Degustação
Três monges são assassinados, um após o outro, dentro do Mosteiro de São Bento, no Centro de São Paulo. Cabe ao famoso detetive Mario Ferretti desvendar este mistério. A tarefa não é fácil, pois o assassino escondese sob o rosto de um daqueles homens santos. Afinal, os tempos não são fáceis. Como se já não houvesse crime suficiente nesta terra, a Máfia napolitana estende sua atuação para o Brasil. O Papa morre de uma maneira misteriosa no Vaticano. Tudo parecia previsto pelo profeta Malaquias. Paulo VII seria o último pontífice antes do Final dos Tempos. Em meio a uma crise religiosa sem precedentes, os fiéis assistem pelas redes sociais, atônitos, à revelação de um segredo que pode mudar a História do Ocidente. Desvende este mistério. Antes que seja tarde.
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1 Sem Papa
SÃO PAULO, A CIDADE QUE NUNCA DORME, amanheceu nublada. O sol, tímido, lutava contra nuvens cor-dechumbo no horizonte. Uma névoa espessa envolvia as torres da basílica do Mosteiro de São Bento. Lá do alto, esculturas de anjos fitavam com indiferença as sombras do vale do Anhangabaú. O grande relógio bateu cinco horas, acionando os sinos de bronze. A igreja parecia despontar de dentro do nevoeiro, como uma fantasmagórica aparição medieval. Ao redor, as ruas do Centro ainda exalavam o cheiro da urina noturna derramada por vadios, criminosos e prostitutas. Por detrás das pesadas portas do mosteiro, uma cerimônia secreta acontecia. Somente os enclausurados podiam participar do primeiro ofício do dia. A fumaça do incenso tomou conta da nave, imersa na escuridão. Vultos encapuzados caminhavam na direção do altar central. Os monges abriram seus hinários e entoaram um canto gregoriano pungente. Abade Calixto se ajoelhou diante do crucifixo. Seus 65 anos molestavam juntas e joelhos. Subitamente, as portas centrais da basílica foram empurradas com estardalhaço. Vindo da rua, o noviço Marcos invadiu o recinto, cambaleante e esbaforido. O moço correu ruidosamente pelo corredor central, ignorando totalmente a proibição que o impedia de estar àquela hora entre os professos, que seguiam cada letra da rigorosa Regra de São Bento. 4
O jovem caiu no chão, quase batendo a boca em um banco. Catatônico, levantou-se sem se dar conta do tombo. À medida que se aproximava, ouvia-se sua respiração nervosa. Os rostos se viraram para ele. O moço gritou desesperado: – Dom abade! Veja isto. Será o Final do mundo ?! Agitava nas mãos um jornal. Seguiu esbarrando pelos bancos vazios como um inseto tonto. O rosto estava pálido e as mãos tremiam, num ataque de nervos. A cerimônia parou. O cântico gregoriano deu lugar a um murmúrio inquieto. Marcos subiu cambaleante os degraus que levavam para o altar. O abade deu alguns passos na direção dele. “O que acontece a este rapaz?” Lágrimas escorriam pelas faces do jovem. – Que desgraça aconteceu com o Papa, dom abade? Quebrando todas as normas, o jovem abriu a portinhola que, nas missas, separava o altar sagrado do público. Invadiu então o espaço consagrado, sem ao menos fazer o sinal da cruz. Abade Calixto avançou para ele e o segurou pelos ombros, com autoridade. Ordenou que se ajoelhasse. Os demais monges permaneceram estáticos e boquiabertos, com os libretos de cântico suspensos no ar. O rapaz chorava compulsivamente. Entre um fôlego e outro, levantou os olhos umedecidos, agitando o jornal. Não conseguiu mais pronunciar palavra, apesar dos seus esforços. – Calma – pediu novamente o abade. – O que aconteceu? Respire fundo e fale devagar. O jovem estendeu a primeira página do matutino, apontando a manchete, ilustrada por uma enorme foto na vertical. Diante daquela imagem tétrica, alguns monges gritaram de horror. Outros benzeram-se repetidas vezes. Formaram lentamente um círculo em torno do abade e do noviço. Todos leram, assustados, a frase desastrosa, para a cristandade e para o mundo: 5
Papa Paulo VII encontrado morto em seu quarto no Vaticano A notícia era aterradora. O Papa Paulo VII, eleito seis meses atrás, estava morto? Tinha apenas 56 anos, era considerado jovem para o cargo. O impacto desnorteante vinha das circunstâncias de sua morte, sugerida pela foto, horrenda e patética. A violência da imagem deixou alguns monges sem fôlego. Monge Pedro não suportou a crueldade do fato e desmaiou. O reflexo rápido de monge Marcelo impediu que ele batesse a cabeça no mármore e maculasse o local sagrado. O abade Calixto sentiu seu coração bater violenta e dolorosamente. Foi dobrando os joelhos até o chão. De seu peito angustiado, saíram as notas de um canto gregoriano triste e compungido. Os outros monges se ajoelharam. Dois deles seguravam monge Pedro, que se recuperava lentamente do desmaio. Seguiram o cântico em uníssono, que se levantou numa súplica desesperada: – Pater de caelis, Deus, misere nobis, Fili, Redemptor mundi, Deus, miserere nobis. Spiritus Sancte, Deus, miserere nobis. Sancta Trinitas, unus Deus, miserere nobis. Pai do céu, Deus, tende piedade de nós. Filho, Redentor do mundo, Deus, tende piedade de nós. Espírito Santo, Deus, tende piedade de nós. Santa Trindade, Deus único, tende piedade de nós. Tonto, o noviço Marcos deixou cair o jornal. Uma súbita rajada de vento carregou a página e a levantou na direção da cúpula. O papel ficou rodopiando por alguns segundos. De repente, um golpe de ar carregou-o na direção de um crucifixo de prata, colando-o à peça. 6
A foto ampliada, que mostrava os últimos instantes de vida do Papa, tremulou como uma bandeira negra, exibindo a cena aterrorizante que dificilmente pode ser encarada com tranquilidade por qualquer pessoa que louva a vida e o milagre da criação. Era momento de rezar, rezar muito, para que o mundo ganhasse alguma esperança, já que, para o Papa Paulo VII, não houvera nenhuma.
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2 Profecia A POUCOS QUARTEIRÕES DALI, o tradutor de línguas antigas Saulo Kuram bebia uma caneca extra de café para espantar o sono. Passara a noite e a madrugada debruçado sobre um papiro egípcio de 1.900 anos, que chegara a suas mãos em circunstâncias insólitas. “Ufa! Consegui acabar a tradução”, suspirou aliviado. Naquele momento, Saulo concluía o rascunho da Editio Princeps, primeira edição de um manuscrito histórico. Ele conseguira verter para o português um complicado texto bíblico proibido pela igreja. O texto original estava em copta, uma língua egípcia antiga falada por cristãos foragidos do império romano. Ainda naquela manhã, entregaria o trabalho para a editora. “Ainda bem que não preciso digitar todo esse texto”. Saulo tinha aversão por computadores. Aquele comportamento lhe rendera várias piadinhas na universidade. Colegas e até alunos o chamavam de “dinossauro”, uma raça extinta incapaz de se adaptar às novidades da vida moderna. Saulo sabia: o lançamento daquele evangelho apócrifo era uma bomba nos alicerces da História cristã. Uma mentira fora repetidamente contada durante séculos. Sua tradução revelava finalmente a verdade escondida por tanto tempo. O papiro trazia segredos nunca antes revelados sobre a vida íntima de Jesus. Ao mesmo tempo que previa altas vendas, sua editora temia uma retaliação violenta dos “xiitas tradicionalistas”. Por isso, a existência do papiro estava sendo mantida a sete chaves. Saulo passara os últimos dias quase sem dormir, numa dieta de café, sanduíches, pizzas e refrigerantes, para cumprir o 8
apertado prazo que lhe dera Jandiro Paixão, o editor rabugento. O tradutor dirigiu-se à janela de sua pequena casa no Centro de São Paulo para respirar ar puro. Deu uma olhada na rua deserta. Raríssimos madrugadores passavam pela calçada da frente àquela hora. Seus amigos professores, que preferiam a altura e o conforto dos apartamentos, achavam uma loucura morar numa casa térrea naquela região. Saulo odiava alturas. E adorava bater pernas pela parte velha da cidade. Naquele momento, ouviu as badaladas do sino do Mosteiro de São Bento ali perto. Eram cinco e meia. Saulo voltou ao pequeno escritório, entulhado de livros, e resolveu ligar a TV para relaxar um pouco. A notícia que viu no telejornal teve o mesmo efeito que um soco no maxilar. Saulo custou a acreditar em seus olhos e ouvidos. O apresentador do telejornal explicava em voz grave que o Papa Paulo VII fora encontrado numa forca em seu quarto, no Vaticano. A TV mostrou o Sumo Sacerdote vestido em paramentos de gala. A câmera fez uma volta em torno do corpo e fechou foco em um rosto pálido e conturbado. Os olhos abertos do cadáver passavam pânico e apreensão. A mandíbula, caída para a esquerda, lado contrário para onde pendera a cabeça, dava à feição do morto um aspecto sinistro. O jornal exibiu uma entrevista com o secretário do Papa, agora na função de carmelengo. Ele tomaria conta do pontificado interinamente, até ser eleito o novo representante de Deus na Terra: – Sua Santidade estava muito deprimido nas duas últimas semanas – informava o cardeal francês Antonienne Flaubert, em um inglês com forte sotaque. – Ele não dormia direito havia meses. A pressão política sobre o Santo Padre estava enorme. Reclamava muito disso. No final de semana, me confessou, particularmente, não estar preparado para o cargo de Pontífice. Mas nunca desconfiei que o Vigário de Cristo pudesse chegar a 9
um extremo desses – benzeu-se e abaixou a cabeça, entristecido. Saulo aumentou o volume para não perder uma só palavra. Lembrou-se de que o novo Papa enfrentara resistência aguerrida da ala ortodoxa do clero desde o início de seu pontificado. Mas jamais imaginaria que a pressão pudesse chegar a tais proporções, forçando-o a um ato desesperado. As primeiras decisões de Paulo VII foram muito combatidas no seio da igreja. Comentava-se à boca pequena que os cardeais mais conservadores da cúria estavam escandalizados com as atitudes liberais do novo Pontífice. Paulo VII criara, logo na sua estreia como ocupante da cadeira de São Pedro, uma comissão para discutir e revisar assuntos controversos, como a posição da igreja a respeito dos métodos anticoncepcionais. Mas o que chamou atenção da imprensa – e que começou a abalar a inexpugnável estrutura eclesiástica – foi sua posição com relação ao celibato clerical. Ele pedira, ao assumir o pontificado, revisão de vários processos de afastamento de padres casados. A notícia da morte do pontífice deixou Saulo apreensivo e nervoso. Não somente pela violência das imagens, mas, principalmente, pelo conteúdo do papiro que estivera traduzindo durante a madrugada. O papiro trazia profecias sobre o Final dos Tempos. Uma das previsões deixava Saulo angustiado. O professor correu até a mesa de trabalho e voltou às pressas ao manuscrito antigo para confirmar suas suspeitas. Algo no texto o deixara perplexo. Folheou suas anotações à procura do trecho específico. Uma das profecias, para o espanto de Saulo, estava se realizando naquela manhã fatídica. Ela dizia respeito ao suicídio do Papa negro. Ali estava. Traduzido do copta, o versículo afirmava:
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“O sucessor negro (de Pedro) morrerá no seu quarto, seguindo o destino dos que não podem ter enterro em solo sagrado. A nave (igreja) naufragará e as ovelhas debandarão sem pastor. Será o começo do Fim, descrito pelos profetas, e o Dia de minha segunda vinda.” Saulo tremeu. “Coincidência?”, pensou. “Uma coincidência perturbadora.” Antes que concluísse mais alguma coisa, sua atenção foi desviada para os fundos da casa. Escutou um estalo de madeira quebrada e, em seguida, uma porta batendo contra a parede. Apurou o ouvido e escutou pisadas sorrateiras, vindas do quintal. Temeroso, o professor embrulhou o papiro numa seda vermelha e o colocou debaixo do travesseiro. “Ninguém dará importância a um livro velho.” Saulo caminhou vagarosamente até a sala e se esgueirou por detrás da poltrona. Viu pela janela um vulto. Uma sombra de homem carregava uma barra de ferro sobre a cabeça. Saulo gelou. Encostou-se à parede e prendeu a respiração. Ouviu a porta ser forçada. A maçaneta rodou de um lado para o outro. Saulo engoliu em seco e se escondeu atrás da cortina de feltro. O barulho seguinte foi o de madeira sendo quebrada. O trinco cedeu em um estrondo de prego arrancado e uma golfada de vento invadiu a sala. Por uma fresta da cortina, Saulo avistou um homem negro de uns 2 metros. Ele carregava um pé-de-cabra descomunal. Vestia uma camiseta suada colada no corpo. Um cheiro de animal saído dos bueiros tomou conta do ambiente. Em seus braços, viam-se tatuadas caveiras, foices e figuras macabras. O professor prendeu a respiração e ocultou-se mais ainda por detrás da cortina. Prendeu a respiração, com medo de que seu esconderijo fosse descoberto. O homem bufou. Levantou o pé-de-cabra e estraçalhou 11
com um único golpe uma mesinha de centro com livros e revistas. Olhou para os lados. Deslizou sorrateiramente como uma pantera, até ficar perto da cortina detrás da qual Saulo tremia. Como uma fera, farejou o ambiente à procura da presa. Fez menção de olhar pela janela. Aproximou-se dela, cheirou o ar mais uma vez, numa respiração ofegante e malévola. Ia avançar na direção da cortina quando. no último segundo, a luminosidade do quarto ao lado chamou sua atenção. A fera deu um pulo e seguiu na direção do outro cômodo. Saulo soltou o fôlego. Ouviu o intruso, no cômodo ao lado, derrubar os livros das prateleiras, com violência. Suando frio, o professor caminhou devagar até a porta escancarada. A passagem para a rua estava livre. Nervoso, tropeçou em uma mesinha de canto, derrubando um vaso de planta. Dentro do quarto, o homem parou de se movimentar. Passos vieram novamente na direção da sala. Saulo se esgueirou na ponta dos pés e saiu rápido pela porta arrombada. Fechou os olhos e correu. Alcançou a rua. Uma nuvem negra tapava os raios de sol. Pensou que ali, em público, estaria a salvo. Mas o ruído de passos atrás dele demonstrava que não. O homem negro vinha em disparada na sua direção. Saulo tentou correr. Tropeçou no meio-fio e caiu, batendo o rosto no chão. Com o ouvido no cimento, Saulo escutou as pisadas fortes que ecoavam pela calçada e se aproximavam rapidamente de seu corpo, estirado ali no asfalto como um saco de entulho sem valor.
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3 Josias AJOELHADO DIANTE DO ALTAR-MOR, abade Calixto conclamou todos os monges à penitência. Era a única maneira de afastar o mal que se abatia sobre a cristandade de uma maneira avassaladora naquele momento. Mal sabia o abade que, dentro de alguns instantes, teria razões mais próximas e palpáveis para ranger os dentes. Somente a atuação do satanás explicava para Calixto aquela resolução desesperada do Pontífice. Tirar a própria vida atentava contra todos os princípios pregados pelo Evangelho. Como explicar aos fiéis esse ato pecaminoso praticado pelo Vigário de Cristo? Como apagar das mentes do povo tamanha desesperança e encaminhá-los para a senda da fé, esperança e caridade, estimulando assim as ofertas e o dízimo? O coração do abade pesava no peito, estraçalhado pela notícia do jornal. O rosto de Paulo VII lhe vinha à mente como o trailer de um filme macabro. Ali, no meio do altar, o abade procurava forças. Deixou-se confortar um pouco pelo cântico gregoriano, entoado junto com os monges. Nunca, em todos aqueles anos de ministério apostólico, as ovelhas comandadas por ele precisaram de tanto conforto espiritual. Ao abrir os olhos, voltando do transe angustiado de sua prece, o abade passou os olhos sobre o coro. Queria verificar o estado emocional de cada um daqueles que comandava no caminho da Salvação. Sua primeira preocupação ainda era o noviço Marcos. Numa exceção à regra, o moço foi conduzido a um assento no coro. Bebia um copo de água com açúcar trazido por um irmão solícito. Com os olhos fechados, o rapaz balbuciava uma oração entre os lábios. As mãos tremiam ainda, abaladas pelo choque. 13
Foi nesse momento que abade Calixto notou a ausência de um dos monges. Olhou em volta para se certificar daquela falta. Monge Josias não estava ali presente. “Por que ele faltou às Matinas?”, pensou, preocupado. Os olhos do abade procuraram os de frei Vicente, seu dedicado secretário. Tão logo aconteceu o contato visual, Calixto acenou com a cabeça, indicando a direção do assento vago no meio do coro. O frei levantou as sobrancelhas, numa expressão de dúvida. Com um balanço de cabeça, fez sinal ao abade de que se encaminharia às celas para chamar Josias. O abade concordou com outro gesto e voltou a atenção novamente para a liturgia. Nenhuma das palavras santas aquietava seu coração angustiado. Frei Vicente se levantou, benzeu-se diante do altar e deslizou diligentemente pela frente do coro, observado aqui e ali pelos que permaneciam. Ticando a bengala, dobrou à direita, abriu a porta da clausura e dirigiu-se às celas. O cântico gregoriano continuou, estimulado pela agitação do turíbulo, que espalhava fumaça mística por toda a região do altar. Uma pausa profunda na prece em latim encheu a nave com um silêncio sobrenatural. Os monges encontraram um frágil momento de paz. Passados alguns minutos, esse instante mágico foi quebrado pelo taque-taque nervoso de uma bengala, pressentida ao longe. Depois, ouviu-se uma respiração ofegante. A porta da clausura se abriu. Os monges viraram os rostos quando frei Vicente subiu os degraus do altar e deu um passo desequilibrado na direção do abade. Frei Vicente conseguiu balbuciar com dificuldade as palavras seguintes: – Nosso irmão Josias... Deus cuide de sua alma!... nosso querido Josias... nosso Josias... não está mais entre nós. O Senhor o chamou para a vida eterna! Como um cardume nervoso de peixes, os monges se dirigiram à cela de Josias. Para a maioria, a notícia parecia 14
absurda. Como podia ser? Josias era jovem, cheio de vida e fé. Como essa fatalidade lhe tinha acontecido? Aquela sensação de desconforto e incompreensão seria misturada a outras mais pesadas e graves quando os primeiros monges entraram na cela. Fazendo enorme esforço para seguir a caminhada dos jovens, Calixto também chegou ao dormitório. Teve de afastar alguns ombros para abrir caminho. Acompanhado dos outros monges, o abade levantou os olhos para ver a cena terrível: o jovem Josias pendurado pelo pescoço por uma corda, atada à viga-mestra da cela. – Deus Meu! – gritou o abade, num lamúrio amargo. – Por que nos abandonastes, meu Deus? Por que nos abandonastes?
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4 O papiro CAÍDO NO CHÃO, O PROFESSOR SAULO Kuram respirou fundo. Apoiou-se num poste e começou a se levantar. Mas era tarde. Pelo barulho dos passos, o agressor estava a centímetros dele. Levantou os olhos e fitou o homem que corria em sua direção. Seu corpo negro singrava o espaço como uma fera cruel. Os músculos rasgavam a camiseta, exibindo as tatuagens bizarras. Uma cicatriz profunda descia pela face direita e continuava pelo pescoço. O homem era uma fera enfurecida. Levantou o pé-decabra e desferiu o golpe. Saulo se desviou e a barra passou a centímetros de sua cabeça. O instrumento bateu na vitrine da loja atrás dele, estilhaçando pedaços de vidro por todos os lados. O segundo golpe atingiu o tórax de Saulo. O grito do professor saiu abafado e dolorido. O impacto foi tão violento que o corpo foi arremessado para o meio da ladeira. A respiração do professor tornou-se desordenada como uma sanfona furada. Buscando as últimas forças, Saulo levantou o pescoço por um breve momento. A perna do homem, alta e ameaçadora, apareceu ao seu lado. – Me passa o livro! – gritou. – Que livro? – perguntou Saulo, tentando concatenar os pensamentos. – Tem escrito “idiota” na minha testa, tem? Me passa o livro do Egito ou te arrebento todo! – levantou o pé-de-cabra na posição vertical, pronto para outro golpe. Seguindo o instinto, o professor rolou o corpo sobre o asfalto. A ladeira e a força da gravidade o fizeram rolar várias vezes, fazendo-o sair do campo de ação da arma de ferro. 16
No final da ladeira, no cruzamento com outra rua, a rolagem do corpo estancou. Saulo se levantou cambaleante. Joelhos, cotovelos e ombros tinham arranhões graves. Olhou para trás e percebeu que o homem continuava a perseguição, mas agora escondia a barra de ferro às costas, o que diminuía sua velocidade. Saulo só entendeu por que o agressor reagia assim quando avistou um grupo de pessoas subindo a ladeira. Correu para perto delas para pedir ajuda. As mulheres, que vestiam saias e carregavam bíblias debaixo do braço, gritaram com sua aproximação. Sua aparência não devia estar das melhores. Os homens que as acompanhavam se interpuseram entre elas e Saulo. – Não devem ter medo de mim... e sim dele! – gritou Saulo, apontando para seu agressor, alguns metros atrás. – Ele está armado com uma barra de ferro! A reação das mulheres foi imediata: esgoelaram com força e vontade. O negro se sentiu intimidado pelas testemunhas e parou. Deu um passo para trás. Saulo aproveitou aquela indecisão para escapar sorrateiramente pela rua lateral. Puxando com dificuldade a perna machucada, dobrou uma esquina salvadora. Continuou correndo até onde permitiu seu fôlego. Na parte alta da ladeira, as mulheres viram o homem negro sumir por uma esquina escura. Um mendigo se aproximou da vitrine quebrada. Olhou para as mercadorias que caíam do mostruário: calcinhas, sutiãs e pijamas de seda. Nada daquilo lhe servia. Mas dariam um bom dinheiro, se ele vendesse a mercadoria para os camelôs, bem ali pertinho, no Largo do Mosteiro de São Bento. Sorriu, satisfeito. Colheu diligentemente, uma a uma, as peças expostas na vitrine. Aquele era decididamente o seu dia de sorte.
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5 Ferretti O DETETIVE MAIS CITADO pela crônica policial da cidade estava naquela hora fazendo o que os mortais comuns fazem antes das seis da manhã: dormindo. Quando o celular tocou, Mario Ferretti continuou impassível em sua cama. Soltou baixinho um palavrão em italiano. Não queria se levantar nem atender o telefone. Logo o ronco cobriu o ruído eletrônico. O aparelho ficaria ali tocando por horas, se não fosse a presença do ajudante Lobato. Na noite anterior, ambos tinham ido para uma campana e o fiel escudeiro de farra e profissão havia resolvido cochilar por ali mesmo. “Quem estará ligando a esta hora?”, pensou Lobato. Ele sabia que Ferretti odiava o toque dos celulares modernos, principalmente aquele baião nordestino que ele havia programado e se esquecera de apagar. Tratou de atender o mais rápido possível. O relógio do aparelho marcava 5h58. Lobato identificou a origem da chamada pelo visor do celular. – Quem é o filho da mãe a esta hora da matina? – perguntou Ferreti, com voz rouca e molenga. – É do 1° DP, você atende? – Oggi è la mia vacanza. Hoje é meu dia de folga. Fez um sinal para Lobato não atender. Ferretti não trabalhava mais para a polícia, mas os detetives, confiando na avaliação quase sempre certeira de seus bigodes italianos, o chamavam para ajudar a solucionar os casos mais difíceis. – Talvez seja a Beth – cochichou Lobato. Beth era a telefonista do 1.° Distrito Policial, por quem o coração de Ferretti balançava como uma gelatina. Excitado por 18
aquela possibilidade, o detetive tirou a cabeça do travesseiro e tomou o celular da mão de Lobato. – Pronto! Não era Beth. A voz do outro lado soava grossa e altiva. Até no inferno, Ferretti reconheceria o tom de barítono do delegado-titular do 1° DP, Diogo Mansur. – Vá tirando essa bunda italiana da cama, seu filho da puta! – brincou Mansur em tom rude. – Você deve agora vestido com aquele pijama de ursinho cor-de-rosa que ganhou da mamãe no Natal, mas escute sem xingar, seu puto. Estou ligando a esta hora porque é situação de emergência. Não reclame. Daqui a pouco você vai gostar. Vai encher os bolsos com grana fácil. O caso não parece complicado. O abade do mosteiro São Bento acaba de me ligar. Pediu que enviasse alguém lá. Mas o padreco tá com medo que a gente da polícia assuste os monges cordeirinhos. É aí que você entra, seu filho de italiana com gosto de pizza... – De que se trata, dottore? – perguntou Ferretti, bocejando. – Parece que um monge não gostou da comida do mosteiro e resolveu, em protesto, se pendurar numa corda depois da refeição. Depois do que aconteceu em Roma, todos estão com os nervos à flor da pele, entende? Ferretti saiu da beirada da cama e se pôs de pé. “Que catso havia acontecido em Roma?”, pensou com seus bigodes. Mas resolveu esperar para ver se o delegado esclarecia ao longo da conversa. A voz grossa do outro lado da linha continuou: – Caso a notícia do suicídio se espalhe, o abade teme que haja um clima de comoção popular. Isso pode virar moda e estimular uma fila de padrecos a pular da torre da igreja. O abade quer também evitar um batalhão de repórteres e um bando de policiais estacionados na frente do mosteiro. Portando, seja discreto, tá OK? É um caso meio burocrático, entende? Como detetive particular, você se encarrega dos 19
procedimentos normais de um suicídio, faz o relatório de praxe para a polícia, a gente manda um escrivão pra lavrar tudo e encerra o caso. Você se lembra ainda do tempo em que você sentava a bunda gorda numa delegacia de policial, não lembra? É só fazer o boletim de ocorrência e passar para a gente. Quer ou não pegar esta mamata? Ferretti pensou em recusar. O trabalho burocrático não era exatamente o que mais lhe agradava. Sua preferência era por casos intrincados e insolúveis, que lhe construíram fama na crônica policial da cidade. Mas a longa fatura do cartão de crédito sobre a mesa o fez decidir. – Grazie, dottore. Estou indo para o mosteiro imediatamente. – Só uma coisa, Ferretti. Esses monges não sabem lidar com os procedimentos policiais. Estão assustados como andorinhas diante do gato. Acham que a gente vai invadir a igreja deles. Tente acalmá-los, sim? Procure o abade. O nome dele é Calixto. – Capisco, dottore Mansur. Ferretti cofiou os bigodes castanhos. Não gostou nada que o DP lhe passasse um caso desse tipo. Aquela não era sua praia. Tratava-se somente de um suicídio, um entre as dezenas que aconteciam todo mês numa cidade grande. Para se animar um pouco, Ferretti pensou nos doces feitos pelos monges de São Bento. Gostava de visitar o mosteiro com alguma nova namorada. O largo também era bem perto do 1° DP e ele tinha muitos amigos pela redondeza. Enquanto tomava banho e se vestia, Ferretti decidiu resolver o caso rapidamente e, quem sabe, convidar uma de suas namoradas para comer uma massa ali por perto na hora do almoço. Mal sabia o detetive a espessura da macarronada em que estava se enrolando.
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