Nov2014 "Memórias de Adriano"

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Novembro de 2014 Memรณrias de Adriano


REDAÇÃO

Arthur Dambros arthur@taglivros.com.br Gustavo Lembert da Cunha gustavo@taglivros.com.br Tomás Susin dos Santos tomas@taglivros.com.br

REVISÃO ORTOGRÁFICA

Antônio Augusto Portinho da Cunha Adriana Kirsch Trojahn

PROJETO GRÁFICO

Casa Elétrica casaeletrica@casaeletrica.com

ILUSTRAÇÃO DA CAPA Laura D. Miguel lauradep@gmail.com

IMPRESSÃO

Gráfica da UFRGS

TAG Comércio de Livros Ltda.

Rua Celeste Gobbato, 65/203 - Praia de Belas. Porto Alegre-RS. CEP: 90110-160 contato@taglivros.com.br


AO LEITOR

O

utubro foi o mês das crianças, e por ele passamos, a bordo de navios piratas e duelos de morte. Presenteamos uma criança com um livro mágico, e buscamos resgatar a essência infantil que ainda existe dentro de cada associado com as memoráveis histórias de Emilio Salgari e seu pirata Sandokan. Em novembro, deixamos as brincadeiras à parte e mergulhamos no tumultuoso período do Império Romano. Quem nos conduz é o Imperador Adriano, por meio de sua impressionante autobiografia, idealizada pela escritora belga Marguerite Yourcenar. Memórias de Adriano não é um livro ordinário, e quem o atesta é o escritor e teólogo Frei Betto, o indicante deste mês, afirmando que essa obra inspirou-o em diversos momentos de sua vida. Aproveite esta distinta leitura. Equipe TAG



A INDICAÇÃO DO MÊS

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A escola dos meus sonhos O indicante: Frei Betto O livro: Memórias de Adriano

ECOS DA LEITURA

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O interesse literário pelos imperadores romanos A arte de escrever Qual grande artista glorificou um líder pacífico? O Sistema Atual de Trabalho e o Viés da Retrospectiva

A INDICAÇÃO DE DEZEMBRO

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Peter Singer



Indicação do Mês

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A ESCOLA DOS MEUS SONHOS Artigo escrito por Frei Betto e cedido à TAG

Na escola de meus sonhos, os alunos aprendem a cozinhar, costurar, consertar eletrodomésticos, fazer pequenos reparos de eletricidade e de instalações hidráulicas, conhecer mecânica de automóvel e de geladeira, e algo de construção civil. Trabalham em horta, marcenaria e oficinas de escultura, desenho, pintura e música. Cantam no coro e tocam na orquestra. Uma semana ao ano integram-se, na cidade, ao trabalho de lixeiros, enfermeiras, carteiros, guardas de trânsito, policiais, repórteres, feirantes e cozinheiros profissionais. Assim, aprendem como a cidade se articula por baixo, mergulhando em suas conexões subterrâneas que, à superfície, nos asseguram limpeza urbana, socorro de saúde, segurança, informação e alimentação. Não há temas tabus. Todas as situações-limites da vida são tratadas com abertura e profundidade: dor, perda, falência, parto, morte, enfermidade, sexualidade e espiritualidade. Ali os alunos aprendem o texto dentro do contexto: a matemática busca exemplos na corrupção dos precatórios e nos leilões das privatizações; o português, na fala dos apresentadores de TV e nos textos de jornais; a geografia, nos suplementos de turismo e nos conflitos internacionais; a física, nas corridas da Fórmula 1 e pesquisas do supertelescópio Hubble; a química, na qualidade dos cosméticos e na culinária; a história, na violência de policiais a cidadãos, para mostrar os antecedentes na relação colonizadoresíndios, senhores-escravos, Exército-Canudos, etc. Na escola dos meus sonhos, a interdisciplinaridade permite que os professores de biologia e de educação física se complementem; a multidisciplinaridade faz com que a história do livro seja estudada a partir da análise de textos bíblicos; a transdisciplinaridade introduz aulas de meditação e de dança, e associa a história da arte à história das ideologias e das expressões litúrgicas.


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Se a escola for laica, o ensino religioso é plural: o rabino fala do judaísmo; o pai-de-santo, do candomblé; o padre, do catolicismo; o médium, do espiritismo; o pastor, do protestantismo; o guru, do budismo etc. Se for católica, promove retiros espirituais e adequação do currículo ao calendário litúrgico da Igreja. Na escola dos meus sonhos, os professores são obrigados a fazerem periódicos treinamentos e cursos de capacitação, e só são admitidos se, além da competência, comungam com os princípios fundamentais da proposta pedagógica e didática. Porque é uma escola com ideologia, visão de mundo e perfil definido sobre o que são democracia e cidadania. Essa escola não forma consumidores, mas cidadãos. Ela não briga com a TV, mas leva-a para a sala de aula: são exibidos vídeos de anúncios e programas e, em seguida, analisados criticamente. A publicidade do iogurte é debatida; o produto, adquirido; sua química, analisada e comparada com a fórmula declarada pelo fabricante; as incompatibilidades denunciadas, bem como os fatores porventura nocivos à saúde. O programa de auditório de domingo é destrinchado: a proposta de vida subjacente; a visão de felicidade; a relação animador-plateia; os tabus e preconceitos reforçados, etc. Em suma, não se fecha os olhos à realidade; mudase a ótica de encará-la. Há uma integração entre escola, família e sociedade. A Política, com P maiúsculo, é disciplina obrigatória. As eleições para o grêmio ou diretório estudantil são levadas a sério e um mês por ano setores não vitais da instituição são administrados pelos próprios alunos. Os políticos e candidatos são convidados para debates e seus discursos analisados e comparados às suas práticas. Não há provas baseadas no prodígio da memória nem na sorte da múltipla escolha. Como fazia meu velho mestre Geraldo França de Lima, professor de História (hoje romancista e membro da Academia Brasileira de Letras), no dia da prova sobre a Independência do Brasil os alunos traziam à classe toda a bibliografia pertinente e, dadas as questões, consultavam os textos, aprendendo a pesquisar.


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Não há coincidência entre o calendário gregoriano e o curricular. João pode cursar a 5ª série em seis meses ou em seis anos, dependendo de sua disponibilidade, aptidão e recursos. É mais importante educar que instruir; formar pessoas que profissionais; ensinar a mudar o mundo que a ascender à elite. Dentro de uma concepção holística, ali a ecologia vai do meio ambiente aos cuidados com nossa unidade corpo-espírito, e o enfoque curricular estabelece conexões com o noticiário da mídia. Na escola dos meus sonhos, os professores são bem pagos e não precisam pular de colégio em colégio para poderem se manter. Pois é a escola de uma sociedade onde educação não é privilégio, mas direito universal e, o acesso a ela, dever obrigatório.


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O INDICANTE: FREI BETTO Este texto que você acabou de ler representa o tipo de reflexão levantada pelo nosso indicante do mês de novembro, o renomado teólogo e escritor mineiro Carlos Alberto Libânio Christo, mais conhecido como FREI BETTO. Detentor de uma emocionante história vivida na constante luta pelos seus ideais, foi preso duas vezes durante o período da ditadura militar: por quinze dias, em 1964, e por quatro anos, entre 1969-1973. Passou por oito presídios, entre eles Carandiru e o Presídio de Segurança Máxima de São Paulo. As experiências vividas na prisão por ele e outros companheiros estão descritas em alguns de seus livros, como Cartas da Prisão, Diário de Fernando - nos cárceres da ditadura militar brasileira e Batismo de Sangue. Com um fino senso de humor, Frei Betto alega que o cárcere na verdade o libertou, pois serviu como um “grande retiro espiritual e literário”. Aprendi a não odiar, não por virtude, mas por comodismo. O ódio destrói primeiro quem odeia, não quem é odiado. Não adianta nada ter raiva de torturadores e generais. Vai corroer o meu coração e não incomodá-los. -Frei Betto Desde pequeno, Frei Betto viveu em um ambiente no qual a política estava fortemente presente. Seu pai, além de ter sido vereador e candidato a deputado estadual, costumava debater com seus amigos dentro de sua casa. Frei Betto afirma que isso lhe evidenciou a importância de se possuir uma visão crítica em relação ao que está acontecendo no país, e não se conformar com as notórias iniquidades presentes na sociedade brasileira. Reconhecido mundialmente por sua luta pelos direitos humanos e justiça social, foi agraciado pela Unesco com o Prêmio Internacional José Martí,


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por seu trabalho caracterizado pela “oposição a todas as formas de discriminação, injustiça e exclusão”.

Lá em casa, com os amigos, com os parentes, só se conversava política. Isso influenciou muito meu interesse por ter uma participação política representativa. -Frei Betto Frei Betto já escreveu mais de 50 livros, tendo recebido diversos prêmios literários, como o English Pen Award por Hotel Brasil. Foi co-autor de outros grandes nomes do cenário brasileiro, como o educador Paulo Freire, o físico Marcelo Gleiser e o filósofo Mário Sérgio Cortella. Sua obra mais aclamada pela crítica foi Batismo de Sangue, que recebeu o Prêmio Jabuti de 1983 e foi traduzida para diversas línguas, entre elas o francês e o italiano. Esse livro contém um dos mais chocantes relatos das atrocidades perpetradas durante a ditadura militar, trazendo pormenores da morte do líder da Ação Libertadora Nacional Carlos Marighella e das torturas sofridas por Frei Tito, símbolo dos frades dominicanos daquele período. Baseado no livro, o diretor mineiro Helvécio Ratton produziu o filme homônimo, lançado em 2007. O longa-metragem obteve grande destaque, sobretudo pelas impactantes cenas de tortura e do temor demonstrado pelas pessoas que se opunham ao regime.


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MEMÓRIAS DE ADRIANO, DE MARGUERITE YOURCENAR, foi o livro que Frei Betto indicou para a TAG. “Li o livro motivado por conhecer o talento da autora, e também pelo fato de ele ter se tornado tão reconhecido internacionalmente. Foi uma leitura deliciosa”, conta o teólogo. Por ser tão bem escrito e discutir questões tão formidáveis, Frei Betto atesta que este livro teve uma participação importante para o desenvolvimento de algumas de suas obras. Considerado um dos cem melhores livros do século XX pela Folha de São Paulo, Memórias de Adriano é, de fato, excepcional. Conheça um pouco mais sobre ele a seguir.

Li Memórias de Adriano no início dos anos 80, enquanto redigia meu livro “Batismo de Sangue”, e a leitura me ajudou na redação da minha obra. Este delicioso livro deve ser lido por todos. É um resgate histórico primoroso, que levou à autora 27 anos de pesquisas para que pudesse concluí-lo. -Frei Betto


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Indicação de Dezembro

FOTO: MARIE-LAN NGUYEN


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O LIVRO: MEMÓRIAS DE ADRIANO Genuína obra-prima, Memoires d’Hadrien foi escrito por Marguerite Yourcenar no período entre 1924 e 1951. Considerada por muitos como a grande dama da literatura francesa, Yourcenar nasceu na Bélgica, em 1903, oriunda de família integrante da aristocracia francesa, e foi a primeira mulher a ingressar na Academia Francesa de Letras. Nunca frequentou a escola regular, mas aprendeu grego e latim com seu pai, o que desde cedo despertou seu gosto pela literatura grega e romana. Tornou-se internacionalmente conhecida com Memórias de Adriano, mas teve, também, outras obras aclamadas pela crítica, como A Obra ao Negro e O Jardim das Quimeras. O grande legado da autora foi a sua bem-sucedida tentativa de resgatar a visão humanista do Ocidente, por meio de um estilo clássico, dificilmente encontrado nas obras mais representativas do século XX e XXI. Yourcenar nos traz uma biografia do imperador Adriano, escrita em primeira pessoa, através de uma carta ao seu sucessor Marco Aurélio. Dividido em seis capítulos, cada um representando uma fase de sua vida, o livro inicia com Adriano relatando que está em seu leito de morte, e que “esta carta é a meditação escrita de um doente que dá audiência a suas recordações”. Permeado por indagações filosóficas, em alguns momentos nos sentimos diante de uma sequência de aforismos, de tão bem elaboradas que são suas meditações. Não são raras as vezes em que nos encontramos com o livro deitado ao colo, refletindo a respeito do que acabamos de ler.

Muito bem escrito, Memórias de Adriano revela uma figura histórica situada na ‘esquina’ da confluência do Ocidente pagão com o Ocidente cristão, quando ainda a moral que conhecemos não estava consolidada. -Frei Betto


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Ao ascender ao cargo de imperador, Adriano começa a pôr em prática seu maior objetivo: pacificar o território romano. Diferentemente de seu antecessor Trajano, que era impelido por seu gosto bélico a mais e mais conquistas, Adriano passou a viajar pelo seu território em busca do fim dos conflitos, para possibilitar uma vida mais tranquila aos povos que ali habitavam. Porém, as intrigas com seus oponentes no Senado e com alguns de seus inimigos o levam a momentos de tensão, que são muito bem descritos no livro a partir de diversos questionamentos à humanidade feitos pelo imperador, a respeito da busca por poder e reconhecimento.

Nosso grande erro é tentar encontrar em cada um, em particular, as virtudes que ele não tem, negligenciando o cultivo daquelas que ele possui. -Trecho extraído do livro

O livro também retrata de maneira muito intensa a vida pessoal do imperador, descrevendo suas relações de amizade e amor. Apesar de se tratar de um romance histórico, por diversas vezes nos encontramos em meio à leitura divagando sobre questões atuais, inclusive nos questionando se os mil e novecentos anos que nos separam de Adriano provocaram alguma transformação na nossa percepção sobre as questões humanas. Impressiona o valor atribuído por Adriano e outros personagens à literatura, mencionando diversas vezes a importância da construção de bibliotecas públicas e seu papel na vida das pessoas. Plotina, mulher de Trajano, por exemplo, decide afixar uma placa na frente de sua biblioteca onde se lê “Hospital da Alma”.

A palavra escrita ensinou-me a apreciar a voz humana, tanto quanto a grande imobilidade das estátuas levou-me a valorizar os gestos. Em compensação, e no decorrer dos tempos, a vida me fez compreender os livros. -Trecho extraído do livro


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Nas notas explicativas, presentes no final do livro, a autora descreve um pouco das dificuldades encontradas em suas pesquisas ao longo desses vinte e sete anos, levando-a inclusive a desistir da elaboração da obra por diversas vezes. Em 1948, após longo período sem se dedicar ao livro, encontrou uma mala cheia de papéis de família e velhas cartas. Decidiu reler algumas antes de jogá-las ao fogo. “Desdobrei quatro ou cinco folhas datilografadas; o papel estava amarelecido. Comecei a ler: ‘Meu caro Marco...’ Marco... De que amigo, de qual amante, de qual parente afastado se tratava? Não lembrava desse nome. Foram necessários alguns momentos para que me recordasse de que Marco se referia ali a Marco Aurélio e de que eu tinha diante dos olhos um fragmento do manuscrito perdido. Desde aquele momento, a questão era reescrever o livro, custasse o que custasse.”

Se este homem não tivesse mantido a paz no mundo e renovado a economia do Império, suas felicidades e infortúnios ter-me-iam interessado menos. -Marguerite Yourcenar, sobre o imperador Adriano Também foi possível encontrar, nessas notas, um dos segredos do êxito da autora ao escrever um livro com passagens tão intensas: durante um longo período, Marguerite Yourcenar adotou o hábito de escrever todas as noites. Ao acordar, resumia a essência do que escrevera na noite anterior em breves frases, e queimava o resto. Se tivesse publicado tudo que escreveu, o livro possuiria milhares de páginas. Porém, como ela mesma afirma, estas foram escritas apenas para satisfazer a si própria. Assim como nos falou Frei Betto, esta grande obra deve ser lida por todos. Com uma riqueza de detalhes que fazem nos sentirmos amigos íntimos de Adriano ao final da história, este é um livro que ocupará um lugar especial no seu próprio “Hospital da Alma”.


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ecos da leitura


Ecos da Leitura

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A leitura de Memórias de Adriano estimulou a busca por outros relatos literários sobre a vida de imperadores romanos, e o resultado dessa pesquisa compõe o primeiro eco deste mês. Além de Frei Betto, o talento de Marguerite Yourcenar impressionou outros escritores, que nela se inspiraram para construir suas obras, como apresentamos no eco A arte de escrever. Livros, filmes e histórias estão repletos de guerras e heróis belicosos. Qual grande artista glorificou um líder pacífico? é um eco que questiona se o preço da imortalidade é recorrer ao uso da força. Por fim, em O sistema atual de trabalho e o viés da retrospectiva, trazemos reflexões do psicólogo Daniel Kahneman e as relacionamos com o livro deste mês. contato@taglivros.com.br


18 Ecos da Leitura

O INTERESSE LITERÁRIO PELOS IMPERADORES ROMANOS

A vida política e privada dos imperadores romanos não despertou o interesse apenas de Marguerite Yourcenar. Àqueles que desejarem estenderse na história romana, trazemos algumas sugestões. O americano Gore Vidal e o inglês Robert Graves também destacaram importantes personagens daquele período como foco de extensivos estudos, que resultaram em dois livros notáveis: Juliano e Eu, Cláudio. Memórias de Adriano é considerado o mais “literário” dos três livros, enquanto os outros dois constituem relatos mais fidedignos da vida dos imperadores.


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O polêmico escritor e ensaísta Gore Vidal (1925 – 2012) estava contrariado com o moralismo cristão presente no mundo ocidental contemporâneo, principalmente nos Estados Unidos. Como forma de expressar essa insatisfação, ele faz nesse romance a defesa do último imperador romano pagão, Juliano, que, insurgindo-se contra o cristianismo – institucionalizado como religião oficial do império romano por Constantino, em 312 – tentou reconduzir Roma à religião antiga, précristã, no breve período em que esteve no poder, entre 361 e 363. Como nos seus outros romances históricos, Vidal utilizou-se de inúmeras pesquisas para retratar fielmente as personagens e seus costumes.

Diferentemente de outros imperadores, Tibério Cláudio era desprezado pela sua fraqueza e visto pela família como pouco mais que um tolo gago. A obra de Robert Graves traz ao leitor as dificuldades enfrentadas por Cláudio para sobreviver às intrigas e à crueldade que caracterizam as dinastias imperiais romanas. Em 1998, a Modern Library elencou Eu, Cláudio em décimo quarto na lista dos cem melhores romances do século XX. Em 2010, foi selecionado pela revista TIME como um dos cem melhores romances escritos desde 1923. O livro foi adaptado para uma série de TV com grande sucesso pela emissora BBC.


20 Ecos da Leitura

SOBRE A ARTE DE ESCREVER Nem todo escritor encara da mesma forma a arte de produzir seus livros. Frei Betto, em seu livro O que a vida me ensinou, conta que conheceu o jornalista Tadeu Moraçaba, que buscava redigir sua própria obra. Segue um trecho da conversa:

Indaguei quanto tempo ele trabalhava no texto: – Seis anos. – Seis anos?! – Sim, e acho pouco. Quero personagens tão elaborados quanto os que trafegam nas páginas de Thomas Mann ou Steinbeck. Almejo uma figura tão universal quanto Dom Quixote e Eugene Oneguin. A igreja do Pilar, em Ouro Preto, levou vinte anos para ser construída. Marguerite Yourcenar demorou vinte e sete para escrever Memórias de Adriano, e Goethe, quase sessenta para terminar Fausto. Não tenho pressa.*

*Trecho retirado do livro “O que a vida me ensinou”, Editora Saraiva.


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QUAL GRANDE ARTISTA GLORIFICOU UM LÍDER PACÍFICO? Aqueles que já estavam conosco no mês de agosto devem lembrar-se da saga do personagem Rob J. Cole que, desejando tornar-se médico, abandona a Inglaterra – onde a ciência médica ainda era subdesenvolvida – e lança-se para Isfahan, na Pérsia, para estudar com Avicena, o mais renomado médico da época. Em dado momento, Rob e seu mestre Avicena foram chamados pelo Xá, líder persa de Isfahan, pois este havia torcido o punho enquanto decapitava um inimigo, que deitava-se separado de sua cabeça sobre o chão ensanguentado. - Se tivessem vindo antes, teriam me visto separar a cabeça de seu corpo. (Xá) - Me desculpe se eu perdi. Claro que ele merecia a decapitação. (Avicena) - Ele veio com uma mensagem para um tratado de paz. (Xá) segundos de silêncio

- Então o senhor classifica a guerra como benéfica? Seus inimigos não têm nada a perder com ela, a não ser os animais em que montam. Sua Majestade, porém, tem toda uma civilização! (Avicena) segundos de silêncio

- Será mesmo? Qual grande artista glorificou um rei pacífico? A guerra me concederá a glória imortal do meu nome. (Xá) (Cena do filme O Físico)

Para o rei persa, era a espada e o sangue que fariam seu nome ser escrito nas páginas da história. Para Adriano, entretanto, foi o incentivo à cultura, a disseminação das artes e o desenvolvimento intelectual do seu povo que constituíram o foco do seu império. E foi Marguerite Yourcenar a artista que o glorificou.


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Marguerite Yourcenar,

a autora que glorificou um lĂ­der pacĂ­fico


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O SISTEMA ATUAL DE TRABALHO E O VIÉS DA RETROSPECTIVA

Em 2013, comemoramos cento e vinte e cinco anos da abolição da escravatura no Brasil. Antes desse período, os escravos eram um bem como qualquer outro, sendo comercializados nos mesmos moldes com que se transacionavam quaisquer mercadorias. Em 2012, celebramos o 80º aniversário do sufrágio feminino em nosso país. Hoje, é difícil pensar que nossas esposas, mães e filhas seriam proibidas de expressar suas convicções políticas por meio da escolha dos seus representantes nos poderes políticos da nação. Alguns fatos apresentados pela nossa história nos parecem tão absurdos, cometidos por pessoas tão diferentes de nós, que sua real ocorrência por vezes é questionada, chegando a parecer inaceitável que um ser humano os tenha perpetrado. Porém, uma questão é determinante ao analisarmos nossos sentimentos: todos esses acontecimentos parecem muito mais absurdos e inaceitáveis quando analisados após a sua ocorrência. Este modelo de análise é descrito brilhantemente pelo psicólogo-economista Daniel Kahneman, vencedor do prêmio Nobel de Economia de 2002, em sua teoria sobre o que ele denomina “viés da retrospectiva”1. Basicamente, o que seus estudos comprovam é que a mente humana é capaz de elaborar histórias que nos parecem óbvias após os fatos terem ocorrido, mesmo que, no momento de sua ocorrência, não possuíssemos tanta certeza assim. A perspectiva pela qual observamos o acontecimento não é mais a mesma, e costumamos criar uma relação causa-efeito para os fatos sucedidos. Dessa maneira, passamos a acreditar piamente que pensávamos da mesma forma antes do episódio ocorrer. Para exemplificar com fatos cotidianos, Kahneman cita um jogo de futebol entre dois times 1 Rápido e Devagar, Daniel Kahneman, 2011


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que possuem chances iguais de saírem vencedores. Depois que um time trucidou o adversário, é comum encontrarmos torcedores que realmente acreditam que mesmo antes do jogo já esperavam que esse seria o resultado, e ainda possuem diversas explicações para tal fato. Na verdade, operou-se uma crucial mudança na perspectiva pela qual se realizava a análise dos times, e esses torcedores não conseguem mais avaliar o jogo com a visão que antes possuíam. A teoria de Kahneman não se aplica apenas para situações em que mudamos de opinião quanto ao resultado de um jogo. Ele propõe que muitos dos acontecimentos importantes da vida das pessoas são reproduzidos de maneira diferente na nossa memória, em virtude de suas reais consequências, as quais passam, retrospectivamente, a modelar as nossas lembranças. Raramente recordamos de ter apoiado com convicção algo que acabou sendo desastroso, ou de ter relutado com veemência a aceitar algo que venha a ser extremamente positivo. Dessa maneira, dificilmente encontraríamos pessoas que viveram as polêmicas de 1922 e que diriam que eram contrárias, na época, à permissão do sufrágio feminino. Mas, convenhamos, se todos realmente fossem defensores de tal medida, ela teria sido tomada muitos anos antes. No livro Memórias de Adriano, em certo momento o imperador Adriano expõe a seguinte reflexão: “Duvido de que toda a filosofia do mundo seja capaz de suprimir a escravidão: no máximo mudar-lhe-ão o nome. Sou capaz de imaginar formas de servidão piores que as nossas porque mais insidiosas: seja transformando os homens em máquinas estúpidas e satisfeitas que se julgam livres quando são subjugadas, seja desenvolvendo neles, mediante a exclusão do repouso e dos prazeres humanos, um gosto tão absorvente pelo trabalho como a paixão da guerra entre as raças bárbaras.”

Atualmente, a escravidão não é sequer passível de ser discutida, pois sua imoralidade é evidente. Porém, a justificativa de Adriano para a incredulidade quanto à


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sua abolição é totalmente válida. Quão diferente é de um escravo o homem que é obrigado a dedicar a maior parte do seu tempo ao seu trabalho? Haverá quem diga que a comparação é absurda, pois os escravos não eram assalariados. Quando esse ponto se torna o principal – e, em alguns casos, o único – para distinguir um trabalhador do século XXI de um escravo, o questionamento ganha ainda mais força. A empresa Foxconn, fabricante chinesa de produtos tecnológicos, registrou um número alto de suicídios cometidos pelos funcionários, dentro da sua fábrica – quatorze pessoas haviam se atirado do alto do prédio. As maiores reivindicações dos funcionários residiam no fato de trabalharem por muitas horas, e em péssimas condições, o que era negligenciado por gerentes e diretores. Além disso, eram multados por conversarem durante o expediente e por se recusarem a fazer horas extras. Quais as soluções encontradas pela empresa? Instalar redes embaixo de todas as janelas, e elaborar um contrato por meio do qual o funcionário deveria consentir que, caso cometesse suicídio, a empresa não poderia ser responsabilizada.2 A diferença talvez recaia, então, na presença do livre arbítrio: trabalha na Foxconn quem assim escolher. Porém, como o funcionário da empresa, quão livres são os milhares de trabalhadores que dependem de dois ou mais empregos para poder sustentar sua família? Possivelmente, as condições a que se submetem não são suportadas por opção, e sim por necessidade. Ainda assim, essa é uma realidade distante da nossa, e sem dificuldades conseguimos avaliá-la como próxima à escravidão. Entretanto, outros casos passam despercebidos no nosso dia-a-dia, indignos de nota. Quando analisamos a nós mesmos – aqueles que, ao contrário, possuem mais uma opção do que uma necessidade –, essa reflexão torna-se mais pertinente. Será que, por desfrutarmos de boas condições de trabalho e não necessitarmos de diferentes fontes de renda para suprir nossas necessidades básicas, estamos inquestionavelmente distantes da escravidão? Algumas empresas de consultoria, por exemplo,


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impõem jornadas de trabalho de até 60 horas semanais para seus consultores, incentivando cada vez mais a cultura workaholic. Isso não se restringe, porém, apenas a essas empresas. O perfil de empregado normalmente procurado em processos seletivos é exatamente aquele disposto a abrir mão de sua vida pessoal em prol do trabalho. Uma pessoa que decide trabalhar menos, abdicando de cargos mais importantes e salários astronômicos para dispor de mais tempo para realizar suas atividades pessoais, é vista como “descompromissada”, “desleixada”. Parece que Adriano estava prevendo o futuro. Tanto o filósofo Mario Sergio Cortella, nosso indicante do mês de agosto, quanto Viktor Frankl, autor do livro enviado em setembro, relatam a crença generalizada de gerações anteriores na função libertadora da revolução tecnológica, a qual permitiria trabalhar apenas quatro horas por dia, designando o resto de seu tempo para atividades de lazer. Hoje, com a crescente competitividade no mundo corporativo, ridicularizamos essas previsões. Cada nova tecnologia que surge para diminuir o tempo de um processo acaba por fazer com que os indivíduos se vejam obrigados a produzir muito mais. Além disso, pelo fato de as pessoas jamais ficarem completamente off-line, não mais se dão o direito de deixar um pouco de lado o seu emprego e, por exemplo, abster-se de monitorar seu e-mail de trabalho entre um expediente e outro. Como Kahneman comprovou em suas pesquisas, é muito mais fácil apontar erros e absurdos cometidos pelo homem quando estes já não estão mais acontecendo. Portanto, não conseguimos, no presente momento, analisar de maneira racional o modo como nosso sistema está sendo conduzido, e muito menos as consequências que ele poderá gerar no longo prazo. O que pensarão as próximas gerações do nosso sistema de trabalho? Que tipos de condições a que hoje nos submetemos eles considerarão absurdas e inaceitáveis?

2 http://veja.abril.com.br/noticia/vida-digital/por-dentro-da-foxconn-em-shenzhen


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A INDICAÇÃO De dezembro

Desde o início, os associados solicitaram que a TAG selecionasse e recomendasse, eventualmente, clássicos da literatura. Para dezembro, o filósofo Peter Singer atendeu a esse pedido e indicou um livro que foi considerado o segundo mais amado de toda literatura inglesa. A obra indicada por Singer representa uma sátira à sociedade inglesa do século XVIII e à maneira como se dava a relação entre pessoas de diferentes classes sociais. É notável, também, a insatisfação da autora com o reduzido papel social das mulheres. Tendo como plano de fundo a aristocracia rural inglesa, esta obra-prima é marcada pela ironia perante a futilidade presente na época – e que pouco difere do que observamos atualmente.


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O INDICANTE: PETER SINGER

Se este não é o melhor romance já escrito, eu não sei qual é. Nada supera a sua impressionante observação dos costumes, personagens e paixões, relatados com o mais prazeroso e delicado senso de humor. FOTO: ANDREW WILKINSON

Com a publicação de Libertação Animal, em 1975, Peter Singer tornou-se reconhecido mundialmente, e é considerado uma referência no campo dos direitos dos animais até os dias atuais. Filósofo utilitarista, Singer baseia seu principal argumento na defesa de que a teoria de “buscar o maior bem possível para o maior número” não deveria excluir os animais deste número. Argumenta que o motivo dessa exclusão reside no “especicismo”, ou seja, a preferência dada pelos humanos aos seres da mesma espécie, quando na verdade todos deveriam ser tratados de maneira igualitária. Sua obra mais abrangente, e também mais polêmica, é Ética Prática, onde disserta sobre temas que vão desde a eutanásia, o aborto e o infanticídio até a pobreza mundial.

Informações completas a respeito do indicante do mês e do livro recomendado podem ser encontradas no www.taglivros.com.br ou então na revista do próximo mês.



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