mais de 30 anos. Advogada, é diretora da Iniciativa para os Direitos Humanos da Commonwealth Human Rights Initiative (CHRI), onde trabalha principalmente com as questões ligadas à liberdade e ao governo incluindo a reforma da polícia, do sistema prisional, direito à informação, discriminação, direitos das mulheres, liberdade de expressão e capacitação para a defesa dos direitos humanos. Ela é membro diretivo de diversos conselhos dentre eles o Open Society Justice Initiative, a Coalizão Internacional para a Saúde da Mulher e a Oxfam GB. Email: maja.daruwala@gmail.com

SUSAN WILDING Susan Wilding é gerente de projetos da Iniciativa Espaço Cívico na CIVICUS: Aliança Mundial para a Participação Cidadã. É bacharel em Psicolo gia, possui licenciatura em Ciências Políticas e mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Johanesburgo. Antes de ingressar na CIVICUS, Susan trabalhou na Diretoria de Direitos Humanos do Departamento Sul-Africano de Relações Internacionais e Cooperação (DIRCO), tendo focado seu trabalho em direitos civis e políticos. Susan também representou a DIRCO na Força Tarefa Nacional para os Direitos LGBT, requisitada pelo Departamento de Justiça do país. Email: susan.wilding@civicus.org OOriginal en inglês. Traduzido por Adriana Guimarães. Entrevista realizada em novembro de 2013.

Este artigo é publicado sob a licença de creative commons. Este artigo está disponível online em <www.revistasur.org>. 138 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


ENTREVISTA COM MAJA DARUWALA (CHRI) E SUSAN WILDING (CIVICUS) A POLÍTICA EXTERNA DAS DEMOCRACIAS EMERGENTES: QUAL O LUGAR DOS DIREITOS HUMANOS? UM OLHAR SOBRE A ÍNDIA E A ÁFRICA DO SUL Camila Lissa Asano e Laura Trajber Waisbich (Conectas Direitos Humanos)

O papel dos países do Sul Global na esfera internacional tem sido, até recentemente, frequentemente restrito ao de objeto das políticas externas de países estrangeiros e de recomendações de direitos humanos de organismos multilaterais. Nos últimos anos, no entanto, esses países–notadamente as chamadas “democracias emergentes”–vêm assumindo posições mais avançadas em relação aos assuntos internacionais como um todo. Suas políticas externas–incluindo a dinâmica das decisões políticas, as narrativas e as prioridades políticas–bem como seus compromissos internacionais que afetam os direitos humanos, em vista disso, exigem uma análise mais sistemática. Para discutir o assunto, a Conectas apelou para duas das maiores organizações de direitos humanos do Sul Global, ambas trabalhando ativamente com questões de política externa de seus países, para explorar algumas das dinâmicas da política externa em dois países diferentes: Índia e África do Sul. Para falar sobre a Índia, convidamos Maja Daruwala, diretora da CHRI– Iniciativa para os Direitos Humanos da Commonwealth Human Rights Initiative, uma organização com 26 anos de história, dedicada a garantir a execução prática dos direitos humanos nos países da comunidade de nações britânicas. Com sede em Delhi, a CHRI tem escritórios em Londres e Accra. Os programas da CHRI são focados no monitoramento e defesa dos direitos humanos e no acesso à informação e à justiça. Para falar sobre a África do Sul, convidamos Susan Wilding, gerente de projetos da Iniciativa Espaço Cívico da CIVICUS: a Aliança Mundial para a Participação Cidadã. Com sede em Johanesburgo, a CIVICUS trabalha para fortalecer a ação do cidadão e da sociedade civil em todo o mundo, especialmente em áreas onde a democracia participativa e a liberdade de associação dos cidadãos 19 SUR 139-147 (2013) ■

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ENTREVISTA COM MAJA DARUWALA (CHRI) E SUSAN WILDING (CIVICUS) A POLÍTICA EXTERNA DAS DEMOCRACIAS EMERGENTES: QUAL O LUGAR DOS DIREITOS HUMANOS? UM OLHAR SOBRE A ÍNDIA E A ÁFRICA DO SUL

estejam ameaçadas. A CIVICUS idealiza uma comunidade global de cidadãos ativos, envolvidos e comprometidos com a criação de um mundo mais justo e igualitário. Esta ideia é baseada na crença de que a saúde das sociedades existe proporcionalmente ao grau de equilíbrio entre o Estado, o setor privado e a sociedade civil. Camila Lissa Asano e Laura Trajber Waisbich (Conectas)–No seu país, os direitos humanos são vistos como uma questão de política externa? Qual é o atual discurso do governo em torno dessa relação? Maja Daruwala (CHRI, Índia)–A Índia se vê como parte da história que formulou as normas de direitos humanos na ONU. O governo está muito consciente de que os direitos humanos são um fator que afeta a imagem do país. Mas também sente que os governos ocidentais os utilizam para prejudicar outros países, ainda que eles próprios tenham esqueletos em seus armários. Tal como acontece com todos os países, os direitos humanos não são o fator fundamental para a concepção da política externa e sim uma moeda de negociação e um fator de reputação. Em relação a outros países, a Índia se posiciona caso -a -caso, submetendo as suas posições à realpolitik. Eu não vejo uma política forte ou coerente a partir da qual se possa medir se os direitos humanos são ou não os princípios orientadores para a formulação da política externa. O governo indiano mede seu histórico de direitos humanos aferindo-o à adesão ou à conformidade com as obrigações internacionais e com as nossas próprias normas constitucionais. O discurso do governo é que, em termos de direitos humanos, a Índia se move sempre em direção ao cumprimento das obrigações internacionais e da sua própria constituição. Susan Wilding (CIVICUS, África do Sul)–Desde o primeiro governo democrático em 1994, a política externa sul-africana tem mantido os direitos humanos em seu eixo central. Após as atrocidades da era do apartheid, a Constituição sul-africana foi transformada em lei. A Constituição foi aprovada para “curar as divisões do passado e estabelecer uma sociedade baseada em valores democráticos de justiça social e direitos fundamentais” e “construir uma África do Sul unida e democrática, capaz de ocupar o seu lugar de direito como um Estado soberano dentre as nações” (Constituição, 1996). Para tanto, a proteção dos direitos humanos, tal como consagrada pela Constituição, foi transmitida a todos os componentes da política externa da África do Sul. A política externa da África do Sul moveu-se de um foco em direitos humanos no governo Mandela para um foco pan-africano durante a presidência de Mbeki, cuja visão de um “Renascimento Africano” afetou todas as decisões durante o seu governo. Seu slogan “soluções africanas para problemas africanos” descreve bem como a política externa da África do Sul focava prioritariamente no continente africano e em questões africanas em fóruns internacionais Atualmente, sob a presidência de Jacob Zuma, os direitos humanos 140 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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continuam a ser parte integrante da política externa da África do Sul, embora mudanças sutis tenham ocorrido no sentido de uma política externa voltada para o ganho econômico. No entanto, o Livro Branco da Política Externa da África do Sul, elaborado em 2011, tenta delinear a política externa atual do país e ilustra seu compromisso com os direitos humanos da seguinte maneira: “Na defesa dos nossos interesses nacionais, nossas decisões são alimentadas pelo desejo de uma ordem mundial justa, humana e igualitária, de maior segurança, paz, diálogo e justiça econômica”, que continua a ser a retórica entre os mandantes e diplomatas da África do Sul. C.L. Asano e L.T. Waisbich–Em sua opinião, quais são os principais pontos fortes da política externa atual do seu país e quais posições relacionadas aos direitos humanos devem ser revistas? Por quê? M. Daruwala–A força da Índia está em seu soft power que é evidente, por exemplo, na manutenção e na construção da paz na África, bem como no seu apoio à construção da democracia no Afeganistão. A experiência da Índia na criação de instituições e prestação de consultoria técnica sobre marcos legais é reconhecida e requerida por países que caminham ao encontro da democracia, especialmente os baseados no Sul Global e aqueles que tiveram um passado colonial e muitas vezes ainda não confiam plenamente em interferências externas. A outra faceta da política externa da Índia que eu vejo como um ponto forte é a sua capacidade de manter a flexibilidade na criação de parcerias: o país não se fechou em qualquer coalizão ou agrupamento. Por exemplo, ao mesmo tempo em que mantém laços econômicos e militares estratégicos com os EUA, não deixou sua posição sobre a questão palestina ser ditada por eles, tampouco concordou em seguir a linha americana no Irã. Igualmente, ao mesmo tempo em que procurou fortalecer os laços com parceiros no subcontinente indiano, manteve os laços formados desde os tempos da luta pela independência com os seus parceiros africanos. A Índia também tem, cada vez mais, buscado ir além dos seus aliados tradicionais e vem se associando a países tão distantes como o Brasil, por meio de plataformas como o IBAS e o BRICS, bem como de comissões bilaterais, devido ao interesse mútuo e ao espaço para o diálogo e intercâmbio. Por ser vista como aliada por muitos, a Índia deveria usar essa posição para buscar o compromisso com os direitos humanos ao invés de citar essas parcerias para bloquear o avanço em questões relativas aos direitos humanos. Devido à própria luta da Índia contra os abusos daqueles que estão no poder e sua eventual liberdade e comprometimento com a democracia, a Índia deveria assumir uma posição robusta na implementação dos direitos humanos dentro e fora de suas fronteiras. Mas, muitas vezes, ela cede esse papel potencial de liderança. Sua constante oposição à “interferência externa” e seu “respeito à soberania” lhe permitem resistir à supervisão internacional e a apoiar outros países nessa resistência, bem como na manutenção da neutralidade 19 SUR 139-147 (2013) ■

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em relação a violações de direitos humanos em outros países–invertendo seus altos ideais de política externa. Isso tem que mudar. Acredito que a promoção dos direitos humanos possa trazer muitas vantagens para a Índia como player internacional. S. Wilding–Quando a África do Sul surgiu no palco internacional, em 1994, a comunidade internacional olhou para essa nova e promissora nação como líder na defesa dos valores da democracia, dos direitos humanos, da reconciliação e, acima de tudo, na construção da igualdade através da erradicação da pobreza. A África do Sul tem desempenhado um papel significativo em relação a estas questões em nível local, regional e internacional. O Livro Branco da Política Externa (2011) descreve os pontos fortes da política externa da África do Sul da seguinte maneira: “o maior patrimônio da África do Sul está no poder do seu exemplo. Em um mundo incerto, caracterizado pela competição de valores, a diplomacia do Ubuntu na África do Sul, com foco em nossa humanidade comum, fornece uma visão de mundo inclusiva e construtiva para moldar a ordem mundial em evolução.” Em outras palavras, a força da África do Sul encontra-se em seu passado, em seu poder de superar grandes adversidades e no seu papel na promoção desses valores mundo afora. Embora nossa constituição progressista, que define a política externa, não deixe espaço suficiente para a crítica, a realidade é que ainda há posições de direitos humanos que precisam ser revistas. Não por conta do sistema de valores sul-africano, nem por causa de seus objetivos em política externa, mas porque a África do Sul, muitas vezes, toma decisões erradas baseada em fatores alheios ao seu interesse nacional. A África do Sul tem demonstrado uma tendência a votar contra resoluções tanto do Conselho de Segurança das Nações Unidas quanto do Conselho de Direitos Humanos, o que vai de encontro à essência de seus valores nacionais. Afora o recente exemplo de voto contrário às sanções ao Zimbabue, a África do Sul também votou contra uma resolução sobre a Birmânia que pedia reformas democráticas e condenava abusos aos direitos humanos no país. Mais uma vez, este voto se uniu aos da Rússia e da China contra o Ocidente. O Embaixador da África do Sul explicou que havia preocupação em relação à maneira pela qual a resolução interferiria com o trabalho do enviado do Secretário Geral das Nações Unidas à Birmânia e extrapolava o mandato do Conselho. A reputação da África do Sul como sendo um facho de luz para os direitos humanos e para a democracia foi maculada e continuará a ser manchada por muitos exemplos semelhantes a este, tanto no Conselho de Segurança das Nações Unidas como no Conselho de Direitos Humanos. A África do Sul muitas vezes se esconde atrás do princípio da nãointervenção na soberania das nações, afirmando que os assuntos de uma nação não deveriam estar na agenda do que eles veem como ordem internacional distorcida. Essa crença, embora tenha algum mérito em certos casos, é também o maior obstáculo para o livre fluxo da justiça e democracia no mundo. 142 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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Vinda de uma nação que sofreu um passado impensável e foi libertada em parte por conta do apoio de outras nações, é desanimador assistir a África do Sul negar a outros o apoio que lhe foi tão prontamente fornecido quando necessário. C.L. Asano e L.T. Waisbich–Em sua opinião, a existência de grandes desafios internos de direitos humanos poderia ser vista como um obstáculo para que o seu país assuma uma postura mais ativa em relação aos direitos humanos no exterior? M. Daruwala–Sim, este é um fator significativo. Embora haja, em nível nacional, uma série de medidas para enfrentar questões de direitos humanos, a Índia não gostaria de se encontrar sob o escrutínio internacional e ser pressionada para agir dentro da conformidade. A Índia considera essa uma questão de soberania. Esse mesmo conceito direciona a forma como a Índia vê a situação dos direitos humanos no exterior–como assuntos domésticos em que não deve se envolver para além de um determinado ponto. Outro obstáculo que impede países como a Índia de assumir uma posição proativa internacionalmente é a postura cambiante daqueles que tradicionalmente se consideram os maiores defensores dos direitos humanos, e de sua própria seletividade. Isso dá aos países que se encontram em nãoconformidade a oportunidade de apontar o dedo, o que não ajuda a fazer avançar o cumprimento universal dos direitos humanos. Também há ressentimento pelo fato de que os avanços em relação ao cumprimento dos direitos humanos não estão sendo reconhecidos, tampouco as dificuldades estruturais, os contextos culturais e os graus de desenvolvimento que dificultam o cumprimento dos direitos humanos. No entanto, estas questões são muitas vezes usadas como pretexto para tolerar as más práticas em curso e para a omissão na proteção e promoção dos direitos humanos dentro de suas fronteiras. S. Wilding- Apesar de a África do Sul enfrentar desafios de direitos humanos em casa, estes não a impedem de tomar uma postura ativa no exterior. Isso ocorre porque a África do Sul tem uma das constituições mais progressistas do mundo. Isso, juntamente com uma história de luta e discriminação, dá ao país a oportunidade perfeita para se levantar e criticar os abusos de direitos humanos no exterior. Ainda que a África do Sul sinta que tem o direito de se manifestar abertamente sobre os direitos humanos no exterior, muitas vezes deixa de falar quando deveria. Ela é influenciada por grupos políticos, política de poder e por [previsões de] ganho econômico ao se calar sobre de questões sobre as quais ela deveria falar mais abertamente. Um exemplo de situação em que a África do Sul não conseguiu se manifestar é o caso recente em que votou junto com a China, Rússia, Líbia e Vietnã contra sanções ao governo do Zimbábue, além de um embargo de armas no Conselho de Segurança da ONU. O embaixador da África do Sul na ONU explicou o 19 SUR 139-147 (2013) ■

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voto como uma obrigação de seguir o consenso africano da União Africana (UA) e da Comunidade de Desenvolvimento do Sul Africano (SADC). Perdeu-se a oportunidade para que uma nova nação democrática pudesse falar com poder e convicção contra um vizinho autocrático em sofrimento. C.L. Asano e L.T. Waisbich–Existem canais formais ou informais de participação da sociedade civil na formulação da política externa no seu país? M. Daruwala- A política externa da Índia sempre foi reservada a um pequeno grupo da elite com o povo mantido fora de tais debates. No entanto, nos últimos tempos, essa situação parece estar sofrendo alguma mudança, não apenas devido à sociedade civil exigir que sua voz seja ouvida a respeito de questões específicas de política externa, mas também parece haver uma maior abertura por parte dos tomadores de decisões políticas para discutir assuntos externos. Um proeminente canal de televisão do governo recentemente organizou debates e talk shows com a participação de membros do alto escalão do governo, estudando a trajetória da política externa da Índia. Esse tipo de coisa é muito nova. Claro, existem os mecanismos tradicionais que fazem parte de uma democracia parlamentar. O exemplo mais relevante é a Comissão Parlamentar Permanente para Assuntos Externos. Ela atua através de um grupo de especialistas em compromissos internacionais da Índia e, ao preparar o seu relatório ao governo, busca pareceres de outros especialistas e contribuições da sociedade civil, estudiosos e outras pessoas de fora do governo. Esse mecanismo oferece um canal para que a sociedade civil promova suas observações. Até que ponto essas sugestões influenciam a política final, é discutível, mas a instituição está viva e funcionando. A sociedade civil deve pressionar para que seus pontos de vista sejam considerados, fazendo uso das oportunidades que tais instituições oferecem. Um avanço muito recente é o estabelecimento do Fórum de Cooperação para o Desenvolvimento Indiano por um think tank financiado pelo Ministério das Relações Exteriores – o Sistema de Pesquisa e Informações (RIS, na sigla em inglês) para os países em desenvolvimento. Segundo definição própria, o fórum tem como objetivo estudar as várias facetas das parcerias para o desenvolvimento na conquista dos objetivos de política externa da Índia. E, para isso, realiza seminários mensais e discussões abertas, convidando organizações da sociedade civil e a academia. Este é um passo na direção certa. Dito isso, é necessário que muito mais seja feito a fim de democratizar a formulação da política externa e a formulação da agenda de política externa. As projeções políticas da Índia fora de suas fronteiras estão longe de representar as verdadeiras aspirações do seu povo. S. Wilding – “Um assunto de interesse nacional não pode ser da alçada exclusiva do Estado, mas deve incentivar um ambiente favorável ao diálogo e à comunicação entre todas as partes interessadas para examinar as políticas e estratégias e sua aplicação em favor dos interesses do povo.” (Livro Branco de 2011). 144 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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O presidente Zuma, em duas ocasiões recentes, ao falar com o Departamento de Relações Internacionais e Cooperação (DIRCO), destacou a importância do diálogo com a sociedade civil e clamou por um engajamento mais forte. Por muitos anos, houve desconfiança entre a sociedade civil e o governo, sem que um entendesse as razões do outro, mas essa situação parece estar mudando. Um exemplo de engajamento da sociedade civil com a DIRCO foi a elaboração do Livro Branco da Política Externa. A sociedade civil foi convidada a participar da formulação do documento em discussões que duraram dias. Outro exemplo é a Revisão Periódica Universal, durante a qual consultas à sociedade civil foram realizadas para refletir sobre o estado da situação dos direitos humanos na África do Sul. Finalmente, um terceiro exemplo são as consultas sobre a resolução LGBTI no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 2011. Formalmente, a sociedade civil pode usar o Parlamento Sul-Africano para apresentar queixas, fazer perguntas e influenciar a política externa, indo aos representantes de seus partidos no Parlamento. De maneira informal, é permitido à sociedade civil solicitar reuniões com funcionários da DIRCO sobre questões específicas da política externa. Este diálogo informal é então traduzido em propostas formais que descrevem os principais pontos discutidos na reunião e são retransmitidas aos líderes da DIRCO. C.L. Asano e L.T. Waisbich–Como você vê o cenário da sociedade civil no que diz respeito ao trabalho ligado aos direitos humanos e à política externa? Quais são as principais questões em que você e seus parceiros estão focando atualmente? M. Daruwala–Internamente, o cenário geral nunca avança positiva e constantemente. Ele está em movimento. A sociedade civil tem espaço para discordar de ou se alinhar às posições do governo. Há áreas em que há uma grande quantidade de consultas e em que as iniciativas da sociedade civil são bem-vindas e tornam-se parte da agenda governamental. Em outras áreas, há uma relutância em se envolver ou incluir a sociedade civil. Além de fornecer conhecimentos especializados por meio de estudiosos e grupos de reflexão–a maioria deles centrada na questão da segurança–houve pouca participação da sociedade civil nas questões de política externa. Há um desconforto em relação a essas intervenções por parte do governo. Organizações da sociedade civil que desejam contribuir com as agendas de política externa precisam desenvolver uma experiência mais relevante antes de conquistarem um lugar respeitado nesta mesa. S. Wilding–A sociedade civil na África do Sul encontra-se em um estado de dormência. Durante a era do apartheid, a África do Sul teve um movimento civil forte, bem apoiado, com bons recursos e com uma causa comum. Hoje, a sociedade civil está fragmentada e a ela faltam recursos e apoio amplo. Partindo de uma causa comum, a sociedade civil se dividiu em causas 19 SUR 139-147 (2013) ■

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particulares conforme a democracia se instalava. As causas abarcam todo o amplo espectro de questões de direitos humanos e já resultaram no surgimento de organizações menores que não compartilham necessariamente de uma mesma causa com seus antigos parceiros. Hoje, sem uma causa comum, há um vácuo onde uma sociedade civil forte um dia esteve, permitindo que este seja preenchido por um governo livre de controles. Algumas das questões mais importantes abordadas pela sociedade civil sul-africana são os direitos econômicos, sociais e culturais (direito à habitação, à água, à educação etc.) e os direitos civis e políticos (direitos das mulheres, direitos LGBT e direitos da criança). Com as eleições nacionais em 2014, a sociedade civil vem focando na falha da prestação de serviços à população. Nos meses anteriores às eleições, a maioria da sociedade civil tem uma causa comum–a responsabilização do governo pelas promessas feitas e pelas promessas que não foram cumpridas. C.L. Asano e L.T. Waisbich–Como o fato de o país se ver ou ser visto pelos outros como uma potência emergente afetou a sua maneira de trabalhar com a política externa? M. Daruwala–Há tempos a sociedade civil vem se envolvendo com agências internacionais para o estabelecimento de normas e o monitoramento do cumprimento delas pelos países, produzindo relatórios paralelos e levando problemas ao conhecimento da comunidade internacional ao influenciar as Comissões Nacionais de Direitos Humanos etc. Nesse sentido, os processos das organizações da sociedade civil e do governo têm sido paralelos, mas também interligados nos momentos em que documentos de posição e outros têm que ser produzidos. Ocorrem contribuições. Dentro da recente percepção de ser uma “potência emergente”, há uma maior consciência por parte do governo do constrangimento que pode ser gerado ao ser visto negativamente, bem como uma atitude defensiva em relação a isso. Ao mesmo tempo, há mais espaço para que a sociedade civil se envolva e contribua com o governo. A percepção de que a Índia é uma potência emergente também tem incentivado a sociedade civil fora do país a buscar alianças e colaborar com a sociedade civil local de maneira mais deliberada que anteriormente. Mas esta é uma área muito incipiente e todos ainda estão se ambientando. S. Wilding–A África do Sul por muito tempo enxerga-se como uma “potência emergente” na África e, como tal, ocupou o papel de liderança no continente, muitas vezes fazendo o papel de mediador de conflitos ou apresentando questões africanas em fóruns internacionais. A África do Sul também assumiu um papel de liderança em diversas arenas multilaterais, como na Comunidade para o Desenvolvimento Sul Africano (SADC), na União Africana (AU), no Movimento dos Não-Alinhados (NAM), no G77 + China, na Comunidade de Países Britânicos, e na ONU. A África do Sul exibiu liderança na promoção das causas das nações em desenvolvimento 146 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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e da África em particular. Como membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) 2007-2008 e para o período 20012012, a África do Sul promoveu a paz e a segurança com ênfase na África e melhorando a cooperação entre o Conselho de Segurança e organizações regionais como o Conselho para Paz e Segurança da UA. Embora a África do Sul se alinhe fortemente ao continente africano, também promove a cooperação Sul-Sul como um dos mais importantes princípios da sua política externa. Como uma “potência emergente”, a África do Sul tem um papel forte, mas humilde em plataformas como o IBAS e o BRICS. Esses novos agrupamentos servem para promover a cooperação Sul-Sul e sem dúvida influenciaram a política externa da África do Sul, uma vez que esta optou por construir um consenso com essas nações ao mesmo tempo em que passou a defender questões em campos em que anteriormente não atuava. Durante a apresentação da sua previsão orçamentária, em março de 2010, a Ministra das Relações Internacionais e Cooperação, Maite NkoanaMashabane, enfatizou que a política externa da África do Sul deve ser “avaliada em contraposição ao peso do aumento das expectativas”. Essas são as expectativas da África do Sul como potência emergente, capaz de desempenhar um papel de sucesso na estabilização dos polos de poder evidentes na atual ordem mundial, enquanto luta por um mundo mais justo e equitativo, em nome das nações do Sul.

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DAVID KINLEY David Kinley ocupa a cátedra de Direitos Humanos na Universidade de Sydney. Além disso, é membro do Painel Acadêmico da Doughty Street Chambers em Londres, membro do Australian Council for Human Rights, e um dos fundadores da organização Australian Lawyers for Human Rights. Atualmente, leciona no programa de verão sobre Direito Internacional dos Direitos Humanos das Universidades de Oxford/George Washington, e já lecionou na Universidade de Cambridge, ANU, University of New South Wales, Washington College of Law, American University, e Paris 1 (La Sorbonne). Ele também escreveu e editou oito livros e mais de 80 artigos, capítulos, relatórios e ensaios. E-mail: david.kinley@sydney.edu.au

RESUMO A questão de qual a melhor maneira de alcançar e conciliar as duas metas desejáveis e complementares da boa governança e da prosperidade econômica são há muito tempo objeto do pensamento filosófico. Na era moderna (pós-guerra), um ingrediente novo e importante foi adicionado à relação entre bem-estar econômico e sociopolítico – a saber, o direito internacional, e em especial o direito internacional de direitos humanos. Este artigo trata especificamente dos diferentes papéis que os chamados direitos e liberdades fundamentais supostamente desempenham no sentido de forjar, manter e desfazer a relação entre o bem-estar econômico e o social e analisa quais são hoje e quais serão no futuro os efeitos destes direitos e liberdades nas economias políticas do Ocidente e da China. Embora este artigo apresente algumas conclusões sobre a importância da agência dos direitos humanos, sugere-se aqui que talvez ainda seja – como supostamente Chu Enlai acreditava ser o caso das lições aprendidas da Revolução Francesa – muito cedo para dizer. Original em inglês. Traduzido por Thiago Amparo. Recebido em maio de 2013. Aprovado em outubro de 2013. PALAVRAS-CHAVE China – Direito internacional – Direitos humanos – Desenvolvimento – Crescimento econômico – Boa governança – Liberdades políticas Este artigo é publicado sob a licença de creative commons. Este artigo está disponível online em <www.revistasur.org>. 148 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


ENCONTRANDO A LIBERDADE NA CHINA: DIREITOS HUMANOS NA ECONOMIA POLÍTICA* David Kinley**

1 Introdução Em fevereiro de 2012, um artigo extraordinário foi publicado no New York Times assinado por Eric Li, autointitulado “capitalista de risco” de Shanghai. Com o título provocador “Por Que o Modelo Político da China é Superior”, Li faz algumas afirmações ousadas. Em primeiro lugar, o autor afirma que “o Ocidente moderno vê democracia e direitos humanos como o ápice do desenvolvimento humano. É uma crença baseada numa fé absoluta” (LI, 2012). Em seguida, depois de expor o que ele afirma ser a alternativa proposta pelo governo chinês de que direitos humanos e democracia são instrumentos negociáveis ou privilégios concedidos somente de acordo com as necessidades (especialmente econômicas) de um país em um dado momento, Li acrescenta: “O Ocidente parece ser incapaz de se tornar menos democrático, mesmo quando a sua sobrevivência dependa de tal mudança [em direção ao modelo chinês]. Neste sentido, a América hoje é semelhante à antiga União Soviética, que também via o seu sistema como fim último” (LI, 2012). E, de fato, ainda hoje - mais de cinco anos após o início da atual crise financeira global (CFG) - muitas economias ocidentais têm enfrentado dificuldades, algumas delas graves. A queda na economia após a crise de crédito em 2007/8 gerou graves efeitos sociais e políticos, inclusive uma redução considerável no gozo de parâmetros básicos de direitos humanos para muitos. Medidas de austeridade altamente regressivas prejudicam os mais pobres (e mesmo os não tão pobres) mais do que os ricos, precisamente porque estas medidas afetam programas de assistência social e serviços públicos dos quais aqueles economicamente desfavorecidos mais necessitam. Desemprego em massa, especialmente entre jovens, tem gerado efeitos sociais, políticos e econômicos nocivos a longo prazo. Além disso, tanto a ideia, quanto a convivência real com a disparidade de riqueza resultante de resgates públicos de bancos privados, benefícios fiscais e elisão *Este artigo se baseia em um estudo apresentado durante o 9th China International Law Forum: “Developing International Law and Global Governance”, promovido pelo Institute of International Law, Chinese Academy of Social Sciences (CASS), Pequim, 17-18 de novembro de 2012. **Gostaria de agradecer aos editores da Sur e ao parecerista anônimo por seus comentários perspicazes e úteis a uma versão anterior deste artigo.

Ver as notas deste texto a partir da página 160. 19 SUR 149-161 (2013) ■

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fiscal, criam, para muitos, um sentimento generalizado de injustiça econômica. Por conseguinte, a filosofia econômica dominante está sendo hoje questionada e desafiada. É suficiente a promessa oferecida pelo livre mercado de benefícios econômicos de percolação de cima para baixo para todos? Ou, de forma ainda mais fundamental, esta promessa é sustentável? A própria ferida na qual Li tocou tem rendido debates profundos não somente sobre os riscos ao governo democrático representados pela má gestão econômica, mas também a respeito da questão de se “governança democrática pode, em algumas situações modernas, ser inimiga de uma administração econômica competente”.1

2 História e ascensão do direito internacional no pós-guerra Estas questões não são novas. Por muito tempo, como melhor alcançar e conciliar as duas metas complementares de boa governança e prosperidade econômica têm ocupado o pensamento filosófico – na Grécia Antiga, e até mesmo antes disso na China Antiga durante a Dinastia Zhou. O Iluminismo europeu dos séculos 17 e 18 precedeu, antecipou e depois participou da Revolução Industrial do século 19, trazendo resultados bons e ruins, mas que em geral representaram um avanço no sentido de melhorar a situação da população humana no que diz respeito a objetivos sociais (mobilidade) e práticas políticas (expansão democrática), bem como elevaram a riqueza econômica agregada. Na era moderna (pós-guerra), à relação entre bem-estar econômico e sociopolítico adicionou-se um elemento importante, a saber: o direito internacional. Muitas formas de direito internacional desempenham algum papel: • O direito relativo ao comércio internacional tem acompanhado e promovido a globalização, o que tem tido impacto dentro e entre os Estados, muito além das meras relações de comércio; • A intersecção entre regimes de direito internacional público e privado no campo do comércio transnacional tem influenciado de maneira direta legislações domésticas relativas a investimento, prática corporativa e métodos de resolução de disputas; • Instituições multilaterais e regionais de desenvolvimento têm afetado de maneira profunda e radical a forma pela qual muitos países pobres administram seus próprios Estados; e; • Cada vez mais, o direito internacional ambiental tem influenciado políticas governamentais no âmbito nacional.

3 Direitos humanos e a economia Não obstante, entre todas as subáreas do direito internacional público, o direito internacional de direitos humanos é aquele de maior interesse para a relação entre bens econômicos e políticos. Este artigo trata especialmente dos papéis diferentes que os direitos e liberdades supostamente desempenham no sentido de moldar, sustentar ou romper tal relação, e analisa, portanto, quais são suas consequências para as economias políticas do Ocidente e da China. 150 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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Muito embora receba apenas a “Medalha de Bronze” (perdendo para a paz, e a segurança, e a civilidade internacional), a proteção de direitos humanos foi incluída na lista de objetivos fundamentais das Nações Unidas em sua Carta de 1945. A proteção dos direitos humanos possui como objetivo declarado “alcançar uma cooperação internacional capaz de resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário” (UNITED NATIONS, 1945, art. 1, para. 3). Essa declaração ousada marcou o início da era moderna ao promover uma análise e debate intenso e diverso sobre as razões, formas e consequências de se conciliar governança econômica, de um lado, e direitos humanos, de outro, afim de promover os objetivos propostos por ambos. Nos anos que se seguiram imediatamente à guerra, e após o advento da moderna “Era de Direitos Humanos” (HENKIN, 1990), com a adoção da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) em 1948 e após o fluxo constante de instrumentos internacionais de direitos humanos, o elo entre bens sociais e econômicos foi dominado por conceitos de Grande Governo.

4 Grandes Governos – Ocidente e Oriente Assim começou, no ambiente austero mas inspirador da Europa pós-guerra (e do Ocidente em geral), o projeto ambicioso de construção de um Estado de bem-estar universal, projeto visto como vital para consolidar a paz e a segurança econômica no pós-guerra, precisamente por incorporar os direitos humanos (e em especial, direitos econômicos e sociais), os quais anteriormente somente existiam como oportunidades potenciais. Ao mesmo tempo em que isto ocorria no Ocidente Capitalista, um outro Grande Governo de um tipo muito diferente estava sendo implementado no Leste Comunista. Os preceitos leninistas adotados pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e pela China foram sendo configurados como conceitos totalitários por Stálin e Mao. Aqui também a filosofia política do Estado alega estar preocupada com o bem-estar e a segurança da população, ainda que de forma a abarcar o controle pelo Estado de todos os aspectos da vida social, não apenas da gestão econômica. Do ponto de vista político e econômico, o Ocidente e o Oriente estavam divididos, o que se intensificou nas décadas seguintes. Esta separação continuou no âmbito dos direitos humanos, como exemplificado pela bifurcação dos direitos assegurados pela Declaração Universal de Direitos Humanos em dois Pactos distintos em 1966. O Ocidente – refletindo sua maior preocupação com “liberdade” – procurou promover prioritariamente direitos civis e políticos, os quais, para ele, ao serem garantidos por meio de uma governança boa/democrática resultariam em benefícios econômicos e sociais (reconhecidos ou não como direitos per se). A China, e em especial a Rússia, de outro lado, estavam mais preocupadas com “igualdade”, enfatizando a necessidade de se concentrar esforços acima de tudo para assegurar direitos econômicos, sociais e culturais. Em outras palavras, enquanto o Ocidente considerou as liberdades políticas de indivíduos como os principais meios de se garantir maior riqueza e segurança sociais, os Estados da Foice e do Martelo consideraram a equidade econômica planificada e imposta pelo Estado a forma de assegurar satisfação e segurança individuais. 19 SUR 149-161 (2013) ■

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No entanto, os tempos mudam, e até mesmo os melhores planos perecem ou morrem. De fato, embora em várias ocasiões cada lado (o lado democrático/capitalista e o lado comunista/de economia planificada) tenha reafirmado sua mútua hostilidade e independência, os caminho e a trajetória percorridos por cada um deles foram amplamente influenciados um pelo outro. E assim é até hoje.

5 Novos tempos e novas filosofias – O Ocidente No Ocidente, motivados pela visão de Hayek sobre como a liberdade é obtida e mantida, protegendo-a de tendências totalitárias dos Estados, como a União Soviética, impostas aos países do Leste Europeu (VON HAYEK, 1944), defensores de sistemas econômicos e financeiros mais livres ganharam mais espaço nas décadas de 60 e 70. Milton Friedman em Capitalismo e Liberdade (1962) sustentou que não somente esses mercados livres operam de forma mais eficiente do ponto de vista econômico, mas também geram o ambiente mais propício para a promoção de liberdades políticas de toda a sociedade (FRIEDMAN, 2002). Em outras palavras, embora não tenha usado estas palavras, Friedman e seus seguidores viam o livre mercado como um garantidor das liberdades individuais consagradas nos tratados internacionais de direitos humanos. Pouco a pouco, no campo de batalha da filosofia econômica, os defensores do livre mercado prevaleceram, e, já na década de 1970, os mecanismos de controles financeiros e fiscais Keynesianos foram substituídos por uma nova visão de um sistema internacional de comércio liberalizado que, alegou-se, viria a beneficiar a todos nós, por combater o flagelo da pobreza dos povos e nações, e elevar as possibilidades de maior liberdade individual (HELLEINER, 1994). No entanto, ao colocar em prática esta visão, os arquitetos do projeto adotaram uma visão econômica tecnocrática fundada em modelos teóricos e conjuntos de princípios desprendidos de qualquer contexto social, e que não buscavam compreender, nem mesmo prever, de que forma mudanças no sistema financeiro e econômicos ocorreriam na prática em diferentes sociedades e estruturas sociais. Preocupações com relação aos direitos humanos, como todos os fatos ditos “sociais”, eram vistas como externalidades nos cálculos de determinado direcionamento econômico. Infelizmente, o aspecto da economia mais propenso a tal padrão irrealista é também um de seus elementos mais importantes e menos compreendidos. A transformação do setor financeiro ao longo dos últimos 20 anos na força econômica dominante no planeta hoje tem sido de fato um fenômeno notável.2 No entanto, financistas - como muitos outros profissionais – circulam em grande medida somente entre os limites bem definidos de sua própria profissão e pouco se preocupam sobre de que forma fluxos financeiros podem criar ou agravar tensões sociais. Quando financistas se aventuram neste tipo de análise, eles o fazem a partir da perspectiva de um país ou risco de crédito específico – e, portanto, não do ponto de vista da coesão e estabilidade sociais, e menos ainda com base em noções de liberdades civis e políticas. Um sistema financeiro impulsionado por fórmulas matemáticas com enorme alvancagem (o mercado global de derivados por si só vale muitas vezes o Produto Interno Bruto mundial - PIB3), tem influenciado diretamente o aprofundamento agudo da desigualdade de riqueza na humanidade (LIN & TOASKOVIC-DEVEY, 152 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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2011; DOWD & HUTCHINSON, 2010). A última década da globalização testemunhou

um enorme crescimento da desigualdade de renda dentro e entre as nações, pois enquanto o sistema financeiro cria enormes ganhos para os iniciados, não fornece garantias para as massas de pessoas de fora que são geralmente as mais afetadas pela sua instabilidade periódica.4 Na verdade, tais níveis de abstração são terreno fértil para a aplicação da lei das consequências involuntárias, já que as realidades sociais, tais como os padrões imprevisíveis de comportamento de risco, grosseiramente invadem sofisticados modelos econômicos. Bolhas do livre mercado frequentemente se expandem e estouram, com efeitos nocivos – e por vezes desastrosos – para os Estados e seus povos. E, às vezes, no cenário pós-bolha – como é o caso da atual – os próprios fundamentos da filosofia econômica predominante são questionados na forma indicada no início deste ensaio.

6 Novos tempos e novas filosofias – O Oriente Os anos 1970 e 80 trouxeram mudanças e desafios para a USSR, e para a China também. A URSS estava lutando para manter o seu ritmo político e econômico, uma vez que, juntamente com os seus Estados-satélites da Europa Oriental, se viu mais e mais atrasada em relação ao Ocidente no que diz respeito a geração de riqueza, levando eventualmente à adoção de medidas temporárias como a Perestroika e a Glasnost e ao colapso final do Império Soviético em 1989. A China, que estava se recuperando dos impactos monumentais de fome e da Revolução Cultural abandonada, caminhou a passos firmes para uma crise política que atingiu o seu auge na Praça Tiananmen em junho de 1989, após a qual as medidas de liberalização econômica adotadas durante os anos 1970 e 1980 foram consolidadas e aceleradas sob a liderança de Deng Xiaoping no início dos anos 1990.

7 China As mudanças extraordinárias que a China tem sofrido desde aquela época, embora talvez mais dramaticamente na esfera econômica, também são profundas em termos políticos, de relações sociais, e de fato no que diz respeito a direitos humanos. Fundamentais para essas transformações têm sido o grau de interdependência entre todas essas esferas. Em todo o mundo, as esperanças e aspirações de povos e indivíduos quanto às suas liberdades e oportunidades econômicas e políticas estão intimamente ligadas ao desempenho dos sistemas econômicos e políticos. Portanto, em tempos de crescimento e abundância, as esperanças e expectativas de ganhos ou avanços quanto a tais liberdades são altas, ao passo que são reduzidas quando economias recuam e sistemas de governança são desafiados. E assim o é no caso da China.

7.1 Considerações sociais, políticas e econômicas Assim, por exemplo, a ocorrência e o tamanho de protestos estão aparentemente aumentando, assim como sua cobertura pela mídia, enquanto o desempenho econômico encontra-se aquém de sua taxa de crescimento anual médio de 8-14% 19 SUR 149-161 (2013) ■

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dos últimos 12 anos. Essa perturbação coletiva é preocupante tanto para o governo da China, quanto para seus cidadãos. Um editorial recente no Caixin, o principal jornal de negócios da China, advertiu que, “se continuarmos a ansiar por ‘milagres’ econômicos, devemos estar dispostos a pagar um alto preço no futuro”. O que é particularmente interessante sobre essa ressalva é o conjunto de indicadores que a revista escolhe para ilustrar o “alto preço” a ser pago, a saber: o crescimento vai diminuir; a discriminação vai se tornar sistemática, o rent-seeking e a corrupção sofrerão alta desenfreada; nossa sociedade e nosso meio ambiente serão levados ao seu limite; e o desenvolvimento não poderá ser sustentado. Os protestos em massa, as rebeliões e as catástrofes ambientais que temos visto são apenas algumas das consequências deste modelo de crescimento (BRANIGAN, 2012)

Aparentemente, as mesmas preocupações ocuparam as mentes dos delegados do recente 18 º Congresso do Partido Comunista chinês.5 As possibilidades ou perspectivas das consequências políticas das forças econômicas ou financeiras dentro da China também são um assunto acompanhado com grande e constante interesse pelo resto do mundo, tanto por razões econômicas, quanto geopolíticas. Do ponto de vista financeiro, qual o grau do “arrocho da classe média” na China e quais suas esperanças e expectativas políticas? Quais serão os impactos sociais do redirecionamento da economia chinesa de um viés de exportação para um foco no consumo interno, bem como sua transformação de um modelo industrial manufatureiro para uma economia de serviços? E quanto tempo vão levar essas transições? Quão suscetível é a economia local para uma mudança política significativa ou distúrbio social, e como isso, por sua vez, afetaria a economia global?

7.2 Boa governança e crescimento econômico6 Evidentemente, há muitos fatores em jogo nesta matéria – até demais para serem debatidos de maneira adequada em um artigo deste tamanho - mas um deles parece ser especialmente importante para as pessoas externas à China, referente às relações entre boa governança (aberta, justa e segura, além de eficiente) e crescimento econômico sustentável e distribuição de renda. Este é um terreno difícil de delimitar, mas alguns pesquisadores - como Kaufmann, Kraay e Mastruzzi do Instituto do Banco Mundial - têm tentado fazê-lo por quase uma década por meio de seis assim chamados “indicadores de governança”, aplicados a mais de 150 países (WORLD BANK, 2012a). Levando em consideração dados referentes ao progresso de cada país em relação aos demais ao longo de 10 anos desde 2002, os resultados da China são bastante estáveis, com apenas algumas pequenas flutuações em todos os indicadores durante o período analisado. Em apenas um desses indicadores a China figura no 50a percentil mais elevado (“eficácia governamental”), e em relação ao item “participação e prestação de contas”, a China figura no 10a percentil mais baixo. Para todos os outros indicadores (“estabilidade política”, “qualidade regulatória”, “Estado de Direito”, e “controle de corrupção”), a China ocupa posição intermediária, entre o 25a e 50a percentis (WORLD 154 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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BANK, 2012b). Com base nesses dados, o crescimento do Rendimento Nacional Bruto

(RNB) do país no mesmo período (de cerca de US$ 1.000 em 2002 para cerca de US$ 5.000 em 2011) parece ter tido pouco impacto sobre a governança assim medida (WORLD BANK, 2013a; WORLD BANK, 2013b). Dito isso, um espectro ronda a China: o espectro do aumento da desigualdade de renda, que tem por uma década ameaçado desestabilizar a relação entre governança e distribuição da riqueza. Pelo 11º ano consecutivo, o Instituto Nacional de Estatística da China vem coletando dados e calculando o Coeficiente de Gini do país, mas se recusa a publicá-lo, alegando insuficiência de dados. De maneira pouco surpreendente, muitos vêem isso como uma aceitação tácita de que a desigualdade no país é considerável, e que, de forma significativa, tem piorado, e não melhorado. Essa suspeita parece ser confirmada pelo Instituto Internacional para o Desenvolvimento Urbano em Pequim, o qual, por meio de dados disponíveis, estima que o índice subiu (ou seja, mais desigualdade) de 0,425 em 2005 para 0,438 em 2010 (XUYAN & YU, 2012; CHINA REALTIME REPORT, 2012). Acontece que, de fato, essas estimativas foram um pouco subestimadas. Para janeiro de 2013, o Instituto Nacional de Estatísticas da China mudou sua posição e publicou todos os seus dados de desigualdade nos últimos 12 anos, revelando que o Coeficiente de Gini na China em 2012 foi de 0,474, menor do que a alta de 0,491 verificada em 2008 (ECONOMIST, 2013, p. 28).

7.3 Uma perspectiva de direitos humanos Certamente, as percepções de dentro e de fora do país são de que a própria velocidade e tamanho do crescimento econômico da China trouxeram tanto ganhos sociais (inclusive em direitos humanos) e econômicos, quanto perdas. Alguns benefícios têm se disseminado amplamente, e outros sofreram retrocessos profundos.7 Em menos de uma década, por exemplo, a China ampliou seu seguro de saúde para conseguir cobrir 95% da população; aboliu as taxas escolares nas zonas rurais; propiciou a agricultores acesso a um regime previdenciário estatal (reconhecidamente mínimo); e articulou um enorme programa habitacional para pessoas de baixa renda, atualmente implementado em todas as grandes cidades (ECONOMIST, 2012, p. 19). O mais impressionante de tudo é que cerca de 250 milhões de pessoas saíram da pobreza extrema (considerada uma renda inferior a US$ 1,25 por dia) desde 2000. No entanto, alguns problemas continuam, dado que cerca de 150 milhões de pessoas (12% do total da população) ainda definha abaixo da linha de pobreza extrema, enquanto, ao mesmo tempo e reconhecendo o ponto exposto acima sobre desigualdade, a China tem agora mais de 100 bilionários (em dólares americanos), sendo que em 2002 não havia ninguém nesta categoria (FORBES, 2012).

7.4 Liberdades políticas O gasto do governo chinês com segurança interna indica que a possibilidade de que graves desigualdades levem comunidades a exigir firmemente mais liberdades econômicas e políticas é levada muito a sério. O governo chinês gasta mais em segurança interna (ou “pública”) do que em segurança nacional (US$ 111bilhões e US$ 19 SUR 149-161 (2013) ■

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106bilhões, respectivamente, em 2012) (REUTERS, 2012). O número e a ousadia dos protestos de rua são cada vez maiores, assim como o número de críticas de nepotismo e incompetência reveladas em mídias sociais. Essas mídias, particularmente, não são apenas uma via cada vez mais importante de expressão pública (o Weibo possui hoje mais de 300 milhões de contas, com 30 milhões de usuários diários), mas esse tipo de micro-blogging que a revista Economist recentemente qualificou como “a melhor coisa depois de uma imprensa livre” (ECONOMIST, 2012), também propicia à liderança chinesa um barômetro capaz de medir os ânimos coletivos a respeito de um amplo leque de questões sociais, econômicas e políticas. A prontidão com a qual a liderança na China reage a estes sinais pôde ser vista em agosto de 2012, quando a China divulgou em páginas oficiais na internet um relatório confidencial (anteriormente vazado), preparado pela alta liderança no país, que alertava sobre as crises iminentes em várias frentes, as quais, se não devidamente tratadas, poderiam desencadear “uma reação em cadeia que resultaria em agitação social ou numa revolução violenta”.8

8 Direitos humanos como referencial O elo entre o futuro dos direitos humanos e a gestão da economia política – seja na China, seja no Ocidente – é de tal magnitude que nenhuma grande teoria pode explicar de maneira adequada suas interligações e, ao mesmo tempo, revelar de que forma estes elementos poderiam ser reconciliados de forma satisfatória. Nem a extrema economia de mercado livre, com pouca ou nenhuma interferência do Estado, nem o oposto, representado pelo totalitarismo de Estado, resultam em liberdades sociais e políticas amplas e sustentáveis. Oscilar entre os dois extremos, contrapondo um ao outro, é igualmente nocivo e perigoso. Portanto, enquanto muitos desprezaram os desatinos e as desigualdades da Alemanha de Hitler e da Rússia de Stalin, ao defender a promoção das liberdades políticas e econômicas individuais Karl Popper teve justamente o cuidado de advertir contra o uso deste pretexto para justificar a remoção de todas as salvaguardas do Estado, a fim de permitir que o autoritarismo econômico privado tome lugar daquele promovido pelo Estado.9 Entre estes dois extremos, a China ocupa um espaço peculiar, revestido de admiração e dotado de certa notoriedade. Friedman, no prefácio à edição do quadragésimo aniversário da publicação de Capitalismo e Liberdade (em 2002), admitiu que a poderosa, liberalizada economia da China (ou mais especificamente de Hong Kong) não conduziu a uma maior liberdade política, como sua tese sugeriria.10 No entanto, refletindo sobre os argumentos apresentados anteriormente neste artigo, pode-se de maneira prudente acrescentar que talvez ainda seja muito cedo para tecer conclusões a respeito. Outro economista-filósofo, Amartya Sen traz uma perspectiva alternativa sobre essa relação em seu livro Desenvolvimento como Liberdade (1999). O objetivo de Sen consiste em apoiar a causa de pobres e marginalizados do ponto de vista socioeconômico, e o meio para tanto, segundo ele, seria reconfigurar visões ortodoxas (ou seja, puramente econômicas) de “desenvolvimento”, a fim de que tanto suas metas quanto seus métodos conciliem liberdades sociais e políticas com capacidade econômica.11 Para Sen, é fundamental analisar os processos causais que levam a 156 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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qualquer condição econômica (SEN, 1999, p. 150), uma vez que, seja ela riqueza ou pobreza ou algo entre estes dois extremos, a natureza e o grau de liberdades políticas estarão em seu âmago. Longe de serem opostas, liberdades políticas de um lado, e prosperidade econômica de outro caminham, necessariamente, lado a lado. Uma posição de segurança econômica ou até mesmo de abundância, mas sem a devida atenção à liberdade civil e política não constitui, para Sen, desenvolvimento, mas sim uma versão deformada ou aberrante deste. Desta forma, pode-se concluir que uma resposta enfática ao Sr. Li (nosso capitalista de risco de Shanghai) seria dizer que, quaisquer que sejam os problemas trazidos pela cega veneração do Ocidente à democracia e aos direitos humanos, a situação não pode ser reparada pela simples substituição deles pela economia, colocada em outro pedestal para que seja adorada em seu lugar Nem o Ocidente, nem a China, de fato, veneram um único altar. Muitos leitores do artigo publicado no New York Times ririam diante da afirmação de que os EUA e o Ocidente possuem uma “fé absoluta” em direitos humanos, uma vez que parece óbvio que o poder da economia possui grande influência na mentalidade dos governos ocidentais. Da mesma forma, é claro que a China não vê o mundo apenas pela lente econômica. A China participa e contribui cada vez mais para o desenvolvimento do direito internacional, em geral, e do direito internacional de direitos humanos, em particular, tendo ratificado todos os principais instrumentos de direitos humanos da ONU com exceção de um – o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) (HUMAN RIGHTS COMMITTEE, 1994). E talvez seja justamente no que diz respeito aos direitos previstos no PIDCP que a China enfrente seus maiores desafios em direito internacional e governança interna. Portanto, o fato de a China tê-lo assinado, embora não o tenha ratificado,, revela sua intenção sincera de não desacreditá-lo, embora ainda devamos esperar para ver o que a China, quando finalmente ratificá-lo (o que certamente acontecerá), fará para contribuir para a transição suave do país para um sistema de governo democrático atrelado a uma economia de mercado próspera. A partir desta leitura, os direitos humanos podem ser vistos como elementos essenciais dos processos e dos objetivos do desenvolvimento. Sua expressão, promoção, proteção e execução nas formas jurídicas e não-jurídicas são fundamentais. Do ponto de vista prático, isso exige implementação significativa no âmbito doméstico, por meio de regras jurídicas e políticas públicas que resultem na aceitação desses direitos e/ou aderência a eles. Portanto, pode-se dizer que a legislação internacional de direitos humanos desempenha um papel importante na promoção do cumprimento dessas as normas, mas apenas quando elas refletem a realidade dos Estados. Não obstante, “liberdade”, para muitas pessoas, em muitos Estados, não reflete o desenvolvimento na prática da maneira imaginada por Sen. Hoje, esses Estados incluem a China, onde as liberdades políticas são restritas, embora essa restrição conviva com uma maior prosperidade e distribuição de renda. Por outro lado, em países como a Grécia, a Irlanda, a Espanha e os EUA, direitos econômicos e sociais são negados aos mais pobres e marginalizados, mesmo quando, em teoria, liberdades políticas estão disponíveis para eles. Tudo isso aponta para uma verdade desconfortável. Conforme defendido por Sen em seu mais recente trabalho, há “limites” para a utilidade da legislação 19 SUR 149-161 (2013) ■

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de direitos humanos (SEN, 2006). O corpo jurídico dos direitos humanos, especialmente quando nos apoiamos demais neles, pode colocar em segundo plano ou distorcer os outros elementos necessários para o verdadeiro desenvolvimento – a filosofia política, os costumes sociais e culturais e a capacidade econômica.

9 Uma lição final Para mim, este argumento é melhor ilustrado pela atual, mas equivocada, promoção do conceito de um “direito ao desenvolvimento”, conforme a Declaração da ONU sobre Direito ao Desenvolvimento adotada em 1986. O direito ao desenvolvimento, conforme descrito na declaração, não é apenas juridicamente capenga (por ser incerto, circular e contraditório), mas também, o que é mais importante,, estrategicamente ingênuo e politicamente contraproducente. Quase ninguém, além de um círculo engajado de defensores deste conceito, concorda com seus termos. Estados ricos rejeitam qualquer dever legal de fornecer ajuda ao desenvolvimento; Estados em desenvolvimento gostariam de ver tal dever imposto aos Estados ricos, mas se recusam a ter esse dever imposto a eles; e os indivíduos e comunidades que têm a ganhar com o desenvolvimento podem gostar da ideia de um indivíduo (ou grupo) capaz de reivindicar um direito a tanto, mas desconfiam da sinceridade e compromisso de qualquer Estado ou organização internacional que dizem aceitar a responsabilidade de honrar tal reivindicação. É neste tom salutar – até reprovador – que eu gostaria de concluir. Pois, para que possamos compreender melhor a natureza da relação entre direitos humanos e economia política, e consequentemente “encontrar liberdade” com sucesso, precisamos, como advogados, saber onde estabelecer os limites jurídicos. Devemos aceitar que há limites para a utilidade das normas de direitos humanos. E saber quando devemos transpor os limites de nossa disciplina para aprender, dialogar e debater com outros. Além disso, embora as implicações dessa circunstância possam ser diferentes para os advogados de direito internacional e direitos humanos na China, em comparação àqueles atuando nas economias políticas do Ocidente, todos compartilham um objetivo comum de fazer valer os benefícios políticos e econômicos da liberdade. Ou seja, ambos buscam compreender, explicar e promover sistemas de governança que sejam justos, eficientes e inclusivos, e economias que sejam abertas, eficientes e prósperas. Nas décadas que antecederam a atual ascensão da China, uma série de países vizinhos seus – Japão, Coréia do Sul e Taiwan – experimentaram trajetórias igualmente espetaculares de crescimento econômico. Não obstante, embora todos tenham adotado, como na China, políticas econômicas cuidadosamente calibradas para atingir o equilíbrio entre o protecionismo e a liberalização do comércio, eles o fizeram sob a gestão de formas muito distintas de governo (STUDWELL, 2013). Importante notar, no entanto, que, do ponto de vista político, cada um desses países é hoje uma democracia em ascensão, que reconhece amplamente e respeita os parâmetros internacionais de direitos humanos. Certamente, este resultado não foi e não é inevitável, mas é certamente um futuro vislumbrado por muitos dentro e fora da China. 158 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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NOTAS 1. Uma frase elegante que eu estou emprestando de um ensaio de uma de minhas alunas de pós-graduação Chritianne Salonga. 2. Esta seção é inspirada diretamente em um artigo para uma conferência que eu escrevi com Mary Dowell-Jones (KINLEY; DOWELL-JONES, 2012). 3. Estatística do Bank for International Settlements indica que há hoje cerca de US$650 trilhões de dólares no valor de derivados “over the conter” (aqueles derivados negociados de maneira reservada entre instituições financeiras, que incluem apenas cerca de

metade do total em circulação). Isso por si só é mais de dez vezes o valor do PIB mundial (BIS QUARTERLY REVIEW, 2012). 4. Como vimos no caso da recente crise financeira, o setor financeiro ao extremo não pode garantir suas próprias perdas, apesar da teoria de derivados como ferramentas de gestão de riscos, e o contribuinte deve subsidiar o sistema bem como cobrir suas próprias perdas pela instabilidade financeira. 5. Ver comentários do Primeiro-Ministro Wen Jiabao imediatamente depois do Congresso do Partido

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Comunista Chinês (INTERNATIONAL BUSINESS TIMES, 2012). 6. Esta seção é inspirada em Kinley; Dowell-Jones, 2012. 7. Ver, por exemplo, os avanços de direitos humanos com relação a especificamente direitos econômicos e sociais, conforme descrito no mais recente relatório “White Paper” sobre direitos humanos na China em 2009 (CHINA, 2010), e como previsto no seu National Human Rights Action Plan (2012-15) (CHINA, 2012). 8. “Internal Reference on Reforms - Report for Senior Leaders”, republicado em agosto de 2012 (ECONOMIST, 2012). 9. Isso foi consequência do que Popper chamou de “paradoxo da liberdade” (POPPER, 1945, Notes to the Chapters, Chap. 7, Note 4).

10. Ao rever o quanto seus argumentos sobreviveram ao teste do tempo desde sua primeira aparição 40 anos atrás, Friedman reflete: “se há uma mudança importante que eu faria, seria substituir a dicotomia de liberdade econômica e liberdade política pela tricotomia de liberdade econômica, liberdade civil e liberdade política. Depois de ter concluído este livro, Hong Kong, antes de retornar ao domínio da China, me convenceu de que liberdade econômica é uma condição necessária para liberdade civil e política; liberdade política, embora desejável, não é uma condição necessária para liberdade econômica e civil” (FRIEDMAN, 2002, p. ix). 11. “Livre capacidade não é apenas por si só uma parte ‘constitutiva’ de desenvolvimento, mas também contribui para o fortalecimento das capacidades livres de outras naturezas”(SEN, 1999, p. 4).

ABSTRACT The question of how best simultaneously to achieve and reconcile the twin desirable goals of good governance and economic prosperity has long been a focus of philosophical inquiry. In the modern (post-war) era, a new and important ingredient has been added to the mixture that binds economic and socio-political well-being - international law, and particularly international human rights law. This paper focuses on the different roles that so-called universal rights and freedoms are said to play in forging, sustaining and destroying the relationship between economic and social well-being, and analyses what are and will be the consequences for the political economies of the West and China. Though certain conclusions are drawn as to the significance of the agency of human rights, the paper suggests that it may yet be – as, reputedly, Zhou Enlai believed was the case regarding lessons learnt from the French Revolution – too soon to say. KEYWORDS China – International law – Human rights – Development – Economic growth – Good governance – Political freedoms RESUMEN El interrogante de cuál es la mejor manera de alcanzar y conciliar simultáneamente las dos metas deseables de la buena gobernabilidad y la prosperidad económica es objeto de indagación filosófica desde hace mucho tiempo. En la era moderna (de posguerra), se ha sumado un ingrediente nuevo e importante a la mezcla que combina el bienestar económico y el sociopolítico: el derecho internacional y, en particular, el derecho internacional de derechos humanos. Este trabajo se centra en los distintos roles que se dice que desempeñan los así llamados derechos y libertades universales en forjar, sustentar o destruir la relación entre el bienestar económico y el social, y analiza cuáles son y serán las consecuencias para las economías políticas de Occidente y de China. Si bien se extraen ciertas conclusiones respecto de la importancia de la agencia de los derechos humanos, el trabajo sugiere que –tal como se dice creía Zhou Enlai respecto de las lecciones aprendidas de la Revolución Francesa– aún podría ser demasiado pronto para saberlo. PALABRAS CLAVE China – Derecho internacional – Derechos humanos – Desarrollo – Crecimiento económico – Buena gobernabilidad – Libertades políticas 19 SUR 149-161 (2013) ■

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LAURA BETANCUR RESTREPO Laura Betancur Restrepo é advogada, filósofa e doutoranda em Direito na Universidad de Los Andes (Bogotá, Colômbia). Possui Diplôme Supérieur d’Université (DSU) em Direito Internacional Público pela Université Panthéon-Assas (Paris 2) e Diplôme d’Études Approfondies (DEA) em Direito Internacional e Organizações Internacionais pela Université PanthéonSorbonne (Paris 1). E-mail: l.betancur52@uniandes.edu.co

RESUMO Este artigo aborda o caso da ação de constitucionalidade apresentada à Corte Constitucional da Colômbia que almejava incluir a objeção de consciência entre as causas de isenção do serviço militar obrigatório como exemplo de litígio estratégico entre clínicas jurídicas e movimentos sociais. São analisados discursos dos vários participantes, a fim de lançar novas luzes sobre a tradução jurídica de uma reivindicação social, buscando, em especial, a forma pela qual os discursos se relacionam, são interpretados e limitados. Busca-se demonstrar que, além dos benefícios em matéria jurídica, é relevante considerar outros aspectos e consequências menos evidentes para os movimentos sociais (como a dependência de intermediação do especialista/conhecedor que traduz as reivindicações do leigo/não conhecedor para uma linguagem técnico- jurídica), quando se considera a melhor estratégia para promover e proteger suas reivindicações. Original em espanhol. Traduzido por Evandro Freire. Recebido em agosto de 2013. Aprovado em outubro de 2013. PALAVRAS-CHAVE Corte Constitucional da Colômbia – Objeção de consciência – Movimentos sociais – Litígio estratégico – Clínicas jurídicas Este artigo é publicado sob a licença de creative commons. Este artigo está disponível online em <www.revistasur.org>. 162 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


A PROMOÇÃO E PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS POR MEIO DE CLÍNICAS JURÍDICAS E SUA RELAÇÃO COM OS MOVIMENTOS SOCIAIS: CONQUISTAS E DESAFIOS NO CASO DA OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA AO SERVIÇO MILITAR OBRIGATÓRIO NA COLÔMBIA Laura Betancur Restrepo

1 Introdução Na Colômbia, desde a criação da Corte Constitucional (doravante a Corte) pela Constituição Política de 1991, é comum afirmar que a proteção dos direitos humanos fundamentais e dos avanços em matéria legislativa acerca desse tema tem ocorrido principalmente por meio de sentenças “marco”1 desse órgão de controle. Provavelmente, um dos efeitos produzidos por esse desejo de apresentar os casos mais controversos à Corte é evidenciado pela ascensão de diversas clínicas jurídicas. Estas incluem, em uma diversificada linha de ação, litígios estratégicos para alcançar alterações jurídicas concretas e se tornaram um foco importante da promoção e proteção jurídica dos direitos fundamentais. Por sua vez, distintos movimentos sociais buscam cada vez mais frequentemente aliar-se a alguma clínica jurídica para apresentar um litígio estruturado juridicamente que tenha maior probabilidade de ser acatado pela Corte. Pois bem, uma forma de analisar a relação entre as clínicas jurídicas e os movimentos sociais é examinar os resultados jurídicos obtidos, para determinar se a Corte decide a favor ou contra e/ou se modifica ou não a lei em vigor de modo favorável ao direito fundamental invocado. Ou seja, analisando a relação entre o discurso no texto apresentado (a ação) e o discurso no resultado obtido (a sentença), supondo que as reivindicações dos movimentos sociais estejam contidas na ação apresentada à Corte. Outra forma menos frequente de analisar essa relação é examinar os discursos defendidos pelos movimentos sociais interessados e o discurso

Ver as notas deste texto a partir da página 177. 19 SUR 163-179 (2013) ■

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jurídico-estratégico produzido com o apoio da clínica jurídica. No presente estudo, concentro-me nessa relação e na “tradução” de discursos que ocorre ali, tomando como exemplo a ação apresentada à Corte Constitucional, que almejava incluir na lei que regulamenta a prestação de serviço militar obrigatório (SMO) a objeção de consciência como causa de isenção.

2 Objetivo e metodologia Este artigo busca destacar a participação de discursos distintos em ação de constitucionalidade. Assim, pretende-se analisar os resultados constitucionais a partir de uma perspectiva que abranja mais que o produto da sentença, porque, com frequência, as decisões da Corte são analisadas somente a partir da forma como constrói seu argumento e a interpretação jurídica dada à ação. Deste modo, busca-se levar em conta, também, os discursos da ação, as intervenções de cidadãos, os movimentos sociais, as discussões dos magistrados e a Sentença C-728-09 (COLÔMBIA, 2009b). Tendo em vista que, muitas vezes, para chegar a decisões “marco” houve várias tentativas de ação anteriores que fracassaram inicialmente,2 deve-se prestar atenção aos tipos de discurso empregados pelos pleiteantes e observar em que medida eles influem para alcançar progressos efetivos em matéria de direitos fundamentais por meio de sentenças “reconceitualizadoras” (LÓPEZ, 2006, p. 165). Além disso, busca-se também rastrear quais são os interesses e as motivações dos beneficiários da ação e como estão ou não presentes no discurso jurídico. Ou seja, ver até que ponto os conteúdos das reivindicações dos movimentos são, de fato, refletidos nas reivindicações da ação e contemplados na sentença da Corte. Algo particularmente relevante, dada a proliferação de ações provenientes de alianças entre movimentos sociais e clínicas jurídicas para avançar na promoção e proteção jurídico-constitucional dos direitos fundamentais. Será realizada, então, uma análise dos discursos dos diversos participantes em um caso concreto que possibilite lançar luz sobre os avanços e as limitações da tradução jurídica de uma reivindicação social, buscando, em especial, a forma pela qual os discursos se relacionam, são interpretados e limitados quando se utiliza estratégias conjuntas em uma aliança desse tipo. Isso seguindo de perto aspectos sociológicos e discursivos identificados por Bourdieu (2000 [1987]) e Conklin (1998).3 Começo com um breve histórico acerca da aliança entre clínica jurídica e movimento social nesse caso concreto para apresentar uma ação de constitucionalidade. Então, examino o texto da ação tal como foi apresentada, tentando detectar as reivindicações contidas, para, em seguida, compará-lo com as reivindicações dos atores envolvidos em sua criação. Para tanto, baseio-me, principalmente, em entrevistas com os atores envolvidos no processo4 e documentos informativos de cada uma das organizações. Isto feito, analiso a resposta da Corte ao longo do texto da Sentença C-728-09, com ênfase no tipo de discurso utilizado, na recepção ou rejeição dos discursos da ação e intervenções de cidadãos5 e, em seguida, tento rastrear quais reivindicações da ação e das intervenções foram consideradas pelos Magistrados e a forma como foram recebidas – tomando como base as atas de discussão das seções do Plenário da Corte, nas quais foi discutido o expediente 164 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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da ação, e uma entrevista com um Magistrado Auxiliar da Corte.6 Por fim, faço algumas considerações teóricas acerca dos benefícios e das limitações que ocorrem nesse tipo de procedimento, onde atua um “intermediário especializado” que busca “traduzir” e transpor as lutas dos movimentos sociais para o plano jurídico.

3 Contexto Entre 2007 e 2008, a CIVIS,7 como parte de seu trabalho na Colômbia, decidiu apoiar a Ação Coletiva de Objetores e Objetoras de Consciência (ACOOC).8 O apoio incluía treinamentos, assistência financeira, defesa, acompanhamento e a articulação com outras organizações ou instituições para fortalecer o trabalho realizado pelos jovens. Em 2008, como parte desse apoio, a CIVIS propiciou o contato entre a ACOOC e membros da Igreja Menonita da Colômbia9 com o Grupo de Direito de Interesse Público (G-DIP), clínica jurídica da Universidad de Los Andes (Bogotá, Colômbia),10 para pensar estratégias conjuntas que possibilitaram o avanço no reconhecimento legal da objeção de consciência, em especial para evitar que os objetores fossem forçados a prestar o serviço militar obrigatório (SMO). O G-DIP propôs como estratégia questionar a constitucionalidade do artigo 27 da Lei n° 48, de 1993, perante a Corte Constitucional, por não incluir os objetores de consciência no grupo de pessoas que poderiam ser isentas da prestação de SMO.11 A ação foi elaborada por membros do G-DIP e do Observatório Constitucional (doravante Observatório) da Universidad de Los Andes, em parceria (discutida e aprovada) com a ACOOC e a CIVIS, financiados pela União Europeia. A ação foi interposta em março de 2009, em nome dos cidadãos Gina Cabarcas (membro do G-DIP), Daniel Bonilla (então diretor do G-DIP) e Antonio Barreto (Diretor do Observatório) e acompanhada por inúmeras intervenções de cidadãos. Em 14 de outubro de 2009, a Corte Constitucional decidiu, em sua Sentença C-728-09, declarar a constitucionalidade da norma questionada, mas considerou que, de fato, a objeção de consciência é um direito fundamental derivado diretamente da liberdade de consciência, portanto, não requer regulamentação para ser protegido e pode ser amparado diretamente via ação tutelar. A Corte solicitou ao Congresso que legislasse acerca do tema. Desde então, a aliança composta pelo G-DIP, a CIVIS e a ACOOC continua trabalhando em conjunto para preparar um projeto de lei a fim de regulamentar o direito à objeção de consciência no Congresso e enfatizar a evolução dos diferentes projetos que visam a regulamentação do tema.

4 Os discursos e as reivindicações no âmbito da estratégia jurídica adotada Uma primeira questão que se coloca diz respeito a saber qual é a reivindicação do mérito dos pleiteantes no caso de apresentar uma ação como a da objeção de consciência e, em seguida, determinar até que ponto coincidem as reivindicações dos movimentos sociais e as das clínicas jurídicas e até que ponto essas reivindicações são suscetíveis de serem alcançadas por meio da ação de 19 SUR 163-179 (2013) ■

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constitucionalidade relativa a uma norma. Posteriormente, surge a questão sobre onde se devem buscar essas reivindicações: no texto da ação? Nos argumentos dos advogados que a redigiram? Nas reivindicações dos movimentos sociais? De que forma a Corte entendeu e respondeu na sentença? O quê os Magistrados almejavam transmitir com sua resposta? Não se trata de entender o texto (ação ou sentença) como algo objetivo, independente da intenção de seus autores (pleiteantes ou juízes), pois, aceitando a ideia de Foucault (1992 [1970]), o discurso não é um simples veículo (transparente, neutro, alheio) de uma ideia (externa, significativa, subjetiva). O discurso existe materialmente com e em sua própria enunciação, trata-se de um ato singular e subjetivo com força e poder próprios e nunca é algo objetivo ou verdadeiro. Porém, isso não impede que se busque distinguir os textos (sobretudo os de elaboração coletiva e com pretensões de neutralidade e verdade como uma ação ou uma sentença judicial) dos discursos, na tentativa de entender estes últimos, analisando não só as reivindicações tal como se encontram formuladas no próprio texto, mas também as reivindicações que parecem derivar dos interesses dos autores desses textos. Ao distinguir assim as reivindicações, não se procura separar o discurso de seu autor, mas, sim, compreender o conteúdo (aparentemente neutro, lógico, descritivo) de um texto a partir de motivações e reivindicações carregadas de poder e intencionalidade que passam a brilhar em outros textos e discursos complementares. O que parece ser a reivindicação essencial da petição em um texto nem sempre coincide com os interesses e as motivações dos participantes. Essa maneira de analisar os diferentes discursos possibilita, por exemplo, ver com maior clareza até que ponto as reivindicações de um movimento social são incorporadas em um texto como o da ação de constitucionalidade (em que medida são afetadas nessa incorporação) e até que ponto um texto como o da sentença é receptivo a determinado discurso e pode/quer, realmente, atender as reivindicações nele incluídas.

5 Os discursos dos pleiteantes 5.1 As reivindicações segundo o texto da ação A ação que levou à Sentença C-728-09 (doravante a ação) é tecnicamente complexa. Sua estratégia jurídica foi elaborada durante mais de um ano como parte das atividades do G-DIP e do Observatório e contou com a participação de alunos e professores da Universidad de Los Andes. Esse trabalho criterioso e cauteloso torna-se evidente durante a leitura do texto da ação. Sua estrutura, argumentação, redação e tecnicismo denotam um trabalho realizado eminentemente por juristas. A argumentação da ação é dividida em quatro pontos. Dois argumentos técnicojurídicos destinados a provar processualmente que a Corte tem competência para se pronunciar sobre o mérito da ação12 e dois argumentos técnico-jurídicos com a reivindicação de mérito da ação, isto é, que o caso dos objetores foi omitido das causas legais de isenção de SMO, violando, desta maneira, diversos direitos fundamentais protegidos pela Constituição.13 166 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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A construção argumentativa sinaliza expressamente a necessidade de que o legislador inclua a objeção de consciência no âmbito das causas de isenção legal, isto é, formalmente, a reivindicação de mérito é a declaratória da exequibilidade condicional ou, subsidiariamente, a inexequibilidade do artigo 27. É essa reivindicação que atribui competência à Corte para se pronunciar e é sobre ela que são construídos os pontos argumentativos da ação. No entanto, a argumentação é baseada no pressuposto de que a objeção de consciência faz parte do núcleo essencial do direito fundamental à liberdade de consciência (argumento que até agora não havia sido acolhido pela Corte) e cujo reconhecimento é, em si, uma reivindicação da ação. Podemos, então, dizer que a reivindicação do direito à objeção de consciência faz parte das reivindicações da ação proposta pelo G-DIP (se não for a reivindicação essencial), pois é apenas na medida em que a objecção de consciência é compreendida e reconhecida como um direito fundamental que a omissão legislativa das isenções de SMO pode ser entendida como uma violação dos direitos assinalados e que a solicitação de exequibilidade condicional ou inexequibilidade tem cabimento. A ação foi acompanhada por inúmeras intervenções de cidadãos que contaram com mais de 400 adesões. Várias delas têm um conteúdo que reforça ou aprofunda diversos argumentos técnicos e jurídicos da demanda, enquanto outras incorporam outros discursos que estão além do âmbito estritamente jurídico (motivações pessoais, convicções religiosas de alguns indivíduos ou evidência histórica de suas tradições).

5.2 As reivindicações do G-DIP e do Observatório Para o G-DIP, esse foi um litígio estratégico construído em torno de como proteger e garantir a objeção de consciência; para isso vinculou-se ao Observatório por sua expertise em direito constitucional no intuito de idealizar uma estratégia jurídica com possibilidade de êxito. Juntos criaram o argumento jurídico mencionado anteriormente. Pois bem, essa é a reivindicação jurídica, a estratégia construída que possibilita o acesso à Corte com uma ação concreta. Trata-se de um meio (entre outros possíveis) para alcançar um fim: o reconhecimento do direito à objecção de consciência para poder evitar o recrutamento forçado de jovens objetores ao SMO. Isso foi corroborado pelas entrevistas com Antonio Barreto (2012) e Daniel Bonilla (2012), que viam o resultado da sentença da Corte como um avanço, apesar do tribunal não ter acolhido as reivindicações formais da ação.14 Assim, podemos distinguir a reivindicação formal/técnica/jurídica da reivindicação essencial de mérito que motivou a utilizar determinado argumento para transmitir essa finalidade, o que pode modificar a forma de avaliar o sucesso ou não da ação. Se ela é percebida como um caminho para reconhecer a objeção de consciência como um direito fundamental, a estratégia (a construção complexa que conseguiu levar a Corte a se pronunciar acerca do tema) alcançou seu objetivo, mas ela não o alcançou se considerarmos a recusa da Corte ao pedido da ação para alterar a norma. 19 SUR 163-179 (2013) ■

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5.3 As reivindicações da ACOOC e da CIVIS Julián Ovalle (2012), membro da ACOOC e elo entre o G-DIP, a ACOOC e a CIVIS, afirma que eles “sabiam” que a estratégia proposta pelo G-DIP se “limitava” a avançar juridicamente no reconhecimento da objecção de consciência. Nesse sentido, diz haver entendido a estratégia jurídica adotada, ainda que reconheça ter tido dificuldades para ler e compreender os argumentos técnicos da ação. No entanto, apesar de comemorar o reconhecimento pela Corte da objeção de consciência como um direito fundamental, disse que lhe “parecia extraordinário” incorporar a objeção de consciência no âmbito de uma norma que regulamenta o SMO e considerá-la uma causa de isenção deste. É extraordinário porque, para ele, a objeção de consciência tem implicações mais amplas, que incluem uma posição contra “a militarização da sociedade e do Estado” (OVALLE, 2012) refletida na existência do SMO e na impossibilidade de opor-se a ele por motivos de consciência. Ele afirma saber que essa não era a pretensão da ação e que a ação “tinha” de ser assim, pois suas reivindicações antimilitaristas “não tinham cabimento” ali. Eles confiavam no que o G-DIP (como experts) fazia em termos jurídicos e o resultado pareceu-lhes “um trabalho acadêmico fantástico” (OVALLE, 2012). Assim, embora a reivindicação acerca da objeção de consciência tenha parecido incompleta para eles (não afetava a situação militarista) ou mesmo problemática (renúncia de uma regra que regula o SMO), consideravam que os peritos sabiam como proceder. No entanto, para eles, este é um passo em uma luta mais ampla. Para Ovalle, – ter reconhecido o direito fundamental à objecção de consciência significa “dar-lhe musculatura” (OVALLE, 2012) em sua luta. Um “músculo” extra, mas insuficiente. Ao aceitar e avaliar a estratégia desenvolvida pelo G-DIP, diz que compartilhavam as reivindicações formais, e sabiam que, em essência (e de modo limitado), se buscava lutar pelo reconhecimento de um direito, mas que isso não abrangia todas as reivindicações da ACOOC. Para eles, era clara a distinção entre o que se buscava com a reivindicação (o que esperavam da Corte) e suas motivações adicionais, e, assim, concordaram que suas reivindicações fossem traduzidas para essa luta jurídica que deixava de lado outras reivindicações mais amplas. Nesse sentido, a tradução de um discurso para outro era vista como estrategicamente interessante para ambos (G-DIP e ACOOC), pois possibilitava avanços, apesar de terem sido parciais, em suas lutas pessoais mais amplas.15 No entanto, apesar de Ovalle ter dito que entenderam e aprovaram a estratégia jurídica, com suas limitações e com o risco de uma sentença desfavorável, há ocasiões em que isso não fica totalmente claro. Isso é perceptível, por exemplo, na forma como entende os resultados da sentença e as possibilidades de prosseguir com a aliança jurídica relativa ao projeto de lei que regulamenta o direito à objecção de consciência. Assim, para eles, não é aceitável que o objetor tenha de “provar” suas convicções, mesmo que a Corte exija expressamente que se “prove” a condição de objetor. Para o G-DIP, sem que isso implique que não haja mais nada a ser feito por outras vias, se se almeja ir ao Congresso com vistas a conferir efeito ao resultado da sentença, deve-se dar continuidade ao diálogo dentro dos limites que o discurso jurídico impõe e tentar avançar rumo ao 168 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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Congresso dentro dos limites da sentença. Para a ACOOC, sua luta não se restringe ou se modifica segundo o que a Corte diz e nem pelo que diz o direito. A ação foi um passo dentre muitos outros para avançar em suas reivindicações e motivações sociais. A ideia é, então, que, se existe uma lei/um direito com a/o qual concordam, irão apoiála/o, caso contrário, não a/o apoiarão. Todavia, eles se encontram, de alguma forma, sujeitos a continuar a luta no âmbito jurídico (perante a Corte, agora o Congresso) enfrentando as consequências que derivem de lá. Ainda que não tenham de modificar suas convicções, decerto afetarão e modificarão suas prioridades. Então, até que ponto a participação de especialistas deixa de ser “enriquecedora” ou “útil” e passa a ser “necessária” ou “indispensável”? É, de fato, livre essa escolha de deixar aos cuidados do especialista a tradução de uma reivindicação mais ampla que não tem cabimento no discurso jurídico? Como determinar em qual momento essa tradução desnaturaliza o objeto principal da luta social? Em suma, é desejável essa apropriação por parte do discurso jurídico dos problemas sociais e políticos?

6 O discurso da Corte Constitucional 6.1 As reivindicações segundo o texto da Sentença C-728-09 Em muitas sentenças, o resumo das reivindicações da ação ocupa apenas alguns parágrafos ou algumas páginas, porém, nesse caso, diversos argumentos são retomados e citados de modo amplo. Isso sugere que há receptividade ao discurso técnico-jurídico da ação. Diante das intervenções dos cidadãos, a Corte demonstra um interesse variado. No âmbito das intervenções que são retomadas em maior extensão e aquelas equivalentes à média encontram-se aquelas com argumentos jurídicos. Dentre as que incorporam argumentos não jurídicos (como as convicções sociais e políticas) incluem-se apenas as da ACOOC e três histórias de vida acerca dos membros da ACOOC elaboradas por estudantes de antropologia. As outras só são mencionadas brevemente e uma foi, inclusive, ignorada. O texto sinaliza que o problema jurídico da ação é se o legislador incorreu em omissão legislativa relativa ao violar os direitos de igualdade, liberdade de consciência e liberdade de culto por não incluir os objetores de consciência. Ou seja, a alegação acolhida pela sentença é a reivindicação técnica e jurídica, formalmente demandada no texto da ação. Posteriormente, considera haver omissão legislativa absoluta, não relativa, e que o juiz não pode adicionar conteúdo à norma. Porém, afirma que o direito à objecção de consciência decorre diretamente da Constituição (que se pode eximir do SMO) e que, como um direito fundamental, pode ser protegida por meio de ação tutelar. Insta o Congresso Nacional a regulamentar o tema, mas impõe certas condições para reivindicar-se como objetor: a pessoa deve demonstrar, por manifestações externas, que suas convicções são profundas, fixas e sinceras. Quatro Magistrados eximiram-se de votar por considerar que deveriam acolher as reivindicações da demanda. No entanto, a existência do direito fundamental da objeção de consciência e sua possibilidade de invocá-lo para isentarse do SMO (reivindicação que denomino “essencial” ou de “mérito”) foram aceitas por unanimidade. 19 SUR 163-179 (2013) ■

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6.2 Reivindicações segundo as discussões acerca dos magistrados da Corte As atas das discussões acerca da proposta da sentença revelam a forma como os magistrados perceberam os interesses ou reivindicações almejadas com a ação e os argumentos que foram considerados no momento de decidir. Essas controvérsias, interesses e divergências podem não ficar evidentes no texto da sentença, que se apresenta como “neutro”, mas que é o resultado de uma decisão e discussão que permeiam o resultado do texto e permitem ver com maior facilidade disputas de poder que, então, são apresentadas como verdades lógicas objetivas. Nas palavras de Bourdieu, a sentença “condensa toda a ambiguidade do campo jurídico, trata-se de um compromisso político entre exigências irreconciliáveis que, no entanto, é apresentada como uma síntese lógica entre teses antagônicas” (BOURDIEU, 2000 [1987], p. 185). Apesar de as atas de discussão serem documentos resumidos e tendenciosos, intermediários entre as discussões, as intenções particulares dos magistrados e as formulações utilizadas em público, nem por isso sua análise mostra-se menos interessante, uma vez que conferem outra perspectiva às motivações dos magistrados. Coube à magistrada María Victoria Calle apresentar o projeto da proposta. Este retomava quase em sua totalidade as reivindicações da ação e declarava a constitucionalidade condicional por omissão legislativa relativa aos objetores de consciência. Nas atas, observam-se diversas discussões acerca de conteúdos técnicos da ação, particularmente quanto aos avanços amplos e vagos que poderiam derivar da declaratória de exequibilidade condicional e a possibilidade ou não de assimilar os objetores aos indígenas e as pessoas com deficiência (que acabou sendo o argumento pelo qual foram rejeitadas as reivindicações da ação). Porém, junto com esses aspectos técnicos, a discussão abrangeu outros temas que mostram que os magistrados não estavam percebendo as reivindicações do caso apenas por meio do texto da ação e nem a partir de uma análise técnico-jurídica. Foi discutido o papel das intervenções dos cidadãos, a importância que devia ser atribuída a estas e as liberdades ou limitações de conteúdos considerados “políticos”. Assim, foi debatido se elas incluíam uma reivindicação adicional para a ação com conteúdos ofensivos em relação às Forças Armadas. Esses dois aspectos mostram-se interessantes porque houve inúmeras intervenções, todas variadas: algumas provenientes de centros ou organizações jurídicas e outras de movimentos sociais que lutam pela objecção de consciência e que explicaram seus motivos para se declarar objetores, incorporando, assim, um discurso adicional ao da ação. Alguns utilizaram elementos técnico-jurídicos (proteção do direito internacional ou vínculo entre a objeção de consciência e os direitos à liberdade de consciência e de culto) e outros utilizaram um discurso pessoal, narrando as motivações que os impedem de fazer parte de uma entidade armada. Pois bem, os m’agistrados se referem às “intervenções de cidadãos” como um grupo assimilável. Para alguns, essas intervenções não devem ser incluídas de modo representativo em uma sentença da Corte Constitucional, sob o argumento de que “a Corte não deve entrar no jogo dessas organizações” (magistrado 170 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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Pretelt) (COLOMBIA, 2009d, p. 10) e que “o juiz constitucional só pode ter discurso jurídico, não político” (magistrado Vargas) (COLOMBIA, 2009d, p. 11). A necessidade de “não entrar no jogo” significa que, para alguns Magistrados, isso faz parte da estratégia de um “litígio estratégico”, do qual devem desconfiar. De acordo com o magistrado Sierra, esse tipo de litígio utiliza as ações públicas previstas na Constituição para obter o reconhecimento de direitos, mas também para alcançar objetivos de caráter político, nesse caso, garantir que não haja nenhuma obrigação de vincular-se ao serviço militar [...] e, em última análise, para que não haja exército (COLOMBIA, 2009d, p. 11).

Ou seja, o magistrado Sierra lê como reivindicações do litígio argumentos que vão muito além do texto da ação, razão pela qual supomos que por “litígio” referem-se, então, à ação acompanhada pelas intervenções e que por “intervenções” referemse apenas àquelas nas quais certos objetores explicam sua concepção da guerra e sua visão de que os exércitos aumentam a violência, deixando de lado todas as outras intervenções. Para o magistrado, os conteúdos das intervenções incluem reivindicações amplas que não se limitam a argumentos técnicos e jurídicos e, portanto, chama a atenção para que não haja engano: a Corte deve concentrar-se apenas no jurídico e não em outro tipo de discurso. Da mesma forma, o magistrado Pretelt chama a atenção de seus colegas para não se deixarem enganar, porque: 50% das intervenções (56 de 115)16 correspondem a organizações às quais pertencem os pleiteantes – esvaziando todo o seu ódio contra o exército – o que reduz o peso que se almeja deduzir a partir de uma suposta participação cidadã. Afirmou que a Corte não deve entrar no jogo dessas organizações.17 (COLOMBIA, 2009d, p. 10).

O magistrado Pretelt não especifica a quais intervenções se refere, tampouco diz quem entende como demandantes. De acordo com a ação, os pleiteantes são os cidadãos Cabarcas, Barreto y Bonilla. Obviamente, uma rápida pesquisa mostraria que todos eles trabalhavam na Universidad de Los Andes, mas nenhum deles é membro das organizações que apresentaram uma intervenção cidadã. De fato, fazer campanha para obter intervenções fazia parte da estratégia empregada pelo G-DIP, mas este não é membro de nenhuma contestadora. Parece, então, referirem-se diretamente aos próprios objetores, autores de intervenções cidadãs e aliados de algumas das organizações internacionais que aderiram ou fizeram outras intervenções. Entretanto, além de decidir em qual medida deveriam ser levadas em consideração as intervenções cidadãs, foi discutido se estavam sendo insultadas ou denegridas as Forças Armadas. Foi dito que as intervenções buscavam, na realidade, abolir o exército (magistrado Sierra) (COLOMBIA, 2009d, p. 11), que se equiparava as Forças Armadas à guerrilha (magistrado Pretelt) (COLOMBIA, 2009d, p. 10) e 19 SUR 163-179 (2013) ■

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que apesar dos “cidadãos serem livres para expor suas teses, isso não os exime de poder inclinar-se a posições políticas” (magistrado Sierra) (COLOMBIA, 2009d, p. 13). Isso levou a magistrada relatora a terminar tratando de defender sua proposta esclarecendo que se destacava o papel e a função desempenhados pelas Forças Amadas na Colômbia (COLOMBIA, 2009d, p. 14).18 A assimilação dos pleiteantes com os autores das intervenções cidadãs, a leitura atribuída ao que supõem serem suas “verdadeiras reivindicações”, somada aos adjetivos empregados para descrever o “litígio estratégico” e o “jogo” no qual querem levar a Corte a “entrar”, demonstra a desconfiança e as reservas de vários dos Magistrados ao estudar esse expediente. Pode-se perguntar se a decisão adotada – segundo a qual aceitar a omissão legislativa relativa deixava uma porta aberta muito vaga, que se mostrava perigosa e incontrolável, está relacionada com um receio ou uma desconfiança mais concretos de entrar no jogo das organizações que denigrem as Forças Armadas e que buscam abolir os exércitos por meio de estratégias como o reconhecimento da objecção de consciência. Pois bem, a construção técnica “neutra” (BOURDIEU, 2000 [1987], p. 183), empregada no texto da sentença, não demonstra nenhum desses medos ou reivindicações em relação aos argumentos “políticos” das intervenções (nem a uma eventual “cumplicidade” dos pleiteantes). Por fim, houve consenso de que o direito de formular a objeção é fundamental e, portanto, de aplicação imediata, protegido pela tutela. A proposta da magistrada Calle foi rejeitada (5 votos contra, 4 a favor) e foi aprovada (5 votos a favor, 4 contra) a proposta alternativa formulada pelo magistrado Mendoza de declarar exequível o artigo em questão e adicionar à parte dispositiva que se incita o Congresso para que “à luz das considerações dessa providência, regule o que concerne a objeção de consciência diante do serviço militar” (COLOMBIA, 2009d, p. 16).

7 Avanços e limitações da tradução jurídica de uma reivindicação social O caso da ação de objeção de consciência constitui um exemplo dos tipos de alianças existentes entre os movimentos sociais que consideram que, para participar do plano jurídico, é necessário ou pelo menos propício, aliar-se a “especialistas” que lidam com a linguagem técnica e jurídica. Muitos desses “especialistas” têm, por sua vez, agendas políticas e sociais claras e gerenciam estrategicamente a linguagem técnico-jurídica para alcançar uma mudança ou avanço social e político. Clínicas jurídicas como o G-DIP incluem entre suas tarefas adiantar litígios de alto impacto com o claro objetivo de apoiar causas defendidas por grupos habitualmente marginalizados ou discriminados no campo jurídico. Agem como intermediários entre os movimentos sociais, que lutam por uma causa concreta que os afeta diretamente, e a instância jurídica (no caso, judicial) com o intuito de obter, no plano jurídico, um avanço, como o reconhecimento de um direito fundamental. A relação entre o “especialista”, “profissional” ou “conhecedor” de certa linguagem técnica e o indivíduo alheio a esse conhecimento, que se apresenta 172 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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como “cliente”, “aliado” ou “beneficiado” (mas, em todo caso, “não especialista” ou “leigo” em relação a essa perícia), sempre é complexa. Consciente de que clínicas como o G-DIP atuam com cuidado e ref lexão e de que a realidade e o trabalho que ocorrem ali se tornam mais complexos do que este artigo é capaz de apresentar, podemos, no entanto, perguntar (indo além do caso concreto do G-DIP) até que ponto a luta no plano jurídico pode transmitir e, de fato, traduzir os interesses dos movimentos sociais com os quais atua (nesse caso, os da ACOOC) e permitir que avancem em sua própria luta pela objeção de consciência. Isso, nos termos de Bourdieu (2000 [1987]), significa analisar a relação entre os “leigos” e os “profissionais”. Para o autor, essa relação traz consigo diversos problemas devido ao desequilíbrio de poder que gera, pois há uma concorrência pelo monopólio do acesso aos recursos jurídicos, que ajuda a aprofundar a separação social entre leigos e profissionais (BOURDIEU, (2000 [1987], p. 160161). Isso se torna particularmente claro na esfera judicial, onde a sentença é o resultado de uma luta simbólica entre profissionais dotados de competências técnicas e sociais desiguais (BOURDIEU, (2000 [1987], p. 180). A separação entre a visão e a linguagem técnica, entre o discurso do especialista e o do leigo, produz a construção de outra realidade, que implica uma “desapropriação” para o cliente/ leigo ao traduzi-la para a linguagem técnica. Isso se dá a partir da própria criação do espaço judicial, que deixa de fora aqueles que não estão preparados para participar do jogo, especialmente em matéria linguística, pois não possuem os conhecimentos técnicos necessários e, portanto, acabam sendo excluídos. Quando os especialistas (advogados, juízes, conselheiros jurídicos etc.) formulam tecnicamente o que consideram ser o problema juridicamente relevante, as reivindicações adequadas de uma ação a partir de uma perspectiva jurídica, as normas aplicáveis ao caso etc., criam uma lacuna entre sua visão técnica/ especializada do mundo e a visão leiga/vulgar que tem o cliente/beneficiário/não especialista. E essa separação constitui “uma relação de poder que estabelece dois sistemas diferentes de orçamento [...], duas visões de mundo” (BOURDIEU, (2000 [1987], p. 181-182). Nessa separação “se impõe um sistema de exigências cujo núcleo é a adoção de uma posição abrangente, particularmente evidente em matéria de linguagem” (BOURDIEU, (2000 [1987], p. 181-182). A desapropriação e a relação desigual de poder não se dão somente quando uma reivindicação “vulgar”, “não técnica” é traduzida para uma “jurídica”, “técnica”, mas sim a partir do momento que se vê essa tradução como necessária. Cria-se um espaço em que apenas a competência técnica (qualificada, manejada somente por especialistas) torna-se indispensável, enquanto que se desqualifica e exclui aqueles que não possuem as ferramentas técnicas, a linguagem apropriada para competir nela (BOURDIEU, (2000 [1987], p. 181). Em toda essa construção da realidade social, os “especialistas” monopolizam uma lógica (do problema e da solução), que é completamente hermética e inacessível aos leigos, e “criam a necessidade de seus próprios serviços ao constituir como problemas jurídicos os problemas expressos em linguagem comum, pelo fato de que os traduzem para a língua do direito” (BOURDIEU, (2000 [1987], p. 189-190).19 19 SUR 163-179 (2013) ■

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Para Conklin (1998), o discurso jurídico dá-se entre “conhecedores” e “não conhecedores”; o autor entende o discurso jurídico como um discurso de segundo nível, no qual se transforma a experiência original do sujeito não conhecedor afetado (por um dano, um sofrimento vivido) em uma série de afirmações alheias que representam esses sentimentos de modo indireto, por meio de termos jurídicos. No ato de transformação em discurso jurídico, uma história se converte em “fatos” dispostos de modo abstrato e padronizado. Ocorre um trabalho de “intelectualização” que diz “representar” a experiência do outro, e que, na verdade, transforma o “significado” da história vivida em um objeto externo, expresso em termos técnicos que são familiares e intuitivos para a audiência diante da qual são apresentados, mas se distanciam do próprio sujeito afetado. Essa transformação e o distanciamento ocorrem independentemente da simpatia ou não que se tenha pelo sujeito afetado: Posso simpatizar com a testemunha [...]. Posso oferecer Kleenex [...]. Porém, carregado com minha terminologia especial, a enunciação do meu cliente torna-se uma frase que eu ressituo em uma cadeia coerente de sinais que faz sentido para mim, como conhecedor profissional. [...] Eu escolho aquela configuração que parece mais fidedigna. [...] A testemunha, assim, torna-se “um caso”. (CONKLIN, 1998, p. 60, tradução livre)

Entretanto, além dessa transformação, uma vez que o não conhecedor tem acesso ao discurso jurídico e aos seus tecnicismos, daí em diante ele só pode representar seus sofrimentos/interesses/lutas por meio das representações elaboradas pelo conhecedor (CONKLIN, 1998, p. 53). Torna-se, assim, dependente da intermediação do conhecedor para transmitir suas próprias experiências nesse discurso. Com o discurso jurídico, a experiência de alguém se torna uma língua de sinais que compõem o que ele denomina “discurso de gênero secundário”,20 no qual a pessoa diretamente envolvida já não pode mais se comunicar em seu próprio idioma: “a pessoa lesada torna-se um não conhecedor, um estranho em relação ao discurso jurídico [...]. O parecer legal ou julgamento ou argumento do profissional conhecedor funciona, então, como o local para o deslocamento de significados incorporados” (CONKLIN, 1998, p. 57, tradução livre). Nesse sentido, no caso concreto da demanda de objecção de consciência, os especialistas (G-DIP e o Observatório) idealizaram uma estratégia jurídica para “traduzir” uma reivindicação comum (reconhecer o direito fundamental à objecção de consciência) no discurso jurídico. Embora pareça claro desde o início que essa parte da estratégia jurídica seria limitada a esse ponto de reconhecimento do direito, as consequências derivadas dali e as restrições impostas aos não especialistas depois de entrar no jogo a partir do plano não jurídico já não parecem tão claras. A “confiança” de que fala Julián Ovalle (2012), acerca do trabalho realizado pelo G-DIP diante da ação, é acompanhada pela indiferença contra a estratégia particular (argumento técnico) adotada. Não importa se se optou por falar da omissão legislativa ou não, ou se era questionado o artigo X ou Y. Tudo fazia parte de uma carta a mais para jogar dentro de 174 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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uma luta ampla, uma maneira de entrar no discurso jurídico acompanhados por um “especialista”; o que importa para eles é “para que serve o resultado”, “o que podem fazer com isso” (OVALLE, 2012). 21 No entanto, a necessidade de participar desse jogo dessa forma, de participar com um especialista que traduza (e que nessa tradução restrinjam-se as reivindicações) têm implicações concretas e futuras. Não há dúvida quanto aos benefícios concretos. Obteve-se um avanço claro e certeiro, que, como diz Ovalle, “dão musculatura jurídica” à sua luta: a Corte modificou sua jurisprudência, aceitou a existência desse direito fundamental, sua possibilidade de invocação diante do SMO e sua proteção constitucional direta. Agora, têm um “direito” reconhecido que serve como ferramenta em sua luta. Isso, muito provavelmente, não teria sido possível sem a aliança. A “tradução” para uma linguagem jurídica, sem dúvida, possibilitou uma maior recepção da demanda por parte da Corte, ajudou a alcançar uma mudança social e política como uma decisão técnico-jurídica constitucional e incluiu aspectos substanciais de sua luta. Porém, de alguma forma, sua luta foi condensada e representada em argumentos e reivindicações jurídicas concretas dentro desse “discurso secundário”, no qual, para seguir participando, é necessário um especialista tradutor. Como diz Bourdieu (2000 [1987], p. 189-190), a estratégia “tradutora” implica certa “desapropriação” por parte do “beneficiário”, que, agora, vê-se preso em um discurso que não gerencia e que o limita. A luta por meio do discurso jurídico acerca do tema do reconhecimento da objecção de consciência levou a Corte, por exemplo, não só a reconhecer a existência dos objetores como a incitar o Congresso para que o tema fosse regulamentado. Essas decisões impõem, agora, que os objetores continuem a luta dentro do campo jurídico.22 Cabe perguntar, então, se a distância com a qual Julián Ovalle percebe a luta da ACOOC contra as restrições derivadas da sentença e do processo regulatório que se apresenta diante do Congresso é, de fato, uma manifestação de independência do poder do discurso jurídico e a relação de necessidade do intermediário, ou melhor, uma manifestação de um discurso que o despojou, no qual foi relegado e que podem deixá-lo como mero receptor dos efeitos que são decididos em instâncias e discursos aos quais não tem acesso e que, inexoravelmente, terão efeitos e poder sobre ele e sua luta. Embora sejam muitos os benefícios dos avanços jurídicos, em matéria de proteção e promoção dos direitos fundamentais, também é relevante levar em conta esses aspectos e essas consequências, menos evidentes para os movimentos sociais, antes de considerar a melhor estratégia para promover e proteger suas reivindicações.

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REFERÊNCIAS Bibliografia e outras fontes ACCIÓN COLECTIVA DE OBJETORES Y OBJETORAS DE CONCIENCIA (ACOOC). Bogotá. Disponível em: <http://objetoresbogota.org/que-es-acooc/ acooc/>. Último acesso em: Mar. 2013. ALBARRACÍN, Mauricio. 2011. Corte constitucional y movimientos sociales: el reconocimiento judicial de los derechos de las parejas del mismo sexo en Colombia. Sur - Revista Internacional de Derechos Humanos, v. 8, n. 14, p. 7-33, junio. Disponível em: <http://www.surjournal.org/esp/conteudos/getArtigo14. php?artigo=14,artigo_01.htm>. Último acesso em: Mar. 2013. ARRIETA, Aquiles. 2012. Entrevista [concedida a Laura Betancur]. Bogotá, abril. BARRETO, Antonio. 2012. Entrevista [concedida a Laura Betancur]. Bogotá, abril. BONILLA, Daniel. 2012. Entrevista [concedida a Laura Betancur]. Bogotá, mayo. BOURDIEU, Pierre. 2000 [1987]. Elementos para una sociología del campo jurídico. En: BOURDIEU, Pierre; TEUBNER, Gunther. La fuerza del derecho. Trad. Carlos Morales de Setién Revina. Bogotá: Siglo del Hombre Editores. p. 153-220. CIVIS. International Organization. Gothenburg/Bogotá. Disponível em: <http://civis. se>. Último acesso em: Mar. 2013. COLOMBIA 1991. Constitución Política. Gaceta Constitucional No. 116 de 20 de julio de 1991. COLOMBIA. 1993. Ley 48, de 4 de marzo 1993. Por la cual se reglamenta el servicio de Reclutamiento y Movilización. Disponível em: <http://www.secretariasenado.gov. co/senado/basedoc/ley/1993/ley_0048_1993.html>. Último acesso em: Mar. 2013. CONKLIN, William E. 1998. The Phenomenology of Modern Legal Discourse. The Juridical Production and the Disclosure of Suffering. England: Ashgate-Darmouth. CORTÉS, Tito. 2012. Entrevista [concedida a Laura Betancur]. Bogotá, mayo. FOUCAULT, Michel. 1992 [1970]. El Orden del Discurso. Trad. Alberto González Troyano. Buenos Aires: Tusquets. GRUPO DE DERECHO DE INTERÉS PÚBLICO (G-DIP). Universidad de los Andes. Disponível em: <http://gdip.uniandes.edu.co/>. Último acesso em: Mar. 2013. ITURRALDE, Manuel. 2012. Entrevista [concedida a Laura Betancur]. Bogotá, abril. LÓPEZ MEDINA, Diego Eduardo, 2006. El derecho de los jueces. Obligatoriedad del precedente constitucional, análisis de sentencias y líneas jurisprudenciales y teoríadel derecho judicial. 2ª ed. Bogotá: Legis Editores. MONTOYA, Lukas. 2012. Entrevista [concedida a Laura Betancur]. Bogotá, abril. OVALLE, Julián. 2012. Entrevista [concedida a Laura Betancur]. Bogotá, mayo. 176 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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Jurisprudência COLOMBIA. 2009a. Corte Constitucional. Expediente D-7685. Demanda e intervenciones. ______. 2009b. Corte Constitucional. 14 de octubre. Sentencia C-728-09. Disponível em: <http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2009/c-728-09.htm>. Último acesso em: Mar. 2013. ______. 2009c. Corte Constitucional. 7 de octubre. Acta de discusión, Sala Plena, No. 53. ______. 2009d. Corte Constitucional. 14 de octubre. Acta de discusión, Sala Plena, No. 54.

NOTAS 1. Segundo López (2006, p. 141), “Uma linha jurisprudencial é uma questão ou um problema jurídico bem definido, sob o qual se cria espaço aberto a possíveis respostas [...]. [É] uma estratégia conveniente para traçar as soluções que a jurisprudência encontrou para o problema e para reconhecer, se existir, um padrão de desenvolvimento das decisões”. Pois bem, em uma linha jurisprudencial pode haver diversos tipos de sentenças “marco”, ou seja, “sentenças que têm um peso estrutural fundamental dentro [da linha]” (LÓPEZ, 2006, p. 162). 2. Como ocorreu, entre outras, com ações sobre a descriminalização do aborto e o reconhecimento de diversos direitos dos casais do mesmo sexo. 3. É importante esclarecer que a interação e o trabalho conjunto entre clínicas jurídicas e movimentos sociais são bastante ricos e complexos e não se limitam aos aspectos aqui descritos. O objetivo deste artigo não é simplificá-los, mas trazer à tona alguns aspectos que podem mostrar-se problemáticos. 4. Entrevistamos Daniel Bonilla (2012), então diretor do G-DIP e coautor da ação, Manuel Iturralde (2012), diretor do G-DIP, Antonio Barreto, diretor do Observatório Constitucional e coautor da ação, Lukas Montoya (2012), pesquisador do G-DIP e responsável pelo tema da objeção de consciência, Julián Ovalle (2012), membro fundador da ACOOC, elo entre G-DIPACOOC-CIVIS a partir da ação e autor de uma das histórias de vida apresentadas como intervenção de cidadãos, e Tito Cortés (2012), membro da CIVIS e responsável pelo elo entre G-DIP-ACOOC-CIVIS. 5. Foi consultado o expediente D-7685 nos arquivos da Corte Constitucional com o texto integral da

ação e as intervenções (COLOMBIA, 2009a). 6. Obtivemos cópia das atas de discussão da Sala Plena n. 53 e 54, de 7 e 14 de outubro de 2009, nas quais foi discutido o expediente D-7685 (COLOMBIA, 2009c, 2009d). Também entrevistamos Aquiles Arrieta (2012), Magistrado Auxiliar do despacho da Magistrada María Victoria Calle, responsável pela primeira apresentação desse expediente e coautora do Voto Divergente. 7. “A CIVIS é uma organização da cooperação internacional sueca [...]. O principal objetivo [...] é contribuir para a construção de uma Cultura de Paz sustentável por meio do apoio e fortalecimento de ações não violentas dos jovens e de suas iniciativas para aumentar a promoção e defesa dos direitos humanos”. Disponível em: <http://civis.se>. Último acesso em: Mar. 2013. 8. A ACOOC é um coletivo, com sede em Bogotá, que busca “o respeito pela liberdade de consciência e o direito de recusar-se a participar direta ou indiretamente da guerra”. Disponível em: <http:// objetoresbogota.org/que-es-acooc/acooc/>. Acesso em: Mar. 2013. 9. “A Igreja Cristã Menonita da Colômbia é uma igreja histórica de paz [que] tem promovido a não violência, a transformação de conflitos e a construção da paz” (COLOMBIA, 2009a, Expediente D-7685, Intervención de la Iglesia Cristiana Menonita de Colombia, p. 285). 10. O G-DIP “tem três objetivos fundamentais: primeiro, construir pontes entre a universidade e a sociedade; segundo, promover a renovação do ensino jurídico [...]; e, terceiro, contribuir, por meio do uso do direito, para a solução de problemas estruturais da sociedade, em especial aqueles que afetam os grupos mais vulneráveis da nossa comunidade”. 19 SUR 163-179 (2013) ■

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Dentro de suas linhas de trabalho se encontra o “litígio de alto impacto”. O litígio de alto impacto é uma modalidade de litígio estratégico que visa a contribuir para a solução de um problema social estrutural. Envolve, principalmente, a apresentação de ações públicas de inconstitucionalidade, ações de tutela e ações populares”. Extraído da página disponível na internet em: <http://gdip.uniandes. edu.co/index.php?modo=clinica>. Último acesso em: Nov. 2013. Este texto é centrado no litigio na Corte Constitucional. 11. O artigo 27 isenta do SMO em qualquer ocasião e sem pagamento de cota de compensação militar: “a. Os indivíduos com limitações físicas e sensoriais permanentes [; e] b. Os indígenas que residam em seu território e preservem sua integridade cultural, social e econômica” (COLOMBIA, 1993). 12. Não há coisa julgada e não há precedente jurisprudencial (ou que aplique pelo menos dois dos critérios para justificar a alteração de precedente). 13. São observados os requisitos de omissão legislativa e essa omissão legislativa causa a violação dos direitos fundamentais à igualdade (artigo 13), à liberdade de consciência (artigo 18) e à liberdade de cultos (artigo 19). 14. Para Barreto (2012) o extremo tecnicismo da ação foi uma estratégia deliberada, uma estratégia que se voltou contra eles, pois a Corte rejeitou a ação com uma resposta igualmente técnica. Porém, por fim, obtiveram um importante avanço (não esperado) na reivindicação do mérito, que era o reconhecimento do direito fundamental à objecção de consciência. 15. Como também ocorreu com ações sobre os direitos de casais do mesmo sexo: houve progresso com o apoio de “advogados, professores de direito e, em geral, um grupo de profissionais que atuaram como aliados e como participantes dessa estratégia. [...] Atuam como intermediários e tradutores de ações sociais para a linguagem do direito constitucional” (ALBARRACÍN, 2011, p. 23). 16. É curioso que nas discussões o Magistrado Sierra fale de 115 intervenções de cidadãos e a Magistrada Calle fale de cerca de 400. No expediente constam 11 escritos independentes (além do conceito do Ministério da Defesa e da Procuradoria), muitos dos quais tiveram a adesão de um total de 440 organizações ou indivíduos. A

sentença reitera e resume 10 escritos e indica o número de adesões a cada um deles. 17. Para o Magistrado Pinilla, “a Corte Constitucional não pode ser instrumento desse litígio estratégico [...] abusivo” (COLOMBIA, 2009d, p. 12). O Magistrado Vargas (COLOMBIA, 2009d, p. 11) também defendeu uma redução das intervenções, enquanto os Magistrados Calle e Henao defenderam a importância das intervenções. A Magistrada Calle manifestou: “não é sempre que em um processo são apresentadas cerca de 400 [intervenções]. São exposições sérias e prudentes que tornaram possível aprofundar a discussão do tema (COLOMBIA, 2009d, p. 14). 18. O Magistrado Henao expressou seu “desacordo com as desqualificações das organizações que intervieram [...]. Pessoalmente, não percebeu insultos ou ofensa às forças armadas, mas conceitos estritamente acadêmicos” (COLOMBIA, 2009d, p. 12). 19. “A constituição do campo jurídico é inseparável da instauração do monopólio dos profissionais [...]. A competência jurídica é um poder específico que possibilita controlar o acesso ao campo jurídico, pois pode determinar quais conflitos merecem nele entrar e a forma específica com a qual devem revestir-se para constituir debates propriamente jurídicos. Somente essa forma pode proporcionar os recursos necessários” (BOURDIEU, 2000 [1987], p. 191-192). 20. “Um gênero [...] é certo modo de perceber o mundo. Trata-se de um fenômeno coletivo que organiza o enunciado e os textos. [...] O discurso jurídico é um gênero secundário por conta de depender de forma parasitária dos gêneros primários [....]. Um gênero secundário reproduz novamente a experiência do outro. Ele recoloca um enunciado em cadeias de sinais que outros membros do gênero secundário reconhecerão” (CONKLIN, 1998, p. 55). 21. Nesse sentido, consideram o resultado da Corte positivo, mas insuficiente e que deixou nas mãos do Congresso uma tarefa perigosa. 22. Ovalle (2012), enquanto não considera pertinente modificar suas reivindicações para “fazer uma boa lei”, afirma que é “completamente necessário” continuar participando do discurso jurídico e, em especial, do legislativo.

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ABSTRACT This article looks at the constitutional challenge filed before Colombia’s Constitutional Court that sought to include conscientious objection within the grounds for exemption from compulsory military service, as an example of strategic litigation by legal clinics and social movements. It analyzes the discourses of different actors to shed new light on the translation of a social claim into a legal one, and examines in particular the way in which these discourses relate to each other, and are interpreted and restricted. It aims to show that, in addition to the legal benefits, it is relevant to keep in mind other, less evident aspects and implications for social movements (such as reliance on experts as intermediaries who can translate lay/non-expert claims into legal language), when considering the best strategy to promote and protect their claims. KEYWORDS Constitutional Court of Colombia – Conscientious objection – Social movements – Strategic litigation – Legal clinics

RESUMEN En este artículo se toma el caso de la demanda de constitucionalidad presentada ante la Corte Constitucional de Colombia que buscaba incluir a la objeción de conciencia dentro de las causales de exención al servicio militar obligatorio, como ejemplo de litigio estratégico entre clínicas jurídicas y movimientos sociales. Se analizan distintos discursos intervinientes con el fin de dar nuevas luces sobre la traducción jurídica de una reivindicación social, mirando en particular la forma en que los discursos se relacionan, se interpretan y se limitan. Se busca poner de manifiesto que, además de los beneficios en materia jurídica, es relevante tener en cuenta otros aspectos y consecuencias menos evidentes para los movimientos sociales (como la dependencia de intermediación del experto/conocedor que traduce las reivindicaciones del profano/no-conocedor a un lenguaje técnico jurídico), en el momento de considerar la mejor estrategia para promover y proteger sus reivindicaciones. PALABRAS CLAVE Corte Constitucional de Colombia – Objeción de conciencia – Movimientos sociales – Litigio estratégico – Clínicas jurídicas

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ALEXANDRA LOPES DA COSTA Alexandra Lopes da Costa é socióloga formada pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, especialista em Dependências Químicas pela Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal e mestre em História pela Universidade Federal da Grande Dourados. E-mail: alexasociais@yahoo.com.br.

RESUMO Em abril de 2007, uma reportagem denunciou a existência de uma “Clínica de Planejamento Familiar”, que supostamente realizava abortos em Campo Grande (MS). Três dias depois, a polícia invadiu o estabelecimento, apreendeu cerca de 10 mil fichas médicas e violou seu conteúdo, trazendo à tona a intimidade de mulheres que ousaram usufruir da liberdade de tomar decisões e cuidar de suas vidas. O texto apresenta essa história, conhecida como o “caso das dez mil”, para fazer uma reflexão sobre as restrições aos direitos reprodutivos das mulheres, tecendo considerações acerca da coerção decorrente da lei que proíbe a interrupção voluntária da gravidez no país. Original em português. PALAVRAS-CHAVE Direitos humanos – Aborto – Direitos reprodutivos – Mulheres – Brasil Este artigo é publicado sob a licença de creative commons. Este artigo está disponível online em <www.revistasur.org>. 180 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


INQUISIÇÃO CONTEMPORÂNEA: UMA HISTÓRIA DE PERSEGUIÇÃO CRIMINAL, EXPOSIÇÃO DA INTIMIDADE E VIOLAÇÃO DE DIREITOS NO BRASIL* Alexandra Lopes da Costa

1 Introdução O artigo 128 do Código Penal brasileiro, de 1940, permite o aborto apenas em caso de estupro e risco de vida à gestante. Conforme recente decisão do Supremo Tribunal Federal, é consentido em situações de anencefalia fetal.1 Porém, os debates éticos contemporâneos sublinham, sistematicamente, que a decisão sobre o aborto diz respeito ao mais íntimo da mulher, envolvendo dimensões físicas, subjetivas, psicológicas e também existenciais, entre outros aspectos porque gestar e parir se materializam apenas no corpo feminino (CORRÊA; PETCHESKY, 1996; ARDAILLON, 1997; SARMENTO, 2005; TORRES, 2010). Por essa razão, vários autores questionam o emprego da coação e o recurso à lei penal em assuntos como esterilização, aborto e gravidez. Este artigo pretende mostrar que a criminalização do aborto, baseada na defesa do direito à vida do feto, opõe-se ao princípio constitucional da liberdade, aqui interpretado como o exercício da decisão reprodutiva por parte das mulheres. Para ilustrar essa oposição, o texto apresenta a história conhecida como o “caso das dez mil”: em 10 de abril de 2007, em Campo Grande (MS), ao fechar uma clínica de planejamento familiar, a polícia violou a privacidade de quase 10 mil mulheres ao confiscar, acessar e tornar públicos seus prontuários médicos. Quando 9.896 mulheres tiveram sua privacidade violada, seja porque decidiram interromper uma gravidez indesejada ou simplesmente por terem realizado uma *Este artigo foi produzido com o apoio da primeira edição do Programa de Incentivo à Produção Acadêmica em Direitos Humanos, entre fevereiro e junho de 2012, sob orientação de Sonia Corrêa, pesquisadora associada da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política. O programa é uma parceria entre a Conectas Direitos Humanos e a Fundação Carlos Chagas. Mais informações disponíveis em: http://www.conectas.org/pt/acoes/sur/noticia/e-possivel-aliar-ativismo-e-escrita-academica. Último acesso em: Nov. 2013.

Ver as notas deste texto a partir da página 196. 19 SUR 181-197 (2013) ■

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INQUISIÇÃO CONTEMPORÂNEA: UMA HISTÓRIA DE PERSEGUIÇÃO CRIMINAL, EXPOSIÇÃO DA INTIMIDADE E VIOLAÇÃO DE DIREITOS NO BRASIL

consulta na clínica em questão, o episódio suscitou um clima acusatório na arena pública, provocando reflexões sobre as condições em que se dá o acesso ao aborto, a ideologia e os valores que informam o debate sobre o tema no Brasil. O texto se baseia em pesquisa documental, observações empíricas do Tribunal do Júri e revisão bibliográfica. A próxima seção apresenta a trajetória recente da afirmação dos direitos das mulheres no cenário internacional. Em seguida, o artigo traça um panorama do cenário político, social e econômico de Mato Grosso do Sul, contextualizando o “caso das dez mil”. Posteriormente, descreve os debates do Tribunal do Júri sobre este caso e, por fim, traz considerações sobre os argumentos utilizados no julgamento, com base nas reflexões críticas disponíveis acerca das restrições impostas pela lei criminal aos direitos reprodutivos, em particular no caso do aborto, em termos de violação da privacidade e da igualdade, bem como do desrespeito às mulheres como sujeitos éticos e capazes de decidir sobre suas vidas.

2 Direitos das mulheres, direitos reprodutivos e a criminalização do aborto Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 afirme a igualdade entre os sexos ao garantir que todas as pessoas têm os mesmos direitos e liberdades assegurados, “sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” (NAÇÕES UNIDAS, 1948, art. 2), o texto ainda se fundamenta na perspectiva genérica do homem (branco, heterossexual, ocidental) como sinônimo de humano (PIOVESAN, 2002). O processo de internacionalização dos direitos humanos, inaugurado com a Declaração Universal, seria aprimorado no que diz respeito às mulheres, crianças, indígenas e a população negra, na medida em que as especificidades, diversidades e diferenças foram integradas ao discurso dos direitos humanos como fatores de desigualdade e discriminação. Portanto, os direitos humanos são mutáveis, podem e devem ser alterados quando se transformam as sociedades e culturas (PIOVESAN, 2002; 2008; 2010). Em 1979, outro passo fundamental foi a aprovação da Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, que rompeu a fundamentação masculina como paradigma de humanidade que caracterizava a retórica da Declaração Universal de 1948. Momento notável ocorreu em 1993, na Conferência Internacional de Direitos Humanos, em Viena. O Artigo 18 da Declaração de Viena afirma que os direitos humanos das mulheres e meninas são inalienáveis, princípio incorporado posteriormente a outras convenções e conferências das Nações Unidas (IKAWA; PIOVESAN, 2009; BARSTED, 2002). Dito de outro modo, na era contemporânea, os direitos humanos não devem ser pensados dissociados dos debates acerca das desigualdades de gênero, capazes de refletir o valor simbólico atribuído culturalmente aos femininos e masculinos que “embasam discriminações e fundamentam relações de poder” (BARSTED, 2001, p. 3). Em busca da equidade, o princípio da igualdade deve considerar as relações de gênero nas diferentes sociedades (BARSTED, 2001). No campo de intersecção entre direitos humanos e gênero, os direitos 182 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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reprodutivos têm um sentido crucial, pois envolvem o direito das pessoas de decidirem livremente, e sem quaisquer tipos de coerção ou constrangimentos, sobre ter ou não ter filhos, bem como a quantidade e o intervalo de tempo entre as gestações, dispondo de informação atualizada e métodos contraceptivos eficientes, além de segurança e assistência social, de saúde de qualidade. No entanto, Corrêa e Petchesky (1996) lembram que mulheres e homens não têm as mesmas prerrogativas no campo da reprodução, porque são as mulheres que engravidam e são elas as maiores responsáveis pelo cuidado e pela educação dos filhos – na maioria dos casos, sem nenhum tipo de apoio dos pais. Se tomarmos o problema da contracepção como ilustração, o princípio da igualdade exigiria que, na medida em que os métodos contraceptivos trazem riscos e benefícios, estes riscos e benefícios fossem distribuídos em uma base justa entre homens e mulheres, assim como entre as mulheres. Isso sugeriria uma política populacional que enfatizasse a responsabilidade masculina na esfera do controle da fecundidade e a pesquisa científica sobre métodos contraceptivos masculinos eficientes (Pies/Sd). Entretanto, esta política poderia também entrar em conflito com o direito básico da mulher de controlar sua própria fecundidade e a necessidade que muitas mulheres sentem de preservar este controle, às vezes em segredo e sem “ igual divisão” dos riscos. (CORRÊA; PETCHESKY, 1996).

Para as autoras, os direitos sexuais e reprodutivos devem considerar tanto as relações de poder na esfera privada quanto os recursos disponíveis às mulheres para as decisões nessa esfera. Desse modo, a possibilidade de exercer os direitos reprodutivos depende das condições sociais, culturais, econômicas, de gênero, classe, raça, etnia e geração, e não pode prescindir de políticas públicas que assegurem acesso à informação e aos serviços. As autoras sinalizam, portanto, que os direitos sexuais e reprodutivos não dizem respeito, exclusivamente, às “liberdades particulares” ou “escolhas individuais”, mas também implicam outras dimensões, como o direito à integridade corporal, a autoestima, o acesso à educação e à renda e o respeito à capacidade das mulheres de tomar decisões éticas sobre suas vidas. Corrêa e Petchesky (1996) consideram, assim, que os direitos sexuais e reprodutivos são também direitos sociais. Contudo, o ônus da gravidez indesejada recai sobre as mulheres, em que pese a participação dos homens na reprodução biológica. Em todo o mundo morrem, anualmente, milhares de mulheres vítimas de causas relacionadas com o aborto. No Brasil, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, anualmente, 1,4 milhão de mulheres recorre ao aborto inseguro, e que uma em cada mil perde a vida (COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA LATINA E O CARIBE, 2010). Adicionalmente, há severos impactos na saúde, trajetória de vida e dignidade, pois estão sempre sujeitas à criminalização. Em relatório apresentado no ano de 2011, o Relator Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Direito à Saúde afirma que as medidas que criminalizam o aborto constituem “forma injustificável de coerção sancionada pelo Estado e uma violação do direito à saúde” (NAÇÕES UNIDAS, 2011, p. 7). Conforme a pesquisa Aborto e Religião nos Tribunais Brasileiros (2008), entre 2001 e 2006 houve 781 casos de aborto na justiça, com um baixo número de processos 19 SUR 181-197 (2013) ■

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envolvendo aborto inseguro se comparado à interrupção por anencefalia, violência sexual e risco de vida à gestante, mas com a forte presença da criminalização ou tentativa de criminalização do aborto clandestino (GONÇALVES; LAPA, 2010). Tal realidade não mudou significativamente nos últimos anos, ainda existem mulheres sendo processadas judicialmente por terem abortado. Entre elas se incluem pelo menos parte das quase dez mil mulheres de Campo Grande (MS) estigmatizadas por um episódio que pode ser, alegoricamente, associado aos procedimentos inquisitoriais de “caça às bruxas”. Esses procedimentos culminaram com o julgamento, pelo Tribunal do Júri, de quatro funcionárias da Clínica de Planejamento Familiar, em 8 de abril de 2010.

3 Os direitos humanos no Mato Grosso do Sul e o “caso das dez mil” Mato Grosso do Sul está situado no Centro-Oeste brasileiro e tem no agronegócio o principal pilar de sustentação econômica. Campo Grande, capital do estado, tem população estimada em 832.352 mil pessoas (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2013). Associado à vocação agropecuária e, a partir da última década, à produção de álcool por usinas de cana-de-açúcar, a região é marcada por contrastes e intensas desigualdades. Abriga a segunda maior população indígena do país, além de diversos assentamentos rurais e comunidades quilombolas,2 muitos dos quais se encontram em situação de pobreza. A concentração de renda é acentuada, e os setores tradicionais e conservadores têm grande influência e representação nos parlamentos, no Executivo e Judiciário. Tanto a cultura política quanto a vida social exibem fortes traços patriarcais e androcêntricos. A presença de grupos religiosos dogmáticos no campo político sempre existiu, mas se intensificou a partir dos anos 2000, quando o Governo Estadual instituiu um novo sistema de apresentação de emendas parlamentares ao orçamento. Por esse sistema, os 24 deputados estaduais podem destinar recursos para atender demandas específicas de suas bases eleitorais. Tais verbas podem contemplar, inclusive, projetos ligados ao assistencialismo religioso, como a construção ou reforma de salões paroquiais; atividades dos grupos de apoio a alcoolistas; assistência a famílias semteto, gestantes e migrantes; oferecimento de cursos profissionalizantes; o trabalho das pastorais (como as da Criança, da Terra, do Índio, da Mulher) e as instituições sociais evangélicas. Com a destinação de recursos públicos, criou-se um terreno fértil para a cooptação eleitoral da população beneficiada por esse conjunto de ações.3 A vinculação de autoridades públicas aos grupos religiosos se reflete na influência de posições dogmáticas e antifeministas sobre as leis e políticas. Exemplo disso foi a apreciação, em 2005, pela Assembleia Legislativa, de um projeto de lei que proibia a distribuição e o comércio da “pílula do dia seguinte”, anticoncepcional de emergência. A iniciativa provocou um intenso debate público, mobilizado pelo movimento de mulheres, resultando no arquivamento da proposta. Naquele mesmo ano, a Câmara Municipal da capital negou a concessão do certificado de utilidade pública que vinha sendo pleiteado pela Associação das Travestis de Mato Grosso do Sul. Essa recusa, reiterada em 2007, foi precedida por uma audiência pública na Primeira Igreja Batista, repleta de parlamentares, 184 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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pastores e fiéis que professaram discursivos enviesados, crenças religiosas, moralistas e homofóbicas, criando uma atmosfera negativa e constrangedora para a população homossexual e transexual da cidade. Em 2009, os vereadores aprovaram um projeto de lei de restrição à exposição de propagandas, capas de revistas e outdoors com pessoas seminuas, manequins de lingerie nas vitrines, produtos de sexshops, etc. Conhecido como Lei Anti-Pornografia, o projeto foi vetado pelo prefeito. No ano seguinte, um projeto aprovado pelos vereadores proibiu o uso das chamadas “pulseirinhas do sexo”4 nas escolas públicas e privadas do município. Proposta similar estendeu a proibição para todo o estado. Em 2011, os vereadores promoveram um levante contra a instalação de máquinas de disponibilização de preservativos nos órgãos municipais, escolas públicas e privadas, contrariando a recomendação do programa “Saúde e Prevenção nas Escolas”, do Ministério da Educação. Foi nesse cenário que eclodiu o caso das mulheres criminalizadas por aborto. O episódio foi deflagrado em 10 de abril de 2007, quando uma reportagem realizada com câmera escondida foi exibida pela maior emissora de TV da região, denunciando a Clínica de Planejamento Familiar pela prática do aborto.5 A Polícia Civil da capital iniciou as investigações no dia seguinte, e já no dia 12 representantes da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Vida Contra o Aborto do Congresso Nacional se reuniram com o Procurador-Geral de Justiça do MS cobrando a instauração de um processo contra a proprietária da clínica, a anestesiologista Neide Mota Machado (IPAS, 2008; CAMPOS, 2008). No dia 13 de abril, agentes da polícia, de posse de um mandado de busca e apreensão, fecharam o estabelecimento sem a presença da proprietária, e confiscaram materiais como instrumentos cirúrgicos, remédios e seringas. Também foram confiscados os prontuários médicos de 9.896 mulheres que haviam passado pela clínica desde o início do seu funcionamento, há aproximadamente 20 anos (CAMPOS, 2008; IPAS, 2008). Três meses depois, o Ministério Público Estadual denunciou Neide Mota e mais oito funcionários de sua clínica pelo crime de aborto, que teria sido realizado em 25 mulheres (IPAS, 2008).6 As 9.896 fichas médicas recolhidas foram incluídas nos autos como prova para os indiciamentos. Para que o crime não prescrevesse, o Ministério Público apresentou denúncia contra todas as mulheres (CAMPOS, 2008; IPAS, 2008), cujo número equivalia ao de mulheres que ocupavam as prisões em Campo Grande. Os processos foram estruturados com base nas fichas que continham exames de ultrassonografia, testes de gravidez positivos e formulários assinados por mulheres autorizando os procedimentos médicos, independentemente do tipo de atendimento realizado, excluindo os casos de prescrição do suposto crime (IPAS, 2008 e GALLI; CAMPOS, 2008; 2011). Esses critérios resultaram na acusação contra 1.500 mulheres pelo crime de aborto (CAMPOS, 2011). Ademais, as primeiras mulheres indiciadas compareciam à delegacia sem conhecer o motivo da intimação sendo interrogadas sem receber informações sobre seus direitos, como o de permanecerem em silêncio, de serem acompanhadas por advogado ou defensor público, numa flagrante violação do direito à ampla defesa e descumprimento das garantias judiciais (GALLI; CAMPOS, 2010). Foi oferecida a algumas delas a suspensão do processo, desde que aceitassem colaborar com as 19 SUR 181-197 (2013) ■

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investigações e sob uma série de condições.7 Somente cinco homens foram processados nessa fase (IPAS, 2008) e estima-se que menos de dez tenham sido indiciados. Durante três meses, os processos (contendo nomes, acusação, endereços, etc.) ficaram disponíveis para consulta no website do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJ/MS). A página atraiu grande curiosidade pública acerca da identidade das mulheres que haviam praticado abortos e representou uma violação do direito constitucional à intimidade e privacidade (IPAS, 2008). Com base na Lei 9.099/95 – que prevê a aplicação de penas alternativas –, muitas mulheres tiveram como punição o pagamento de multa, a prestação de serviços comunitários ou a doação de cestas básicas, de acordo com opção individual em consonância com a situação financeira. Mulheres pobres optaram pela prestação de serviços e foram condenadas a realizar trabalhos em creches e escolas, para que vissem as crianças e se arrependessem do ato que praticaram, segundo declaração do juiz à imprensa (IPAS, 2008). Embora 1.500 mulheres tenham sido indiciadas, não é exagero afirmar que todas as quase 10 mil mulheres tiveram seus direitos violados, na medida em que nem o sigilo médico nem sua privacidade foram respeitados. Os prontuários médicos foram apropriados e manuseados pelos policiais, promotores e outras autoridades sem o acompanhamento de um perito, o que configura violação do direito à confidencialidade médica, assegurado pela legislação brasileira (IPAS, 2008 e GALLI; CAMPOS, 2008; 2011). Pode-se dizer ainda que, mesmo antes dessa violação da privacidade e do sigilo por efeito da lei penal e dos procedimentos inaceitáveis de investigação, os direitos reprodutivos dessas mulheres também foram desrespeitados. Um dossiê produzido pelo Ipas Brasil e Grupo Curumim revela que as políticas de planejamento familiar e de saúde materna são frágeis e limitadas neste estado (COSTA et. al., 2010). O estudo aponta falhas no Programa de Planejamento Familiar da capital “referentes à qualidade do atendimento médico, à manutenção do estoque de medicamentos e consequentemente da continuidade da oferta dos métodos contraceptivos” (COSTA et. al., 2010, p. 31). Além disso, até o ano de 2008 não existia no MS serviço de abortamento legal para casos de estupro e gravidez de risco à vida da gestante. No processo de investigação e denúncia do “caso das dez mil”, os desembargadores do TJ/MS decidiram por unanimidade submeter a um júri popular a dona da Clínica de Planejamento Familiar – Neide Mota Machado – e quatro de suas funcionárias. Meses antes do julgamento, porém, na tarde do dia 29 de novembro de 2009, Neide foi encontrada morta dentro do carro, numa estrada erma, perto da chácara onde morava. No automóvel, foram encontradas duas seringas, um frasco de cloridrato de lidocaína e um bilhete com frases que remetem à morte: “que não houvesse pânico, nem trauma, nem dor”. Dias antes, Neide havia registrado em cartório o desejo de ser cremada, levando a polícia a suspeitar de suicídio (MANIR, 2009). A morte misteriosa provocou o alarde. Segundo matéria publicada em jornal local, a médica deixara no ar muitas interrogações, pois havia gravado em CD informações sobre os procedimentos médicos com nomes de meninas e adolescentes menores de 15 anos e de cerca de dez mil homens envolvidos nos casos de aborto, incluindo autoridades e pessoas renomadas na sociedade (BOCA DO POVO, 2009). Após investigação, as autoridades concluíram que a médica havia cometido suicídio, 186 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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mas para muitos sua morte não foi completamente explicada. Como lembrou Arilha, secretária executiva da Comissão de Cidadania Reprodutiva (organização que atua na defesa dos direitos reprodutivos), Neide seria levada a júri popular dali a poucos meses: “[...] talvez chegasse a usar de sua tribuna para falar, uma vez mais. Falar da hipocrisia nacional quando se trata de direitos reprodutivos, que a uns e umas tudo permite, e a outras, cala, mente e mata” (ARILHA, 2009). Cerca de três anos após o fechamento da Clínica de Planejamento Familiar, quatro ex-funcionárias do estabelecimento foram julgadas pelos crimes de aborto e formação de quadrilha.

4 Tribunal do Júri: inquisição contemporânea? O julgamento das quatro ex-funcionárias da Clínica de Planejamento Familiar, iniciado em 8 de abril de 2010, durou dois dias. Apesar de toda a repercussão do caso, pouco mais de 30 pessoas ocupavam a sala destinada ao julgamento: amigos e familiares das rés, alguns estudantes, operadores do Direito e apenas cinco feministas da cidade. Não houve qualquer tipo de manifestação pública na frente do Fórum, mas jornalistas de diversas emissoras de TV, jornais impressos e sites de notícias cobriam o evento. A síntese da acusação apontou as duas primeiras reportagens exibidas na TV como o estopim da investigação criminal. Na primeira matéria, um repórter e uma produtora apresentaram-se na clínica como um casal interessado em fazer um aborto. Usando uma câmera escondida, eles foram informados sobre os preços do procedimento. Na segunda reportagem, que não utilizou o recurso da câmera oculta, Neide Mota admitiu ao jornalista Honório Jacometto que fazia abortamentos, a pedido das clientes. As rés foram acusadas de envolvimento em 26 abortos realizados pela Clínica de Planejamento Familiar em vinte e cinco mulheres,8 arroladas como testemunhas de acusação. Durante a fase interrogatória, as enfermeiras explicaram seu trabalho na clínica. Duas delas afirmaram que a clínica só realizava procedimentos de retirada de aborto retido, de quistos, curetagem e colocação do Dispositivo Intra-Uterino (DIU), sendo frequentada por pessoas de todas as classes, inclusive indicadas por outros médicos. A psicóloga disse que sua função era fazer a triagem das pacientes, quando indagava sobre os motivos que levavam aquelas mulheres a optar pela interrupção da gestação, falava dos métodos contraceptivos, explicava os procedimentos e mostrava alternativas ao aborto. Ela ressaltou que seu papel não era de convencimento, e que a interrupção era uma decisão que cabia às mulheres grávidas. A promotoria iniciou sua exposição no tribunal exibindo o vídeo com a gravação da reportagem de TV em que Neide Mota confirmou a realização de abortos. Na entrevista, ela realçou os riscos acarretados à saúde pelo aborto sem assistência médica adequada, disse que a proibição não impedia a prática e que, portanto, seria melhor legislar a favor. Uma das maiores preocupações do promotor Douglas Oldegardo Cavalheiro dos Santos era “o desvio indutivo do processo dessa polêmica” (SANTOS, 2010, informação verbal), pois, segundo afirmou, não se tratava de ser a favor ou contra o aborto: a discussão do júri deveria ser pautada pela lei, ainda que as ONGs tivessem ameaçado denunciar o caso internacionalmente. Sublinhou que as atividades da 19 SUR 181-197 (2013) ■

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Clínica configuravam claramente uma violação do direito à vida, pois em nenhum lugar do mundo, mesmo onde o aborto é legal, o procedimento é feito logo na primeira vez em que a mulher recebe atendimento. A argumentação da promotoria destacou os efeitos nefastos do aborto sobre a integridade psicológica da mulher e apontou os interesses financeiros, o caráter mercantilista e de segregação social que caracterizavam as atividades da Clínica. O promotor denunciou que na clínica havia medicamentos vencidos, remédios veterinários utilizados para “porca abortar”9 e uma “máquina nojenta de sugar” (SANTOS, 2010, informação verbal), que ele exibiu no tribunal. Nenhum movimento feminista seria favorável ao que acontecia ali, declarou. Apenas dois advogados de defesa se manifestaram durante o julgamento. Um deles, responsável pela defesa da psicóloga, exibiu a gravação da primeira reportagem de TV sobre o caso, feita com câmera escondida. Nessa matéria, sua cliente aparece orientando o suposto casal que buscava o serviço de aborto. O advogado chamou a atenção para o caráter ilegal da gravação da TV Morena, afiliada da Rede Globo, e sublinhou a hipocrisia da sociedade em relação ao aborto. Além de contestar as provas apresentadas para demonstrar a prática de abortos na clínica, esse advogado conduziu os jurados a uma reflexão sobre os motivos que levaram um contingente tão grande de mulheres a optar pela interrupção da gravidez. Após dois dias de julgamento, o júri decidiu condenar as ex-funcionárias da Clínica, que receberam penas de prisão em regime semiaberto. Rosângela de Almeida recebeu a condenação de sete anos; Simone, de seis anos e quatro meses; Maria Nelma, de quatro anos; e Libertina, de um ano e três meses. Posteriormente, a defesa recorreu contra a sentença condenatória, os recursos foram analisados e em outubro de 2010 as funcionárias da clínica tiveram suas penas reduzidas pelo TJ/MS: Rosângela teve a pena encurtada para um ano; Simone, para dois anos; Maria Nelma, para dois anos; e Libertina, para dez meses.

5 Interpretando o julgamento Como observado anteriormente, a cultura política e a dinâmica social de Mato Grosso do Sul se caracterizam por conservadorismo, traços patriarcais, coronelismo e crescente influência do dogmatismo religioso sobre a política. Existe evidente troca de benefícios políticos entre o Estado e as instituições e lideranças religiosas que infringem abertamente os princípios do Estado laico. As elites locais e a lógica dominante dos jogos de poder tendem a perpetuar padrões que impedem a plena igualdade entre homens e mulheres, o respeito às diferenças e aos direitos sexuais e reprodutivos. Neste contexto, pode-se aplicar a análise de Mujica (2011), para quem as mudanças em curso desde os anos 1980, nos Estados oligárquicos da América Latina, combinadas com modelos neoliberais de governabilidade, impeliram os grupos conservadores a deslocarem seus argumentos, pautados na tradição-família-religião, para a “defesa da vida” no sentido amplo. A defesa da vida é um princípio valorizado pelas democracias contemporâneas, considerado imprescindível para o exercício dos Direitos Humanos. No entanto, o uso instrumental da defesa da vida pelos grupos religiosos abre inúmeras possibilidades para manipulação ideológica e intervenção 188 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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nos debates políticos, legislativos e jurídicos no campo dos direitos reprodutivos. O conceito de vida articulado por esses grupos não é o mesmo que se identifica na gramática dos direitos humanos. Sua argumentação enfatiza a sacralização da vida como emanação de Deus, o que conferiria à Igreja a responsabilidade plena de “legislar” sobre esse domínio e, portanto, sobre todas as condutas sociais que dizem respeito à reprodução e preservação da vida biológica. Isso implica esforço permanente desses grupos para influenciar leis e políticas, penetrar o discurso dos direitos humanos e o aparato estatal “introduzindo, de ‘contrabando’, um discurso conservador de exclusão do diferente e do que chamam de ‘anormal’” (MUJICA, 2011, p. 341). O caso “das dez mil” é, sem dúvida, uma ilustração de como, no Brasil – e particularmente no Mato Grosso do Sul -, as forças religiosas conservadoras têm lançado mão de estratagemas de várias ordens, inclusive jurídicos, para restringir as premissas de liberdade e colonizar a sexualidade e a reprodução a partir de normas dogmáticas. O julgamento descrito neste texto torna evidente como o recurso à lei penal favorece essa “colonização”. Quanto ao aborto inseguro, é preciso considerar ainda os problemas observados nos serviços públicos de saúde, pois o acesso aos anticoncepcionais, como em outros locais do país, continua restrito às mulheres mais pobres. A renda e a posição social condicionam o acesso a consultas ginecológicas regulares e meios anticoncepcionais, assim como o aborto em condições seguras. Ou seja, as condições sociais levam um grande contingente de mulheres a decidir interromper a gravidez. Esse foi um aspecto enfatizado durante o tribunal do júri pelo advogado de defesa da psicóloga que trabalhava na Clínica de Planejamento Familiar em Campo Grande: O que eu gostaria de perguntar é: por que essas mulheres foram levadas a fazer aborto? A pessoa não tem como criar ou o pai não quis assumir o filho? Foi forçada pelo namorado ou pelo marido ou pelo noivo? Quantas pessoas nós sabemos que foram obrigadas a entregar o seu filho porque não tiveram condição de criar? Estou dizendo alguma mentira aqui? Essas crianças de rua em Campo Grande... Não é o fato de ser a favor ou contra o aborto, não! É preciso ver o íntimo de cada um. Como eu posso entrar no coração de uma pessoa que é terna, que ninguém conhece? Como eu posso? Campo Grande tem em torno de 800 mil pessoas. Essas 10 mil mulheres... Dá 5% da população, ao longo desses 20 e tantos anos. Isso estava na sala da Dra. Neide, era documento médico, estava na sala dela. (SIUFI, 2010, informação verbal).

As indagações do advogado enfatizam também outro ponto crucial: o respeito à privacidade das mulheres que optam pelo aborto. O dilema de levar adiante uma gestação indesejada ou interrompê-la diante das particularidades da história de vida das mulheres é um assunto de foro íntimo, indevassável. Vale lembrar, o direito à privacidade é uma premissa da Constituição Federal de 1988, que, em seu Artigo 5°, inciso X, afirma: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (BRASIL, 1988, art. 5°, inciso X). Segundo Sarmento (2006), o princípio da autodeterminação reprodutiva é imprescindível para preservar a dignidade da pessoa 19 SUR 181-197 (2013) ■

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humana, pois envolve questões da intimidade do indivíduo na escolha do melhor para sua vida, sem interferências de terceiros. Cada cidadã e cidadão é um agente autônomo capaz de tomar decisões com base em valores, ideologias, crenças e razões pessoais, situações específicas de vida e planos traçados para o futuro, utilizando-se da liberdade como guia. No entanto, na medida em que mulheres e homens são diferentemente afetados pelo impacto da reprodução sobre o organismo, obrigar as mulheres a uma gravidez indesejada viola a integridade, fere a dignidade e reduz seus corpos a meros instrumentos de reprodução. Isso cria a necessidade de garantias legais que protejam a individualidade e a decisão das mulheres. A lei penal restritiva, porém, incide como um castigo sobre as mulheres. No “caso das dez mil”, por exemplo, apenas cinco homens foram indiciados. Chamar a atenção para essa disparidade não signif ica apelar para uma nova caça, dessa vez “aos bruxos”. Não propomos um uso seletivo da lei penal, nem pretendemos simplesmente defender a punição para os homens, mas apenas evidenciar a desigualdade de gênero no tratamento jurídico da questão do aborto. Como lembra Ventura (2006), há uma desproporcionalidade brutal no controle do Estado sobre a vida reprodutiva das mulheres. A questão está diretamente ligada à assimetria de poder entre os gêneros que prevalece na sociedade. O desprezo pelas mulheres que recusam dar seguimento à gestação indesejada e o comportamento irresponsável de muitos homens diante da paternidade são aspectos tolerados socialmente (DOMIGUES, 2008). Apesar de existirem leis sobre a responsabilidade do pai, Ao homem é facultada a escolha entre formar uma família, prover o sustento da família sem nem ao menos construir um vínculo afetivo com ela, ou apenas abandonar suas parceiras, sem sequer tomar conhecimento do produto de sua relação sexual. (DOMINGUES, 2008, p. 94).

Soma-se a isso a dificuldade de muitas mulheres para enfrentar a resistência masculina ao uso de preservativos. Para o juiz Torres (2010), o sistema penal apresenta características fortemente androcêntricas e cujo discurso de proteção à vida esconde o caráter político do controle da sexualidade feminina, perpetuando preconceitos e desigualdades. Ou seja: a criminalização do aborto é mantida na legislação penal (grosso modo, redigida por homens) com o objetivo de policiar o sexo das mulheres. Ademais, a restrição legal da interrupção voluntária da gravidez no país afronta o direito à igualdade, estabelecido no Artigo 5°, inciso I, da Carta Magna, pois induz a discriminações tanto entre as classes sociais – uma vez que as consequências do aborto inseguro atingem mais intensamente as mulheres em situação de pobreza –, quanto entre os gêneros – já que impõe um ônus maior às mulheres do que aos homens (SARMENTO, 2006; VENTURA, 2006). Em síntese, o proibicionismo tem contribuído para a morte seletiva de mulheres, apenas mulheres, sobretudo as mais pobres. Zaffaroni (2011) denuncia o caráter arbitrário e altamente seletivo do poder punitivo, um modelo de imposição vertical de poder avesso à solução de conflitos, 190 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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característico de sociedades altamente hierarquizadas. Para o jurista, o modelo punitivo é radicalmente excludente e ineficaz, além de não solucionar, impede ou dificulta a combinação com outros modelos, como o reparador, o terapêutico e o conciliatório, que resolvem as situações de outra maneira. Na lógica punitiva, a pessoa lesionada não tem o poder de participar, de decidir sobre a resolução do conflito, mas deve obrigatoriamente se declarar vítima por força impositiva. Além disso, essa lógica tende a reduzir o poder jurídico a formas de coerção direta, ao exercício do policiamento extensivo, que guarda um componente latente e irracional de vingança. Seu conteúdo pode variar segundo o “inimigo que está na mira”, mas, para o poder punitivo, nada deve representar um empecilho à tarefa de salvaguardar a ordem moral. Os efeitos do poder coercitivo derivado da lei penal puderam ser observados em diversos momentos, durante o julgamento das funcionárias da Clínica de Planejamento Familiar. Isso ocorreu, por exemplo, quando o magistrado negou o pedido da defesa de que a escolta das mulheres no banco das rés fosse dispensada: Com relação à escolta, as acusadas, apesar de serem mulheres... Enfim, a tradição é manter a escolta. O tratamento que elas terão será igual ao de outras que aqui estiveram. Eu apenas pedi que viesse também policial feminina. Vamos pedir que os policiais fiquem um pouco afastadas por que [as rés] não são perigosas. Mas, de qualquer forma, a escolta tem que ter para que não sejamos surpreendidos por situações imprevisíveis; então a policial ficará. (SANTOS, 2010, informação verbal).

Outro aspecto a ser sublinhado, diz respeito à ineficácia da lei penal, apontada por Zaffaroni (2011). A criminalização não impede que milhares de mulheres driblem a lei e realizem abortos inseguros, seja com uso de medicamentos, seja buscando clínicas clandestinas. O proibicionismo da lei criminal gera, portanto, dor, sofrimento, medo e até a morte de muitas mulheres. A legislação punitiva reforça estigmas, tornando o exercício do direito de decidir sobre suas vidas um ato abominável. Não se trata de fazer uma apologia do aborto, nem de defender a interrupção da gestação como um método anticonceptivo. A questão também não se resume à necessidade de garantir a liberdade das mulheres sobre seu próprio corpo. Sob o ponto de vista dos direitos sexuais e reprodutivos, a decisão sobre o aborto implica tanto parâmetros éticos quanto mecanismos que possibilitem o exercício emancipatório dos indivíduos, no âmbito sexual, e da capacidade reprodutiva com plena autonomia e dignidade (PIMENTEL apud TORRES, 2010). Tal avaliação requer um tratamento não absolutista do direito do embrião à vida. É pertinente recordar que o ordenamento jurídico de muitas democracias contemporâneas permite a interrupção voluntária da gravidez sem deixar de garantir a defesa da vida, inclusive da vida intrauterina. Por mais profundas que possam ser as divisões provocadas pela diversidade de pensamento, pluralidade de crenças e divergência entre orientações ideológicas (características das sociedades democráticas), há sempre um viés humanitário, que confere valor intrínseco à vida humana. Esse traço comum deve ser ressaltado, como afirma o professor Dworkin: “o que compartilhamos é mais fundamental do que nossas divergências sobre sua melhor interpretação” (DWORKIN, 2009, p. 99). 19 SUR 181-197 (2013) ■

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A liberdade religiosa e a de consciência são princípios defendidos pela Constituição Federal, mas o Estado brasileiro é laico. Isso significa que o país não pode legislar nem construir políticas irrestritas com base em crenças morais ou religiosas (BRASIL, 1988, artigo 19, inciso I). É preciso considerar ainda que o direito à vida não é um valor absoluto, como mostram os sistemas legais que avalizam a imputabilidade do homicídio em legítima defesa (LOREA, 2006; VENTURA, 2006). O embrião tem a potencialidade da vida, mas não é uma pessoa; portanto, sua proteção jurídica não pode ser equivalente àquela facultada à pessoa humana. Existe um conflito entre os direitos da mulher e a proteção do embrião que pode ser resolvido por critérios de razoabilidade, passíveis de minimizar o sacrifício dos bens envolvidos e atender de forma pragmática o preceito da dignidade da pessoa humana (VENTURA, 2006). No plano jurídico e político, foi estabelecido um consenso internacional no que diz respeito aos dilemas entre a proteção da vida embrionária e o direito a interromper a gravidez (VENTURA, 2006). Nessa equação, o nível de proteção do embrião aumenta conforme seu estágio de desenvolvimento e suas possibilidades de sobrevivência fora do útero. Porém, o que não se admite é que a proteção ao nascituro fira de forma desproporcional os direitos fundamentais das mulheres, ou seja, as legislações e decisões buscam um ponto de equilíbrio entre direitos da mulher gestante e os interesses do Estado na proteção dos nascituros. (VENTURA, 2006, p. 186).

Muitas dessas legislações garantem a livre opção da interrupção da gestação não somente em situações de risco à saúde física, violência sexual e feto com anomalia incurável, mas também quando as mulheres passam por sofrimento emocional diante da gravidez, em decorrência de problemas econômicos, sociais e familiares, recomendando à existência de orientações à gestante e a busca de alternativas antes do abortamento. Essas experiências mostram a necessidade de ponderação entre o direito à vida do feto e os direitos das mulheres. Na impossibilidade de harmonizálos, é preciso admitir a prevalência de apenas um direito, com base no contexto e na delicada relação estabelecida entre a gestante e o nascituro (SARMENTO, 2006; TORRES, 2010). Esse entendimento de razoabilidade de direitos parece orientar a ética profissional da psicóloga que trabalhava na Clínica, conforme seu depoimento ao tribunal do júri: “O que estava em jogo não era a minha vida, era a vida delas [...] o que elas escolheriam para a vida delas” (SOUZA, 2010, informação verbal). Impor às mulheres a obrigação de levar adiante a gravidez indesejada implica coerção, agride a integridade física, mental, psicológica e intervém no campo dos desejos e projetos de existência. A reprodução não deve ser considerada como destino, martírio ou fardo, nem ser fonte de dor ou sofrimento. A lei criminal, portanto, viola o exercício da liberdade e a autodeterminação. Durante o julgamento do “caso das dez mil”, a Promotoria afirmou que o aborto é uma tragédia para a integridade psicológica da mulher, pois haveria “305 milhões de novas células quando o organismo engravida... Pode ocorrer depressão química, instintos suicidas, nos casos de abortos... É obrigatório interrogar a mulher para saber se ela está realmente apta e decidida a abortar com segurança” (SANTOS, 192 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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2010, informação verbal). No entanto, documento formulado pelo Relator Especial da ONU para o Direito à Saúde ressalta que as leis penais proibitivas em relação ao aborto ferem a dignidade humana, princípio fundamental ao exercício dos direitos humanos, já que afetam negativamente a saúde física e emocional das mulheres, entre outras razões, pela exposição ao risco da criminalização (NAÇÕES UNIDAS, 2011). De acordo com o relatório, quando se utiliza a legislação penal para regular e coibir condutas no âmbito da saúde sexual e reprodutiva, o Estado impõe sua força, submetendo e anulando o desejo do indivíduo, o que representa a interferência na intimidade e uma séria violação do direito à saúde sexual e reprodutiva. Desse modo, “a promulgação e a manutenção de leis que penalizam o aborto pode constituir uma violação da obrigação dos Estados de respeitar, proteger e fazer efetivo o direito a saúde” (NAÇÕES UNIDAS, 2011, p. 9). Vale ressaltar que o direito à saúde está gravado no Artigo 6° da Constituição Federal. O documento produzido pelo Relator Especial da ONU também reprova o uso da legislação como meio de intervir em convicções individuais e dissuadir as pessoas a não se evadirem da norma castigando o exercício de condutas tidas como “proibidas”. A utilização do sistema penal para controlar e regular comportamentos, valores e criminalizar escolhas e concepções morais atenta contra o Estado Democrático de Direito. Recorde-se que milhares de mulheres optam anualmente pelo aborto, no país e no mundo. O caráter discriminatório e coercitivo da lei penal ficou evidente no “caso das dez mil”, quando uma vez mais a lógica inquisitorial violou a privacidade das mulheres, submetendo-as ao castigo e à penalização cultivados pelo poder punitivo. A restrição da liberdade feminina no âmbito da sexualidade e da reprodução, especialmente em relação ao aborto, evidencia que a decisão no campo da autodeterminação reprodutiva e o exercício da liberdade como premissa constitucional, questões invioláveis da autonomia de legislar sobre sua própria história e futuro, ainda não são uma realidade garantida às mulheres no Mato Grosso do Sul e em todo o Brasil. Isso implica o desafio de fomentar sistematicamente a discussão dos direitos humanos, incluídos os direitos sexuais e reprodutivos, no sentido de ampliar e aprofundar a democracia nas instituições e na sociedade.

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NOTAS 1. Em 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) ajuizou uma petição de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54) alegando que a proibição da antecipação do parto em caso de gravidez de feto anencéfalo representa uma afronta à dignidade da mãe. No dia 12 de abril de 2012 o Supremo Tribunal Federal aprovou a antecipação do parto em casos de anencefalia. 2. Quilombos são assentamentos fundados no Brasil por escravos que fugiram antes da abolição da escravidão. Hoje na sua maioria são habitados por descendentes dos escravos. 3. Para Figueiredo e Limongi (2002) as emendas parlamentares ao orçamento federal buscam atender interesses específicos dos eleitores e a expectativa dos políticos “de que esses benefícios venham a ser convertidos em votos” (FIGUEIREDO; LIMONGI, 2002, p. 304). No Mato Grosso do Sul, essa política foi implantada no ano 2000, a partir do acordo entre o Governo do Estado e a Assembleia Legislativa que permitiu aos deputados indicarem a destinação de recursos do Fundo de Investimentos Sociais – FIS (MATO GROSSO DO SUL, 2000). Em 2012, cada deputado tinha o direito de indicar até R$800 mil em benefícios. 4. Nessa brincadeira as meninas usam pulseiras de silicone coloridas no braço e um garoto tenta arrebentar um dos adereços, cujas cores podem representar desde

um abraço até o sexo. Em algumas regiões do país, meninas que usavam as pulseiras foram estupradas. Depois disso, muitos municípios proibiram o adorno reforçando a ideia de que as mulheres com saias curtas, decotes e eventualmente pulseiras, provocam a própria violência sofrida (CALLIGARIS, 2010). 5. A reportagem feita pelos jornalistas Ana Raquel Copetti e Wiliam Souza foi veiculada em horário nobre no MS TV, telejornal local produzido pela TV Morena, emissora afiliada à Rede Globo, maior empresa televisiva do país. 6. Inicialmente foram denunciados oito funcionários da Clínica de Planejamento Familiar, mas quatro foram dispensados. As outras quatro trabalhadoras do estabelecimento, juntamente com a Dra. Neide, foram condenadas a julgamento por um júri popular. 7. Ao longo do caso foram oferecidos três tratamentos processuais distintos: a suspensão do processo mediante a aplicação de penas alternativas, a suspensão do processo mediante o cumprimento de certos requisitos e a prescrição da pena para os abortos realizados há mais de oito anos. 8. Uma das testemunhas de acusação realizou dois abortos na clínica. 9. O promotor referia-se ao medicamente Cytotec. Em alguns momentos de sua exposição, pôde-se observar o uso da palavra “crianças”, em vez de “fetos”.

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ABSTRACT In April 2007, Brazilian media reported the existence of a “Family Planning Clinic” that allegedly performed abortions in the city of Campo Grande (in the state of Mato Grosso do Sul). Three days later, the police raided the establishment and seized nearly 10,000 medical files, violating the privacy of women who had dared to exercise the freedom to make decisions and control their own lives. The article tells this story, known as the “case of the 10,000 women”, so as to reflect on the restrictions on women’s reproductive rights and to comment on the coercion resulting from the law that bans the voluntary termination of pregnancy in Brazil. KEYWORDS Human rights – Abortion – Reproductive rights – Women – Brazil

RESUMEN En abril de 2007, un reportaje denunció la existencia de una “clínica de planificación familiar” que supuestamente realizaba abortos en Campo Grande (capital del estado de Mato Grosso do Sul). Tres días después, la policía invadió el establecimiento, incautó cerca de 10.000 fichas médicas y divulgó su contenido, desvelando la intimidad de mujeres que osaron hacer uso de la libertad de tomar decisiones y cuidar de sus vidas. Este texto presenta esa historia, conocida como el “caso de las diez mil”, para hacer una reflexión sobre las restricciones a los derechos reproductivos de las mujeres, abordando algunas consideraciones acerca de la coerción derivada de la ley que prohíbe la interrupción voluntaria del embarazo en Brasil. PALABRAS CLAVE Derechos humanos – Aborto – Derechos reproductivos – Mujeres – Brasil

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ANA CRISTINA GONZÁLEZ VÉLEZ Ana Cristina González Vélez é médica, com mestrado em pesquisa social na área de saúde. Foi Diretora Nacional de Saúde Pública na Colômbia (2002-2004), médica e oficial de assuntos sociais na Divisão de Assuntos de Gênero da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe - CEPAL (2010). Atualmente é assessora do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e do Ministério de Saúde e Proteção Social da Colômbia. É pesquisadora externa do Centro de Estudos de Estado e Sociedade da Argentina, especialista em reformas do setor de saúde, saúde pública, saúde sexual e reprodutiva e incidência política e integrante da Mesa pela Vida e Saúde das Mulheres e do secretariado da Articulação Regional da América Latina e do Caribe para a Cairo+20. Email: acgonzalez@adinet.com.uy

VIVIANA BOHÓRQUEZ MONSALVE Viviana Bohórquez Monsalve é advogada, com pós-graduação em Direitos das Mulheres e Estratégias Jurídicas para a Incidência e em Direitos Humanos e Processos de Democratização pela Universidade do Chile. Email: viviana.bohorquez1@gmail.com

RESUMO Este texto faz parte de uma linha de pesquisa desenvolvida há vários anos pela Mesa pela Vida e a Saúde das Mulheres na Colômbia, orientada a identificar e analisar os avanços a favor dos direitos das mulheres que solicitam interrupção voluntária da gravidez ou aborto, em especial através do acompanhamento de decisões judiciais. O texto aborda quatro questões fundamentais. Em primeiro lugar, identifica os compromissos decorrentes do Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento do Cairo relacionados com o acesso ao aborto e à proteção da saúde reprodutiva. Em segundo lugar, apresenta um breve estudo sobre as leis sobre aborto e sobre o permissivo legal para a interrupção da gravidez em caso de risco à saúde da mulher (causal salud) na América Latina e no Caribe. Em terceiro lugar, contextualiza o aborto na Colômbia e discute os avanços da jurisprudência da Corte Constitucional da Colômbia sobre aborto no que diz respeito ao direito à saúde e outros direitos fundamentais relacionados. Em quarto lugar, propõe um conjunto de normas fixadas pela Corte Constitucional em relação ao aborto e outros direitos fundamentais a serem aplicadas na região da América Latina. Original em espanhol. Traduzido por Pedro Maia. Recebido em março de 2013. Aprovado em novembro de 2013. PALAVRAS-CHAVE Aborto – Causal salud – Permissivo por motivo de saúde – Normas – Corte Constitucional da Colômbia – Conferência Internacional de População e Desenvolvimento – Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento – Cairo Este artigo é publicado sob a licença de creative commons. Este artigo está disponível online em <www.revistasur.org>. 198 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


ESTUDO DE CASO DA COLÔMBIA: NORMAS SOBRE ABORTO PARA FAZER AVANÇAR A AGENDA DO PROGRAMA DE AÇÃO DO CAIRO*

Ana Cristina González Vélez e Viviana Bohórquez Monsalve

1 Introdução A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), realizada no Cairo em 1994, constitui um marco importante no que se refere ao aborto, à saúde e aos direitos reprodutivos no âmbito internacional dos direitos humanos. Hoje, quase vinte anos depois, sua agenda continua ativa, e alguns países conseguiram incorporar ao direito interno aspectos essenciais para a concretização dos direitos sexuais e reprodutivos (DSR), bem como para o gozo efetivo do direito à saúde. Nesse contexto, este estudo se propõe a identificar e sistematizar as normas jurídicos fixados pela Corte Constitucional da Colômbia (doravante a Corte) ao resolver os casos relacionados com aborto ou interrupção voluntária da gravidez (doravante IVG)1 quando se trata da proteção do direito à saúde, ou seja, conforme a exceção que se denominou causal salud.2 A causal salud, ou permissivo por motivo de saúde, se refere à exceção da punibilidade do aborto que se estabelece quando a saúde ou a vida de uma mulher estão em risco em consequência da gravidez. No marco dos direitos humanos, o conceito de saúde aqui incluído deve ser entendido como o nível mais alto possível de saúde física, mental e social, em harmonia com os conceitos de bem-estar e projeto de vida, os quais são determinantes sociais da saúde (GONZÁLEZ, 2008, p. 29). Na América Latina, os precedentes estabelecidos na Colômbia, no que se refere ao aborto, foram de grande importância, pois: *Este texto faz parte de uma linha de pesquisa desenvolvida há vários anos pela Mesa pela Vida e a Saúde das Mulheres na Colômbia, no qual contamos com a colaboração e os comentários de Juan Camilo Rivera e Paola Salgado Piedrahita.

Ver as notas deste texto a partir da página 212. 19 SUR 199-213 (2013) ■

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ESTUDO DE CASO DA COLÔMBIA: NORMAS SOBRE ABORTO PARA FAZER AVANÇAR A AGENDA DO PROGRAMA DE AÇÃO DO CAIRO

a utilização do direito internacional e comparado pela Corte Constitucional conecta as mulheres colombianas com as comunidades de mulheres em outros países que enfrentam e compartilham suas dificuldades, experiências e conhecimentos comuns em relação ao aborto. Ao longo das sentenças, a Corte dignifica as mulheres, exibindo uma profunda compreensão das situações que elas vivem. A abordagem do Tribunal Constitucional permite fazer uma aplicação contextual das normas de direitos humanos nacionais e internacionais. Ao incorporar uma perspectiva de gênero, a Corte dá sentido aos direitos humanos em geral e, particularmente, ao direito da mulher grávida à sua dignidade humana. (UNDURRAGA; COOK, 2009, p. 17).

2 Compromissos da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento do Cairo e processo de revisão vinte anos após sua implementação O Programa de Ação do Cairo é extenso e ambicioso, contendo mais de duzentas recomendações, com quinze objetivos nas áreas de saúde, desenvolvimento e bem-estar social. Uma característica essencial do programa é a recomendação de proporcionar atenção integral à saúde reprodutiva (NACIONES UNIDAS, 1994, pars. 7.1-7.11) que abarque o planejamento familiar (NACIONES UNIDAS, 1994, pars. 7.12-7.26), a uma gravidez sem riscos e os serviços de parto, o aborto (NACIONES UNIDAS, 1994, pars. 8.19-8.27), a prevenção e o tratamento das doenças sexualmente transmissíveis (inclusive o HIV e a Aids) (NACIONES UNIDAS, 1994, pars. 7.27-7.33), informação e assessoria sobre sexualidade e a eliminação de práticas danosas contra as mulheres. O Programa de Ação do Cairo definiu, pela primeira vez, aspectos fundamentais sobre saúde reprodutiva em um documento normativo internacional. Nos princípios que o fundamentam, diz-se expressamente que: o progresso na igualdade e equidade dos sexos, a emancipação da mulher, a eliminação de toda espécie de violência contra ela e a garantia de poder ela própria controlar sua fecundidade são pedras fundamentais de programas relacionados com população e desenvolvimento. Os direitos humanos da mulher e da menina são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. (NACIONES UNIDAS, 1994, princípio 4).

No princípio 8, reconhece-se que: [t]oda pessoa tem direito ao gozo do mais alto padrão possível de saúde física e mental. Os estados devem tomar todas as devidas providências para assegurar, na base da igualdade de homens e mulheres, o acesso universal aos serviços de assistência médica, inclusive os relacionados com saúde reprodutiva, que inclui planejamento familiar e saúde sexual. Programas de assistência à saúde reprodutiva devem prestar a mais ampla variedade de serviços sem qualquer forma de coerção. Todo casal e indivíduo tem o direito básico de decidir livre e responsavelmente sobre o número e o espaçamento de seus filhos e ter informação, educação e meios de o fazer. (NACIONES UNIDAS, 1994, princípio 8). 200 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


ANA CRISTINA GONZÁLEZ VÉLEZ E VIVIANA BOHÓRQUEZ MONSALVE

Esse princípio ultrapassa os conceitos tradicionais de atenção à saúde referentes à prevenção da doença e da morte, uma vez que promove uma visão mais integral, ou seja, fala-se de saúde mental e física e de outros direitos inter-relacionados como a autonomia, o direito à informação e à educação. Do mesmo modo, o Programa de Ação estabelece que os países devem adotar medidas para capacitar a mulher e eliminar a desigualdade (NACIONES UNIDAS, 1994, par. 4.4), e que, para tanto, é necessário eliminar todas as práticas de discriminação, ajudando a mulher a estabelecer e realizar seus direitos, inclusive os relativos à saúde reprodutiva e sexual. Além disso, enfatiza que: Os países devem desenvolver uma abordagem integrada das necessidades especiais de meninas e moças, especialmente nos campos nutricional, de saúde geral e reprodutiva, educacional e social, uma vez que esses investimentos adicionais em moças podem, muitas vezes, compensar antigas insuficiências em sua alimentação e cuidados de saúde. (NACIONES UNIDAS, 1994, par. 4.20).

Por outro lado, o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre a População e o Desenvolvimento do Cairo solicita aos governos e às organizações não governamentais a reforçarem seus compromissos com a saúde da mulher, a considerar o impacto dos abortos realizados em condições não adequadas um importante problema de saúde pública e a reduzir o recurso ao aborto mediante a ampliação e melhoria dos serviços de planejamento familiar. Do mesmo modo, afirma que em todos os casos “as mulheres devem ter acesso a serviços de qualidade para tratamento de complicações resultantes de abortos. Os serviços de orientação pós-aborto, de educação e de planejamento familiar devem ser de imediata disponibilidade, o que ajudará também a evitar repetidos abortos” (NACIONES UNIDAS, 1994, par. 8.25). Os progressos e desafios na implantação das estratégias sobre população e desenvolvimento foram revisados a cada cinco anos (1999, 2004, 2009), por isso é importante ressaltar que na Cairo+5 foram criadas as “medidas chave para seguir executando o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento” (NACIONES UNIDAS, 1999), como um instrumento para dinamizar e facilitar as tarefas dos Estados na implementação dos compromissos assumidos. Da revisão das medidas chave, podemos ressaltar em relação ao tema deste estudo: que quando o aborto não é contrário à lei, os sistemas de saúde devem capacitar e equipar o pessoal de saúde e tomar outras medidas para assegurar que o aborto se realize em condições adequadas e seja acessível. Devem-se tomar medidas adicionais para salvaguardar a saúde da mulher. (NACIONES UNIDAS, 1999, par. 63, alínea c).

Mas, além disso, insta a adotar medidas instrumentais para proteger a saúde das mulheres em termos de adequação e acessibilidade. Em 2014, completam-se vinte anos da assinatura desse compromisso, e, nesse momento, os governos do mundo, 19 SUR 199-213 (2013) ■

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à luz dos avanços e dos obstáculos, deverão renovar seu compromisso com a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos, bem como determinar desafios em termos de novos objetivos, medidas e ações que deverão ser efetuadas como parte da nova agenda de desenvolvimento. Trata-se de determinar as novas aspirações dos Estados nessa área. A identificação das normas sobre aborto proposta por esse estudo pode constituir-se numa ferramenta fundamental para avançar nessa plataforma em questões relativas à garantia do aborto seguro, na medida em que tais normas oferecem orientações para a definição de objetivos, medidas e ações. Além disso, elas são uma base sólida para avançar na inadiável tarefa de revisar a penalização total do aborto, por tratar-se de uma questão que põe em jogo a proteção e a garantia de direitos humanos fundamentais.

3 Aborto na América Latina e o Caribe (LAC) Em janeiro de 2012, o Instituto Guttmacher publicou um informe que adverte sobre a realidade do aborto no mundo. Ele situa a América Latina com as taxas de aborto induzido mais altas do mundo. De acordo com o documento, estima-se que 32 de cada 1000 mulheres entre 15 e 44 anos interromperam pelo menos uma gravidez. Em segundo lugar, encontra-se a África (com uma taxa de 29 abortos por 1000 mulheres), seguida de Ásia (28) e Europa (27). Embora esses procedimentos tenham caído entre 1995 e 2003 de 37 para 31 abortos induzidos para cada 1000 mulheres, em 2008 a taxa se estabilizou em 32. Dentro da região, as tendências variam: a América Central, incluindo o México, registra o número de abortos induzidos mais baixo, com 29 para cada 1000 mulheres (GUTTMACHER, 2012, p. 1). Esses números mostram mais uma vez a urgência de os Estados regularem essas práticas e assumirem a responsabilidade frente aos direitos sexuais e reprodutivos. Em consonância, constatamos que quase todos os países da América Latina e o Caribe (LAC) descriminalizaram o aborto quando existe risco para a vida e/ou a saúde da mulher, ou seja, reconheceram o que neste texto denominamos causal salud. Embora os alcances e limitações dessa causal variem conforme o país, é possível afirmar que, na maioria dos países da região latino-americana, o marco jurídico contempla a “saúde” ou a “saúde física e mental” como causa legal para a interrupção legal e voluntária da gravidez.3 Pode-se organizar esse reconhecimento da causal saúde em pelo menos três grandes grupos de países que protegem: (i) a vida; (ii) a saúde sem nenhum adjetivo, ou seja a saúde de forma integral; (iii) a saúde física e mental. Evidentemente, as legislações permitem combinações, isto é, há países que permitem o aborto quando se trata de proteger a vida da mulher e a saúde, ou a vida e a saúde física e mental. Por último, encontram-se os países nos quais o aborto é proibido em qualquer circunstância: Chile, Honduras, Nicarágua, El Salvador e República Dominicana. Nesses países, as mulheres têm seus direitos limitados e estão submetidas a riscos e perigos para sua vida e sua saúde em todos os casos. Os países em que o aborto se reduz à proteção do direito à vida são Venezuela, Paraguai, Panamá e Guatemala. Nos países onde não se fez nenhuma delimitação ou distinção sobre a 202 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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dimensão da saúde que se protege, parte-se Quadro 1 da premissa de que esse reconhecimento LEGISLAÇÃO SOBRE ABORTO NA LAC EM RELAÇÃO COM A CAUSAL VIDA E SAÚDE6 abarca a saúde como conceito integral. Entende-se a proteção da saúde em sentido Saúde sem Física amplo nos seguintes países: Argentina, Estado Vida Saúde e adjetivos Mental Bolívia, Colômbia, Costa Rica, 4 Equador, e Per u , Tr i n id a d e Tob a g o e Ur u g u a i Antígua Sim Não Sim Barbuda 5 (descriminalização total até a 12ª semana). Argentina Sim Sim Não Os países da L AC cuja legislação Bahamas Sim Não Não permite o aborto quando se trata de risco Belice Sim Não Sim Sim Sim Não para a “saúde mental e física” são, em grande Bolivia Sim Não Não parte, os do Caribe, como é o caso de Belize, Brasil Colômbia Sim Sim Não Barbados, Jamaica, Saint Kitts e Nevis, San Costa Rica Sim Sim Não Vicente e Granadinas e Santa Lucia. Equador Sim Sim Não Esse panorama mostra que existem Granada Sim Não Não diferenças nas legislações sobre o alcance Guatemala Sim Não Não do direito à saúde nos países da América Haiti Sim Não Não Latina e, em decorrência, as interpretações Honduras Não Não Não da legislação sobre aborto não são uniformes, Jamaica Sim Não Não Sim Não Não o que leva à persistência de desafios para México7 Não Não Não o acesso efetivo e oportuno das mulheres Nicarágua Panamá Sim Não Não à interrupção legal da gravidez, para além Sim Não Não Paraguai8 do risco à vida. Não obstante, levando-se Peru Sim Sim Não em conta que o direito à saúde se encontra Saint Kitts e Sim Não Sim contemplado em tratados e compromissos Nevis internacionais, seu alcance deve ser ampliado San Vicente Sim Não Sim e Granadinas para garantir os direitos das mulheres, Santa Lucia Sim Não Sim entendendo-se que a saúde é um estado de Suriname Sim Não Não bem-estar completo, físico, mental e social, Trinidad e Sim Sim Não Tobago e não somente a ausência de enfermidade. 9 Sim Sim Não Um estudo recente publicado pelo Uruguai Venezuela Sim Não Não International Pregnancy Advisory Services (IPAS) sobre a aplicação das leis que penalizam o aborto na Argentina, na Bolívia e no Brasil, entre 2011 e 2013, revela uma aplicação seletiva dessas leis e o tratamento discriminatório e humilhante que as mulheres sofrem ao não escolher a maternidade (KANE; GALLI; SKUSTER, 2013). As mulheres e os profissionais da saúde são objeto de investigações, julgamentos, detenções preventivas e prisões. Os infratores podem ser ameaçados ou castigados com multas, serviço comunitário ou prisão, com penas que vão de uns poucos dias até vários anos. Em sua maioria, as mulheres detidas já são marginalizadas por serem pobres, afrodescendentes, indígenas ou jovens, e carentes de uma defesa legal competente (KANE; GALLI; SKUSTER, 2013, p. 4). Por conseguinte, é importante definir normas que permitam avançar na interpretação harmônica do direito à saúde e outros direitos humanos de acordo com o marco jurídico internacional10 e em conformidade com o Plano de Ação do Cairo e com os compromissos internacionais assumidos pelos Estados da LAC 19 SUR 199-213 (2013) ■

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nessa questão. Esses documentos reconhecem que a garantia da vida passa pela garantia da saúde e, nesse sentido, ali onde se protege a vida das mulheres, se protege também sua saúde, dignidade humana e autonomia. Além disso, deve-se considerar que os mecanismos internacionais e regionais relativos aos direitos humanos têm expressado reiteradamente a preocupação com as consequências dos abortos ilegais, ou realizados em condições de risco, no exercício dos direitos humanos das mulheres, e têm recomendado aos Estados liberalizar as regulamentações sobre o aborto, bem como garantir o acesso ao procedimento dentro dos parâmetros estabelecidos em lei (GRUPO DE INFORMACIÓN EN REPRODUCIÓN ELEGIDA, 2013, p. 14).

4 O aborto na Colômbia Com o objetivo de apresentar um panorama geral sobre o aborto na Colômbia, antes do estudo da jurisprudência sobre a matéria, mostramos a seguir as estatísticas disponíveis sobre aborto legal e ilegal e as dificuldades do acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva nos últimos anos. O Instituto Guttmacher elaborou um diagnóstico sobre o aborto na Colômbia que indica que uma em cada 26 mulheres colombianas fez um aborto induzido em 2008 e que, aproximadamente, 29% do total de gravidezes terminaram em aborto. Segundo esse informe, em 2008, realizaram-se no país 400.400 abortos induzidos, o que representa um aumento de dois quintos, cifra significativa em comparação com os 288.395 estimados em 1989. No entanto, a taxa de aborto não mudou substancialmente nas duas décadas passadas, pois o aumento em procedimentos reflete, em grande parte, o crescimento do número de mulheres em idade reprodutiva (GUTTMACHER, 2011, p. 6). Uma em cada 26 colombianas fez um aborto: essa taxa está um pouco acima da média para o conjunto dos países da América do Sul, que a Organização Mundial da Saúde (OMS) calculou em 33 abortos por 1.000 mulheres para 2003. Segundo os poucos dados disponíveis para outros países latino-americanos com leis similares, a taxa de aborto na Colômbia é ligeiramente mais alta que a do México (33 por 1.000 mulheres em 2006), muito mais alta que a da Guatemala (24 por 1.000 em 2003) e muito menor que a do Peru (54 por 1.000 em 2000) (GUTTMACHER, 2011, p. 10). As conclusões do estudo revelam a necessidade de eliminar obstáculos institucionais e burocráticos para as mulheres que buscam um procedimento legal, bem como de conseguir que as instituições de saúde, que contam com a capacidade e o mandato de prover procedimentos legais e seguros, as atendam. “Seis de cada dez instituições de saúde da Colômbia que têm capacidade de prestar serviços de atenção pós-aborto não o fazem; e cerca de nove em cada dez dessas instituições não oferecem serviços de aborto legal” (GUTTMACHER, 2011, p. 27). Em relação ao acesso ao aborto legal, o Ministério de Saúde e Proteção Social registra que de 2008 até setembro de 2011, realizaram-se 954 procedimentos de interrupções voluntárias da gravidez dentro do quadro constitucional desenvolvido a partir da sentença C-355 de 2006, número que é significativamente baixo por um problema de sub-registro por parte dos prestadores de serviço de saúde. 204 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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5 Jurisprudência da Corte Constitucional sobre aborto A Corte Constitucional desempenhou um importante papel na proteção dos direitos fundamentais das pessoas e, em particular, dos direitos das mulheres no país, com um potencial emancipatório (UPRIMNY; GARCÍA VILLEGAS, 2002, p. 72). Um dos temas abordados pela Corte Constitucional, em que mais se ressalta sua relevância, se relaciona com a proteção de direitos econômicos, sociais e culturais (SEPÚLVEDA, 2008, p. 161 e 162) e, entre eles, o direito à saúde, inclusive com importantes pronunciamentos a respeito da saúde sexual e reprodutiva (YAMIN; PARRA-VERA; GIANELLA, 2011, p. 103). Em abril de 2005, a organização Women’s Link Worldwide, por intermédio da advogada Mónica Roa, entrou com uma ação de inconstitucionalidade da lei (Código Penal) que penalizava completamente o aborto na Colômbia. Essa ação se fundamentava em grande medida no direito comparado, no direito internacional dos direitos humanos e em argumentos de saúde pública ( JARAMILLO SIERRA; ALFONSO SIERRA, 2008, p. 86), e tinha como meta principal descriminalizar o aborto em todas as circunstâncias.11 Em maio de 2006, a Corte, por meio da sentença C-355, concluiu que a norma que penalizava o aborto em qualquer circunstância impunha às mulheres uma carga desproporcional, que implicava um desconhecimento de direitos fundamentais reconhecidos na Constituição e em tratados internacionais sobre direitos humanos. Em consequência, resolveu que não se incorria em delito de aborto quando, considerada a vontade da mulher, ocorresse um dos seguintes casos: (i) a continuação da gravidez constituísse perigo para a vida ou a saúde da mulher; (ii) existisse grave malformação do feto que tornasse inviável sua vida; e (iii) a gravidez decorresse de violência sexual (COLOMBIA, 2006, sentencia C-355).12 A sentença C-355, embora percebida como um avanço que ainda não garantia o livre exercício da maternidade, respondia a problemas de saúde pública, uma vez que reconhecia as dificuldades causadas pela continuação da gravidez em circunstâncias extremas (DALÉN, 2011, p. 19). Mais tarde, de 2007 a 2012, a Corte se pronunciou em dez ações de tutela13 apresentadas por mulheres que solicitavam a IVG, na medida em que se consideravam incursas em uma das causas descriminalizadas. Nesses casos, o tribunal identificou distintos obstáculos, interpostos por diferentes entidades de saúde, destinados a negar às mulheres o acesso à IVG e protegeu, em nome do direito à saúde, uma gama ampla de direitos fundamentais a favor das mulheres, como se descreve a seguir.

5.1 O direito à saúde A Corte considerou que a saúde é um direito constitucional fundamental; tendo sido entendida pela Corte como “‘um estado completo de bem-estar físico, mental e social’ dentro do nível possível de saúde para uma pessoa” (COLOMBIA, 2008b, sentencia T-760-08). A Corte abordou três questões relativas ao direito à saúde das mulheres que solicitam uma IVG: aquelas relacionadas com a violência sexual, com o direito ao diagnóstico e com o dever do Estado de garantir-lhes o acesso aos serviços de saúde em todo o país. 19 SUR 199-213 (2013) ■

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A Corte reconheceu que a saúde pode ser afetada quando a gravidez é consequência de violação: [...] que a violação, além de ser um ato violento, é de agressão, de humilhação e de submissão, e que causa impacto não somente no curto prazo, mas também é de longo alcance, nas ordens emocional, existencial e psicológica, incluídos os danos a sua saúde pela gestação e a doença sexual que lhe foi transmitida. (COLOMBIA, 2008a, sentencia T-209-08).

Por outro lado, sustentou que o diagnóstico faz parte do direito à saúde e, portanto, as mulheres que solicitam uma IVG devem realizar os exames necessários para determinar se sua saúde física ou mental se encontra em perigo para efeitos da realização de uma IVG. Por fim, a Corte indicou que o Estado deve garantir que os serviços de IVG, nas hipóteses previstas pelo ordenamento jurídico nacional, estejam “disponíveis em todo o território nacional”, e as mulheres devem poder ter acesso a eles em todos os níveis de complexidade que sejam necessários. Além disso, deve-se garantir que todas as entidades de saúde disponham de pessoal idôneo e suficiente para garantir a IVG (COLOMBIA, 2009b, sentencia T-388-09).

5.2 O direito à dignidade humana e à autonomia O direito à autonomia das mulheres para decidir sobre a prática da IVG está intimamente ligado a seu direito à dignidade humana, de acordo com o qual todo ser humano é livre para escolher “viver como quiser”. A esse respeito, a Corte explicou que a dignidade humana protege “a liberdade de escolha de um plano de vida concreto dentro das condições sociais em que o indivíduo se desenvolve” (COLOMBIA, 2009b, sentencia T-388-09). Além disso, a Corte expressou que o direito à autonomia da mulher para decidir sobre a prática de uma IVG protege todas as mulheres sem distinção de idade. Nesse sentido, considerou uma “barreira inadmissível” para a prática do aborto, nos supostos permitidos pelo ordenamento colombiano, o fato de “[i]mpedir que meninas menores de 14 anos em estado de gravidez exteriorizem livremente seu consentimento para efetuar a interrupção voluntária da gravidez quando seus progenitores ou representantes legais não estão de acordo com essa interrupção” (COLOMBIA, 2009b, sentencia T-388-09). Quando a vontade de menores de 14 anos é anulada na tomada de decisão sobre a eventual prática de um aborto, viola-se seu direito à dignidade humana.

5.3 Direito à informação A Corte sustentou que a informação sobre reprodução compreende duas obrigações claramente diferenciadas. De um lado, o dever de garantir que as mulheres tenham “informação suficiente, ampla e adequada que lhes permita exercer plenamente e em liberdade seus direitos sexuais e reprodutivos” (COLOMBIA, 2009b, sentencia T-388-09). De acordo com a Corte, a informação sobre os DSR “contribui para que as pessoas 206 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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estejam em condições de tomar decisões livres e fundamentadas a respeito de aspectos íntimos de sua personalidade” (COLOMBIA, 2012, sentencia T-627-12). Por outro lado, o Estado deve abster-se de “censurar, ocultar ou desvirtuar intencionalmente a informação relacionada com a saúde, incluída a educação sexual e a informação a respeito” e “velar do mesmo modo para que terceiros não limitem o acesso das pessoas à informação” (COLOMBIA, 2012, sentencia T-627-12). Para proteger esse dever, ordenou-se às autoridades públicas que não desviassem o conteúdo das sentenças anteriores proferidas pela própria Corte relacionadas com direitos sexuais e reprodutivos, especialmente em relação ao aborto (COLOMBIA, 2012, sentencia T-627-12).

5.4 Direito à intimidade A Corte sustentou que para promover o acesso das mulheres à administração da justiça, as autoridades judiciais devem manter sob segredo a identidade da mulher que solicita a prática da IVG, bem como todos os dados que possam revelá-la. De acordo com a Corte, essa medida leva em conta que na Colômbia o exercício da faculdade legal de solicitar uma IVG é objeto de censura moral e religiosa. Segundo a Corte, a possibilidade de se ver submetida a este tipo de julgamento pode dissuadir uma mulher de acorrer à justiça para exigir seu direito fundamental à IVG e, nesse sentido, o segredo de sua identidade pretende extraí-la do conhecimento público, impedir que se veja exposta ao mesmo e, dessa forma, criar condições favoráveis para que tenham acesso à justiça. (COLOMBIA, 2012, sentencia T-627-12).

5.5 Direito à justiça A Corte recordou que as mulheres são um grupo tradicionalmente discriminado no que se refere ao acesso à justiça. Devido aos preconceitos de gênero de origem moral ou religiosa com os quais são julgadas, muitas delas preferem não recorrer à justiça, o que leva a “perpetuar as violações aos seus direitos e sua situação como grupo discriminado” (COLOMBIA, 2012, sentencia T-627-12). Para enfrentar essa situação, a Corte fixou algumas regras que têm como propósito remover obstáculos frente à justiça, entre as quais destacamos duas. Em primeiro lugar, a Corte salientou que o direito à objeção de consciência pertence a todas as pessoas enquanto sujeitos particulares, mas, quando elas exercem funções jurisdicionais ou atuam como juízes da República, não podem alegar a objeção de consciência para deixar de decidir um caso, pois isso constitui um obstáculo para o acesso à justiça. Em segundo lugar, a Corte foi enfática em proteger o direito das mulheres à autonomia ao afirmar que os juízes não estão autorizados a pronunciar-se sobre a viabilidade ou pertinência de determinado procedimento médico, pois isso é algo que cabe ao pessoal médico capacitado para este fim (COLOMBIA, 2009a, sentencia T-009-09). 19 SUR 199-213 (2013) ■

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6 Normas a respeito de aborto, direito à saúde e outros direitos humanos As “normas jurídicas” são formulações mediante as quais se desenvolve e concretiza o conteúdo de direitos fundamentais abstratos (como a saúde, a vida, a dignidade, a informação, a autonomia etc.) ao definir responsabilidades específicas para sua proteção e garantia. No caso analisado, o que as torna generalizáveis a outros países, além da Colômbia, tem a ver, por um lado, com o fato de se basearem ou fundamentarem no marco internacional de direitos humanos, e, por outro, com a existência da causal salud ou com o reconhecimento da proteção do direito à saúde pelos Estados da América Latina. Essas normas podem constituir-se em caminhos para avançar na agenda dos direitos sexuais e reprodutivos e, particularmente, do aborto, no momento em que completamos vinte anos da implantação da Plataforma de Ação do Cairo. A garantia da IVG por motivo de saúde implica proteção do direito à saúde e outros direitos relacionados e, portanto, dos DSR. a) Autodeterminação reprodutiva: A decisão de praticar-se ou não uma IVG, quando se trate das hipóteses descriminalizadas, inclusive nos casos de risco para a saúde integral, recai unicamente sobre a mulher. b) Respeito pelo projeto de vida: O direito à dignidade das mulheres implica liberdade de tomar livremente as decisões relacionadas com seu próprio plano de vida. c) A saúde como conceito integral: É dever do Estado permitir que as mulheres façam uma IVG quando se encontre em risco sua saúde, em qualquer de suas três dimensões: física, mental ou social. Deve-se reconhecer que, nos casos de violação, a saúde da mulher se encontra em risco. d) Diagnóstico: É obrigação do médico realizar um diagnóstico completo da situação de saúde e efetuar todos os procedimentos necessários quando se trata de confirmar se se configura o risco para aplicar a causal salud. e) Proteção da intimidade em assuntos judiciais e médicos: Obriga a todos os atores envolvidos em um processo de IVG – inclusive os juízes – a manter sob segredo a identidade da mulher e sua história clínica. f) Informação oportuna às mulheres sobre as condições para ter acesso à IVG: O Estado deve fornecer às mulheres informação suficiente, ampla e adequada. Além disso, deve gerar mecanismos para que exista informação pública mediante campanhas, bem como educação em aspectos relacionados com os direitos sexuais e reprodutivos. g) Expressão livre do consentimento em meninas, adolescentes e mulheres em situação de incapacidade: O Estado deve assegurar que as menores possam exteriorizar livremente seu consentimento quando seus progenitores 208 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


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ou representantes legais não estejam de acordo com a IVG. As mulheres incapacitadas podem fazer isso por intermédio dos pais ou de outra pessoa que aja em seu nome, sem requisitos formais adicionais. h) Proibição de impor obstáculos: Inclui impedir que terceiros interfiram na garantia do serviço legal e oportuno da IVG impondo obstáculos tais como solicitar requisitos adicionais, ignorar a autonomia da mulher, interpor travas administrativas que retardem de maneira injustificada o serviço; invocar a objeção de consciência de maneira coletiva ou institucional. i) Garantia de serviços em todo o território nacional e níveis de complexidade: O Estado deve garantir que os serviços de IVG estejam disponíveis em todo o território nacional, em todos os níveis de complexidade necessários. j)

Profissionais da saúde idôneos e suficientes: Deve-se garantir que todas as entidades de saúde disponham de pessoal idôneo e suficiente para garantir a IVG.

k) Limite à intervenção judicial: Os juízes não podem pronunciar-se sobre os aspectos médicos da IVG. Tampouco se exige recorrer a uma instância judicial para solicitar que ordene a prática da IVG. Vinte anos após a assinatura dos compromissos do Programa de Ação do Cairo, os esforços em relação ao aborto se centram na sua garantia quando assim o permitem as condições legais. Não obstante, os obstáculos que as mulheres enfrentam, mesmo nos melhores cenários legais, nos obrigam a pensar em medidas que permitam avançar realmente no cumprimento desses compromissos e mudar as fronteiras. Os casos de causal salud e das normas fixadas pela Corte Constitucional da Colômbia se revestem assim de uma importância particular, uma vez que servem não somente para avançar no cumprimento do aborto legal como contribuem para avançar na descriminalização do aborto como parte da proteção e garantia do direito das mulheres à saúde e de outros direitos relacionados. A experiência e o desenvolvimento constitucional na Colômbia devem contribuir para a implantação do Programa de Ação do Cairo – que estabelece que os Estados deverão garantir o aborto seguro naquelas circunstâncias em que ele se encontra descriminalizado – de modo que os Estados façam uma interpretação ampla dos motivos a partir de um marco dos direitos humanos, a fim de garantir que as mulheres tenham acesso ao aborto quando considerem em risco a saúde física, mental ou social, sem negações, restrições ou adiamentos injustificados. A partir dessas normas, é possível avançar na identificação de novos objetivos, como a revisão das leis que penalizam totalmente o aborto, e em objetivos e medidas concretas que garantam realmente o acesso ao aborto legal de forma segura e oportuna naqueles casos em que se encontra explicitamente despenalizado pela lei, com base no respeito aos direitos humanos das mulheres e, em particular, aos seus direitos sexuais e reprodutivos.

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ANA CRISTINA GONZÁLEZ VÉLEZ E VIVIANA BOHÓRQUEZ MONSALVE

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INQUISIÇÃO CONTEMPORÂNEA: UMA HISTÓRIA DE PERSEGUIÇÃO CRIMINAL, EXPOSIÇÃO DA INTIMIDADE E VIOLAÇÃO DE DIREITOS NO BRASIL

NOTAS 1. Na Colômbia, usa-se a expressão Interrupção Voluntária da Gravidez nos documentos do Ministério da Saúde, a qual é muito mais ampla, por não estar ligada ao número de semanas de gestação ou à viabilidade do feto, mas à vontade da mulher dentro das causas constitucionalmente permitidas na Colômbia.

adverte que “estará, no entanto, isento de responsabilidade qualquer um destes que justificar ter causado o aborto indiretamente com o propósito de salvar a vida da mulher posta em perigo pela gravidez ou pelo parto” (PARAGUAY, 1997, artigo 352). Por conseguinte, é uma descriminalização indireta.

2. O conceito de causal salud (permissivo por motivo de saúde), é explicado mais adiante no texto. Optou-se por manter a expressão em espanhol por não haver um único termo específico que traduza o conceito de causal salud em português. (N.T.)

9. Descriminalização total do aborto até doze semanas e por motivos de saúde, sem limite de tempo.

3. Como expressamos anteriormente, em alguns países se prefere a expressão Interrupção Legal da Gravidez ou Interrupção Voluntária da Gravidez, por ser mais ampla e não estar condicionada a temas médicos sobre a viabilidade do feto, que normalmente é de 22 semanas de gestação. 4. Não obstante, vemos que, por exemplo, na Costa Rica, o artigo 121 do Código Penal do país determina que “não é punível o aborto praticado com consentimento da mulher por um médico ou por uma parteira autorizada, quando não tenha sido possível a intervenção do primeiro, se foi feito com o objetivo de evitar um perigo para a vida ou a saúde da mãe e não foi possível ser evitado por outros meios” (COSTA RICA, 1970, artigo 21). Mas, na prática, nunca se aplicou a causal salud, uma vez que os médicos negam o serviço argumentando falta de protocolos. No Peru, no Equador e na Argentina ocorrem problemas semelhantes. 5. No Uruguai, em outubro de 2012, o aborto foi descriminalizado em todas as circunstâncias até doze semanas de gestação, sempre e quando seja cumprida uma série de requisitos que inclui o comparecimento perante uma equipe interdisciplinar que informará sobre programas de adoção e maternidade vigentes. Além disso, o aborto é permitido sem limite gestacional em caso de violência sexual (até catorze semanas), risco para a vida e a saúde da mulher e malformação do feto. 6. A este respeito cf. González, 2011, p. 11. 7. No México, cada estado federado tem autonomia para regulamentar a matéria. Assim, enquanto na Cidade do México o aborto é permitido conforme a causal saúde e em todos os casos até a 12a semana, em outros estados a penalização é total. 8. O Código Penal do Paraguai, no artigo 352,

10. Um estudo recente mostra o impacto da difusão de informação e capacitação sobre a causal salud na América Latina, e a maneira como um processo regional de debate e capacitação dos prestadores de serviços de saúde, realizado entre 2009 e 2010, influiu nas opiniões e práticas favoráveis por parte dos profissionais da saúde na Argentina, Colômbia, México e Peru quando as mulheres solicitam aborto por questões de saúde em seu conceito integral (GONZÁLEZ, 2012, p. 28). 11. O litígio sobre aborto ficou conhecido, na Colômbia, como o primeiro litígio estratégico a favor dos direitos das mulheres e deixou muitos ensinamentos sobre a gestão dos meios de comunicação e a incidência para colocar o aborto na opinião pública de um ponto de vista de saúde pública e direitos humanos. 12. O enérgico reconhecimento que a Corte colombiana concedeu aos direitos reprodutivos das mulheres está ausente nas decisões alemãs e espanholas sobre aborto. Embora a Corte colombiana tenha decidido apenas que a penalização do aborto é inconstitucional nos casos extremos, sua insistência no caráter de última ratio do direito penal sugere que seu raciocínio poderia ser estendido a gravidezes normais quando a mulher decida que não está preparada para tornar-se mãe. Na verdade, já há provas abundantes de que essa penalização não é eficaz como meio para reduzir as taxas de aborto (UNDURRAGA; COOK, 2009). 13. Corte Constitucional da Colômbia, sentenças de tutela: T-171-07 (COLOMBIA, 2007a), T-98807 (COLOMBIA, 2007b), T-209-08 (COLOMBIA, 2008a), T-946-08 (COLOMBIA, 2008c), T-009-09 (COLOMBIA, 2009a), T-388-09 (COLOMBIA, 2009b), T-585-10 (COLOMBIA, 2010), T-363-11 (COLOMBIA, 2011a), T-841-11 (COLOMBIA, 2011b) e T-627-12 (COLOMBIA, 2012).

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ANA CRISTINA GONZÁLEZ VÉLEZ E VIVIANA BOHÓRQUEZ MONSALVE

ABSTRACT This paper is part of a line of research which has been developed over a number of years by the Bureau for the Life and Health of Women in Colombia, aimed at identifying and analyzing progress concerning the rights of women requesting voluntary termination of pregnancy, or abortion, particularly through the monitoring of judicial rulings. The text addresses four key issues. Firstly, it highlights the commitments under the Program of Action of the Cairo International Conference on Population and Development relating to access to abortion and reproductive health protection. Secondly, the paper briefly examines laws on abortion and health exception (causal salud) in Latin America and the Caribbean. Thirdly, it contextualizes abortion in Colombia and discusses progress on abortion jurisprudence by Colombia´s Constitutional Court regarding the right to health and other related fundamental rights. Fourthly, it describes a set of judicial standards set by the Constitutional Court in relation to abortion and other fundamental rights to be applied in Latin America. KEYWORDS Abortion - Causal salud – Health exception – Reproductive rights – Constitutional Court of Colombia – Cairo International Conference on Population and Development

RESUMEN El presente escrito hace parte de una línea de investigación desarrollada desde hace varios años por La Mesa por la Vida y la Salud de las Mujeres en Colombia, orientada a identificar y analizar los avances a favor de los derechos de las mujeres que solicitan la interrupción voluntaria del embarazo o aborto, en especial a través del seguimiento de decisiones judiciales. El texto aborda cuatro cuestiones fundamentales. En primer lugar, identifica los compromisos emanados del Programa de Acción de la Conferencia Internacional sobre Población y Desarrollo de El Cairo, relacionados con el acceso al aborto y la protección de la salud reproductiva. En segundo lugar, se presenta un corto estudio sobre las leyes sobre aborto y causal salud en América Latina y El Caribe. En tercer lugar, contextualiza el aborto en Colombia y discute los avances de la jurisprudencia de la Corte Constitucional de Colombia sobre aborto, en relación con el derecho a la salud y otros derechos fundamentales relacionados. En cuarto lugar, propone un conjunto de estándares fijados por la Corte Constitucional en relación con el aborto y otros derechos fundamentales para ser aplicados en la región de América Latina. PALABRAS CLAVE Aborto – Causal salud – Estándares – Corte Constitucional de Colombia – Conferencia Internacional de Población y Desarrollo – Conferencia Internacional sobre la Población y el Desarrollo – Cairo

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Parcerias entre Estado e sociedade civil para promover a segurança do cidadão no Brasil

Povos indígenas versus petrolíferas: Controle constitucional na resistência

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ROBERT ARCHER EDWIN REKOSH Quem define o interesse público? VÍCTOR E. ABRAMOVICH Linhas de trabalho em direitos econômicos, sociais e culturais: Instrumentos e aliados

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Os pontos positivos de diferentes tradições: O que se pode ganhar e o que se pode perder combinando direitos e desenvolvimento? J. PAUL MARTIN Releitura do desenvolvimento e dos direitos: Lições da África MICHELLE RATTON SANCHEZ

Comércio e direitos humanos: rumo à coerência

Breves considerações sobre os mecanismos de participação para ONGs na OMC

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JUSTICE C. NWOBIKE

O Acordo TRIPS e o acesso a medicamentos nos países em desenvolvimento

Empresas farmacêuticas e acesso a medicamentos nos países em desenvolvimento: O caminho a seguir

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Os programas sociais sob a ótica dos direitos humanos: O caso da Bolsa Família do governo Lula no Brasil

A atividade probatória perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos

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NICO HORN

Comparação esquemática dos sistemas regionais e direitos humanos: Uma atualização

Eddie Mabo e a Namíbia: Reforma agrária e direitos pré-coloniais à posse da terra

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SUR 2, v. 2, n. 2, Jun. 2005

NLERUM S. OKOGBULE O acesso à justiça e a proteção aos direitos humanos na Nigéria: Problemas e perspectivas

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Declaração e Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: Oportunidades para os direitos humanos FATEH AZZAM Os direitos humanos na implementação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio

Reabertura dos processos pelos crimes da ditadura militar argentina JOSÉ RICARDO CUNHA Direitos humanos e justiciabilidade: Pesquisa no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

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Plano de ação apresentado pela Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos

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Grandes promessas, pequenas realizações: justiça transicional na África Subsaariana

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O Estado de Direito na Índia

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A desigualdade e a subversão do Estado de Direito

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Perpetrando o bem: as consequências não desejadas da defesa dos direitos humanos JEREMY SARKIN Prisões na África: uma avaliação da perspectiva dos direitos humanos REBECCA SAUNDERS Sobre o intraduzível: sofrimento humano, a linguagem de direitos humanos e a Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul SESSENTA ANOS DA DECLARAÇÃO UNI VERSAL DE DIREITOS HUMANOS

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Comércio, Investimento, Financiamento e Direitos Humanos: Avaliação e Estratégia

Mudança Climática e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: O Direito ao Desenvolvimento, Cooperação Internacional e o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo

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PATRICIA FEENEY A Luta por Responsabilidade das Empresas no Âmbito das Nações Unidas e o Futuro da Agenda de Advocacy COLÓQUIO INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS

Entrevista com Rindai ChipfundeVava, Diretora da Zimbabwe Election Support Network (ZESN)

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Entre Reparações, Meias Verdades e Impunidade: O Difícil Rompimento com o Legado da Ditadura no Brasil

A Eficácia do Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos: Uma Abordagem Quantitativa sobre seu Funcionamento e sobre o Cumprimento de suas Decisões

VIVIANA BOHÓRQUEZ MONSALVE E JAVIER AGUIRRE ROMÁN As Tensões da Dignidade Humana: Conceituação e Aplicação no Direito Internacional dos Direitos Humanos DEBORA DINIZ, LÍVIA BARBOSA E WEDERSON RUFINO DOS SANTOS Deficiência, Direitos Humanos e Justiça JULIETA LEMAITRE RIPOLL O Amor em Tempos de Cólera: Direitos LGBT na Colômbia DIREITOS ECONÔMICOS, SOCI A IS E CULTURA IS

MALCOLM LANGFORD Judicialização dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais no Âmbito Nacional: Uma Análise Socio-Jurídica

DAVID BILCHITZ

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Controle migratório europeu em território africano: A omissão do caráter extraterritorial das obrigações de direitos humanos

Das Violações em Massa aos Padrões Estruturais: Novos Enfoques e Clássicas Tensões no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

O Direito das Vítimas do apartheid a Requerer Indenizações de Corporações Multinacionais é Finalmente Reconhecido por Tribunais dos EUA?

O Marco Ruggie: Uma Proposta Adequada para as Obrigações de Direitos Humanos das Empresas?

FERNANDO BASCH ET AL.

VÍCTOR ABRAMOVICH

LINDIWE KNUTSON

Relatório sobre o IX Colóquio Internacional de Direitos Humanos

PABLO CERIANI CERNADAS

SUR 11, v. 6, n. 11, Dez. 2009

RESPONSABILIDADE DAS EMPRESAS

RICHARD BOURNE Commonwealth of Nations: Estratégias Intergovernamentais e Não-governamentais para a Proteção dos Direitos Humanos em uma Instituição Pós-colonial

GERARDO ARCE ARCE Forças Armadas, Comissão da Verdade e Justiça Transicional no Peru MECANISMOS REGIONA IS DE DIREITOS HUMANOS

FELIPE GONZÁLEZ As Medidas de Urgência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

OBJETI VOS DE DESENVOLV IMENTO DO MILÊNIO

JUAN CARLOS GUTIÉRREZ E SILVANO CANTÚ

ANISTIA INTERNACIONAL

A Restrição à Jurisdição Militar nos Sistemas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos

Combatendo a Exclusão: Por que os Direitos Humanos São Essenciais para os ODMs VICTORIA TAULI-CORPUZ Reflexões sobre o Papel do Forum Permanente sobre Questões Indígenas das Nações Unidas em relação aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio ALICIA ELY YAMIN Rumo a uma Prestação de Contas Transformadora: Uma Proposta de Enfoque com base nos Direitos Humanos para Dar Cumprimento às Obrigações Relacionadas à Saúde Materna

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DEBRA LONG E LUKAS MUNTINGH O Relator Especial Sobre Prisões e Condições de Detenção na África e o Comitê para Prevenção da Tortura na África: Potencial para Sinergia ou Inércia? LUCYLINE NKATHA MURUNGI E JACQUI GALLINETTI O Papel das Cortes Sub-Regionais no Sistema Africano de Direitos Humanos MAGNUS KILLANDER Interpretação dos Tratados Regionais de Direitos Humanos


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IMPLEMENTAÇÃO NO ÂMBITO NACIONAL DAS DECISÕES DOS SISTEMAS REGIONA IS E INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS

Educação em Direitos Humanos em Comunidades em Recuperação Após Grandes Crises Sociais: Lições para o Haiti DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCI A

LUIS FERNANDO ASTORGA GATJENS Análise do Artigo 33 da Convenção da ONU: O Papel Crucial da Implementação e do Monitoramento Nacionais LETÍCIA DE CAMPOS VELHO MARTEL Adaptação Razoável: O Novo Conceito sob as Lentes de Uma Gramática Constitucional Inclusiva MARTA SCHAAF Negociando Sexualidade na Convenção de Direitos das Pessoas com Deficiência TOBIAS PIETER VAN REENEN E HELÉNE COMBRINCK A Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência na África: Avanços 5 Anos Depois STELLA C. REICHER Diversidade Humana e Assimetrias: Uma Releitura do Contrato Social sob a Ótica das Capacidades PETER LUCAS A Porta Aberta: Cinco Filmes que Marcaram e Fundaram as Representações dos Direitos Humanos para Pessoas com Deficiência

MARIA ISSAEVA, IRINA SERGEEVA E MARIA SUCHKOVA Execução das Decisões da Corte Europeia de Direitos Humanos na Rússia: Avanços Recentes e Desafios Atuais CÁSSIA MARIA ROSATO E LUDMILA CERQUEIRA CORREIA Caso Damião Ximenes Lopes : Mudanças e Desafios Após a Primeira Condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos DAMIÁN A. GONZÁLEZ-SALZBERG

SUR 16, v. 9, n. 16, Jun. 2012 PATRICIO GALELLA E CARLOS ESPÓSITO As Entregas Extraordinárias na Luta Contra o Terrorismo. Desaparecimentos Forçados? BRIDGET CONLEY-ZILKIC Desafios para Aqueles que Trabalham na Área de Prevenção e Resposta ao Genocídio MARTA RODRIGUEZ DE ASSIS MACHADO, JOSÉ RODRIGO RODRIGUEZ, FLAVIO MARQUES PROL, GABRIELA JUSTINO DA SILVA, MARINA ZANATA GANZAROLLI E RENATA DO VALE ELIAS Disputando a Aplicação das Leis: A Constitucionalidade da Lei Maria da Penha nos Tribunais Brasileiros SIMON M. WELDEHAIMANOT A CADHP no Caso Southern Cameroons ANDRÉ LUIZ SICILIANO O Papel da Universalização dos Direitos Humanos e da Migração na Formação da Nova Governança Global SEGURANÇA CIDADÃ E DIREITOS HUMANOS

GINO COSTA Segurança Pública e Crime Organizado Transnacional nas Américas: Situação e Desafios no Âmbito Interamericano MANUEL TUFRÓ Participação Cidadã, Segurança Democrática e Conflito entre Culturas Políticas. Primeiras Observações sobre uma Experiência na Cidade Autônoma de Buenos Aires CELS

A Implementação das Sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos na Argentina: Uma Análise do Vaivém Jurisprudencial da Corte Suprema de Justiça da Nação

A Agenda Atual de Segurança e Direitos Humanos na Argentina. Uma Análise do Centro de Estudos Legais y Sociais (CELS)

MARCIA NINA BERNARDES

PEDRO ABRAMOVAY

Sistema Interamericano de Direitos Humanos como Esfera Pública Transnacional: Aspectos Jurídicos e Políticos da Implementação de Decisões Internacionais

A Política de Drogas e A Marcha da Insensatez

CADERNO ESPECI AL: CONECTAS DIREITOS HUMANOS 10 ANOS

Rafael Dias – Pesquisador, Justiça Global José Marcelo Zacchi – Pesquisadorassociado do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade – IETS

A Construção de uma Organização Internacional do/no Sul

VISÕES SOBRE AS UNIDADES DE POLÍCIA PACIFICADORA (UPPS) NO RIO DE JANEIRO, BRASIL

19 SUR 214-218 (2013) ■

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NÚMEROS ANTERIORES Números anteriores disponíveis online em <www.revistasur.org>

SUR 17, v. 9, n. 17, dez. 2012

SUR 18, v. 10, n. 18, Jun. 2013

DESENVOLV IMENTO E DIREITOS HUMANOS

INFORMAÇÃO E DIREITOS HUMANOS

CÉSAR RODRÍGUEZ GARAVITO, JUANA KWEITEL E LAURA TRAJBER WAISBICH

Aaron Swartz e as Batalhas pela Liberdade do Conhecimento

Desenvolvimento e Direitos Humanos: Algumas Ideias para Reiniciar o Debate IRENE BIGLINO, CHRISTOPHE GOLAY E IVONA TRUSCAN

SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA

ALBERTO J. CERDA SILVA Internet Freedom não é Suficiente: Para uma Internet Fundamentada nos Direitos Humanos FERNANDA RIBEIRO ROSA

A Contribuição dos Procedimentos Especiais da ONU para o Diálogo entre os Direitos Humanos e o Desenvolvimento

Inclusão Digital como Política Pública: Disputas no Campo dos Direitos Humanos

LUIS CARLOS BUOB CONCHA

Monitoramento do Acesso à Informação a Partir dos Indicadores de Direitos Humanos

Direito à Água: Entendendo seus Componentes Econômico, Social e Cultural como Fatores de Desenvolvimento para os Povos Indígenas

LAURA PAUTASSI

JO-MARIE BURT E CASEY CAGLEY Acesso à Informação, Acesso à Justiça: Os Desafios da Accountability no Peru

ANDREA SCHETTINI Por um Novo Paradigma de Proteção dos Direitos dos Povos Indígenas: Uma Análise Crítica dos Parâmetros Estabelecidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos SERGES ALAIN DJOYOU KAMGA E SIYAMBONGA HELEBA Crescimento Econômico pode Traduzir-se em Acesso aos Direitos? Desafios das Instituições da África do Sul para que o Crescimento Conduza a Melhores Padrões de Vida ENTREVISTA COM SHELDON LEADER Empresas Transnacionais e Direitos Humanos ALINE ALBUQUERQUE E DABNEY EVANS

MARISA VIEGAS E SILVA O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas: Seis Anos Depois JÉRÉMIE GILBERT Direito à Terra como Direito Humano: Argumentos em prol de um Direito Específico à Terra PÉTALLA BRANDÃO TIMO Desenvolvimento à Custa de Violações: Impacto de Megaprojetos nos Direitos Humanos no Brasil DANIEL W. LIANG WANG E OCTAVIO LUIZ MOTTA FERRAZ Atendendo os mais Necessitados? Acesso à Justiça e o Papel dos Defensores e Promotores Públicos no Litígio Sobre Direito à Saúde na Cidade de São Paulo

Direito à Saúde no Brasil: Um Estudo sobre o Sistema de Apresentação de Relatórios para os Comitês de Monitoramento de Tratados

OBONYE JONAS

LINDA DARKWA E PHILIP ATTUQUAYEFIO

ANTONIO MOREIRA MAUÉS

Matando Para Proteger? Guardas da Terra, Subordinação do Estado e Direitos Humanos em Gana

Direitos Humanos, Extradição e Pena de Morte: Reflexões Sobre o Impasse Entre Botsuana e África Do Sul

Supralegalidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Interpretação Constitucional

CRISTINA RĂDOI A Resposta Ineficaz das Organizações Internacionais em Relação à Militarização da Vida das Mulheres CARLA DANTAS Direito de Petição do Indivíduo no Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos

218 ■ SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS



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